O Caçador, de Na Hong-jin, justiça e realismo.

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Desde que abandonou o trabalho como policial, Joong-ho trabalha como cafetão. Ele começa a ficar preocupado quando algumas de suas prostitutas desaparecem. Todas as pistas levam a um único homem, com quem todas as mulheres desaparecidas se encontraram. O suspeito é facilmente detido, e admite todos os seus crimes, mas os problemas de Joong-ho estão apenas começando: ele tem apenas algumas horas para encontrar provas que mantenham o assassino na cadeia, senão ele será liberado.

O texto a seguir pode conter spoilers.

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Ah, o Cinema da Ásia Oriental! Muito se fala dele aqui, pouco se fala a respeito dele ali. É sempre assim. Ou ele é amado, muito bem quisto, ou ele é odiado, renegado. Bem ou mal, o Cinema Ásio-Oriental, quando em jogo, revela uma das mais curiosas e descabelantes divisões de águas que o público cinéfilo já concebeu. O tema não chega a gerar inúmeras discussões a seu respeito, mas é um tanto engraçada a forma dicotômica que essa divisão assume: de um lado, os espectadores que não veem absolutamente nenhum problema com o cinema Xing-Ling, sejam eles japoneses ou taiwaneses; do outro, os desgostosos, que não perdem o costume de fazer vista grossa quando o assunto é dar uma chance ao cinema proveniente dali, e que, na maioria das vezes, não gostam do que veem. A infeliz verdade, contudo — e não tão surpreendente, talvez —, é que uma maioria esmagadora de pessoas, seja no público médio ou em meio a cinefilia mais experiente, carrega algum tipo de preconceito com o cinema de olhinhos puxados.

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O Cinema Sul-coreano, talvez acima dos outros países da Ásia Oriental (aka Leste Asiático), atualmente é o que mais se destaca quando o assunto é qualidade em produções cinematográficas. E, como bem sabemos, ele sempre guarda algumas surpresas para seu público. O ano de 2008 por lá, pelo menos, até onde me consta, foi um ano recheado de boas produções, como Os Invencíveis (de Kim Jee Woon, mesmo diretor de I Saw the Devil), Breathless (de Yang Ik-Joon), Beautiful (de Jae-Hong Jeon), e até mesmo Death Bell (de Yoon Hong-Seung), que, mesmo dividindo opiniões, merece ser citado. Entretanto, ainda que o ano de 2008 tenha em seu leque produções tão relevantes quanto as supracitadas, um filme lançado naquele ano se destacaria, de longe, ocupando um lugar entre os maiores marcos cinematográficos do Leste-Asiático: O Caçador (Chugyeogja/The Chaser). Um filme não menos que brilhante e, sobretudo, instigador em sua essência.

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O Caçador foi o primeiro longa-metragem da carreira de Na Hong-jin (segundo consta no IMDB, antes, ele já havia produzido dois curtas), sendo ele o responsável pela roteirização e pela direção do mesmo, e o resultado é um montante de características que angariam muito valor ao filme. A início, lendo sua sinopse, a primeira coisa que salta aos  olhos é a estranheza que parte do plot carrega, falando de um ex-policial que, pelas circunstâncias de seu antigo trabalho, acaba se tornando cafetão, mas, abstraindo-se a estranheza desse ponto do enredo, o filme nos presenteia com uma história de extremo realismo, quase palpável. Hong-jin conduz o filme o tempo inteiro se preocupando com esse fator, buscando entregar situações que não fujam do real e nem extrapolem essa linha. A busca por realismo, em qualquer tipo de mídia, é uma busca extremamente fértil, não me parece ser a coisa mais difícil do mundo fazer um filme que esbanje realismo em sua história e em suas conjunturas, mas, aqui, é preciso salientar uma coisa: nós estamos falando do cinema ásio-oriental, um cinema que sofre, ainda hoje, (em nossa perspectiva ocidental) com produções problemáticas, no que diz respeito ao tom e ao uso de alguns elementos em suas composições, e muito relapsas, quando o assunto é elencar em seu conjunto, em determinados pontos, alguma fidelidade, seja ela situacional ou comportamental, com o real. Esse tipo de “problema” é uma coisa que recorre exclusivamente à cultura natural do leste asiático, e falar sobre isso, aqui do Ocidente, é sempre muito problemático, mas espero que as senhoras e os senhores tenham entendido meu ponto.

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A forma com que Hong-jin conduz o filme, dinamizando suas situações e suas atuações, sempre em busca dessa fidedignidade, é um dos grandes trunfos do filme. Não é preciso ser um crítico especializado, nem mesmo um espectador experiente, para notar como o “real” se dá durante o filme. São situações e situações. É um filme onde todos, do protagonista ao antagonista, cometem deslizes em suas ações, com perseguições onde os envolvidos escorregam, caem, vão por lugares errados, se perdem, cansam, suam, ficam ofegantes, etc; é um filme que, verdadeiramente, apresenta personagens humanos, em todas as suas instâncias.

SEM McGYVERS. SEM RAMBOS.

O Caçador não é um filme preocupado em entregar indivíduos tipificados em excesso, caricatos em suas personalidades. Aqui você não vai encontrar nenhum sujeito especialista, que sempre sabe o que fazer, em toda e qualquer ocasião, ou tampouco alguma daquelas figuras que transpira e domina, milimetricamente, as artes marciais, sempre com lutas de perfeita coreografia; aqui, todo mundo erra, assim como todo mundo apanha. A condução de Hong-jin só não é tão primorosa quando sua roteirização. A criação das situações, junto de todos os elementos coadunados em sua elaboração, faz de O Caçador um dos trabalhos mais instigantes já produzidos pelo cinema asiático.

Há vários pontos, entremeados no decorrer de sua história, que merecem ser salientados, mas me restringirei a apenas alguns. O realismo desse trabalho, afora a trama montada por seu plot, é o grande fio condutor do longa, uma vez que nenhuma de suas características, por obediência, se afasta do conceito proposto. Como todos os bons exemplares de Thrillers Policiais lançados desde o advento do gênero, O Caçador não faz diferente: tem uma trama muitíssimo bem elaborada, montada e, principalmente, desenvolvida. Toda a história transcorre da maneira certa, sem quedas ou sobressaliências em seu andamento, o que já é um mérito e tanto. Bons thrillers, independente da temática, são aqueles que nos colocam dentro da história, como se estivéssemos ali, presentes naquele contexto, acompanhando ponto a ponto todas as voltas e reviravoltas da história, e Hong-Jin acerta a mão, mais uma vez, por alcançar essa proeza, expondo os rumos que a história toma e as linhas que tecem a investigação — exibindo, aliás, uma narrativa elegante, que alterna em seus modos (ora linear, ora binária), valorizando seu caráter de simultaneísmo e paralelismo, dando uma ampla perspectiva das ações que ocorrem no decorrer da trama.

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Existe, em meio a todo o desespero do filme, uma profusão de críticas direcionadas aos meandros da política, que vão desde falhas estruturais comuns ao sistema jurídico, até a incompetência das ações policiais; assim como possui valiosas reflexões sobre aquilo que pode ser entendido por justiça e moral. A torpe estratégia optada pelo sistema jurídico, no filme, em liberar o assassino, apesar de sua confissão, configura um dos pontos mais controversos de toda a história contada por Hong-Jin. Observamos, claramente, a forma vulgar com que a justiça toma suas decisões, obedecendo aos bagunçados trâmites políticos e esbarrando incessantemente na burocracia daquele contexto, incorrendo, assim, na falta de formalização da confissão de um crime prontamente confesso. Mas as preocupações dos mandatários eram outras. O prefeito da cidade teve merda atirada contra o rosto, um escândalo gigantesco, que achou de acontecer, exatamente, junto à captura do reincidente suspeito dos “Assassinatos Mopo”, o que só serviu para embaralhar ainda mais a solvência de ambos os casos. A promotoria, então, preocupada com sua reputação e com como a população reagiria se soubesse de tais balbúrdias — o prefeito com fezes na cara, atiradas por um zé ninguém, e um “simples suspeito” que, sem provas, fora espancado —, maquia os casos, tão melindrosos, que insurgiram feito pedras em seus sapatos, e manda pra casa, como se nada tivesse acontecido, pelos motivos mais pueris, o verdadeiro assassino. No fim das contas, entre erros e mais erros, eles mesmos se cegaram. Revoltante? Sim, à enésima potência, e com toda a razão. Nesse sentido, é curioso notar como O Caçador se baseia em fatos reais, sem necessariamente ter um único fato real para respaldar sua trama. São vários, no mundo inteiro. Quantos monstros não andam entre nós, impunes, graças as sórdidas e ineficientes burocracias e politicagens?

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A jornada de Joong-ho, para quem olha com bastante atenção, é um dos aspectos mais louváveis de todo o filme. A priori, e dadas as circunstâncias, o único objetivo do insensível Joong-ho, ao iniciar sua procura por Mi-Jin, era o de recuperar tanto seu dinheiro quanto sua mercadoria: mais uma de suas acompanhantes que simplesmente sumiu. Tendo ciência do denominador comum entre todas as desaparecidas, e antes de saber, de fato, o que estava acontecendo, ele suspeitava que as mulheres de sua agência estavam sendo vendidas sem o seu conhecimento. Entretanto, Joong-ho não tinha a mais remota noção do quão maior era tudo aquilo.

QUEM TE VIU, QUEM TE VÊ…

Desde o momento em que a trama tem seu rumo determinado, todos os eventos que se sucedem, todas as provações pelas quais Joong-ho passa, junto de todos os indivíduos que cruzam seu caminho, se amontoam num único resultado: uma brutal e vertiginosa conversão em seu senso moral e de justiça, que se revelam no compadecimento e obrigação em salvar a vida não mais de uma reles prostituta, mas, agora, de uma mulher, mãe, humana — e que, sobretudo, se encontrava naquela situação tão apenas por sua indiferença. Joong-ho, tendo então consciência da vida que Min-Jin levava fora das suas monitorias, passando a edificar por sua filha um enorme senso de responsabilidade, atravessa todo um espectro moral, partindo de um extremo e indo parar em outro. O Joong-ho dos fins, com toda a certeza, já não era mais o Joong-ho dos começos.

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Outra característica que certamente merece ser pontuada é a forma como o roteiro de O Caçador brinca com a temática de vingança, largamente utilizada pelo Cinema Sul-Coreano. A falta de conclusão, de arremate, na vingança de Joong-ho contra Ji Young acaba por subverter a maneira quase sempre pontual que as conclusões desse tipo de filme optam: com o mocinho matando o bandido, e entregando ao público seu almejado gozo diante da tão esperada desforra contra o antagonista. Hong-jin, obedecendo as rédeas da fidedignidade, nos entrega um final cruelmente palpável, que deixou e certamente ainda vai deixar muito espectador com o mais pungente rancor. Temos, enfim, um dos trabalhos mais viscerais já produzidos pelo cinema sul-coreano, uma verdadeira aula de como fazer Cinema. Tenso do início ao fim, O Caçador é um soco no estômago: cru, insalubre e amargo; um verdadeiro desafio para quem se propõe a digeri-lo. Uma obra de arte, acima de tudo, e acredito, irrevogavelmente, que não estou exagerando quando digo isso.

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