Newt Scamander e a Representatividade Masculina Introspectiva no Cinema Blockbuster e Por Que Ela Importa

Se pensarmos nos grandes ícones do cinema americano, aqueles protagonistas marcantes, tanto em blockbusters quanto fitas mais "cults", as imagens vão ser evocadas desde o cowboy solitário e mítico de John Wayne até, em tempos hodiernos, nas figuras do Tony Stark de Robert Downey Jr., ou o Capitão América de Chris Evans, o Superman de Henry Cavill. Saindo dos longas de heróis, temos Chris Pratt em Jurassic World, o Ethan Hunt de Tom Cruise nos Missão Impossível. São exemplos que, quando calcados na fantasia e ficção-científica, dificilmente diferem de uma variante básica de personagem. Ele pode não ser musculoso, mas é improvável que não seja arrogante, convencido, típico a ironias e uma expressão costumeira de superioridade ou "calma fria e calculista", como Sherlock Holmes ou Thomas Shelby. Já naqueles sem físico e até uma personalidade menos taxativa, há sempre uma tragédia por trás de sua história, e algum destino que ele precisa conquistar (Luke Skywalker, Harry Potter, Frodo), a famigerada jornada do herói.

Lutar contra o status quo de uma indústria não é tarefa fácil, e poucos provaram mais isso do que o protagonista da saga Animais Fantásticos, o magizoologista Newt Scamander. Chegando agora a seu terceiro capítulo, a saga prequel de Harry Potter sempre foi recheada de polêmicas, críticas e interpretações dúbias. Algumas justas, outras nem tanto. E talvez nenhuma tenha sido tão contraditória, desleal e ofensiva quanto os comentários negativos direcionados ao bruxo vivido por Eddie Redmayne. Mesmo considerando leves desvios entre os arquétipos esperados da figura central de uma grande saga, uma coisa é que Newt não compreende nenhuma delas.

Pelo contrário. Desde o início em suas primeiras interações, fica claro como Newt reage em situações sociais e aos outros. Ele evita o contato visual, mal o mantendo por alguns segundos. Fala curvado, rápido, desconfortável, com pressa para sair dali. Evita qualquer contato físico (e há argumentação se o personagem não seria inclusive autista, o que seria incrível, mas infelizmente nunca confirmado por Rowling). É somente na companhia de seus animais fantástico que se vê a verdadeira faceta do mago: empático, cuidadoso, brilhante e sim, forte. Isso, entretanto, não significa que ele seja um misantropo que procure a companhia dos animais e os valorize contra humanos (não que estivesse errado nisso, rs), pois como é visto ainda no primeiro filme, sua determinação e paciência para tentar salvar Credence do Obscurus rivaliza com qualquer bruxo membro da MACUSA, tão inclinados ao assassinato como natural e essencial. 

O histórico de rejeição e expulsão de Newt expõem bem as razões e origens do comportamento do magizoologista, alguém incompreendido que se atrai por auxiliar e remover os preconceitos de uma sociedade tão arcaica e conservadora quanto a bruxa para com seres tido como inferiores. Várias críticas sobre Animais Fantásticos, mesmo de grandes portais, focaram somente ideias negativas no personagem. O The Village Voice descreveu Newt como alguém que parece "fisicamente doente" durante a projeção. Já o New York Post o taxou de "pouco envolvente" com o público. 

Não é uma recepção surpreendente, pois desde sempre, Hollywood (e a cultura do entretenimento no geral, por que não?!) nos ensinou a rejeitar a introspecção e a timidez. Isso vai desde os personagens da Disney, até culminar nos estereótipos másculos de adaptações de quadrinhos (a mitologia cinematográfica mais rentável e hypada de hoje, novamente moldando gerações em pensamentos retrógrados e perniciosos) e tantos outros exemplos que forneci. É uma imagem tão introjetada no imaginário popular, no inconsciente coletivo, que se torna difícil aceitar uma transgressão tão latente, logo numa franquia de tanta atenção. A introspecção e a timidez são associadas, na cultura pop, a fraqueza, amargura, ou então características femininas (aí idealizações impostas na mulher como meiga e recatada, no contraponto do machão corajoso), especialmente advindos da mitologia americana durante o American Dream e os anos Reagan e toda aquele fanatismo e romantização encapsuladas na figura do Super-Homem. 

Newt, na contramão, está mais interessado em resgatar os rejeitados, não conquistar a mulher da trama com rebeldia, charmes e a salvando, ou tampouco desafiar o antagonista com ironias ou músculos. É um personagem desorientado da frontalidade da ação, avesso ao aspecto brutamontes de partir para cima sem hesitar. E isso, novamente, não quer dizer que lhe falta coragem ou capacidade, outras habilidades tidas como antagônicas do introvertido. Um homem pode ser tímido, pacifista e confiante ao mesmo tempo. Não há um duelo perdido por Newt quando confrontado em Animais Fantásticos. Desde feitiços não-verbais, sem varinha, aparatação, resistir ao fogo-maldito de Grindelwald, o bruxo sempre se mostrou apto, tanto quanto ou até mais que seu irmão "normalizado", Theseus, um auror.  Newt possui a coragem de um grifinório, a perspicácia de um sonserino e a inteligência de um corvinório sem precisar se enaltecer pra isso. 

Não é uma escolha de interpretação despropositada, é claro, advindo de um aluno da Lufa-Lufa, a tão desprezada por fãs casa de Hogwarts, que leva como características paciência, modéstia, lealdade, justiça, traços tido como menos "nobres" e glorificados quanto as outras casas, que simbolizam grandeza, coragem, sabedoria e ambição. Fato é que essa construção social compartilhada pelo cinema, não se inicia nele, sendo somente mais um reflexo da própria sociedade, aí transmitido para todos seus meios. 


Quando se fala em machismo, é claro que as primeiras vítimas que se pensa são as mulheres, o que é correto e sensato, mas não deixa de haver uma parcela considerável de homens que sofrem com a pressão e julgamento por não se verem aptos a esses papeis propostos ao sexo, por mais que sejam, inclusive, cis no gênero. É o desajuste daquele que não se enquadra na visão do "homem-alfa" da ficção. E aí, como supracitado, a cultura agride ainda mais o quadro para os que se associam a isto, os desenhando frequentemente como figuras que se ressentem e canalizam em ódio a solidão. Homens como o Coringa de Joaquin Phoenix, como se a única alternativa ao despertencimento e opressão social fosse a vilania. 

O que engrandece ainda mais Newt, é como ele se sobrepõe ao papel social e ainda aos que se encaixam nele. Tudo isto sendo um homem que demonstra vulnerabilidade, orgulho lufano e sensibilidade. Um coração tão grande que faz Tina se apaixonar por ele e Dumbledore o solicitar na mais alta estima para combater Grindelwald. As cenas de Newt, completamente imerso, enquanto acalma feras enormes e que causam temor a todos, são o símbolo máximo da beleza do magizoologista, um incompreendido ele próprio, auxiliando a outros enquanto aprende, sem perder a própria essência, os valores do amor e amizade, num arco de evolução como ao abraçar Tina, seu irmão e Jacob, buscando o contato e calor humano que ele fugia no começo da história.

Muitas são as falhas da franquia Animais Fantásticos. O ódio desproporcional direcionado a seu protagonista, entretanto, parece dizer mais sobre quem as tece do que o próprio personagem, ele mesmo o retrato de tantas vítimas nessa escala social, e também de um roteiro que não o circula com os aparatos necessários para a longevidade cultural, enublando o que deveria ser encarado como um personagem notável e um dos marcos iniciais para a quebra do padrão no modelo de protagonista em filmes blockbuster. Uma representatividade para aqueles que, como eu, não se veem em Bruce Wayne nem Tony Stark. Pelo visto, não é algo com a qual o público ainda esteja pronto, o que a progressiva troca de protagonista de Newt para Dumbledore, que mesmo sendo abertamente homossexual, abrange uma gama mais genérica de qualidades do "herói ideal", como uma certa petulância, frontalidade e excentricidade extrovertida. Uma pena. 

Nenhum comentário