Corpo e alma (2017)

Título original: Testről és lélekről

Título em inglês: On body and soul

País: Hungria

Duração: 1 h e 56 min

Gêneros: Drama, romance

Diretor: Ildikó Enyedi

IMDB: www.imdb.com/title/tt5607714/


Meus caros leitores, começo pedindo para que vocês se lembrem da seguinte frase quando tiverem a oportunidade de assistir ao filme em tela: “On body and soul é diferente de tudo o que você já viu”. Trata-se de um filme com um único tema: o amor – o tema mais explorado na história do cinema. Estou sendo bastante corajoso ao  fazer a afirmação da primeira frase, e, além disso, neste momento, ainda correlaciono o seu conteúdo ao da segunda, ou seja, o filme trata do amor – que já foi abordado de milhares de maneiras diferentes ao longo do tempo na sétima arte – de uma forma singular, ora metafórica, ora objetiva, apostando sempre nas dificuldades que as pessoas têm para lidar com o sentimento e criando um contexto não propício ao seu aparecimento – e até transcendental -, tanto em relação ao ambiente físico quanto aos âmagos dos personagens envolvidos. Parece difícil de entender, mas o roteiro, apesar de complexo, é bastante fluido e permite uma boa apreciação e entendimento da história.

O filme se passa num abatedouro de bovinos e começa com a chegada de uma nova funcionária, chamada Mária. Ela atrai olhares do diretor financeiro do estabelecimento, chamado Endres. Após um furto e a posterior chegada de uma psicóloga para investigar os funcionários, Mária e Endres descobrem algo em comum. A partir daí, eles tentam uma aproximação, que tende a ser bastante difícil, ao se depararem com a realidade.

O filme já começa numa gélida floresta, com um casal de cervos num jogo de sedução para o acasalamento. Esses personagens inusitados aparecem a todo momento – o que nos leva a deduzir que a diretora pretende fazer um paralelo entre a situação dos animais e dos protagonistas. Nesse ponto, já nos enganamos, pois não há paralelo. As cenas são imaginárias, pois são sonhos, mas fazem parte de um contexto absolutamente real. Nota-se que a aproximação entre os animais não é muito fácil – isso é muito importante. Constatamos que esse mundo animal não aparece apenas para embelezar a fotografia do filme, mas é o elo entre Mária e Endres. Portanto, essa junção entre o real e o imaginário é o primeiro ponto a se observar na narrativa.

O segundo ponto é conhecer o íntimo dos dois protagonistas, que, diga-se de passagem, são pitorescos, e combinam tanto quanto água e óleo. Endres é um homem com poucos atrativos físicos, pois já tem mais de 60 anos e possui uma deficiência motora em um dos braços. Ele já amou muito, e, por conseguinte, já sofreu muito também. Tanto que, em um determinado momento, ele afirma que já abandonou a seara amorosa e prefere viver sozinho. Mária deve ter a metade da idade de Endres. É bastante estranha em seu comportamento, tende a se isolar e repelir as pessoas ao seu redor. Em certo momento, é comparada a um robô, pelo metodismo de suas ações, tanto em seu trabalho quanto em sua vida. Chama a atenção uma passagem em que ela afirma “seguir as diretrizes”. Ela nunca teve um relacionamento amoroso e tem fobia ao toque de outras pessoas. Como as pessoas tendem a se unir pelas semelhanças, há duas características que os aproximam: a solidão e uma situação chamada pela ciência de sonho compartilhado. Apesar disso, vocês já podem imaginar, apenas por essa simples apresentação dos personagens, que esse processo vai ser bastante penoso.

O terceiro e último ponto é a identificação da linha de raciocínio da história, ou seja, a ideia sobre a qual o filme é desenvolvido: a dificuldade de amar. É nesse ponto que entra toda a sensibilidade da direção de uma mulher. Sugere-se que os medos de cada um são os maiores dificultadores para o entendimento entre as pessoas e faz com que, por vezes, as oportunidades passem embaixo dos narizes e não sejam agarradas. A diretora Ildikó Enyedi trabalhou muito bem a personagem Mária, de forma a reprimir seus sentimentos pelas suas inseguranças e seus transtornos psicológicos, e, ao mesmo tempo, ofereceu-lhe condições – às vezes a preços muito altos – de procurar soluções para suas dificuldades de relacionamento com as pessoas. Assim, há a liberdade para os protagonistas procurarem uma aproximação, como os cervos, e, com uma conotação deveras sexual em diversas passagens do filme, as situações vão se moldando proporcionalmente à grandeza da força interior de cada um dos envolvidos.  Em momentos ora de um presumido entendimento, ora de uma tragédia anunciada, uma relação improvável tem a possibilidade de prosperar – basta afastar os fantasmas, o que, convenhamos, não é fácil.

Em oposição à sensibilidade na condução de um caso amoroso tão complexo, a diretora faz questão de mostrar a seus espectadores cenas de abates dos bovinos, com direito a detalhes sórdidos e angustiantes. A princípio, achei totalmente desnecessário aquilo tudo, mas, após assistir aos últimos minutos, que são chocantes e magníficos – a cena de Mária no banheiro -, encontrei um propósito para a exibição daquela violência, que todos nós sabemos que existe, mas que, felizmente, somos poupados de acompanhar, mas a narrativa faz questão de mostrar. Fiquei bastante incomodado e já informo aos espectadores mais sensíveis da existência desse tipo de cena.

On body and soul” consegue, através de uma excelente montagem, trazer ao público uma experiência lenta, sofrida e interessante, por mostrar pessoas comuns, e, portanto, próximas de nossa realidade, que não sabem lidar com seus sentimentos, preferem o isolamento em seus próprios mundos, e, assim, negligenciam o mais sublime dos sentimentos – o amor. Nós, seres humanos, assim como a maioria dos animais, não nascemos para viver sozinhos, e a procura da felicidade com outras pessoas é uma constante, mas, antes disso, é necessário saber enfrentar nossas restrições internas e buscar se adaptar a elas da melhor maneira possível. Primeiro, é preciso amar a si mesmo – de corpo e alma.

É mais um forte candidato a ser finalista do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2018.

O trailer segue abaixo

Adriano Zumba


3 comentários Adicione o seu

  1. Wallace disse:

    Ótima crítica!

    Curtido por 1 pessoa

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