Esposas em conflito (1975) e o desejo do patriarcado

Mairla Gonçalves
6 min readJul 28, 2017

“Se eu estiver errada, estou louca. Se eu estiver certa, é pior do que eu estar errada”

Esposas em Conflito (1975) conta a história de Joanne que acaba de se mudar para uma cidade chamada “Stepford” com seu marido e filhos. Chegando lá Joanne começa a se inquietar com o comportamentos das residentes femininas dessa pacata cidade que dedicam suas vidas inteiramente à seu lar, filhos e marido. Joanne conhece outra mulher que também estranha tais comportamentos e as duas passam a tentar compreender o que acontece na cidade.

Poster do filme de 1975

Na cena inicial do filme a câmera vai da parede à um espelho com o reflexo de Joanne, algo símbolo em conjunto com o desfecho do filme que, desde seu início nos dá pistas do que pode vir acontecer. O reflexo de Joanne no espelho nada mais é do que outra Joanne, outro corpo, outro rosto idêntico ao seu, que, como um espelho, só se move sob as ordens de um “corpo real”. O reflexo no espelho não tem vontade própria, não possui ânsias, desejos ou opiniões, apenas obedece os comandos daquele que está a sua frente.

Logo em seguida, saindo de casa, Joanne se depara com um rapaz carregando uma manequim feminina pela cidade. Ela se vê fascinada pelo episódio e decide fotografá-lo. O rosto da manequim está coberto, ela não tem nenhuma identidade, é apenas uma boneca para uso de outrem. No carro, uma das crianças menciona ao pai o que acabaram de ver na rua e o pai responde “É por isso que estamos indo para Stepford”. A referência nesse trecho é bastante clara, embora o pai (Walter) ainda não saiba, é exatamente por isso que estão indo para Stepford, para transformar as mulheres em manequins sem nenhuma personalidade.

A conversa de Joanne com seu reflexo no espelho nos ajudará a compreender o andamento da história. Depois de conhecer os homens da Associação de Homens, Joanne recebe de presente um desenho feito por um deles. O desenho é parte da produção do robô, é uma espécie de modelo inicial para sua criação. Enquanto conversa com seu marido, Joanne olha para si mesma no espelho, seu reflexo está tirando a maquiagem, se despindo, se transformando. Ao lado, vemos o desenho feito que denuncia o futuro de Joanne, ela deixará de ser quem é, e se tornará nada.

A primeira das personagens “estranhas” que conhecemos é Carol Van Sant, que aparece para deixar comida como um presente de boas vindas aos recém chegados. Ela é recebida por Walter que parece intrigado e encantado com o comportamento da moça considerando seu olhar desconcertado e a trilha sonora delicada que nos remete a algo agradável e dócil. Vemos aqui o inicio da sedução de Walter pelo projeto que lhe será apresentado.

Walter chega em casa empolgado para falar que foi convidado para participar da Associação dos Homens, onde os homens da cidade de reúnem, decidem e criam projetos sem a participação feminina. Walter usa como justificativa para entrar no grupo o fato de que todos os homens poderosos da cidade estão participando citando suas profissões, ou seja, estar na Associação dos Homens é estar no poder, é ter o controle. Uma metáfora bastante clara para as organizações patriarcais em que vivemos, onde os lugares de poder e influência são ocupados majoritariamente por homens.

Depois da primeira reunião com essa associação Walter parece atordoado, pois provavelmente foi nela que descobriu o verdadeiro objetivo do grupo: substituir todas as esposas por robôs que cuja única preocupação é arrumar a casa, cuidar das crianças e oferecer prazer para o marido.

Personagem Dis, provavelmente o líder de todo o projeto. Ele tem esse apelido porque trabalhou na Disneylância possivelmente na construção de robôs.

Na cena mostrada abaixo vemos Dis e Walter em um cenário que irá aparecer no fim do filme. Walter já conhece todas as intenções do grupo e Dis pergunta se ele ainda tem dúvidas de que quer permanecer na cidade, ou seja, se está disposto a substituir sua esposa por um robô.

Por aí saíra o som que irá atrair Joanne para Dis

Uma das amigas de Joanne era uma jogadora de tênis com ideias modernas e que estava disposta a apoiar Joanne abre mão da quadra de tênis que tanto gostava para criar uma piscina que o marido desejava sendo completamente submissa às vontades dele.

Antes de vermos o rosto da amiga de Joanne, vemos um retrato seu, sinalizando que a Associação de Homens já havia pegado seus moldes para construir seu robô.

Lembra que no início do texto eu falei que Joanne fotografou um rapaz com uma manequim? Pois é, depois disso ela só fotografou mais uma fez. E o momento foi o de brincadeira de suas filhas e as filhas de sua amiga. Existe um contraste bem aparente nos dois momentos. O primeiro está representado pelo vazio de si, um objeto sendo carregado por uma rua movimentada na qual quase ninguém lhe dirige os olhos ou se preocupa. A segunda foto representa um momento de vivacidade, onde crianças agem como crianças e divertem se apropriando dessa naturalidade. A primeira foto jamais chega a ser mencionada no restante do filme. A segunda é levada à um avaliador de arte que as elogia enquanto Joanne sonha em ser lembrada pelo seu nome de solteira, remetendo à sua identidade não vinculada à um homem. Joanne deseja ser lembrada não como a esposa de alguém, mas como uma mulheres de seus próprios feitos.

Duas cenas captadas por Joanne

Quando Joanne aparece decidida a ir embora explicando ao marido que todas as mulheres da cidade, incluindo suas amigas que antes apresentavam comportamento independente, estavam loucas Walter faz o que grupos feministas costumam chamar de Gaslighting, ele manipula a situação a fazer Joanne acreditar que está ficando louca e a convence a procurar uma psiquiatra, fazendo assim com que ele e os outros homens da cidade ganhem mais tempo.

“Terá alguém como eu que irá cozinhar feito louca, mas não irá fotografar, não será eu” — Diz Joanne à psiquiatra

Na psiquiatra Joanne aborda novamente as questões de identidade, de quais aspectos constituem um ser humano. Afinal, o que faz você ser você? O que te diferencia dos outros substancialmente se não seus desejos, suas aspirações de vida e opiniões? Quem você é se não que você deseja?

O filme termina em uma nota negativa (será?). Vemos que Joanne não conseguiu escapar dos planos formulados pelos patriarcas das famílias de Stepford. A cena final é vazia, calculada e apática, assim como o sistema patriarcal deseja que as mulheres sejam. Elas devem se ater apenas às funções que lhe foram atribuídas e nada mais. E Joanne está presa ali com todas aquelas mulheres que um dia tentaram desafiar esse sistema.

A última cena me intriga bastante, talvez seja meu olhar esperançoso que quer encontrar sofrimento nos olhos de um robô em ode de crer que não é um robô que está ali. Que de alguma maneira Joanne conseguiu assumir seu lugar e apenas finge seguir as regras. De qualquer modo, esse também não é um final muito feliz.

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Mairla Gonçalves

Casada com a psicologia e amante do cinema. E também tô no Youtube: https://goo.gl/w4u1wN