Estou pensando em acabar com tudo (2020)

Por André Dick

Charlie Kaufman se tornou conhecido no final dos anos 90 com o roteiro de Quero ser John Malkovich, de Spike Jonze, uma das peças mais originais do cinema norte-americano, em que se fazia presente uma espécie de mescla entre ficção científica, sonho e imaginação em igual escala. Nos anos 2000, ele repetiu a parceria com o diretor Jonze em Adaptação e fez o roteiro, premiado com o Oscar, de Brilho eterno de uma mente sem lembranças, dirigido por Michel Gondry, com Jim Carrey e Kate Winslet como um casal que se mantinha em contato ao longo de memórias produzidas ou esquecidas. Em 2008, Kaufman finalmente estreou como diretor em Sinédoque, Nova York, uma impressionante versão sobre como os tempos podem se misturar na existência de um indivíduo ligado a uma peça de teatro, estrelado por Philip Seymour Hoffman.
É curioso que justamente Jesse Plemons, que interpreta o filho de Hoffman na obra-prima O mestre, seja o personagem Jake em Estou pensando em acabar com tudo, novo filme de Kaufman, desta vez baseado num romance de Iain Reid, que deseja levar sua namorada (Jessie Buckley), com quem sai há em torno de seis semanas, para conhecer seus pais na fazenda rural em Ocklahoma de onde veio. Na ida para o local, ela se sente em dúvida sobre se mantém o relacionamento com Jake ou não, se tudo deve ser mais do que uma visita protocolar Chegando à fazenda, Kaufman mostra o casal indo visitar, embaixo da nevasca que os acompanhou ao longo da viagem na estrada, indo ver os animais no celeiro, antes de se depararem com o estranho comportamento do cão da casa, que parece estar num looping temporal.

É neste ponto, talvez, que se encontre as definições mais interessantes para a história:  paralelo entre homens e a natureza. É como uma conversa sobre poesia em determinado momento: perguntado por que há identificação com ela, ela fala da universalidade, e é justamente nesta que o filme de Kaufman se apoia para, afinal, falar de tudo que pode estar ou não relacionado ao espectador e com experiências com as quais ele, se ainda não conviveu, talvez venha a ter com a passagem do tempo. Isso porque é uma das poucas obras que mostram exatamente como como a impressão pessoal pode se estender a outras, criando um grande mosaico, perfeito para ser entendido ou apenas apreciado a distância e abandonado, sem chances de uma clara explicação.
Na casa, a jovem conhece os pais de Jake (Toni Collette e David Thewlis),  que agem, a princípio, de maneira estranha – parecendo a família de um dos episódios de No limite da realidade –, quase como se estivéssemos vendo um filme de suspense, mas aos poucos se vê que é apena sum artifício de Kaufman para colocar seus questionamentos existenciais de Sinédoque, Nova York e de sua animação Anomalisa novamente em cena. O diretor começa, sem spoilers, a colocar os personagens numa espécie de vitrine para acompanhar a transformação da própria vida. Se eu não estivesse tentando deixar em enigma o que acontece, basta dizer que Kaufman não se interessa em nenhum momento a ser claro, evidente ou explicar seus conceitos. A obra de Reid na qual o filme se baseia é antilinear e enigmática, porém Kaufman a subverte ainda mais, não procurando um esclarecimento final, mesmo um tanto inconclusivo. Como em Brilho eterno de uma mente sem lembranças, a narrativa literária se rende a uma outra espécie de artista, que coloca seu olhar pessoal sobre ela.

De longas discussões sobre poesia até referências sobre musicais do cinema e sobre Uma mulher sob influência, de John Cassavetes, resultante, ao que parece, de um livro de críticas de Pauline Kael no quarto de Jale, Estou pensando em acabar com tudo trata de forma instintiva da linguagem que nos move e nos caracteriza, dos sonhos que a linguagem proporciona e de como o ser humano tenta imitar em sua vida referências artísticas, o que é um prolongamento decisivo de teorias estruturalistas, de Lacan a Barthes.
Por isso, torna-se tão importante o diálogo da namorada de Jake com os pais de seu namorado sobre a pintura, ou os pedidos dele para que seu pai tire fotografias. Kaufman quer mostrar uma realidade artística em que os personagens estão inseridos e cria uma atmosfera nebulosa e sombria – o filme se passa, dentro do carro ou na casa, ou no celeiro, ou em outras duas ambientações ao longo da estrada, uma delas muito semelhante àquelas de A caixa, de Richard Kelly – para situar os personagens dentro de um espelho enorme deles mesmos, com uma lentidão europeia captada de modo incontestável pelo trabalho de fotografia de Łukasz Żal (indicado ao Oscar por Guerra fria, de Pawlikowski). É notório como ele espalha ao longo da narrativa pistas visuais para que haja um diálogo entre tempos distintos. Para isso, as atuações principalmente de Buckley e Collette são extraordinárias, na mistura entre contenção, no caso da primeira, e certo exagero, no caso da segunda.

Não há, igual às outras obras de Kaufman, uma tendência natural ao otimismo. Parece tudo um pouco seco, mas, por outro lado, é bastante emocional e mesmo sentimental, lembrando alguns instantes de A árvore da vida, de Malick. Ele não e coloca a distância dos personagens com sua série de referências intelectuais, contudo os coloca uma espiral de sentimentos mesclados entre a realidade, o imaginado e o onírico. O roteiro transmite a estranha sensação de que cada momento e decisão podem englobar todos os outros, de que por mais que nos afastemos de uma experiência ela vai acompanhar o indivíduo por toda a vida e que mesmo os arrependimentos o formam e o estruturam. E em meio a isso imagina-se uma atemporalidade pela imagem de um zelador, muito próxima, em conceito, não em realização, daquela que Kubrick faz para Jack Torrance em O iluminado. É uma constante variação entre descoberta, encontro, perda e abandono, e sua circularidade se dá nas próprias idas e vindas que, a partir de determinado ponto, marcam presença. Jake se sente incapaz de lidar com a ideia de morte, mas ela está em referências ao destino dos animais (inclusive na cena do jantar) ou mesmo a um sorvete que o vincula à infância e à ideia de um musical e não pode ver desperdiçado, mesmo em meio a uma nevasca.
Nesse sentido, não parecem deslocadas as conversas sobre arte, que poderiam soar autoindulgentes, mas do jeito que se colocam manifestam a mesma ideia de Adaptação, em que Nicolas Cage fazia dois irmãos gêmeos interessados em roteiros de cinema, e principalmente Sinédoque, Nova York, sobre a experiência teatral. Aqui, o teatro toma uma ligação fundamental com o cinema e tudo o que acontece a cada passagem parece remeter a uma outra. Ficam alguns enigmas pelo caminho, como uma obra que é muito difícil de ser definida ou enquadrada num gênero – termo explorado numa conversa divertida em família, no entanto com clima de tensão irremediável – e que, sob determinado ponto de vista, pode ser mesmo vista como uma obra de gênio.

I’m thinking of ending things, EUA, 2020 Diretor: Charlie Kaufman Elenco: Jesse Plemons, Jessie Buckley, Toni Collette, David Thewlis Roteiro: Charlie Kaufman Fotografa: Łukasz Żal Trilha Sonora: Jay Wadley Produção: Stephanie Azpiazu, Anthony Bregman, Robert Salerno, Charlie Kaufman Duração: 134 min. Estúdio: Likely Story, Projective Testing Service Distribuidora: Netflix

Post anterior
Deixe um comentário

Deixe um comentário