Longa jornada noite adentro (2019)

Por André Dick

Longa jornada noite adentro, lançado na mostra “Un certain regard” do Festival de Cannes e dirigido por Bi Gan, tem uma narrativa que trata da volta de Luo Hongwu (Huang Jue) a Kaili, província montanhosa do sudoeste de Guizho, sua cidade natal, da qual se afastou há muitos anos e na qual trabalhava como gerente de cassino. Ele ressurge para o funeral de seu pai e vêm à memória sua ligação com um antigo amigo, Wild Cat (Lee Hong-chi), a mãe dele (Sylvia Chang), e com um amor nunca superado, Wan Qiwen (Tang Wei).
As influências de Bi Gan são notáveis: de David Lynch, passando por Wong Kar-Wai (sobretudo 2046), até Nicolas Winding Refn, principalmente Demônio de neon e Apenas Deus perdoa. Ele trata a narrativa de maneira a nunca deixar muito claro o que está acontecendo, com longas sequências sem diálogo e uma atmosfera onírica muito forte e detalhista. Parece uma sucessão de devaneios, em que a ideia central é justamente colocar os atores em posição de expectativa. Há traços de Holy Motors, não apenas porque se passa predominantemente à noite, como também por seu cuidado com as cores e os figurinos (predominantemente o verde da amada do personagem central).

Se o personagem encontra a mulher de sua vida num túnel, aparentando estar mais dentro de um sonho, logo vemos que a história trata Wan como próxima a criminosos e que Wild Cat, o amigo do personagem central, foi assassinado por mafiosos de sua cidade. É um mistério a ser solucionado? Não mais do que o filme. As cenas de Longa jornada noite adentro podem mesmo ser cansativas à primeira vista, no entanto constituem um cinema capa de fascinar. E, apesar do título e do tom teatral, não há uma relação clara com a peça de Eugene O’Neill.
Segue-se, então, que, a partir de determinado momento, Luo vai a um cinema, como se fosse o par de mulheres em Cidade dos sonhos, para assistir a um filme, embora também lembre Adeus, Dragon Inn e Felizes juntos, partindo daí o brilhante trabalho de fotografia assinada pelo trio Yao Hung-i, Dong Jinsong e David Chizallet. No cinema, esta parte é em 3D, numa espécie de metalinguagem típica do cinema moderno e uma certa indicação para os experimentos de Godard e certamente de Lubezki e Iñárritu em Birdman. É nesse outro filme (ou sonho) que ele conhece Kaizhen (também Tang Wei).

A impressão que se tem é de um cinema baseado em metáforas e parcialmente fantasmagórico. Se o Mr. Oscar se movimentava em Holy Motors como um espectro na noite de Paris, simbolizando a própria morte do cinema antigo e sua passagem para o mundo digital, não é muito diferente nesse filme chinês. O personagem principal tem uma narração breve, com poucas falas, mas que remetem a uma narrativa noir de detetive e mesmo os cenários vão simbolizando essa tentativa de evocar outra época, com elementos típicos: a chuva, a escuridão da estrada, uma moça caminhando na rua sendo seguida de perto com os faróis de um carro, isqueiros sendo acesos e homens de chapéu soprando fumaça de cigarro. Tudo parece uma grande representação do cinema clássico, no entanto sob uma ótica contemporânea, com extrema perspicácia. É mais ou menos o movimento feito por Chan-wook Park em A criada: utilizar imagens com um ambiente já gravado na memória cinematográfica do espectador sob um ponto de vista diferente. Nesse sentido, as imagens de Longa jornada noite adentro lidam com uma constante espécie de nostalgia.

O design de produção de Liu Qiang, evocando ambientes do interior da China, misteriosos, recorda em algumas partes o trabalho de Gaspar Noé, com a ajuda do trabalho fotográfico, sobretudo numa sequência em que os personagens parecem voar (evocando Enter the void), em meio a um cenário que lembra um grande parque de diversões, com um karaokê de fundo. É um filme absolutamente preciso, mesmo com suas elipses, e predominantemente poético em sua tentativa de transformar imagens imprecisas em algo mais concreto. Ele consegue estabelecer uma relação de perda de Luo com a tentativa de ele se reconectar com um antigo amor de maneira que o espectador é recompensado por movimentos de câmera impecáveis. E, em certos momentos, a maneira como se conta a história recorda Nostalgia, de Tarkovsky, com o personagem caminhando em meio a cenários desolados e, como o cineasta russo, Bi Gan nunca desconfia que o hermetismo de seu conto não tem um profundo senso de realidade e humanidade, entregando um dos melhores filmes do ano.

Di qiu zui hou de ye wan, China, 2019 Diretor: Bi Gan Elenco: Tang Wei, Huang Jue, Lee Hong-chi, Sylvia Chang Roteiro: Bi Gan Fotografia: Yao Hung-i, Dong Jinsong e David Chizallet Trilha Sonora: Lim Giong e Hsu Point Produção: Shan Zuolong Duração: 140 min. Estúdio: Zhejiang Huace Film & TV, Dangmai Films, Huace Pictures Distribuidora: BAC Films (França)

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