Cidade Pássaro (2020)

Por André Dick

Inicialmente criador de documentários, como A vida privada dos hipopótamos, ao lado de Maíra Bühler, e um dos roteiristas de Pendular, de Júlia Murat, o cineasta Matias Mariani estreia em longa de ficção com Cidade Pássaro, lançado no início deste ano no Festival de Berlim. É interessante este ponto de partida para uma obra que se constrói a partir do olhar estrangeiro.
O filme mostra dois irmãos, Amadi e Ikenna, brincando num quarto da casa onde moram em Nsukka, na Nigéria, em 1988. Há um corte abrupto e estamos na São Paulo contemporânea, onde Amadi (OC Ukeje) está em busca do irmão (Chukwudi Iwuji), que veio para o Brasil trabalhar como professor numa universidade. Amadi para numa comunidade Igbo de imigrantes vindos exatamente da Nigéria, a fim de tentar descobrir o paradeiro do familiar. Parece haver uma série de pistas, desde anotações matemáticas até dados num computador, para que possa haver um possível encontro entre os dois. Na tentativa de descobrir o paradeiro de Ikenna, Amadi percorre longas escadarias, escadas rolantes, prédios. É a própria cidade de São Paulo que se põe em movimento mesmo na palavra pássaro, com a aliteração que permite entender que tudo guarda um subtexto. A proporção de tela 4:3 faz com que os personagens pareçam apertados ou deslocados, criando uma sensação de estranhamento ao fundo, e é justamente quando eles parecem se encontrar que as paisagens vão se tornando mais amplas.

Essa procura atinge uma faceta mais hermética quando Amadi conhece um professor de origem húngara (Paolo André) que fala das pesquisas de Ikenna em relação a corridas de cavalos. Cidade Pássaro se move estranhamente entre uma busca humana e familiar e um universo onde a matemática parece preponderar, acompanhada pelo universo da música.
A estética do filme – com a fotografia excelente de Leo Bittencourt, que havia mostrado o talento para ambientação e lugares isolados em Fala comigo – conversa com seu conteúdo. A empreitada em busca do irmão dá espaço a lugares underground, a sacadas de prédios, a jóqueis, e a um São Paulo tremendamente urbana e solitária. No entanto, não há caos, pelo menos na forma como o conteúdo é apresentado. Tudo é extremamente simétrico, passado, e mesmo lento, principalmente nos diálogos entre os personagens. Esses se aproximam e se afastam pela linguagem – grande parte das falas é em inglês. No caso do professor húngaro, seu pai só consegue falar na língua original. É um significado desse afastamento e aproximação sob um olhar sensível.

Em determinado momento, Amadi passa a ajudar seu tio (Barry Igujie) numa loja e se interessa por uma moça, Emília (Indira Nascimento). Cidade Pássaro migra para um plano mais inter-relacional, que vai se concretizar numa noite chuvosa, em que Amadi vai a uma casa onde poderia haver informações sobre o irmão. A conversa se dá numa cozinha e, com a iluminação laranja pela janela e o barulho de chuva, acontece de maneira tão cabisbaixa que se torna íntima, lembrando o recolhimento de Se a Rua Beale falasse, de Barry Jenkins, com cores ao fundo. Há uma contenção de gestos inusual em boa parte do cinema brasileiro, uma solidão irreparável na apresentação de cada personagem. Num determinado momento, o casal vai a uma peça de música – e a câmera que se aproxima da plateia faz lembrar o belíssimo início de Amor, de Michael Haneke, antes de os personagens finalmente encontrarem espaço num karaokê. Esta ligação com a música e o ambiente também é notável quando Amadi toca com alguns amigos na sacada de um prédio, com o som dos carros em viadutos ao fundo. A simetria matemática de Ikenna entra em conflito subjetivo com a relação entre Amadi e Emília. Nisso o acaso é colocado em questão. O conflito entre a terra natal e a nova cidade se estabelece também em momentos como o de um clube noturno, no qual Amadi parece visualizar imagens de mulheres nigerianas em meio às luzes, assim como um certo aspecto mítico é complementado por conceitos ligados à entropia e a hologramas e a um universo de tecnologia.

O personagem central é um núcleo de gentileza (o ator Ukeje é extraordinário no papel), vendo tudo o que está ao redor sob o ponto de vista de que pode ajudá-lo, mesmo que muitos não queiram. Há um clima de isolamento (não raramente o personagem está descansando as costas em paredes ou sofás) que contrasta com a possível solidariedade que poderia emergir dessa condição de o personagem ser um estrangeiro. Amadi está à procura do irmão a pedido da mãe e as certezas de Ikenna parecem confrontá-lo com a ideia de família. É a procura de um rastro familiar para encontrar a própria independência.
Mariani conserva um afeto pelos personagens que nunca desliza para o discursivo, mas se mantém um pouco a distância, digamos, quase documental sem se misturar com uma frieza e neutralidade que disso poderia resultar se utilizado de maneira menos equilibrada. Cidade Pássaro é um filme que expande uma nova sensibilidade, capaz de tocar o espectador mesmo quando ele parece não perceber. É de uma beleza rara e precisa.

Cidade Pássaro, BRA/FRA, 2020 Diretor: Matias Mariani Elenco: O.C. Ukeje, Indira Nascimento, Chukwudi Iwuji, Paolo André, Barry Igujie Roteiro: Chika Anadu, Francine Barbosa, Maíra Bühler, Matias Mariani, Júlia Murat, Chioma Thompson, Roberto Winter Fotografia: Leo Bittencourt Trilha Sonora: Flemming Nordkrog Produção: Juliana Funaro, Claire Gadea, Junyoung Jang, Marie-Pierre Macia, Matias Mariani, Issis Valenzuela, Renata Wolter Duração: 102 min. Estúdio: February Films, MPM Film, Primo Filmes Distribuidora: Netflix (Internacional), Vitrine Filmes (Brasil)

 

 

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