Atlantique (2019)

Título em inglês: Atlantics – A ghost love story

Países: França, Senegal, Bélgica

Duração: 1 h e 46 min

Gênero: Drama

Elenco Principal: Abdou Balde, Aminata Kane, Ibrahima Mbaye

Direção: Mati Diop

IMDB: https://www.imdb.com/title/tt10199586/


Opinião: “Após entender a sua proposta e abstrair alguns detalhes, torna-se um bom filme.”


Através de “Atlantique“, identifica-se mais uma vez que a linguagem cinematográfica é limitada apenas pela imaginação dos cineastas. Como costumeiramente vemos nos produtos da chamada sétima arte, os filmes, uma hipotética história pode ser contada de diversas maneiras, de forma que, mesmo sendo costumeira, adquira um caráter original. É o poder da linguagem utilizada no cinema! No filme em tela, a essência narrativa é trivial, pois já foi dramatizada incontáveis vezes pelo cinema: um amor que é impedido de se desenvolver pelos mais diversos motivos. Hiperbolizando, no cinema indiano essa é quase a narrativa padrão, dada a recorrência de sua exibição. Todavia, a jovem diretora Mati Diop, que, por intermédio de “Atlantique“, foi a primeira cineasta negra a concorrer à Palma de Ouro em Cannes, usando e abusando de sua liberdade criativa, tranformou um simples amor proibido em um amor transcendental, que desafia qualquer sentido de realidade possível ao inserir elementos sobrenaturais em sua narrativa e, aproveitando a oportunidade, enriqueceu-a ao abordar temáticas  sociais que sempre são pertinentes em qualquer obra. Trata-se de um filme deveras complexo, recheado de metáforas, que facilmente tem o condão de desagradar aos menos atenciosos, contudo, pode-se extrair mensagens interessantes e obter uma jornada satisfatória durante a exibição. Vale a pena conferir.

Eis a sinopse: “Ada é uma adolescente de 17 anos apaixonada por Souleimane, um jovem pedreiro que está trabalhando na construção de um prédio futurista à beira do Oceano Atlântico, no subúrbio de Dakar, no Senegal. O único problema é que ela foi prometida para outro homem. Quando, certa noite, os trabalhadores da obra desaparecem no mar quando viajavam para a Espanha em busca de melhores trabalhos, pois não recebiam seus salários há 3 meses, seus espíritos retornam à cidade, principalmente em busca de justiça, mas um deles retorna também em busca de seu amor interrompido precocemente.”

O que realmente salta aos olhos no filme em destaque é o lirismo empregado na utilização dos elementos constituidores de sua produção. O vento e a água, diga-se, o mar – ou o Oceano Atlântico -, são inseridos na narrativa em diversos momentos ao longo das cenas, realizando composições belíssimas com outros elementos e proporcionando um deleite visual aos espectadores, entretanto, uma obra cinematográfica não pode se basear apenas em fotografia e efeitos sonoros obtidos a partir da natureza. Há de haver excelência em outros aspectos para que alcance o sucesso, sobretudo no roteiro e direção de arte. E, nesses pontos, há grandes controvérsias. Entra em cena o cinema espetáculo – quase americano -, que, ao passo que denota ousadia e coragem, guia a história por caminhos fantasiosos, os quais foram delineados de uma forma um tanto quanto estranha, transformando bizarramente os personagens. O filme, que respira ares tão poéticos, teria uma estrada pavimentada para continuar presenteando seu público através da representação dos espíritos sem perder seu poder de encantar, mas, pelo visto, ele adentra pela seara do mau gosto extremo, exibindo um resultado no mínimo destoante. Sinceramente, não encontrei espaço para algo como “zumbis” com olhos todos brancos dentro da narrativa, apesar de que, com um esforço hercúleo, consegue-se um paralelo com náufragos atendidos em um sistema de saúde precário de um país subdesenvolvido e suas condições subentendidas de mortos-vivos nessa conjuntura. Espíritos, que já são elementos dependentes de crença e/ou religião para serem aceitos num filme ou na vida, podem ser representados de muitas outras formas através do poder da linguagem cinematográfica ora citado, inclusive de forma poética. Nesse caso, a rejeição de tais personagens pode ser dobrada: pela simples presença na narrativa e pela representação utilizada no filme. Confesso que a segunda possibilidade me desagradou bastante. Destoa – e muito – do viés adotado pela obra.

Além de tudo, o roteiro deve receber críticas positivas e negativas. Espera-se um sublime amor para ensejar um sentimento sobrenatural e isso não fica caracterizado de modo indubitável, principalmente da fase introdutória do filme, que é curta e perfunctória. Até a primeira hora de exibição, é difícil estabelecer um norte para os personagens e um rumo para a narrativa pelo “enxugamento de gelo” concernente a história da personagem Ada que ela apresenta . Além do mais, o roteiro peca ao apostar numa investigação que beira a superficialidade – tão perfunctória quanto a introdução -, entretanto aproveita para exibir exemplos de abuso de poder – o que é sempre oportuno. Partindo para esse lado mais social, as temáticas acessórias, como a exploração de mão-de-obra, por exemplo, ganham importância pela relevância extrema na sociedade local e pela falta de capacidade de atrair as atenções advinda do fio condutor da história, apesar de haver uma melhora substancial em tal capacidade no terço final do filme, quando se avizinha o desfecho, pois as coisas finalmente começam a fazer sentido. Nota-se um roteiro inconstante, com cenas apreciáveis, como a que o casal apaixonado se olha através dos vagões do trem, e outras desconectas, alongadas em demasia e desinteressantes. O viés misterioso/investigativo adotado é até apreciável, mas deixa as cenas muito escuras e trata de deslocar muitas outras em busca de coerência, enfraquecendo ainda mais a narrativa.

Chegar à disputa da Palma de Ouro e ganhar o Grand Prix do Festival de Cannes em 2019 devem ser consideradas as maiores glórias de “Atlantique“. De resto, vale a recomendação para quem quer assistir a um filme com uma proposta audaciosa relacionada a um filme romantico, entretanto, o amor está inserido num contexto diferente. Só não se deve esperar algo como “Ghost – Do outro lado da vida” (1990), pois a emoção passa ao largo. Talvez, “Atlantique” seja apenas um espírito errante com uma fama transitória. De qualquer forma, é bom ver o cinema africano participando de grandes festivais de cinema ao redor do mundo. O cinema deve ser democrático e não fechar os olhos para países sem tradição cinematográfica. Que outros filmes alcancem esse feito. Nós, cinéfilos, agradecemos e esperamos por mais.

Sem a pretensão de duvidar da capacidade das pessoas, considero “Atlantique” um filme para poucos.

Obs.: Disponível na Netflix.

O trailer segue abaixo.

Adriano Zumba


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