A Viagem (Cloud Atlas, 2012)

Cloud Atlas

Os irmãos Wachowski conquistaram o mundo cinematográfico (e fãs de sci-fi) com o sucesso de Matrix. Depois de tanto tempo sem novidades e com produtos não tão frutíferos após seu maior sucesso, eis que lançam o novo filme que colocaria seus nomes novamente na boca do povo. A Viagem, título infame dado aqui no Brasil à Cloud Atlas, brinca com gêneros, estéticas e temáticas há muito apreciadas pelos diretores. Antes de continuar, devo mencionar que o título nacional, apesar de ter uma concordância zero com a película, ainda soa como ironia por insinuar que o filme é uma “viagem”, e de fato o é.

Em prevenção ao erro, Andy e Lana Wachowski recrutam o alemão Tom Tykwer para ajudar na adaptação do roteiro e na direção. O alemão traz no seu currículo títulos como Trama Internacional, Perfume – A História de um Assassino e Corra, Lola, Corra. Títulos bem mais firmes que os trabalhos dos irmãos. Mas a união é certeira, não só pelo esforço conjunto, mas por toda a verve inventiva dos três. Os irmãos com suas fugas da realidade e Tykwer com a dosagem do cru e real.

Cloud Atlas conta seis histórias que se passam em locais e tempos diferentes. Em resumo: 1849, um advogado luta pela liberdade de um escravo que se torna seu amigo; 1936, um compositor vive um drama homossexual pautado na distância entre ele e seu amante; 1973, uma jornalista investiga uma conspiração em torno da indústria de petróleo; 2012, um editor se beneficia de uma situação atípica e se envolve com bandidos extorsivos; 2144, uma garota clone consegue fugir de sua vida pré-programada como atende de um restaurante; e por fim, 2321, um membro de uma tribo primitiva luta para salvar seu povo de canibais e ajuda uma integrante de uma civilização futurista abandonada por seu povo.

O que histórias tão distintas têm em comum para compor um mesmo longa-metragem? Eis a questão, ou melhor, a aposta dos diretores! É justamente por mexer com tantas temáticas e gêneros que o filme acerta o cerne psicológico de qualquer um que assista. Todas as histórias se interligam por alguns elementos, mas o principal é o The Cloud Atlas Sexteto, uma composição musical que perpassa pelo tempo através de sensações de déjà-vus e uma fama, que culmina na nomeação de uma estação de comunicação da última história.

Muitos elementos do filme merecem discussão. É por isso que falar dele sucintamente se torna tarefa muito difícil. Destaco os que mais me chamaram atenção. A começar pelos gêneros utilizados nas narrativas.

Primeiro temos um drama sobre busca de liberdade, logo depois outra história que flerta com esse tema (no caso a homossexualidade) se desenvolve num contexto mais voltado para liberdade de expressão e busca de identidade, tornando-se ainda mais dramática que a primeira. Passamos para um suspense investigativo e uma comédia hilária, entre a terceira e quarta narrativa. Para chegarmos à verdadeira sci-fi presente nas duas últimas histórias. No entanto, uma não é contada ao final da outra, mas todas ao mesmo tempo, num vai e volta que deixa qualquer um confuso. Sabe quando lemos um livro de contos com histórias diferentes, mas com elementos não muito claros que ligam todos eles? É quase isso.

O ponto de ligação entre os recortes temporais está na insinuação de que vidas terminam e recomeçam em outros tempos, em situações distintas. A sacada dos diretores para ilustrar isso está na utilização do mesmo elenco interpretando personagens bem dispares (até mesmo no sexo) em todas as narrativas. Entre os escalados estão Halle Berry, Tom Hanks, Hugh Grant, Susan Sarandon, Jim Broadbent, Jim Sturgess, Ben Whishaw, Keith David, David Gyasi, Zhou Xun, Doona Bae e o excelente Hugo Weaving, o maior destaque entre todos. Para compreender melhor o que eu quero dizer com essa multiplicidade de papéis, dê uma conferida nesse infográfico aqui.

Voltando aos elementos temáticos, há uma infinidade de temas afins do gnosticismo e da Nova Era. Os principais são o absurdo da sociedade moderna que flerta, entre todas as coisas, principalmente com a perversidade humana; a fuga do real, seja por um platonismo amoroso ou por uma recorrência à morte como alternativa ao sofrimento; a inconfortável sensação de não pertencimento; o regimento de vida pautado numa balança que meça ações boas e más, como determinante de um espaço metafísico bom ou ruim; e até mesmo o anseio ou crença em múltiplas vidas reencarnadas ao longo do tempo.

Para tudo isso, o filme transborda de referências facilmente identificáveis, ou não. A principal delas está na obra de Philip K. Dick (outro autor estritamente ligado com as discussões do gnosticismo). Philip K. Dick é autor de obras como Blade Runner – O Caçador de Andróides, O Homem do Castelo Alto,  Ubik, Valis, O Homem Duplo e Os Três Estigmas de Palmer Eldritch, essa última tendo fortes influências na composição de Matrix. Em Cloud Atlas, a mais presente é Blade Runner que empresta seus cenários para a ambientação da penúltima história. Outros autores de sci-fi são referenciados, entre eles está Isaac Asimov.

O déjà-vu que interliga as histórias através de alguns personagens referencia ainda um manhwa coreano, Déjà-Vu: A Great Love Story, de Youn In-Wan, que também aborda a alternância de vidas. O filme dos Wachowski e o quadrinho de In-Wan são compostos por seis narrativas, passadas em épocas que vão da antiguidade ao futurismo pós-apocalítico. Muito semelhante para não ser associado como referência. Inclusive a estética visual das animações orientais tem forte influência na fotografia de Cloud Atlas em 2144, assim como o local de ambientação, a Coréia.

Ainda falando da parte sci-fi do filme, os diretores passeiam por quase todos os subgêneros que a compõe: indo desde o steampunk nas primeiras histórias, passando pelo ciberpunk e pós-ciberpunk até o biopunk, da penúltima história onde seres geneticamente modificados são alimentados com material orgânico de outros. Essas abordagens parecem atrair os irmãos e tudo indica que podem vir em vários outros trabalhos da dupla.

A discussão geral é tão vasta que não permite que eu me atenha aos detalhes técnicos do filme, que em geral costumo comentar.

Por fim, e depois de tantas delongas, o resultado não é mérito apenas dos diretores e atores na idealização da trama. O filme é uma adaptação homônima do livro de David Mitchell, autor inglês que tem sido muito premiado por seus trabalhos. No Brasil o único título disponível, entre os cinco já publicados pelo autor, é Menino de Lugar Nenhum (Black Swan Green) pela Companhia das Letras. Talvez com o lançamento do filme, a editora resolva lançar os outros títulos em breve. Resta esperar. Enquanto não chegam, recomendo que vejam o filme, afinal acho que ele ganha uma roupagem tão distinta no cinema, que provavelmente não prejudique uma futura leitura do livro.

E aí, o que acharam do filme? Quais pontos mais chamaram a atenção? Não deixem de comentar a respeito logo abaixo.

Título / Título original: A Viagem /Cloud Atlas
Direção: Andy Wachowski, Lana Wachowski e Tom Tykwer
Roteiro: Andy Wachowski, Lana Wachowski, Tom Tykwer e David Mitchell
Gênero: Ação, Drama, Ficção Científica , Suspense, Comédia
País: Estados Unidos da América
Ano: 2012
Duração: 165 min.

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by Ademar Júnior
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Filmow

10 comentários

    • Tommy, eu também gostei, principalmente por causa desse efeito de nos instigar a pensar sobre tudo ao mesmo tempo.
      Obrigado pelo comentário.

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  1. Nossa, que texto longo e ao mesmo tempo ótimo de ler.
    (quando vou chegar nesses estágio lá no meu blog? kkkkkk).
    Olha, eu não estava muito por dentro desse filme, não sabia nada; acho que foi o titúlo, rs. Mas depois do que li, acho que vou me arriscar. Não sou muito fã de sci-fi; se bem que é apenas uma parte, já que vai mudando de épocas. Lembrei do filme As Horas. E teve um tempo em que eu era louco por Matrix, revista, dvds, mas fui perdendo o interesse. Valeu pela dica.
    Parabéns pelo o texto. 😀

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    • Ediie, que legal!
      O seu blog já é excelente, rsrs…
      Eu imaginava outra coisa antes de assistir o filme, de fato a estética dele foi uma surpresa pra mim. Acho que por isso resolvi fazer uma resenha dele.
      Acho que vc deve se arriscar sim, talvez não curta, mas vale conferir. Vc mencionou o filme As Horas (que inclusive vimos juntos) e eu devo dizer que esse lance das várias estórias me lembrou também um pouco de Taxidermia, já viu?
      Mais uma vez obrigado pelo comentário e pela visita! 😀
      Forte abraço! :hug:

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  2. Ahhh, como te disse, depois da nossa conversa e de ler esse texto fiquei com mais vontade de ver o filme. Adoro ficção científica e como esse aborda vários gêneros (steampunk, cyberpunk etc.) só me fez querer ver o quanto antes. (:

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    • Oi Dan,
      Quando assistir ao filme me avisa, quero saber sua opinião sobre ele. Como eu disse, há muitos pontos de reflexão, e é um filme de difícil definição sobre simples “gostei” ou “desgostei”.
      Sobre os subgêneros de sci-fi os que mais aparecem é o ciberpunk e biopunk, esse último mais presente ainda.
      Obrigado pela visita e comentário!
      Abraços

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  3. Esse lance de abranger várias histórias é algo que me agrada muito em filmes, e como você sabe, tenho uma paixão muito grande pelo gênero cyberpunk 🙂
    Quero ver o filme e depois vir aqui comentar novamente.

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    • Oi Júnior,
      Sim sim, já sei que curte cyberpunk, principalmente por influência de animes. Acho que você deve mesmo adentrar no gênero em outras mídias (literatura e cinema). Philip K. Dick tem algumas obras com elementos cyberpunk e biopunk.
      Dá uma experimentada depois!
      Abraços e obrigado por comentar!

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  4. Eu vou ter que discordar levemente do destaque que você mencionou; sim,o Hugo Weaving foi genial, mas quem me surpreendeu mesmo foi a Doona Bae. O personagem dela é tão forte e tão expressivo que me emocionei com a Sonmi algumas vezes. E olha que não sou de me sensibilizar com filmes! No mais, o filme é perfeito e sem dúvida uma obra prima que daqui a alguns anos vai ser considerada um cult, apesar do desprezo atual dos críticos.

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    • Oi Elton, tudo bom?
      Então, eu adorei a atuação da Doona Bae, achei que ela soube interpretar muito bem o drama da personagem e também me emocionei muito. O Hugo Weaving foi o destaque para mim pela diversidade dos papéis que ele interpretou (05 ao todo) e pelo fato dele ter se saído muito bem em todos, principalmente no papel feminino. Acho que ele conseguiu se adaptar bem a cada um e isso para mim mereceu destaque. Mas eu confesso que para mim a Doona ficaria com o posto de “atriz revelação”, muito boa.
      E em geral o filme é muito bom mesmo e também acho que se tornará um cult.
      Obrigado por comentar!
      Abraços!

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