Coluna
Arthur Dapieve

Pedradas

No meu quarto, ouvindo a Plebe Rude rugir, eu tinha vontade de dar botinadas nas paredes

Tenho duas razões diferentes e complementares para gostar pacas da Plebe Rude. A primeira é puramente musical. Desde o primeiro momento em que a ouvi, lá por 1984 ou 1985, reconheci outros fãs do Clash. Eu venerava o Clash. Para mim, foi a melhor banda de rock’n’roll — sem adjetivos — que já existiu. De vez em quando, no futuro, a Plebe se transformaria no grupo cover The Clash City Rockers.

No começo de 1986, ouvi até gastar o disco de estreia da Plebe, um mini-LP chamado “O concreto já rachou”, e tive a impressão de que o rock brasileiro da minha geração não poderia se tornar melhor que aquilo. Igual, sim: Legião, Paralamas, Titãs. Melhor, não. Eram 21:36 de pau dentro. Sete pedradas em toda forma de poder. Punk no conteúdo, mas não exatamente na forma. Punk abre disco com violoncelo?

A segunda razão deriva da primeira. É afetiva. Meu texto de estreia na grande imprensa foi sobre a Plebe: “O rock dos revoltados”, no “Jornal do Brasil”. Entrevista com Philippe, Jander, André e Gutje, realizada na antiga sede da EMI, na Rua Mena Barreto, para anunciar o lançamento do mini-LP, com dois shows no Morro da Urca.

Um ano e quatro meses depois, eu os estava entrevistando de novo. O pretexto era o lançamento do segundo disco da Plebe, um LP inteiro, chamado “Nunca fomos tão brasileiros”, com um show no festival Alternativa Nativa, no saudoso Canecão. Eram mais 11 pedradas, novamente produzidas por Herbert Vianna, seu padrinho na EMI.

O presidente do Brasil naquele época era José Sarney. Esse. Em fevereiro de 1986, a inflação mensal estava em 17% ao mês. Em junho de 1987, o ônibus com a comitiva presidencial foi apedrejado quando deixava o Paço Imperial. Sarney ficou levemente ferido por estilhaços de vidro. A inflação já tinha batido nos 30% ao mês.

Na capital do Brasil, os caras da Plebe, da Legião, do Capital Inicial e do Detrito Federal testemunharam in loco os desmandos do poderes militar e civil no processo de redemocratização. Quase todos da classe média alta fizeram o rock mais politizado dos anos 1980, juntamente com os punks da periferia de São Paulo. “O concreto já rachou” era um verso da última faixa daquele mini-LP perfeito. Ela se chamava “Brasília”, claro: “Brasília tem prédios/ Brasília tem máquinas/ Árvores nos eixos/ A Polícia Montada/ Brasília tem centro comerciais/ Muitos porteiros/ E pessoas normais.”

Isso era tocado/cantado com angústia e urgência. As guitarras de Philippe Seabra e Jander “Ameba” Bilaphra se costuravam, como se disputassem um pega no Eixão. As vozes de Philippe (tenor, agudo, desesperado) e de Jander (baixo-barítono, grave, impassível) se sucediam sem de fato conversar, como discursos no Congresso Nacional. André “X” Mueller e Gutje Woorthmann mantinham a pulsação baixo-bateria. No meu quarto, ouvindo a Plebe Rude rugir, eu tinha vontade de dar botinadas nas paredes.

Por que escrever isso agora? Acabo de descobrir que o filme “A Plebe é Rude”, dirigido por Diego da Costa e Hiro Ishikawa, entrou para aluguel no NOW. Foi exibido, no mês passado, em São Paulo, no 9º Festival Internacional do Documentário Musical. É produção modesta, viabilizada graças a uma parceria com o Canal Brasil.

Nenhuma farândola de entrevistas. São só oito: os membros da banda (menos Jander e mais Clemente Nascimento, também guitarrista dos Inocentes, da periferia de São Paulo); Herbert; Pedro Ribeiro, assistente de produção; Jorge Davidson, ex-diretor da EMI; e este que vos digita, escalado para o papel do crítico-que-contextualiza.

Jander manda um bilhete (trecho de e-mail?), no qual reafirma não querer papo sobre a Plebe Rude, comparada a um namorico da juventude. A formação original se inviabilizou por conta das tensões entre ele e os outros e, depois, entre a dupla Philippe-André e Gutje. O documentário extrai sua energia desses atritos. Nada de papinho protocolar. Franqueza. Sarcasmo. Boas imagens de arquivo, graças à velha paixão de Gutje pelo cinema. Excelentes músicas, como “Até quando esperar” e “Censura”.

O documentário também acaba falando da baita dificuldade que é manter uma banda de rock, espécie de casamento a quatro. E sem sexo na parada. Entram na equação temperamentos, expectativas, graus de profissionalismo, pressões internas e externas por sucesso. Apesar de tudo, a Plebe Rude ainda está aí. Toca no Festival de Inverno do Rio, batizado “Rock Brasil 35 anos”, na Marina da Glória, no próximo dia 15. Fechando, alta madrugada, para os shows de Blitz, Frejat e Humberto Gessinger. É preciso ter acumulado muita eletricidade para subir ao palco às três e meia da matina.

______

Alerta específico e desimportante, a quem assistir ao filme. Cito uma música que diz “raiva pode ser poder”. É The Clash|: “Clampdown”, de 1979. Mas a imagem corta para Renato Russo cantando “anger is an energy”. É Public Image Ltd: “Rise”, de 1986.

Leia todas as colunas...