Crítica | A Rede

Conflito entre as duas Coreias é mostrado do ponto de vista de uma pessoa simples

Felipe Storino
Cinema & Outras Drogas

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Nam Chul-woo (Seung-bum Ryoo) é um pescador cuja rotina consiste em acordar cedo todos os dias para jogar a sua rede no rio e conseguir o sustento da família. Como um cidadão da Coreia do Norte, até mesmo essa rotina tão simples parece complicada e perigosa. Antes de poder entrar no próprio barco, o personagem precisa mostrar sua documentação e fotos da família para que os soldados liberem o seu acesso ao rio. O motivo é se certificar de que Nam não possui planos de fugir para a Coreia do Sul, já que o rio no qual ele pesca serve de fronteira entre os dois países e poderia ser utilizado facilmente como rota de fuga. Vendo o modo como o protagonista trata a filha e a esposa logo no começo do filme, fica claro que ele não teria coragem de abandoná-las, mesmo que isso signifique a chance de uma vida melhor na Coreia capitalista. Infelizmente para Nam, seu barco apresenta um defeito no motor e a correnteza acaba levando o pescador para o outro lado da fronteira. Ao chegar lá ele é acusado de espionagem pela Coreia do Sul, ao mesmo tempo em que teme ser acusado de traição pela Coreia do Norte, caso algum dia consiga volta ao próprio país.

A partir daí, A Rede nos apresenta como funciona o conflito ideológico entre as duas Coreias, mostrando o ponto de vista de um cidadão comum que só quer continuar vivendo a sua vida simples. Para nós, que estamos acostumados a tratar a Coreia do Norte como ameaça (principalmente nessa época de troca de “gentilezas” entre Kim Jong-un e Donald Trump), é fácil achar que Nam Chul-woo pode ter dado sorte de ir parar na Coreia do Sul. Porém, o diretor e roteirista Kim Ki-duk mostra que, quando se trata de política e ideologia, as coisas nunca são tão simples. Não existe um lado certo ou errado, apenas pessoas com seus próprios interesses particulares. O diretor utiliza os primeiros minutos do filme para nos mostrar que a vida de Nam não é nada fácil. Ele mora em uma casa de apenas um cômodo, sua filha possui apenas um único brinquedo que já está bem velho e ele parece cansado da rotina. Além disso, o medo que ele sente do seu próprio governo é ilustrado pelo momento em que ele é levado até Seul e se recusa a abrir os olhos enquanto passa pelas ruas da cidade, já que até mesmo o simples fato de enxergar as tentações do capitalismo já poderia ser considerado um ato de traição pela Coreia do Norte.

Com o palco montado para que a Coreia do Sul apareça como a grande figura de esperança para Nam, Kim Ki-duk subverte tudo isso quando apresenta os responsáveis sul-coreanos por investigar o protagonista. Eles são retratados com tanto fanatismo pelo seu modo de vida quanto os norte-coreanos. A única diferença é que utilizam o velho discurso de liberdade e democracia para disfarçar atitudes que podem ser consideradas fascistas. Claramente muito mais preocupados em provar que a Coreia do Sul capitalista é melhor do que o comunismo da Coreia do Norte, eles não pensam duas vezes antes de colocar em segundo plano as reais necessidades do pobre Nam Chul-woo. O inspetor interpretado por Young-min Kim, por exemplo, quer convencer a todos de que Nam é um espião simplesmente para compensar algo que aconteceu em seu passado. Já os chefes do inspetor, mesmo acreditando na inocência do protagonista, mantêm Nam preso por enxergar nele uma oportunidade de fazer um norte-coreano pedir asilo na Coreia do Sul, provando para todo mundo que o estilo de vida deles é o correto. Amarrado nessa rede de interesses meramente particulares, Nam é tratado apenas como um produto a ser utilizado para fins políticos.

Mesmo mostrando que interesses políticos são prejudiciais nos dois sistemas de governo, claro que a direção de Kim Ki-duk não é inocente a ponto de ignorar os atrativos da Coreia do Sul. Assim, o diretor nos apresenta o centro de Seul belamente iluminado com uma luz do sol e pessoas caminhando sorridente pelas ruas. Tudo enquanto vemos lojas repletas de coisas atraentes para serem compradas. Além disso, a atuação de Seung-bum Ryoo deixa claro o deslumbramento que Nam Chul-woo sente ao andar pelas ruas da cidade e que, se não fosse pela sua família, seria bem possível que ele escolhesse abandonar de vez o seu país de origem. Ainda assim, o diretor não se abstém de mostrar que o capitalismo também possui o seu lado perverso, ao apresentar Nam espantado por conhecer uma mulher que precisa se prostituir para sobreviver. A compaixão dele pela mulher e a inocência com que ele reage a este encontro só fazem com que o espectador se importe ainda mais com o personagem. Esse encontro de Nam com a prostituta também serve para mostrar que, embora os países capitalistas possuam todo um discurso de liberdade, esta liberdade acaba não atingindo as classes mais pobres da sociedade. Em muitos momentos do filme, a Coreia do Sul parece tão opressora quanto a sua irmã do Norte.

A Rede é um filme que não se propõe a achar soluções para o conflito entre as duas Coreias, nem determinar qual sistema econômico e de governo é melhor. O interesse do diretor Kim Ki-duk é apenas mostrar que, enquanto os governantes ficam se “estapeando” para tentar convencer a todos sobre o seu ponto de vista, são as classes mais pobres da sociedade que sempre pagam o preço por esse conflito. Nam Chul-woo não estava interessado nos prazeres capitalistas da Coreia do Sul, tudo o que ele queria era continuar morando em sua pequena casa, de apenas um cômodo, com sua esposa e filha e acordar cedo para pescar. Algo que pode parecer simples para os habitantes da Coreia do Sul, mas que é de extremo valor para o protagonista.

A Rede (The Net/Geumul, Coreia do Sul)

Ano de Lançamento: 2016

Duração: 1h 54min

Direção: Kim Ki-duk

Roteiro: Kim Ki-duk

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Felipe Storino
Cinema & Outras Drogas

Redator de cinema, gibis e games na Mob Ground. Quando não está jogando, está assistindo filmes, séries ou lendo gibizinhos.