Licorice Pizza (2021)

Por André Dick

Diretor que vem apresentando uma trajetória única no cinema desde 1996, quando estreou com Jogada de risco, Paul Thomas Anderson é um dos nomes mais inventivos de qualquer época e se torna muito interesse acompanhar sua obra sendo feita, aos poucos. Depois de Boogie Nights e Magnólia, filmes que apresentam microcosmos interessantes, sobre os filmes pornôs dos anos 70, e sobre caminhos de inúmeros personagens se cruzando, respectivamente, Anderson enveredou pela comédia romântica agridoce com Embriagado de amor. Os elementos deste filme (fotografia com luminosidade contemporânea de neons) ele não chegaria a apresentar em seus ótimos Sangue negro, O mestre, Vício inerente e Trama fantasma, mas ele de certo modo os recupera em Licorice Pizza.
Desde o início, quando Alana Kane (Alana Haim) recruta jovens para tirar fotos para o colégio, andando pelo corredor, Anderson tenta recriar algumas características de Embriagado de amor, mas desta vez localizando a história na Los Angeles dos anos 70, com uma aura de Loucuras de verão e de Era uma vez em… Hollywood, este talvez a sua maior influência recente. Desta vez adotando um tom mais despretensioso, do seu mestre Robert Altman, Anderson mostra a amizade entre Alana, que tem 25 anos, com um jovem de 15 anos, Gary Valentine (Cooper Hoffman). A distância de idade impede que ele possa namorá-la e, a partir disso, Anderson traça um retrato substancial de época, usando o orçamento para levar o espectador a uma viagem, com design de produção e figurino irretocáveis. Sem poder namorar, Alana se associa a ele como uma espécie de assessora em suas participações como ator e depois como vendedora num de seus negócios, e passa a sair com Lance (Skyler Gisondo, muito bem como sempre), parceiro de atuações de Gary.

Alana faz parte de uma família de origem judaica – e suas irmãs e pais são da família Haim, que realmente existe. No filme, eles formam a família Kane, mas, como Alana, suas irmãs são chamadas pelo prenome verdadeiro, Danielle e Este. Nesse sentido, Paul Thomas Anderson estende agora a parceria que tinha dirigindo os videoclipes da banda delas, Haim, para o cinema. Esses videoclipes possuem exatamente parte deste estilo setentista de Licorice Pizza e Anderson utiliza a fotografia que dirige ao lado de Michael Bauman e a trilha sonora de Jonny Greenwood para mostrar uma visão vibrante da cidade dos sonhos com a arte.
Se Gary é um jovem que inicia o filme querendo ser ator, participando de programas de TV e testes, com a mãe (Mary Elizabeth Ellis) como agente, Anderson mostra sutilmente como ele, aos poucos, vai deixando este sonho (a cena do teste em que ele está em meio a crianças assinala essa mudança) para ingressar em negócios mais cotidianos – e comprar a premissa de que o jovem é um talentoso negociador é necessário para não ver a trama como descartável, afinal, como o Barry de Embriagado de amor, feita por Sandler, este é um jovem fora do seu contexto real de mundo, o que se determina na sua amizade com o dono de restaurante Jerry Frick (John Michael Higgins). Ele mostra, mais uma vez, o interesse de Anderson em mostrar alguém que pretende ingressar no sistema, mas está sempre à margem. Já Alana é uma moça que não tem grandes sonhos e vê em Gary  uma maneira de tentar ampliar sua perspectiva. Ela é vista pelo jovem como se fosse uma espécie de amor impossível, devido à distância da idade. E há uma sequência que parece determinar esta sensação, quando Gary está tentando vender uma linha de colchões e é confundido com um criminoso. A prisão que sofre, que lembra a do personagem de Phillip Seymour Hoffman em O mestre, se transforma, depois, num encontro com a liberdade, na corrida principalmente dos personagens por uma rua, como se os perigos da vida adulta fossem instantaneamente esquecidos e toda a alegria da juventude se consolidasse.

De certo modo, Anderson utiliza os dois personagens como símbolos de uma época. É claro que o cineasta sabe o que o espectador espera de um filme de jovens, algo na linha de Quase famosos, de Cameron Crowe, ou Jovens, loucos e rebeldes, de Richard Linklater, sem nenhum demérito para essas obras. No entanto, ele subverte esta expectativa, depois dos diálogos um pouco engessados e teatralizados no início, lançando mão de uma característica muito usada por Altman em seus filmes dos anos 70: uma aparente desconexão entre fatos e algumas conversas absurdas. Se em Vício inerente Anderson mostrou essa época de modo fascinante, em Licorice Pizza ele a apresenta de maneira até ingênua e nostálgica, mesmo nas participações de Sean Penn, Tom Waits e Bradley Cooper. Alguns personagens entram e saem de cena sem dizer muito a que vieram, no entanto, caso se preste mais atenção, a maior parte deles representa uma faceta de Hollywood, certa loucura mesclada com onirismo. A arte, para esses jovens, é tudo, e o que eles fazem no seu cotidiano é tentar alcançá-la, mesmo sem um objetivo claro para isso.
Anderson visualiza o período da Guerra do Vietnã como aquele de certa paranoia na convivência e uma certa estranheza nos motivos de “paz e amor” dos hippies ao revelar quase todos os homens, aqui, em busca de um relacionamento com uma mulher jovem, no caso Alana. O diretor, deste modo, reproduz parte dos conceitos de Vício inerente, mas desta vez com um encadeamento de histórias às vezes dispersas. Cada parte dialoga com filmes destacados dos anos 70. O trecho em que Penn e Waits aparecem remete bastante a Nashville, de Altman, enquanto a participação de Cooper lembra o clima de Shampoo, de Hal Ashby, com Warren Beatty (também presente na figura de Jon Peters, interpretado no filme por Bradley Cooper, em ótima participação), e o terceiro ato mostra Alana numa atmosfera capaz de evocar Taxi Driver, de Scorsese. Há, igualmente, alguns traços de Short Cuts, A longa noite e referências interessantes a Um violinista no telhado, sobretudo por meio da família judaica de Alana, além de, evidentemente, Era uma vez em… Hollywood, sobretudo nos ambientes noturnos e na captação de ruas, carros em movimento e cinemas de rua.

Anderson confirma novamente seu talento em filmar com um estilo rigoroso e, ao mesmo tempo, despretensioso, nos movimentos de câmera. Numa cena em que Gary liga para Alana e fica mudo, a câmera alterna entre ele e ela, bastante instável, como se reproduzisse a insegurança do que pode existir entre ambos. As atuações de Cooper (filho do grande Phillip Seymou Hoffman, que fez com Anderson quatro filmes) e de Alana são excepcionais, cada uma a seu modo. Na sequência em que Gary está num programa de TV, há uma atmosfera que remete tanto O mestre quanto a Trama fantasma, como se os personagens estivessem inseridos em molduras de época – no primeiro, quando Freddie fotografa seus clientes, no segundo quando o personagem de Day-Lewis tira fotos com mulheres e seus vestidos. Anderson também associa cores de figurinos ao que já havia mostrado principalmente no excepcional Vício inerente, mas também em Boogie nights. E, com o requinte visual que lhe é peculiar, pode-se dizer que, em termos de roteiro, ele parece cada vez mais voltado a um nicho pouco comercial de Hollywood. Não há mais diálogos longos como em Magnólia e Boogie nights, apenas fragmentos de personagens, de ações, deixando a critério do espectador amarrar tudo, seja qual for seu ponto de vista. E, ao contrário dos seus outros filmes, Licorice Pizza é mais solar, mais bem-humorado e sem pretensão a tratar de temas que se aproximam mais de um lado filosófico, como existia em O mestre e Sangue negro, embora ele tenha uma visão muito particular dos relacionamentos. É a prova de que Anderson é um dos maiores cineastas autorais em atividade no cinema, o que não é pouco.

Licorice Pizza, EUA, 2021 Diretor: Paul Thomas Anderson Elenco: Alana Haim, Cooper Hoffman, Sean Penn, Tom Waits, Bradley Cooper, Benny Safdie, Mary Elizabeth Ellis, Danielle Haim, Este Haim, Skyler Gisondo, John Michael Higgins Roteiro: Paul Thomas Anderson Fotografia: Michael Bauman e Paul Thomas Anderson Trilha Sonora: Jonny Greenwood Produção: Sara Murphy, Adam Somner, Paul Thomas Anderson Duração: 134 min. Estúdio: Metro-Goldwyn-Mayer, Focus Features, Bron Creative, Ghoulardi Film Company Distribuidora: United Artists (Estados Unidos), Universal Pictures (Internacional)

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