A casa que Jack construiu (2018)

Título original: The house that Jack built

Países: Dinamarca, Suécia, França, Alemanha

Duração: 2 h e 32 min

Gêneros: Drama, horror

Elenco Principal: Matt Dillon, Bruno Ganz, Uma Thurman

Diretor: Lars von Trier

IMDB: https://www.imdb.com/title/tt4003440/


Opinião: O “estado da arte” em filmes sobre assassinos em série.


“Agora, por teu prol, eu tenho intento

de levar-te comigo; ir-te-ei guiando

pela estância do eterno sofrimento,

onde, estridentes gritos escutando,

verás almas antigas em tortura,

segunda morte a brados suspirando.”

(A Divina Comédia – Livro: O Inferno, Canto I)


Na primeira parte de “A Divina Comédia“, um dos poemas mais conhecidos da história, escrito por Dante Alighieri em 1320, Virgílio, um grande poeta romano e autor de “Eneida“, surge para guiar Dante pelo inferno e o purgatório em direção ao paraíso. Após quase 700 anos, um tal Lars von Trier, revestido com poderes divinos concedidos pela sétima arte, ressuscita o famoso poeta, que habitou neste planeta antes de Cristo, e lhe dá a incumbência de realizar a mesma tarefa de séculos atrás, mas, desta vez, a pessoa que ele deve guiar é a personificação do mal: um vaidoso serial killer que busca “o estado da arte” em seu ofício, matar. Nesse contexto, sempre é bom lembrar que, assim como no épico poema, a primeira parada da dupla de viajantes é o inferno – o local perfeito, por ser considerado por algumas religiões o ambiente que abriga a maldade em todas as suas formas.

Após esse pequeno prólogo, que já desnuda uma parte da estruturação narrativa do filme em tela, temos uma obra categorizada no gênero de horror, que faz jus, em cada segundo de sua exibição, a tal classificação. Temos uma combinação perfeita: um diretor inteligente, excêntrico e sem pudores, entre outras características; um protagonista perturbado e imprevisível, assim como um assassino em série normalmente se comporta; e uma narrativa densa, angustiante, obscura e deveras inquietante, que, por incrível que pareça, é construída de maneira bastante artística para um filme desse gênero cinematográfico, seja pelas referências que utiliza, passando pela montagem não convencional – com a inserção de diversas mídias que compõem a base de comparação do universo metafórico do roteiro -, até a própria exibição dos fatos, que não se resumem apenas a mostrar violência e sangue em abundância. Na trilha sonora, podemos ouvir até Sebastian Bach! O certo é que von Trier, mais uma vez, tira os espectadores da zona de conforto e desafia a capacidade de percepção e interpretação deles. Apenas por isso, “A casa que Jack construiu” não é um filme que recomendo para qualquer pessoa. Deve ser observado com atenção, moderação e com a expectativa de se deparar com cenas difíceis de deglutir: mutilações de animais e seres humanos, mortes violentas de vulneráveis, incluindo crianças, manipulação de rigor mortis, etc. Nota-se que a obra é uma iguaria indigesta, mas deliciosa se o espectador souber apreciá-la – e tiver estômago e nervos para isso.

Segue-se um resumo do enredo: “Jack, arquiteto por formação, mas um ardiloso serial killer por natureza, que considera seus “trabalhos sangrentos” como arte, marcha rumo ao inferno guiado por Virgílio e, ao passo que acompanhamos os diálogos entre eles, com o intuito de desvendar as motivações para os atos criminosos e revelar nuances da mente do psicopata, somos convidados a assistir de perto, através de um estilo imersivo de filmagem, a 5 incidentes, nos quais, em cada um deles, estão incluídos um ou mais assassinatos, escolhidos aleatoriamente por Jack para serem detalhados para Virgílio – dentre os de mais de 60 cometidos por ele em 12 anos de “atuação” nas décadas de 70 e 80.”

O filme é um mergulho dentro do desconhecido: a complexa mente de um homem sádico, com a perversão à flor da pele, que mata por prazer e sem o mínimo sentimento de culpa, que busca cometer o assassinato perfeito, à prova de falhas, apesar de o acaso ser muito camarada com ele, pois seus crimes não são tão primorosos assim, mas ele os considera. Nada mais típico para uma pessoa desajustada! A jornada proposta pelo roteiro inclui até alguns flashbacks da infância de Jack, em busca de indícios de desequilíbrio mental e respostas para seus atos nefastos. Em sua fase adulta, vemos o processo de desenvolvimento de suas preferências e seus desejos e a administração de seus transtornos obsessivos-compulsivos, que são evidenciados até durante seus homicídios. Adentramos no mundo violento da psicopatia, no qual uma fagulha pode desencadear um incêndio eterno. Trata-se de um estudo de caso com referências literárias e filosóficas, que, por seu viés alegórico ou figurado, deixa margem para diversas interpretações. Isso é um dos pontos fortes do filme! Cabe destacar também a atuação excepcional de Matt Dillon como Jack – um serial killer bastante convincente. Há espaço até para algumas doses de humor negro deliciosas e macabras, que colocam uma pimenta a mais na história.

A maior complexidade narrativa recai sobre a interação entre Jack e Virgílio, que é narrada em off na maior parte do tempo. Deve-se notar que é criada uma atmosfera duvidosa, na qual são realizadas diversas comparações simbólicas, considerando que todo ser humano possui um “lado negro”, que, mesmo adormecido talvez por toda a vida, carrega consigo a existência de fortes, pervertidos e mórbidos desejos prontos para serem exteriorizados, mesmo com os obstáculos legais e morais que as sociedades impõem. Aceitar e reprimir as vontades mais íntimas de cada um é dos maiores dilemas da existência humana. Essa conjuntura entra também na seara das crenças religiosas, como em “A Divina Comédia“, ao questionar a falibilidade do corpo através de seus respectivos atos e atribuir à alma um caráter divino, ou seja, o espírito é bom e a carne é má, devido à imperfeição intrínseca do ser humano. Ademais, há muito mais filosofia embutida nas entrelinhas do filme, e isso proporciona uma dificuldade pungente, um pouco de inacessibilidade e um oceano de temas para reflexão.

Critico apenas três aspectos do filme em destaque: a longa duração; uma falha gritante, durante o terceiro incidente, relacionada a um ferimento a bala, cuja vítima é mostrada por duas vezes com sangue em locais diferentes; e a mistura entre realidade e fantasia, apesar de considerar que o resultado final da junção entre esses dois contextos é harmônico, bem construído e possui um elo interessante e pertinente dentro da narrativa. Ao fim, os parafusos se encaixam perfeitamente em suas respectivas porcas e fica um sentimento de satisfação por ter vivenciado mais essa experiência cinematográfica. Todo artista edifica sua “casa” através de seu legado. Se o artista em questão é um assassino, imaginem de que é feita a sua casa, pois o seu legado é determinado com obviedade. Bem-vindos, mais uma vez, aos devaneios conscientes de Lars von Trier. Desta vez, são literalmente coisas de louco! São representações de sua pitoresca arte – e com requintes de crueldade.

O trailer, com legendas em português, segue abaixo.

Adriano Zumba


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