Rainha de Copas (2019)

Título original: Dronningen

Título em inglês: Queen of Hearts

Países: Dinamarca, Suécia

Duração: 2 h e 07 min

Gênero: Drama

Elenco Principal: Trine Dyrholm, Gustav Lindh, Magnus Krepper

Diretora: May el-Toukhy

IMDB: https://www.imdb.com/title/tt8378126/


Opinião: “Questionador, reflexivo e provocativo em sua essência.”


Citação: “Às vezes, o que acontece e o que nunca deve acontecer são a mesma coisa.”


Dentre os filmes indicados ao Oscar de melhor filme internacional em 2020, “Rainha de Copas” merece bastante destaque. O representante da Dinamarca tira o espectador de sua zona de conforto por intermédio de uma situação fática e deveras controversa, estimulando-o a confrontar o desejo e a ética dentro de um contexto ficcional, que transpira realidade a todo momento, e é construído de modo a ir de encontro às atividades desempenhadas profissionalmente por sua protagonista, Anne. Essa contradição “soa” como clichê, mas a profundidade com que as temáticas são desenvolvidas e as sutis, mas inteligentes, analogias em relação à obra literária “Alice no país das maravilhas“, escrita por Lewis Carroll em 1865, abrilhantam sobremaneira o filme, de modo a proporcionarem uma ótima experiência regada a uma boa reflexão.

Eis a sinopse: “Anne é uma advogada, que atua na defesa de crianças e adolescentes vítimas dos mais variados tipos de violência. Acostumada com lidar com jovens complicados, ela não tem muitas dificuldades para estreitar laços com seu enteado Gustav, filho do primeiro casamento de seu marido Peter, que acaba de se mudar para sua casa. No entanto, a relação que deveria ser parental se torna uma relação romântica, envolvendo Anna em uma situação complexa, arriscando a estabilidade tanto de sua vida pessoal quanto profissional.”

Há dois aspectos interessantes que devem ser considerados: a construção da conjuntura e o desnudamento da alma dos personagens principais da história, principalmente da “Rainha de Copas”, Anna, que é bastante abstrusa. Como já citado, situar um determinado personagem em um contexto opositor e testar suas reações em busca de uma suposta hipocrisia ou mesmo uma falha de caráter ou fraqueza de espírito tão normais em nós, seres humanos, que somos falíveis por natureza, é uma estratégia banal e, talvez, por assimilar a presença dessa trivialidade como caracterizadora de sua narrativa, a diretora resolveu se alongar bastante na construção da conjuntura inicial de sua obra. Enfatiza-se de forma suficiente e inteligível o entendimento cotidiano e sexual entre Anne e Peter, com alguns pequenos atritos normais de um relacionamento conjugal; há uma necessidade pujante de se mostrar um ambiente familiar feliz e harmônico; evidencia-se a excelência e dedicação de Anne a seu ofício, inclusive com casos nos quais ela é bem sucedida e elogiada, etc. Para que a narrativa funcione perfeitamente e promova o embate ora aludido, o desejo versus a ética, é imperioso que essa conjuntura seja bem montada – como realmente foi, no entanto, à custa de cerca de 40% da exibição, ou seja, tornou-se cansativo observar o cotidiano e a inserção paulatina de um “estranho” na família, Gustav.

Nos outros 60% da exibição, quando as coisas realmente acontecem, o filme ganha o Oscar de melhor capacidade de atrair as atenções dos espectadores. Entram em cena o famigerado desejo, tórridas cenas de sexo proibido – explícito em alguns momentos -, a dúvida, a desconfiança, a descoberta, as consequências dos atos, a mentira, o desespero, a imaturidade, a injustiça, a covardia, etc. Nesse turbilhão de emoções, os personagens mostram suas facetas mais íntimas, seus defeitos e suas fraquezas. Peter, o “Rei de Copas”, assim como na obra de Carroll, é um personagem importante, mas “inferior” em relação a sua rainha, e está inserido na narrativa apenas para ser o paciente da traição – um papel-chave. Gustav, um rebelde Valete de Copas, que costumava ler “Alice no país das maravilhas” para as filhas gêmeas de Anne e Peter, suas meio-irmãs, age como sua pouca idade e seus hormônios lhe conduzem. Anne é o centro das atenções, a caricatura da mãe perfeita, da esposa amorosa e que esconde em seu âmago capacidades que, talvez, nem ela conheça, as quais, levam-na a seguir metaforicamente o comportamento padrão, que indicava autoritarismo e impulsividade, da Rainha de Copas original quando se via em dificuldades: mandar cortar as cabeças de seus inimigos. Essa interpolação de contextos entre a obra em destaque e a obra literária foi muito inteligente e dotada de bastante sagacidade para sua construção, e há de haver uma boa capacidade de percepção por parte do público para identificar as sutilezas compartilhadas entre elas.

Ao contrário do que possa parecer após a leitura do texto, não há sangue, não há violência física – a palavra “metaforicamente” foi destacada em negrito justamente para definir o rumo da prosa. Mesmo assim, ao fim, percebe-se que a narrativa tem o condão de ferir a alma de seus espectadores pelos mais diversos motivos, principalmente porque alegoricamente cabeças decapitadas não rolam pela tela, apesar de a tragédia estar presente, e sim corações despedaçados e frustrados pelas atitudes de sua rainha.

No meu entender, “Rainha de Copas” é seríssimo candidato à classificação entre os finalistas do Oscar de melhor filme internacional de 2020. As cartas do baralho estão lançadas e a Rainha de Copas é uma carta que pode levar à vitória na disputa.

O trailer segue abaixo.

Adriano Zumba


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