Elle (2016)

Por André Dick

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Depois de alguns anos um pouco afastado do cinema, Paul Verhoeven regressa à cena aos 78 anos, com este Elle, cuja estreia se deu em grande estilo no Festival de Cannes. Verhoeven sempre será conhecido como um dos diretores europeus que conseguiram chegar a Hollywood e fazer sucessos, entre os quais estão RoboCop, O vingador do futuro e Instinto selvagem, assim como fracassos que lhe custaram anos de afastamento, a exemplo de Showgirls e Tropas estelares, além de O homem sem sombra. Dez anos depois do grande sucesso de crítica A espiã, ele regressa com esta produção feita em parceria entre França, Alemanha e Bélgica (e o filme foi indicado para representar a França no Oscar).
Isabelle Huppert interpreta Michèle Leblanc, chefe de uma empresa de jogos de vídeo bem-sucedida, que cria atritos com os empregados, principalmente Kurt (Lucas Prisor), e certo dia é atacada surpreendentemente por um homem com uma máscara de esqui em sua casa. Ao contrário do que se espera, ela não faz nenhuma reclamação nem procura a polícia, e ainda esconde o que aconteceu dos amigos, do ex-marido Richard (Charles Berling), um romancista desastrado, da sua mãe, Irène (Judith Magre), e do filho, Vincent (Jonas Bloquet). Pelo comportamento estranho dos personagens e do cenário de trabalho, este é o filme que Brian De Palma, uma das influências de Verhoeven aqui, gostaria de ter feito em Paixão.

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Será que o intruso voltará a atacá-la? Quem ele é? Alguém que conhece ou um completo desconhecido? Ela tem problemas de relacionamento com a mãe, que está prestes a se casar com um homem muito mais novo, e não se dá bem com a nora, Josie (Alice Isaaz), ou seja, sua vida é repleta de conflitos não resolvidos. Bem, ela parece procurá-los: por que, por exemplo, ela bate de propósito no carro de seu amigo? O gato que há em sua casa age como se a conhecesse melhor do que os humanos.
Verhoeven sempre teve um interesse por mulheres que colocam os homens em situação de ameaçados sexualmente. Aqui, a mulher sofre abusos do mascarado, mas não entendemos suas reações a isso. Huppert faz uma das personagens mais intrigantes do universo feminino dos últimos anos justamente porque parece lhe faltar qualquer compromisso com o discurso em sua própria defesa – parece, pois, na verdade, o que ela faz é justamente empregar esse discurso por meio de atitudes enviesadas. Verhoeven desenha isso com muito talento, procurando, a certa altura, explicações psicológicas de notável desenvoltura para a narrativa. Deve-se dizer que a melhor amiga de Michèle é sua companheira de empresa, Anne (Anne Consigny), cujo marido é Robert (Christian Berkel). Também há um vizinho, Patrick (Laurent Lafitte), que se mostra um amigo acolhedor enquanto arruma figuras religiosas no pátio de sua casa.

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Verhoeven obviamente transita entre um suspense influenciado por Hitchcock, cenários parisienses que lembram o melhor de Carax (por meio de um video game, uma referência em certo momento a Holy Motors é assustadora) e um humor sutil que supera aquele que introduz em cada um de seus filmes, sobretudo em Hollywood. Este aqui é um Verhoeven mais maduro: vejamos a relação de Michèle com a mãe e com o filho. Ela parece interpretar a todo momento uma personagem e acha também que os outros encarnam personagens (a noite em que se reúnem na sua casa para o Natal é definitiva disso). Sendo assim, parece apenas flutuar entre as pessoas, de forma inconsequente: seu comportamento parece tão banal que às vezes soa até correto.
Verhoeven provoca vários temas, como o feminismo e a religião, de forma que nunca chegamos a entender essa personagem. Também não entendemos as pessoas que a cercam, e são elas, por outro lado, que a explicam. Com roteiro adaptado por David Birke de um romance de Philippe Djian, Verhoeven trata algumas das figuras da narrativa como aquelas que apresenta, por exemplo, em Instinto selvagem e Showgirls: Michèle é dúbia em suas preferências e Alice Isaaz lembra claramente uma Sharon Stone mais nova. Há uma atmosfera de sexualidade ameaçada e ameaçadora em todos os cantos de Elle, mas de maneira mais reflexiva do que nos seus experimentos em Hollywood, em que havia sempre o clichê de terminar as histórias com uma decisão comercial. E uma sátira evidente por meio da relação entre o filho de Michèle e sua jovem esposa, que remete quase a uma comédia familiar de Woody Allen.

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Nesse sentido, o design de produção desta obra é não menos do que excepcional, em sua reconstituição de atmosfera, por meio de elementos, assim como o figurino de Michèle representa sua própria personalidade para cada ocasião. Considerar que este é um filme, como alguns dizem, de uma mulher que gosta de ser abusada sexualmente é simplesmente não entender a proposta dele, muito mais complexa e que leva ao instinto enigmático de um indivíduo. A maneira como Verhoeven retrata a ligação entre Michèle e seu filho Vincent, que parece ingênuo e completamente desligado da realidade, faz o filme parecer uma peça quase de nonsense quando esconde, no subterrâneo (simbolizado pelo porão), a liberdade que cada um escolhe para enfrentar seu próprio medo. Esses personagens estão sempre numa posição de defesa ou ataque, ou de superioridade ou inferioridade, a julgar, por exemplo, pelas sequências em que Michèle caminha por sua agência (olhando para o comportamento de um de seus empregados no andar de cima) ou quando está em casa (quando olha para a casa que fica do outro lado da rua). Huppert entrega a personagem mais fascinante de sua trajetória extensa. Ela acaba também se mostrando por meio de sua casa, do portão e das janelas semiabertas, como se estivesse entre a liberdade e a prisão, e que a fotografia de Stéphane Fontaine apresenta com notável propriedade. Não se deve explicar por que Michèle se mostra desse modo e sim deixar para o espectador este mistério de filme, talvez a obra máxima de Verhoeven. Que Elle tenha saído sem prêmios de Cannes é mais espantoso do que a ousadia de sua temática.

Elle, FRA/ALE/BEL, 2016 Diretor: Paul Verhoeven Elenco: Isabelle Huppert, Laurent Lafitte, Anne Consigny, Charles Berling, Jonas Bloquet, Virginie Efira, Christian Berkel, Judith Magre, Alice Isaaz Roteiro: David Birke Fotografia: Stéphane Fontaine Trilha Sonora: Anne Dudley Duração: 130 min. Distribuidora: Sony Estúdio: Entre Chien et Loup / France 2 Cinéma / SBS Productions / Twenty Twenty Vision Filmproduktion GmbH

cotacao-5-estrelas

 

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