Eu Vi o Diabo, o Cinema sul-coreano e os desatinos da vingança.

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A noiva de um agente de elite da polícia sul-coreana é morta por um serial killer. Cego pela fúria, o agente começa a investigar os possíveis suspeitos do crime, até finalmente identificar o culpado. Quando o alcança, ao invés de matá-lo, resolve pôr em prática uma terrível e lenta vingança. E nesse diabólico jogo de gato e rato, a linha entre o bem e o mal se desvanece.

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Como suponho que muitos saibam, o Cinema sul coreano ganhou notoriedade por trabalhar muito com tramas sobre vingança, mas, de maneira alguma, seu reconhecimento recai apenas sobre esse fator tão simplório. Não foi a simples vingança, vulgar e violenta, que alçou a Coréia do Sul ao status cinematográfico que possui hoje em dia. O Cinema dos inimigos mortais da Coréia do Norte, de uns tempos pra cá, vem sendo reconhecido também pela exímia qualidade de seus trabalhos cinematográficos – tanto por trabalhar com uma variedade maior de temas, quanto por uma notáveis melhorias técnicas e textuais –, ainda que, aqui pelo Ocidente, essa qualidade continue sendo alvo de muitos questionamentos.

UM TRABALHO GENUÍNO E NÃO MENOS QUE ESPETACULAR!

Eu nunca havia assistido a um trabalho propriamente sul-coreano de Kim Jee Woon, e confesso que fiquei bastante surpreso com o que vi. A certeza mais que absoluta de que comecei com o pé direito ao escolher Eu Vi o Diabo para assistir, bateu a minha porta e por aqui mesmo ficou. Que filme magnífico! Fiquei completamente extasiado. Os créditos rolavam tela acima e eu, ainda zonzo de perplexidade, tentava assimilar tudo aquilo que havia acabado de assistir. Foi um filme que, de fato, me destruiu. Eu Vi o Diabo é um trabalho genuíno e não menos que espetacular! A forma que Jee-Woon roteirizou e dirigiu esse filme, diferentemente de The Last Stand (o único longa de Kim Jee-Woon que, até então, havia assistido), me deixou bastante impressionado. Tudo transcorre do jeito certo. São mais de 2 horas de filme em que toda a sua atenção é praticamente sugada pela tela.

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O filme não fica devendo em nada – e se há algo, aqui, que ficou faltando, por favor, leitor, aponte. Toda sua proposta histórica, referente àquilo que a trama pretende transmitir ao espectador, é cumprida com extrema competência. E Kim Jee-Woon não perde tempo. Ele tem pressa em construir sua trama, visando estabelecer de modo imediato um vínculo com quem acompanha a história. Seu roteiro não recorre ou se ampara em diálogos prontamente desenhados. É um roteiro que, embora tenha passagens marcantes, opta por não fazer uso de tantas metáforas em seu texto – o que, de certa maneira, facilita sua digestão. Entretanto, veja bem, a suposta “carência” desse elemento, como muitos devem supor, não desmerece a obra e tampouco seu desenvolvimento e narrativa, já que o propósito do mesmo é de mostrar a evolução de seus dois personagens principais exatamente do ponto em que a trama passa a se solidificar, ou seja, depois que os eventos que a desencadeiam se estabelecem e a história tem seu norte definido. Gosto de acreditar, aliás, que foi justamente essa falta elementar a grande responsável por dar a essa obra seu teor tão próximo da realidade, tão palpável. Mas toda essa concretude não seria possível apenas textualmente, é óbvio. Seria preciso que sua direção se mantivesse atenta e não cometesse deslizes. E é exatamente nesse ponto que a primorosa condução de Jee-Woon entra em ação.

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Um dos fatores que merece maior destaque nesse filme, como venho expondo acima, é sua direção. Mesmo trabalhando em cima de um plot pouco denso e recheado de violência, o diretor não se intimida e mantém o rigor técnico bem abalizado durante toda sua condução – e impressiona ao não se segurar nas cenas de violência e, ironicamente, não perder a mão nas mesmas. Isso tudo, somado a boa base textual de seu roteiro, acaba por garantir mais que o necessário para um bom entretenimento. Ou seja, o espectador se sente ainda mais estimulado a continuar acompanhando o desenrolar da trama.

Kim Jee-Woon é um cineasta muito sagaz. E o que diferencia seu modo de dirigir filmes do modo como grande parte dos outros diretores asiáticos (leia-se: do cinema japonês e chinês) conduzem seus filmes, é que Kim consegue não deixar tudo exagerado, muito além da medida e cuspindo artificialidade em quem assiste – como era (e ainda é, na verdade) muito comum em parte considerável das produções asiáticas. Isso, inclusive e infelizmente, acaba gerando um enorme receio e um consequente distanciamento daquele espectador que não é acostumado a acompanhar o cinema proveniente da Ásia. Há quem diga, nesse meio de receosos, que o Cinema Asiático tem a mesma cara, referindo-se não só as próprias pessoas que estão ali, de maneira geral, mas também ao jeito caricato com que certas situações em alguns filmes asiáticos se dispõem. Talvez seja verdade que, por vezes, o Cinema Asiático é grotesco, mas é preciso salientar um detalhe: ele somente o é quando analisado por nossa típica visão ocidentalizada, que não foi ensinado a assimilar aspectos de culturas pertencentes ao outro lado do globo. Ainda assim, para o alívio destes, temos  aqui um exemplo mais que perfeito de que o Cinema Asiático não possui a mesma cara e, melhor, tem potencial para se igualar a qualquer cinema no mundo. Eu Vi o Diabo, não parece, nem de perto, um daqueles costumeiros filme asiáticos que você via quando criança.

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No tocante das atuações, como já era de se imaginar olhando os nomes presentes no elenco, Byung Hun Lee e, principalmente, Min-sik Choi dão uma aula de interpretação. Realmente incríveis. E eu não consigo encontrar uma frase que exprima melhor meu sentimento do que “absurdamente bem atuado”. O par de protagonistas nos entrega um trabalho de uma competência tão invejável e de uma força tão aterradora, que o filme alcança um patamar ainda maior por conta de suas interpretações. Byung Hun Lee encarna o noivo ensandecido, cego pelo ódio e que busca, a qualquer custo, vingar a morte de sua mulher, respirando ares anti-heroicos. Já Min-sik Choi interpreta, nessa que considero sua atuação mais memorável, um dos seres mais imundos que eu já tive o prazer de ver sendo retratado no Cinema: o psicopata Kyung‑Chul. E me deixa triste, confesso, notar como poucas pessoas reconhecem que ali, na dramaturgia asiática, existem atores tão bons ou mesmo melhores que tantos já consagrados pelos cinemas ocidentais. Mas, enfim. Além destas e de outras ressalvas já apresentadas anteriormente, creio que seja válido tecer um breve comentário a respeito daquilo que o filme trata: o que a sede de vingança do Homem pode fazer. Textualmente, como já disse há alguns parágrafos acima, o roteiro de Eu Vi o Diabo não se arrisca em elencar metáforas para enriquecer sua trama e amparar seu caráter simbólico em figuras de linguagem – das próprias situações ocorridas ali, que catalizam as motivações dos personagens, já se emana toda a profundidade necessária para transformar Eu Vi o Diabo num filme que vai além (muito além) de um simples entretenimento.

“A VINGANÇA NUNCA É PLENA, MATA A ALMA E A ENVENENA.”

É nítido que uma das propostas assumidas pelo filme é o de nos erigir a posição de questionadores das gradações e consequências da vingança executada por Kim Soo‑hyeon (Byung-hun Lee) contra Kyung‑Chul; o seu papel em Eu Vi o Diabo, leitor, é exatamente esse: encontrar os diabos e as sequelas deixadas por eles, pondo em cheque toda aquela retaliação. O quão atormentadora e dolorosa, afinal, pode ser uma busca cega por vingança? O desfecho – um verdadeiro soco na boca do estômago –, só fomenta ainda mais essa questão (servindo, talvez, como resposta). É em meio a todo esse desatino que a assertividade da mensagem que se pretendia transmitir, é garantida. A conclusão de Eu Vi o Diabo é de uma sensibilidade tão devastadora, que se torna impossível não refletir sobre a validade de tudo aquilo que aconteceu. É verdadeiramente descomunal, a força desse filme.

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Ao mesmo tempo em que você é lançado em meio ao caos de um Thriller e sua extrema voracidade, Eu Vi o Diabo lhe entrega um Drama capaz de despertar reflexões até mesmo no espectador menos compromissado com as nuances, formas e detalhes da história que o filme apresenta. E não é um draminha qualquer, acredite. Graças a brilhante direção de Kim Jee-Woon, tudo isso se estrutura numa medida cabível, numa medida proporcional àquilo que o filme pretendia. Ele não tropeça e nem avança além da medida. É tudo muito bem balanceado. A naturalidade e a firmeza que a condução de Kim Jee-Woon dá às situações do filme, aliada a sua trama e atuações brilhantes, fazem deste filme não apenas uma obra ímpar do cinema sul-coreano, mas também um dos melhores Thrillers já realizados em todos os tempos, merecendo todo o destaque, sobretudo, fora do circuito asiático de Cinema.

E, ainda em tempo, deixo aqui um pensamento que, a meu ver, reproduz muito bem tudo que é exposto nesse filme: “Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para dentro de você.”  [em Genealogia da Moral, de Friedrich Nietzsche – página 105].


Por: Ericson Miguel
Em: 05/08/2014
Posteriormente publicado no Steemit do autor.

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