MIGUEL TORGA, in DIÁRIO XIII-XVI (Dom Quixote, 2013)
« Apesar da idade, não me… acostumar à vida. Vivê-la até ao derradeiro suspiro de credo na boca. Sempre pela primeira vez, com a mesma apetência, o mesmo espanto, a mesma aflição. Não consentir que ela se banalize nos sentidos e no entendimento. Esquecer em cada poente o do dia anterior. Saborear os frutos do quotidiano sem ter o gosto deles na memória. Nascer todas as manhãs. »
(Coimbra, 25 de Maio de 1982)
(Pág. 108)
------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Para alguns, a imagem não é mais do que um logro: basta sujeitá-la a qualquer modificação – mesmo que se trate de um retoque elementar –, para que todo o cenário se transforme numa mentira insidiosa. A meu ver, a imagem é o que consubstancia a palavra, inscrevendo-a num campo de memória eidética: o vocábulo assume-se visualmente, com acuidade e detalhe, deixando para trás a sua natureza gráfica.
No meu caso, todo este fenómeno toma proporções curiosíssimas, porque sempre encarei a palavra – aquela que se inscreve, que se desenha – como paixão derradeira. Fui alfabetizada aos quatro anos, por vontade própria, e, desde então, tenho vivido em plena angústia, dada a falta de um vocábulo que, dentro da sua subjectividade intrínseca, seja suficientemente contundente para redefinir os meus humores, até os mais óbvios e recorrentes.
Aos primeiros filmes – ainda em casa, sem o deslumbramento que associamos aos grandes ecrãs –, tive uma reacção quase patológica: antes de ingressar na faculdade, em período de férias, via-os à dúzia. Não eram somente imagens que validavam – ou consolidavam – conceitos. Tratava-se, já, de um processo alquímico, muito além da pura materialização e de outros efeitos a haver. O cinema não coincidia ponto por ponto com as minhas paixões: tornava-as ainda mais dilatadas e mais sôfregas, como se cada cena conseguisse enformar aquele vocábulo perdido, ou dar corpo a um texto incoerente, polvilhado de rasuras e disparates. A literatura, ao contrário do cinema, trouxe-me sempre pela mão. Os filmes são uma espécie de mundo inventado, de tábua à qual me agarro firmemente.
------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Atenta e metódica, embora aprecie o acaso. Introvertida por natureza, muitíssimo avessa a conversa de circunstância. Feminista empenhada, sempre na esperança de aprender mais e, acima de tudo, fazer mais. Leitora compulsiva, coisa de que me orgulho. Cinéfila, amante da natureza, com uma preocupação que se estende a todos os seres sencientes. Não sou uma pessoa prática e, por conseguinte, sinto dificuldade em desempenhar tarefas que requeiram destreza manual. Escrevo quase por intuição, ainda que o talento escasseie. Se tivesse dinheiro, gastá-lo-ia todo em livros e viagens. Creio que o amor é o único sentimento pelo qual vale a pena viver.
Um termo que o define perfeitamente: masculinidade tóxica. Perdoem-me, mas não consegui ver nada para além disso. Que experiência tão confrangedora.