Pular para o conteúdo principal

Roda Gigante (Woody Allen, 2017)

GUILHERME W. MACHADO

O cinema como palco sempre foi uma questão tentadora na carreira de Woody Allen. Daí partiu a confusão recorrente de que o cineasta fazia “teatros filmados” – uma baboseira que, não fosse tão absurda, nem valeria o comentário –, numa falha generalizada de perceber que seus filmes apenas partem de bases teatrais (os diálogos como alicerce que movimenta a narrativa) para chegar ao cinema (decupagem, close-ups, temporalidade fragmentada, etc), linguagem na qual Allen é traiçoeiramente bem versado.

Em Roda Gigante essa “trama”, que se estende ai por algumas décadas, ganha uma nova reviravolta: Allen não mais dedica a influência teatral no seu cinema pela astúcia dos diálogos, mas para fazer da sua vasta herança dramatúrgica palco para a encenação máxima da atriz-protagonista, que – conscientemente ou não – conduz constantemente o roteiro de sua vida dentro dos moldes trágicos. Allen foi malandro o suficiente para nos chamar atenção sobre o recurso ao colocar o salva-vidas (Justin Timberlake) como suposto artista criador, sugerindo que os acontecimentos narrados sejam moldados por ele, quando, na verdade, o são pela mulher que lhe serviu de inspiração (algum tipo de inversão da típica figura da musa), a Ginny de Kate Winslet.

“Isso é um papel”, clama Ginny, sobre a situação dela mesma, enquanto apela ao seu parceiro de um romance escondido, que aos poucos vê escapando.
 
Em termos de texto, o que torna Roda Gigante realmente interessante é a complexidade com a qual Allen constrói os personagens e suas motivações. Woody Allen geralmente divide seus personagens em dois grupos: os planos, cujas ações são perfeitamente previsíveis e cujo pensamento é óbvio (geralmente caricaturas, coisa que o cineasta usa bastante); e os complexos, que realmente interferem na trama e trabalham, de uma forma ou de outra, as questões morais tão recorrentes no cinema do autor. Nesse filme, não é difícil identifica-los: Humpty, marido de Ginny, pertence ao primeiro grupo, enquanto Ginny e Mickey pertencem ao segundo, com Caroline sendo um híbrido intrigante dos dois.

O Mickey Rubin, de Timberlake, é um personagem cujas emoções raramente passam por verdadeiras (não por intenção do mesmo, provavelmente por falta de conhecimento dele pelos próprios sentimentos). Sua atração por Ginny parece muito mais ligada ao apelo que os dramas por ela carregados têm ao seu lado dramaturgo. Ele é apaixonado pelo personagem dela que ela representa na sua vida, não pela pessoa. Algo semelhante é o que sente por Caroline (Juno Temple); por mais que ali haja ainda alguma atração física verdadeira, o sentimento de fascínio pela figura e história de vida da mesma parece o elemento primário do interesse dele.

Já Ginnny é um caso ainda mais intenso de criação das suas próprias narrativas. Não acredito, também, que o amor dela por Mickey fosse completamente genuíno (embora ache que ela realmente acreditava que fosse), mas sim um refúgio emocional do seu trágico histórico matrimonial e, principalmente, uma esperança de recomeço  o filme, aliás, brinca o tempo inteiro com essa ideia de recomeço, formando uma estrutura cíclica que nunca sai do lugar, daí a alegoria da roda gigante. Uma utópica fuga romântica para Bora Bora. O que torna ela uma personagem tão envolvente é justamente a dúvida que paira sobre quase todas suas ações e reações. É óbvio que seu desespero é verdadeiro, bem como seus traumas e decepções, mas tudo isso é apresentado por ela de forma intensamente (re)encenada. Giny ao ter que abandonar os palcos (era atriz de teatro), incorporou-os a sua vida, e viveu encarnando diversas personagens para melhor suportar sua realidade. É certamente uma das figuras mais trágicas e dignas de compaixão já criadas por Allen, junto, talvez, da Dolores de Angelica Huston em Crimes e Pecados (1989), e de um outro punhado de personagens femininas notáveis em sua carreira.
É, inclusive, o lado feminino tão latente do cinema de Allen que faz com que ele apresente de forma tão franca os dramas de Ginny. Ignorada pelo marido (que, especialmente com o retorno da filha antes deserdada, volta toda sua atenção emocional e financeira para o conforto da mesma). Insensivelmente descartada pelo amante que lhe alimentou de esperanças até que esse tivesse achado um objeto de estudo e adoração mais interessante. Tratada como louca ou histérica por ambos, quando tentava chamar atenção dos mesmos para seus problemas e sensibilidades. Tudo isso, somados aos graves problemas psicológicos que ela mesma infligiu ao filho pequeno, atormentou Ginny até que sua alma tivesse seca o suficiente para que ela fosse capaz de cometer aquele terrível e desumano ato ao fim do filme, contra justamente aquela outra mulher que era tão vítima das circunstâncias e das próprias escolhas quanto ela mesmo fora no passado, Caroline.

Allen constrói esse complicado panorama de questões morais (coisa que no fim sempre foi o foco de seu cinema) através de uma de suas mais aguçadas mise-en-scènes dos últimos 20 anos – certamente a sua mais arriscada desde Um Misterioso Assassinato em Manhattan (1993). As luzes e cores fortes do diretor de fotografia Vittorio Storaro nada mais são do que uma radicalização da busca de Allen nessa última década por um visual mais pictórico (particularmente influenciado pela pintura do início do século XX), mas o que torna sua direção tão poderosa em Roda Gigante é mesmo a proximidade com a qual a câmera acompanha os atores – diferente do que fez em parte considerável de sua carreira, quando era mais econômico nos closes –, bem como a elaborada distribuição desses mesmos atores dentro do (escasso) espaço cênico, aprimorando as referências claustrofóbicas que Uma Rua Chamada Pecado tão frequentemente exerceu na sua carreira.
Uma dúvida final, já que o filme é tão carregado em dilemas éticos para os quais eu (e acredito que Allen também) obviamente não tenho as respostas: era justo que Ginny depositasse em Mickey, um breve romance de verão, todas suas esperanças por salvação? Não que uma coisa justifique a outra (nem ela a ele e nem ele a ela, todos personagens tem responsabilidades graves sobre o trágico destino que acometeu Caroline), mas não deixa de ser interessante ponderar sobre essas dúvidas que Allen lança, intencionalmente não resolvidas. Filmaço.

NOTA (4/5)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Explicação do Final de Birdman

 (Contém Spoilers)                                            TEXTO DE: Matheus R. B. Hentschke    Se inúmeras vezes eu julguei Birdman como pretensioso, terei de ser justo e dizer o mesmo de mim, uma vez que tentar explicar o final de uma obra aberta se encaixa perfeitamente em tal categoria. Entretanto, tentarei faze-lo apenas a título de opinião e com a finalidade de gerar discussões acerca do mesmo e não definir com exatidão o que Iñarritu pretendia com seu final. 

Kill Bill (Quentin Tarantino, 2003/2004)

GUILHERME W. MACHADO A esta altura não é difícil dizer – para a decepção da forte base de fãs de Pulp Fiction – que Kill Bill é o filme que melhor ilustra a carreira de Quentin Tarantino. Difícil mesmo é dizer que Kill Bill é o filme mais representativo de toda década de cinema na qual está inserido: a primeira do século XXI. Mais difícil ainda é dizer isso e ainda tentar explicar os motivos que levam a essa absurda declaração num simples texto (quando tal posto deveria idealmente ser justificado através de um artigo de páginas e páginas), mas é o que tentarei aqui, então já peço desculpas antecipadas pela duração do texto, que paradoxalmente é muito grande para uma postagem na internet e muito curto para o que tenta abordar. Antes de mais nada: ação é cinema. Os esnobes do “cinema arte” que me perdoem – ou também que não perdoem, de nada adianta chorar apenas por ídolos mortos –, mas a verdade é que não há gênero mais essencialmente cinematográfico do que a ação. Não é uma q

10 Giallos Preferidos (Especial Halloween)

GUILHERME W. MACHADO Então, pra manter a tradição do blog de lançar uma lista temática de terror a cada novo Halloween ( confira aqui a do ano passado ), fico em 2017 com o top de um dos meus subgêneros favoritos: o Giallo. Pra quem não tá familiarizado com o nome  –  e certamente muito do grande público consumidor de terror ainda é alheio à existência dessas pérolas  –  explico rapidamente no parágrafo abaixo, mas sem aprofundar muito, pois não é o propósito aqui fazer um artigo sobre o estilo. Seja para já apreciadores ou para os que nunca sequer ouviram falar, deixo o Giallo como minha recomendação para esse Halloween, frisando  –  para os que torcem o nariz  –  que essa escola de italianos serviu como referência e inspiração para muitos dos que viriam a ser os maiores diretores do terror americano, como John Carpenter, Wes Craven, Tobe Hooper, e até diretores fora do gênero, como Brian De Palma e Quentin Tarantino.