Um balanço final da primeira temporada de The Deuce

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Teria sido frustrante se a HBO não houvesse confirmado uma segunda temporada de The Deuce. Isso porque a série teve a ambição de construir um quadro enorme do mercado do sexo na Nova York dos anos 1970, e porque este quadro mal começou a ganhar vida. Ao mesmo tempo, como ninguém é bobo, a primeira temporada acabou sendo uma história completa – pouco ficaria em aberto se mais episódios não fossem encomendados.

The Deuce ganhou elogios de veículos especializados e já saiu com a expectativa lá no alto por causa do renome de seus criadores. David Simon é o sujeito por trás de The Wire. George Pelecanos, além de ter trabalhado em The Wire, é um reconhecido autor de romances policiais. Richard Price, um dos produtores executivos, foi responsável por The Night Of e também é um romancista importante. No elenco estão James Franco e Maggie Gyllenhaal, além de um monte de rostos conhecidos para quem viu qualquer coisa nos últimos quinze anos.

Ainda assim – e como acontece com frequência – o burburinho não durou muito. A série não é daquelas de colocar a internet inteira em colapso quando alguma coisa vai acontecer. Pelo que eu vi a recepção no Brasil foi meio morna. The Deuce não pegou de jeito aquele pessoal que é louco por séries, nem entusiasmou bastante a turma cinéfila. Da minha parte, ah, eu achei que fosse me entusiasmar mais. Acho que houve algumas concessões bobas ao que se pensa ser o gosto do público. Vou tentar explicar.

Um exemplo é o arco de Eileen, interpretada por Maggie Gyllenhaal. Talvez em tempo de tela não dê para perceber o tamanho da centralidade da personagem dela, mas é ela quem conduz tudo. As mulheres de The Deuce estão ou em conflito para perceber que um novo lugar no mundo é possível, ou em luta para construir este novo lugar. Eileen é uma prostituta que não tem cafetão. Os cafetões exploram as meninas, sob a desculpa de protegê-las, mas Eileen não é o perfil comum de uma prostituta. Ao longo dos oito episódios a gente descobre que ela apelou para a prostituição para fugir de um pai repressivo, mas que vem de uma família mais abastada que as das demais. Nas ruas ela corre tanto perigo quanto as outras mas, diferentemente das outras, resolveu administrar sozinha o que ganha e como trabalha. Eileen é bem resolvida com sua sexualidade. É madura, liberada, inteligente, conhece bem o próprio corpo. Acontece que o ambiente de trabalho é muito, muito insalubre. Não é de espantar que algumas meninas queiram proteção. Ela apanha de mais de um cliente, o perigo vem como que em escalada. O fim da década de 1970 é um dos períodos mais violentos da história de Nova York. A polícia não liga se algum maluco enforca, esfaqueia ou estripa uma garota de programa. A situação fica insustentável e Eileen precisa parar de trabalhar. Por sorte os tempos estão mudando e, por competência, ela consegue se envolver num negócio que só vai crescer: o cinema pornográfico.

Não tenho nem como negar que isso é muito legal. Eileen é uma personagem central porque serve como símbolo da mudança dos tempos. Na juventude ela foi reprimida pelas limitações sociais, os tabus sexuais a marginalizaram – com uma revolução nos costumes ela vai encontrar seu lugar. A princípio Eileen fica na frente das câmeras, transando, mas depois ela começa a usar a criatividade e mostrar que é capaz, e aí a oportunidade surge. Quando a temporada termina ela já está dirigindo seu primeiro filme, um pouco por acaso e um pouco por obstinação. Para mim isso é quase um modelo de arco. Ela foi do ponto A ao B e tudo se encaixa com o grande panorama histórico. Onde estão as concessões bobas? Na hora de colocar essa jornada na tela.

DEUCE - THE

O roteiro traz uma personagem cheia de complexidades, mas ao mesmo tempo quer contar essa história como se estivesse falando com uma criança, como se The Deuce fosse um telefilme edificante. Um exemplo pontual está numa cena do último capítulo. O lugar é um set de filmagens. Maggie Gyllenhaal está usando meias 7/8 e um robe de seda. Eileen está pronta para rodar sua próxima cena. Mas o telefone toca. Uma assistente atende. O diretor não vai conseguir chegar a tempo. O que resta a fazer a não ser ir para casa? Mais do que obstinada, Eileen parece predestinada a assumir aquela posição: já que o diretor não vem, quem dirige sou eu. Faz sentido? Na vida real, eu não tenho dúvida nenhuma de que uma atriz pornô consiga dirigir um filme. Eu sei que isso acontece bastante. Muitas atrizes juntam dinheiro e abrem suas próprias companhias com o objetivo de ter controle sobre tudo o que fazem ou de ganhar dinheiro ao produzir conteúdo num meio que já conhecem. Só que The Deuce tratou esse processo de um jeito simplificador em excesso. O set é grande. Há um assistente de iluminação, uma contra-regra, vários atores, cenário, figurino, dinheiro envolvido: tudo isso para uma pessoa com zero experiência tomar as regras só porque se dispôs a aprender fazendo. O desenrolar da cena não é só inverossímil para qualquer um que já tenha trabalhado com qualquer coisa: ele também é feito com o máximo apego a fórmulas muito conhecidas de quem acompanha, por exemplo, o Supercine. Eileen compreende o trabalho do diretor, dá pitaco na direção de arte, trabalha o lado psicológico das atrizes menos experientes. Maggie Gyllenhaal faz tudo isso com a sutileza de um trator: cara de boazinha, cara de compreensiva, cara de quem está exercitando a criatividade.

Seria legal ver mais novidades em uma série com as pretensões de The Deuce. A sensação de déjà vu também bate forte quando se acompanha alguns dos personagens secundários: a jovem rica que largou a faculdade para virar garçonete, desafiar os pais e viver a “vida real”; a prostituta sonhadora que lê e vê filmes entre um programa e outro; o trabalhador assalariado que se encanta com as possibilidades da vida do crime; o trabalhador honesto que se vê seduzido pela máfia ao reafirmar sua masculinidade; o casal gay em crise porque um tem mais reservas que o outro a respeito de demonstrar intimidade em público e sair do armário. De novo: tenho certeza de que essas pessoas existem na vida real, mas acho que não precisamos vê-las no cinema e na tevê, para sempre, sob as mesmas luzes.

Mas todo esse didatismo não chega a estragar a série, que tem um fio condutor bem interessante. No fim das contas, o antagonista principal em The Deuce é o homem que contrata prostitutas. Ele aparece pouco, mas é a escrotidão em forma de criatura. Mais vil que os cafetões, mais hipócrita que os mafiosos e policiais, muito mais problemático que as prostitutas, o homem que contrata prostitutas é quem as submete à violência, quem solicita o sexo e quem as reprime por terem fornecido aquilo que ele solicitou. Trocando em miúdos: em The Deuce o homem que contrata é o símbolo de uma doença social. Ele vai ferrar todo mundo porque quer sexo, ele vai fazer de tudo para esconder suas preferências, ele vai pagar o que for preciso para ter o que quer. Quando a sociedade e a tecnologia permitem que essa obsessão seja levada adiante sob a proteção da privacidade é que surge a milionária pornografia moderna.

(Eu não sei se essas hipóteses correspondem exatamente à realidade, mas não custa lembrar que o Brasil, por exemplo, é ao mesmo tempo o país que mais mata transexuais e o que mais consome pornografia trans.)

De qualquer forma, em The Deuce os personagens servem para levar uma tese adiante: a de que uma revolução nos costumes e na tecnologia tirou o sexo pago das ruas e o levou para dentro das casas. Às vezes essa tese chega até a gente de um jeito meio simplista e quadradinho, mas o resultado final é bom. O tema fica mais e mais interessante na medida em que a gente conhece mais ângulos, e isso não é um feito que toda série consegue realizar. Pelo jeito a segunda temporada vai querer investigar se essas grandes mudanças na indústria do sexo e na sociedade serão necessariamente boas.

P.S.1: A recriação da época, em cenários e figurinos, está impecável.

P.S.2: Eu não sei julgar se James Franco é bom ator, mas eu adoro a participação dele em The Deuce. Ele faz irmãos gêmeos: um é malandro, o outro é ainda mais malandro. Os dois só se beneficiam do jeito canastrão de Franco.

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