Para Ter Onde Ir: road movie à brasileira

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readMay 10, 2018

--

(Foto: reprodução)

O Brasil é um país perfeito para road movies: a natureza exuberante, os cenários impressionantes, os contrastes entre os grandes centros e o interior e até mesmo dentro dos grandes centros, entre os bairros ricos e os mais pobres. Eu me alegro toda vez que surge um novo road movie à brasileira, e com “Para Ter Onde Ir” a empolgação foi ainda maior: trata-se de um road movie ambientado no Pará, protagonizado por três mulheres, escrito e dirigido também por uma mulher, Jorane Castro.

Eva (Lorena Lobato) é pragmática e pé-no-chão. Ela trabalha com navios cargueiros, ajudando-os a atracar — certamente uma profissão que exige muita responsabilidade. Melina (Ane Oliveira) acabou de terminar um relacionamento. Keithylennye, ou simplesmente Keithy (Keila Gentil) está procurando o ex-companheiro, Anderson, que há algumas semanas não dá notícia e não vai visitar a filha pequena deles. Milena, que estava com o carro de Eva, pega a amiga no trabalho, a partir daí Eva assume a direção e vai buscar Keithy na comunidade onde mora para seguirem viagem.

No meio do caminho, Eva dá carona para uma senhora que carrega um menino pequeno no colo. Solícita, decide levar a senhora até o mais perto de casa possível — e é aí que o carro de Eva estraga, e as três moças se veem obrigadas a passar uma noite em um vilarejo bastante afastado. E elas também ouvem falar de uma ilha peculiar, que só é visível uma vez ao ano e emana uma energia revigorante.

Eva, interpretada por Lorena Lobato (Foto: reprodução)

Eva diz, em determinado momento, que “amor é narrativa, invenção”. Amor é algo para ser sentido no coletivo, e não apenas a dois. Apesar disso, todas as mulheres buscam amor nesta viagem: Keithy quer rever o companheiro e decidir como vão ficar as coisas entre eles, Milena quer esquecer sua desilusão amorosa, e a própria Eva vai até a praia atrás de Jonas, seu filho, com quem não tem contato há um bom tempo.

Além do amor, “Para Ter Onde Ir” lida especialmente com caminhos e decisões. Este tema fica mais patente na jornada de Keithy, que também é cantora de tecnomelody, ritmo popular no Pará, que ao encontrar o ex recebe dele a proposta de seguirem juntos, pois ele já estava fazendo sucesso, e deixarem a filha deles para ser criada pela avó paterna.

Keithy, interpretada por Keila Gentil (Foto: reprodução)

A maioria dos diálogos é ouvida sem que vejamos o rosto de quem está falando, contrariando o que é usual no audiovisual. Da mesma forma, as situações não são explicadas tintim por tintim, não são servidas digeridas ao público, mas sim jogadas para nós, que então precisamos decifrar algumas coisas e juntar umas às outras para criar o sentido completo do filme.

Um filme feito com poucos recursos — apenas 1,35 milhão de reais, orçamento pequeno no mundo do cinema — não necessariamente significa um filme “primitivo” — é mais comum que o arrocho financeiro leve a soluções muito criativas. A luz usada para as filmagens é natural, luz difusa do inverno amazônico. Em determinado momento, a câmera captura o deslocamento de Eva através do reflexo dela em uma poça d’água, o que é um uso magistral do instrumento cinematográfico.

Como essas mulheres tão diferentes se conheceram e se tornaram amigas? Eu adoraria ver o começo desta amizade, talvez em outro filme. Seria muito bom ter mais um filme sobre sororidade, mostrando como é possível que mulheres completamente diferentes sejam amigas. Da mesma forma, seria interessante ver como é a ilha misteriosa, e o que as três amigas fizeram ao chegar lá. Mesmo que a jornada seja mais interessante que o destino, haveria uma sensação de satisfação com a exploração da ilha. Fica aqui nossa sugestão à Jorane: por que não fazer uma trilogia de “Para Ter Onde Ir”?

Bastidores (Foto: reprodução)

O que mais me incomodou em “Para Ter Onde Ir” foi o fato de, no fundo, a viagem para todas as três ter sido motivada pelos homens das vidas delas. São mulheres protagonistas, mas a força por trás da ação delas ainda é de autoria masculina — algo que seria facilmente eliminado se fosse contada a história daquela amizade.

Fazer cinema no Brasil é um ato de resistência. Fazer cinema no Pará, então, é quase como lutar contra moinhos de vento, à moda de Don Quixote. “Para Ter Onde Ir” foi filmado em 2015, ficou pronto em 2016 e só em 2018 conseguiu um distribuidor para ser levado às salas de cinema — que ainda serão bem poucas, em comparação com o cinema de Hollywood ou mesmo com o cinema brasileiro dos rostinhos famosos. Mas que bom que o filme ficou pronto! Que bom que ainda temos Quixotes lutando contra tudo e contra todos para fazer arte!

Assista ao trailer do filme:

--

--