EXTERMÍNIO, a franquia. #1: o Cinema Zumbi que brincou de Morto-Vivo e adoeceu.

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Eu quero falar sobre Extermínio. Preciso, na verdade. Acho que o filme, apesar de respeitado por boa parte das pessoas que o viram, ainda não possui todo o respeito que merece. E essa é a desculpa esfarrapada que eu estou usando para escrever esse texto. Nesta análise que proponho do Horror realizado por Danny Boyle em 2002 – um dos maiores da história do cinema – busco explorar os elementos do filme que o tornam tão importante na história da cultura pop. No texto, traço um brevíssimo histórico do cinema zumbi, falo sobre como se desencadeou o surgimento do filme e as modificações conceituais inseridas por ele na temática; além, é claro, de explicar porque o filme é bom pra cara&#$ e merecedor de muito, mas muito mais respeito. Tem interesse sobre o assunto? Então você está no lugar certo (ou gosto de acreditar que sim, pelo menos).

O texto a seguir pode conter spoilers.

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Imagem do filme “O Despertar dos Mortos”, de 1978.

A temática estava morta. Morta mesmo, sabe? Completamente sem vida no corpo. O que é irônico de várias formas. Quem, já morto, costumava sair da cova, acabou cansando e precisou se recolher: voltou pra debaixo da terra, enterrado à sete palmos e uma década inteira de terra. Desde meados dos anos 80 (mais especificamente no pós-85-87), a temática zumbi nunca havia sofrido uma baixa tão acachapante em sua vida. Durante os anos 90 quase nada de relevante do tema foi produzido. Ápice do cinema zumbi, os 80 produziram obras importantíssimas ao gênero, fossem com tons mais sérios, como em Os Mortos Vivos (1981), de Gary Sherman, fosse com o pastelíssimo, mas ótimo, A Volta dos Mortos-Vivos (1985), de Dan O’BannonNo que diz respeito a filmes de zumbi, os anos 90 inteiros optaram deixar o tema de lado e investir em outras coisas. Foi lá que uma fração importante da Ficção Especulativa foi deixada de molho.

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Cena de “Madrugada dos Mortos”, de 2004, o remake do filme da imagem anterior.

De uma ponta à outra dos anos 90, dá pra dizer com alguma tranquilidade que só sete filmes do tema foram lançados (ou os mais relevantes, pelo menos),¹ dos quais seis apenas utilizaram brevemente a mística zumbi. O único a tratar especifica e amplamente do tema foi o famoso A Noite dos Mortos-Vivos, no comecinho da década – justamente o remake do clássico de 1968, pelas mãos de Tom SaviniEntão, foi isso mesmo: dado o ponta-pé inicial na figura do zumbi, lá em 1932 com Victor Halperin, e com a sua real popularização a partir de 68, com Romero, a temática nunca passou por um apagão tão grande quanto nos anos 90. Na verdade, até 2001 não se via nada de zumbis nos grandes ecrãs. E somente em 2002 surgiu o filme que, como A Noite dos Mortos Vivos em 1968, restaurou, reestruturou e deu vida nova aos nossos adorados putrefeitos: Extermínio, de Danny Boyle – o responsável pelo texto que você lê nesse exato momento.

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Icônica cena do filme “A Volta dos Mortos-Vivos”, de 1985.

Num suntuoso conto à narrar a jornada de uma Inglaterra face a face com a quase completa derrocada de seu povo, Boyle traz de volta a figura do morto-vivo no encalço do humano que precisa lidar com as consequências de sua própria sandice – ou, mais especificamente, com outros humanos, sejam eles infectados ou, tão pior, “não infectados”. É uma loucura ao pé da letra. E foi bom eu usar esse termo: infectados. De acordo consta no Dicionário Online da Língua Portuguesa, infectar significa “infeccionar, tornar infecto; contaminar por germes infecciosos; corromper moralmente”. E é curioso que, por coincidência, isso sugira uma gama de coisas referentes ao filme, e que não são exclusivas das pessoas infectadas pelo diabólico vírus. Mas vamos por partes.

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Mesmo que os bons longas de zumbi do fim dos anos 60 aos 80, formassem parte importante da cavalaria do Horror cinematográfico naqueles tempos, uma hora o desgaste viria. E veio. E com força! Daí, para que algo novo do tema surgisse, seria preciso uma reformulação geral, uma espécie de lavagem cerebral – como diria Gabriel, O Pensador. E é exatamente neste ponto que entra Alex Garland, o roteirista do filme. Se em 1932 fomos introduzidos ao conceito místico do morto que volta a vida por magia negra, com Zumbi Branco, e posteriormente com os inexplicáveis retornos a vida em Noite dos Mortos Vivos, de 68, então o que poderia ser feito para reacender a chama da paixão por zumbis no cinema contemporâneo? Que tal se, em vez de voodoo e de uma espontaneidade sem explicações, alguém transformasse a figura do zumbi em um indivíduo doente? E, pois é: foi isso mesmo que Garland fez aqui. Abriu mão da clássica mística metafísica e optou por fisicalidades patogênicas,² aproveitando a deixa para pôr o ser humano como responsável por aquilo que poria em risco sua própria espécie. E assim, reconhecendo e respeitando suas origens, foi feita uma nova revolução não somente na temática e no cinema de Horror, mas em toda a Cultura Pop.

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Parceiros de longa data: Alex Garland (roteiro/esquerda) e Danny Boyle (direção/direita).

Como foi o (re)começo de tudo? Simplíssimo: tarde da noite, um bitolado trio de militantes das causas animais, ali mais preocupado em operar as próprias tolices do que agir com razoabilidade, resolveu que seria maneiro e descolado libertar alguns chimpanzés de seus cativeiros num laboratório, à revelia dos insistentes avisos de um amedrontado cientista.³ Os macacos estavam infectados com um perigosíssimo vírus, altamente contagioso. E, bom, como o apressado sempre come cru, é óbvio que deu ruim: a mina do grupo abriu uma gaiola, o chimpanzé a atacou e, num piscar de olhos, o caos se alastrou. Era uma vez uma Inglaterra sadia. Fez-se ali o inferno que sempre disseram: cheio de boas intenções.

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28 DIAS DEPOIS.

Elipse feita, e lá estamos nós observando o despertar do coma de um paciente numa sala de hospital. Interpretado por Cillian Murphy, o jovem Jim acorda de seu sono em meio a uma completa bagunça. O hospital parecia o cenário de uma baderna: papeis pelo chão, macas jogadas umas por cima das outras, portas e máquinas quebradas, etc. Jim tentava contato, chamava, gritava, mas o máximo de resposta que conseguia era o retorno de seu próprio chamado, no eco que preenchia aquele vazio inquietante. Mal sabia Jim que, fora dali, um pesadelo de verdade o aguardava.

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E é em meio a incôndita jornada de Jim, que posteriormente se junta a Selena (Naomi Harris), Frank (Brendan Gleeson) e Hannah (Megan Burns), que o roteiro do filme nos joga. Não bastava, contudo, que Garland e Boyle reformulassem o antigo conceito usado por filmes de zumbis. Era preciso, acima de tudo, construir uma boa história. E Extermínio é exemplar nesse sentido: possui uma trama que inova bem, sobretudo, por conseguir fugir de lugares comuns, de acomodações, aglutinando boas ideias, elementos alternativos e diálogos honestos numa narrativa bem conduzida – mesmo possuindo uma textura áspera e pouco palatável (o que, claro, não é um problema de onde quer que se observe).

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De longe, olhando o título expresso que a Fox deu ao filme aqui no Brasil, é facílimo tentar inferir sobre o que filme trata. Mas acontece que, pra quem não conhece, o título acaba vendendo um produto bastante diferente do sugerido. Não há, no grosso da coisa, nada de convencional aqui. Isso porque Extermínio simplesmente não entrega Extermínio algum, ou, pelo menos, não no sentido comumente imaginado. É claro que o abandono do sentido sugestivo do título original (28 Dias Depois, em tradução livre) levava consigo um anseio comercial, e é preciso ser sincero nesse ponto: dificilmente o público por aqui se interessaria de ver nos cinemas um filme chamado 28 Dias Depois, mesmo com o sucesso substancial do filme ao redor do mundo; daí, puseram Extermínio pra ver se o caldo rendia. Infelizmente, não consegui informações sobre a arrecadação do filme aqui em Terras Tupiniquins, mas nem por isso se torna difícil imaginar que, por conta do título, muita gente acabou se decepcionando com o que viu. E, na boa? Normal. Normal demais.

Com inspirações que vão desde O Terror Veio do Espaço (1963) até A Última Esperança na Terra (1971), perpassando toda a Trilogia dos Mortos de Romero (1968-85), o roteiro de Alex Garland trata de um assunto que, apesar de possuir largo histórico, segue sendo bastante pertinente e, aqui, repleto de camadas até para o que se julga ser uma simples trama apocalíptica: a violência. Recorrente na história do cinema e abordada das mais diversas formas pelos mais diversos gêneros, a violência é a matéria prima de Extermínio, com o diferencial de que, nesse caso, trocaram o usual pelo singular. E o que torna a violência retratada aqui um tanto diferente da forma como ela era tratada no cinema (principalmente o hollywoodiano) é que ela possui uma profundidade que, direta ou indiretamente, incide sobre a natureza humana. Na violência de Extermínio há incisivos comentários sociais, assim como diversas causas e ramificações. No uso isolado desse tema, não há ponto sem nó.

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Logo após a clássica abertura da Fox Searchlight Pictures, as primeiras imagens do filme são de grandes tumultos urbanos empesteados de incivilidade. Policiais sendo atacados e revidando, assim como policiais espancando pessoas indefesas. Mulheres meso-orientais chorando desesperadas por alguma razão (não tão difícil de se supor). E um indivíduo que, mesmo enforcado, tem a cara esmurrada por várias pessoas. Acho que isso basta. Naquele pequeno trecho de pouco menos que 40 segundos, há toda sorte de “maravilhas” que a prolífica conduta humana é capaz de erigir. E nada nessa simples introdução é à toa: é como se, dali, o filme avisasse de prontidão no que ele próprio se transformaria. O texto de Extermínio é um estudo social que ganha forma através das lentes de Boyle: um incomum exame sobre ciclos urbanos de violência.⁴ Garland versa sobre a capacidade sem igual com a qual a selvageria é capaz de se retroalimentar, sobre como o caos faz emergir o pior do ser humano e, mais profundamente, sobre como a violência, pura e simplesmente, é capaz de infectar moralmente o Homem, mesmo este comportamento sendo uma parcela tão natural de sua existência.

“ARREPENDA-SE.

O FIM TÁ PERTO PRA CARALHO!”

Incontrolável, a ira que se lança sobre aquele Reino Unido foi o suficiente pra ceifar não somente vidas, mas também as sutilezas que fazem da vida uma experiência palatável. Se antes havia civilidade – que em muito se conquistou a base do oposto do que ela representa – a bestialidade passou a reinar. Raro naquele contexto demoníaco, esperanças e empatias custaram voltar a emergir. Nada nesse filme, contudo, teria funcionado e alcançado o status que alcançou sem a condução de Danny Boyle.

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Ainda marcado pelos sucessos de Cova Rasa (1994) e Trainspotting (1996), e recém saído da realização de dois filmes para TV não tão conhecidos, a direção de Boyle em Extermínio muda bastante de figura. Longe de firulas narrativas e de grandes rigores estéticos, Boyle conduz o filme como que pensando o tempo inteiro: eu tenho que fazer isso aqui soar o mais real possível! E é exatamente isso que ele entrega.

Em termos de imagem, e na medida do cabível, Extermínio se desvia com razão e propósito de qualquer intento contemplativo. Em primeiro lugar, a razão disso: o Orçamento. O filme não contou com um budget tão grande assim, numa soma ali pela casa dos 5 milhões de Libras, o que, imagino, não lhe deu liberdade suficiente para investir numa criação imageticamente acurada. Tão tal, que o filme foi inteiramente filmado em formato Mini-DV – um formato de vídeo que fez muito sucesso na transição entre as décadas de 90 e 2000, e que possuíam bem menos qualidade que as de atualmente. Em segundo lugar, o propósito disso: a funcionalidade de se ter uma produção não tão dedicada a beleza. Extermínio retrata o caos dum pós-apocalipse, e Boyle e Anthony Dod Mantle, diretor de fotografia, encontram nisso sua serventia artística: conceber imagens que transmitam da melhor forma possível o tom realista e caótico da trama.

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Não há cabeças sendo arrancadas ou corpos sendo dilacerados por zumbis, naquelas cenas super legais produzidas com efeitos práticos. Sem grandes apelos em termos de violência gráfica, característica antes tida como pedra angular do gênero, Extermínio possui uma condução muito mais parcimoniosa do que a grande maioria dos filmes de zumbi. Mesmo com diversos momentos bastante eficientes de tensão construídos justamente no contato entre os infectados e os não-infectados, como a cartilha sempre demanda, a direção de Boyle está preocupada também em desenvolver personagens, em mostrar como toda aquela situação pôde, em termos comportamentais, fazer o ser humano mostrar o seu lado mais sujo e insensato – ao passo que não abre mão completamente de passagens que evidenciam que, mesmo na pior das hipóteses, a esperança nunca deixa de se fazer presente.

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Na escassez, os pobres peixinhos tinham de se virar pra dividir toda essa imensidão de água…

Para compor o tom de Extermínio, Boyle opta por um desenho de planos que é eficiente por um lado, mas nem tanto por outros. Ele faz uso constante de planos inclinados (holandeses), por exemplo – retratando bem a instabilidade daquele contexto e situação dos personagens –, ao passo que, em suas sequências de ação, abusa de shaky cams, o que não chega a ser um problema automático, mas a montagem um tanto aturdida dessas sequências acaba, às vezes, prejudicando o entendimento do que ocorre em cena. Muito se fala, aliás, sobre algumas inconsistências fugazes do filme, mas, sinceramente? São detalhes pouquíssimo comprometedores; não descartáveis, é claro, mas que não danificam a narrativa, estruturalmente, ou atrapalham a assimilação da história contada. As virtudes de Extermínio são maiores.

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Anárquico e perturbador, Extermínio respirou Romero e levou aquilo que começou com Halperin à lugares nunca antes imaginados. É, merecidamente, uma das obras máximas do cinema zumbi desde seu advento – mesmo que, por vezes, subestimado por não possuir o formalismo ou os grandes investimentos de produções maiores. Um trabalho que merece o devido respeito tanto por sua importância quanto pela imponência de sua história, até ali, poucas vezes vista numa trama do gênero. Sem esse rapazinho aqui, caro leitor, você com certeza não veria os zumbis de hoje em dia como os vê.


[1] Com exceção de A Noite dos Mortos-Vivos, os outros seis filmes são:
    Dois Olhos Satânicos, Fome Animal, Cemitério Maldito II, Namorado
    Gelado, Coração Quente, A Volta dos Mortos Vivos 3 e o japonês Wild
    Zero. Se esqueci de algum, peço perdão pelo vacilo.

[2] Boyle e Garland achavam que as noções originais de evocação de medo utili-
    zadas nos antigos filmes de zumbis – a apreensão sobre os possíveis efeitos
    nefastos que a energia nuclear teria sobre as pessoas –, estavam defasadas
    naquele momento da história, e seria preciso formular alegorias com pro-
    blemas que estivessem mais próximos daquela realidade histórica: o medo
    das doenças altamente contagiosas. O Ebola, ou, mais especificamente, a
    febre hemorrágica de Marburg, o incidente com anthrax em 2001, o medo lon-
    drino do bioterrorismo e até mesmo os inúmeros casos de Febre Aftosa e o
    Mal da Vaca Louca, fizeram parte do cardápio de inspirações tomadas empres-
    tadas por Garland e Boyle na formulação de um novo conceito de apocalipse
    zumbi, que, aliás, deixava de ser capitaneado por mortos-vivos e passava a
    ser comandado por... doentes.

[3] E até mesmo nisso o roteiro consegue captar com perfeição um micro-fragmento
    da nossa realidade: não num ataque grosseiro e desmedido a quaisquer causas,
    o texto salienta a insensatez do modus operandi de muitas militâncias pós-
    modernas. E você, neste tocante, precisa admitir a precisão disso.

[4] Novamente, nada de ponto sem nó: pra poder compor e dar uma consistência
    crível ao conceito usado aqui, a dupla dinâmica, Boyle e Garland, fizeram
    uma extensa pesquisa em torno de agitações sociais, extraindo característi-
    cas de episódios como os das guerras civis em Serra Leoa e Ruanda – desta
    última, é provável que o triste massacre de 1180 pessoas dentro de uma igre-
    ja em Ruana tenha inspirado a icônica cena da igreja no filme.

Ah, é! Ele teve uma sequência. Mas, relaxa, como você verá na segunda parte desta análise (e depois atestará vendo ou revisitando o filme), eles não estragaram tudo.

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