Ao assistir A Vizinhança do Tigre (2014), logo pensei na inovação importante que aquele filme representava à representação da juventude periférica brasileira. Recordei do longa Baronesa (2017, Dir.: Juliana Antunes), que tinha assistido anteriormente e que fazia uma espécie de “duologia da ausência” ao lado desse primeiro filme do Uchôa. Fiquei pensando o quão promissor poderia ser aquele cineasta...
Ao entrar em contato com Arábia (2017, codirigido por João Dumans), pude notar ainda mais a inventividade estética e política que tal filme significava. Nessa grande obra, percebi o que significa cinema de qualidade feito por gente da periferia sobre a periferia. Ali, há as dores de uma pessoa em situação de vulnerabilidade e falta de oportunidades imerso nesse capitalismo neoliberal, e também todo o seu poder de reflexão e potência. Aliás, como já escrevi, Arábia lembra-me uma espécie de “Ladrões de Bicicletas brasileiro” (a “crise do pós-Guerra” é o cotidiano de sempre da periferia no Brasil).
Agora, conhecendo seu último trabalho, Sete Anos em Maio (2019) me faz lembrar de... Sete Anos em Maio. Me lembra Affonso Uchôa.
Acredito que isso significa que apenas com 2 longas e 1 média, esse cineasta já conseguiu consolidar sua própria autoria, numa linguagem cinematográfica única. É possível perceber que, como roteirista e diretor, ele já é muito consciente, sabendo exatamente onde quer chegar com cada um de seus filmes. Ao ponto de criar uma consistência, em que cada obra de sua filmografia vai se complementando, construindo assim uma filmografia de um hibridismo extraordinário e original entre documentário e ficção.
Abaixo, teço comentários e argumentos sobre a sua (excelente) última realização, enquanto faço algumas ligações sobre o que acho do seu cinema.
Em torno de 40 minutos preciosos, vemos uma construção originalíssima em cinco partes: 1) a caminhada no escuro; 2) a simulação do crime; 3) o relato; 4) o diálogo; e 5) o jogo da morte. Falarei mais adiante sobre a primeira cena, pois faz mais sentido quando unimos o início com os últimos minutos da obra.
Assim sendo, vamos à 2ª parte da simulação da violência policial que acompanhamos. Nesse trecho, tudo parece meio estranho, até que percebemos posteriormente a inventividade formal dessa cena. Historicamente, vemos as perspectivas de pessoas ricas (ou de classe média) sobre o que seriam as pessoas pobres. Não vou detalhar os estereótipos construídos e reproduzidos no cinema brasileiro a esse respeito (já fiz isso recentemente em minha crítica sobre o filme O Homem que Virou Suco), apenas afirmo aqui que essa obra rompe radicalmente todos eles.
Para reproduzir a violência sofrida por Rafael dos Santos Rocha, há o uso de pessoas da periferia de Contagem (MG), os quais podem interpretar o que significa simular a posição dos policiais corrompidos ao mesmo tempo em que se divertem ao ocupar o papel de atores. Nisso, existe essa mescla muito interessante entre documentário e ficção, que retoma o trabalho realizado em A Vizinhança do Tigre.
Destarte, há aqui uma radicalidade da reivindicação do lugar de fala do protagonista (que é periférico), o que representa uma desobediência estética à reprodução das imagens tão repetidas da pessoa de periferia sendo violentada. Abro um parêntese: falo de “radical” não como algo extremo ou exagerado, mas sim daquilo que é relativo à raiz, à origem ou ao fundamento de alguma coisa.
Então, se é para repetir imageticamente essa agressão, que haja algo de construtivo nisso... E, assim, aquilo que a princípio parece esquisito (falso até), revela-se uma escolha (política) muito inteligente. Pois não se trata de “dar voz ao pobre”, é usar da voz dessas pessoas para reconstruir uma tradição simbólica.
E isso é algo que já existe nos dois primeiros filmes desse diretor, contudo que só consegui perceber com mais nitidez em Sete Anos em Maio. Daqui em diante, vou defender a tese de que tal radicalidade estrutura Sete Anos em Maio (e a filmografia do Uchôa como um todo).
Em duração, o relato do Rafael (3ª parte) é a parte mais longa de Sete Anos em Maio. E isso se justifica pela riqueza de detalhes e a forma como sua vivência é transposta de forma dolorosamente real em tela. Nisso, é possível perceber que mais uma vez há a inovação de deixar a cena fixa num primeiro plano fixo e contínuo, pois não importa simular em imagens aquele trauma enorme, apenas a força de sua fala (e de seu olhar vazio/cheio) é o suficiente. Não há floreios, apenas palavras que machucam, uma imagem sóbria da violência.
Novamente, percebemos que, naquilo que há de documental na obra, não se faz necessário repetir estatísticas que explicitam como pessoas pobres e negras são tratadas como inferiores no Brasil. Estamos em 2020, dados quantitativos dão um quadro consistente acerca da proporção desses processos de exclusão, mas não são capazes de qualificar a experiência de dor e sofrimento subjetivo. Nessa obra, há o espaço para inovação estética a partir vivência crua e direta do que esses dados alarmantes (e tristemente repetidos) tanto apontam.
Para melhor explicar, vou me valer de uma breve comparação. Embora seja um ótimo filme, em Praça Paris (2018), Lúcia Murat tenta meio que se redimir usando cenas de violência de pessoas da favela como apenas fruto da imaginação de uma mulher branca e racista, em contraponto ao que existe muito na nossa cinematografia, inclusive no próprio Quase Dois Irmãos (2004) dessa cineasta... Com Uchôa, não há o que redimir, trata-se da reinvenção desse imaginário, mudado pela raiz desde o início. Dessa forma, apenas a fala do protagonista e sua imagem em primeiro plano já é o bastante para representar exatamente aquilo que está querendo ser passado.
4. Diálogo: o corte é profundo, o trauma é coletivo
A construção melhora quando percebemos o salto simbólico existente na 4ª parte do média-metragem. A radicalidade do lugar de fala continua: aquele relato não estava sendo dito para o espectador (que provavelmente é branco e ocupa um lugar de privilégio, dada a desigualdade de acesso à cultura no Brasil). Ele está sendo dito para ser ouvido e dialogado entre iguais.
Portanto, é no diálogo que aquele trauma individual se torna algo estrutural e histórico para grande parcela dos brasileiros. Isto é, são milhões de “já passei por tanta coisa, que toda história que ouço parece a minha”, de “a sua [história] é diferente?” seguido de “não, é igual a sua”. Esse tipo de relação particular-universal das desigualdades sociais brasileiras já é muito bem construído em Arábia (2017) e se repete aqui.
Se muitas pessoas podem escutar rap para ver sua realidade sendo representada por meio da arte, a filmografia de Uchôa comunica que elas podem também sentir diretamente retratos de suas vidas por meio da 7ª arte. Esses filmes mostram que espaço do cinema (de alto nível) é sim para todos, deve pertencer a todos. Essa ideia está inclusive na coletivização que ele faz em suas obras, sempre ao lado de muitas pessoas que não são (ainda) do cinema, aspecto que destacarei no tópico final.
Os caminhos que Rafael passa são o vício por drogas, o tráfico, a penitenciária, a rua, sempre com o trauma do rosto sanguinário da polícia em sua mente, mesmo depois de toda a tempestade ter diminuído. Se todo o genocídio da população negra é muito bem resumido nessa história, o fim da obra faz questão de usar uma metáfora rica a partir da brincadeira inocente de “morto vivo”, para passar de um modo inédito o que representa a atuação dessa instituição para as pessoas da periferia. Simplesmente doloroso e inesquecível.
O simbolismo é tão original quanto forte, porque para milhões de cidadãos, é exatamente isso que é o nosso Estado: uma máquina indiferente de matar corpos. Ainda, tal brincadeira lembra inclusive que desde a infância esses sujeitos precisam viver tal realidade de ausência de oportunidades e perdas afetivas. Não vou tratar de forma alongada sobre isso, cito apenas que tal cena ficará guardada para mim como uma síntese visual da necropolítica (conceito cunhado pelo Achille Mbembe).
Também destaco que, por a trama se passar em MG, não tive como não lembrar do Hospital Psiquiátrico de Barbacena, conhecido também como o local responsável pelo “holocausto brasileiro”, em que cerca de 60 mil pessoas morreram nas mãos do Estado. O hospício foi praticamente o único caminho “destinado” aos corpos negros e periféricos que Rafael não conheceu em sua fatídica jornada, mas poderia muito bem ter parado lá (e nunca mais ter voltado).
Falando em ausências e pilhas de mortos pelo Estado... Chego à última camada que quero comentar. Vou falar da primeira cena, unindo-a com o fim da obra e a fotografia. A princípio, achamos que as cenas que acompanhamos se passam literalmente à noite, entretanto o campo de significado criado a partir do diálogo existente na trama reconstrói tudo que estamos assistindo até então.
A má iluminação pública de Contagem, com seu tom amarelado, mesclada o tempo todo com blocos de escuridão e chamas é transformada no próprio mundo subjetivo do protagonista. Aquilo que o ilumina, é insuficiente ou precisa consumir algo para continuar aceso. Como é dito num momento, a vida dele, que é a de muitos, envolve-se de uma pilha histórica de mortos. Pilha essa que se acumulou ao ponto de tomar a claridade que existia no céu. Trata-se de viver numa noite duradoura, num luto recorrente.
A cena inicial da caminhada no escuro é ao mesmo tempo literal e metafórica. Poderia ser de dia, inclusive; algum carro poderia passar subitamente por cima dele, também. Essa fragilidade e rispidez do ambiente representa a ferida profunda que carrega. Assim como ocorre com o momento final, quando Rocha recusa a morrer na cena, com seu corpo diminuído no plano geral e envolto na escuridão do horizonte citadino. Mais uma vez, as cores e a iluminação indicam essa situação desgastante e diminuída em que se encontra a subjetividade dele.
Então, tudo no mundo do Rafael é esse jogo barroco de claro-escuro. Um jogo de luz forjado radicalmente no ambiente a que pertence, sem nenhum artifício a mais para embelezar as imagens. Até nisso, a obra vai à radicalidade proposta, o que nos faz pensar que esse filme possui uma unidade muito rica e completa entre forma e conteúdo.
Chegando ao fim desse escrito, vale ressaltar que é injusto eu repetir tanto o nome do Affonso sem reforçar que sua filmografia é extremamente coletivizada, o que se exemplifica não só nas parcerias com Aristides de Souza e João Dumans, como também das muitas pessoas que protagonizam seus longas, feitos por atores não profissionais. Logo, o impacto social e político desse cinema é visto das próprias obras. E, assim sendo, não há separação explícita entre ficção e documentário, como citei.
Todo filme é uma obra coletiva, mas nessa filmografia isso é levado a outro nível, pois transforma a vida de pessoas comuns (dentro e fora das obras) ao realocá-las como protagonistas reais de histórias pertinentes aos grupos sociais que historicamente não controlam os meios de produção cinematográfica. E esse tipo de arte ajuda exatamente na produção do não esquecimento, na construção ativa de nossa memória social. Como é dito na obra, esquecer certas atrocidades ou violências existentes seria como completar o serviço de quem atua amolando a faca das estruturas racistas e genocidas do Brasil.
Quanto mais referências se tem, maiores são as possibilidades de uma pessoa realizar conexões com a realidade que nos rodeia. E isso é importante para podermos criticar/agir em direção ao que consideramos potente ou incorreto. Ou seja, essa filmografia é feita para produzir, pela arte, um diálogo entre essas pessoas (comuns) retratadas, para buscarmos uma mudança social efetiva diante dessa realidade corrosiva e revoltante. É um cinema que acredita que, apesar de tudo, “não tem noite que dure para sempre”.
Portanto, será que Uchôa não merece tanta atenção do público brasileiro quanto outros diretores iniciantes estrangeiros? Nomes como Ari Aster, Robert Eggers, Damien Chazelle merecem respeito, mas... Com muito menos dinheiro, Affonso tem produzido verdadeiras obras-primas, com dramas que nos deixam diretamente tocados com o terror que o Brasil significa para boa parte de nosso povo. Sem precisar se ancorar em pirotecnia ou espetacularização de nada... Nesse sentido, a experiência de seus filmes me lembra Belchior: “A minha alucinação / É suportar o dia-a-dia / E meu delírio / É a experiência / Com coisas reais”.
Temos o nosso grande cineasta em início de carreira, falando sobre nossas questões sem nenhuma maquiagem, reinventando o real e o imaginário pela 7ª arte. Caso não o conheça ou não tenha visto alguma das suas 3 primeiras obras, convido você a conhecer seu trabalho. Sua filmografia pode ser alugada por preços acessíveis no site da distribuidora Embaúba Filmes (A Vizinhança do Tigre também está disponível na plataforma MUBI).
Depois de tudo isso, concluo dizendo que não me surpreenderá vê-lo alcançar o mesmo patamar de reconhecimento que o Kleber Mendonça Filho conseguiu nos anos recentes. Não só em festivais (onde ele e seus parceiros já estão sendo reconhecidos), mas principalmente do público geral. Assim espero que aconteça: de Contagem para o mundo, de Contagem para todo mundo.
O Menino e o Mundo (2013, Dir.: Alê Abreu) é uma obra-prima que foge do lugar-comum (em diversos níveis) e também abre espaço para a discussão de muitos temas importantes e complexos. Neste texto, irei demonstrar um pouco a riqueza dessa animação a partir de alguns conceitos da Psicologia Ambiental e também da discussão sobre Imperialismo Ecológico e sustentabilidade no capitalismo.
Em resumo, o filme trata de um garoto que mora no campo com sua família, mas após a partida de seu pai pela falta de trabalho, ele decide ir atrás dele e descobre a dinâmica de exploração e desigualdade da sociedade em que está inserido.
Em diversos momentos, a animação revela o conceito affordance (da psicologia ambiental ecológica), trabalhado por James Gibson. Affordance é a interação pessoa-ambiente existente por meio das possibilidades funcionais de um objeto, que define sua utilidade para cada um. Ou seja, quando eu vejo uma cadeira num consultório médico ou uma mesa num parque, pensarei num número limitado de possibilidades de interagir com aquele objeto a partir do que ele me comunica num ambiente.
No filme, mostra-se claramente que quase todos os adultos estão presos ao sistema capitalista, de modo que são forçados a exercer comportamentos repetitivos e sem inovação a respeito dos ambientes e objetos que estão em contato diariamente. Contudo, o Menino, principalmente quando no campo, consegue produzir múltiplas possibilidades com as cores e elementos que existem. Na cena inicial, a natureza aparece para ele com objetos que ele corre, mergulha, desliza, escala, anda, contempla. Isto é, as possibilidades funcionais estão presentes nos objetos e ele percebe isso, relacionando-se de modo variado e criativo com esses objetos. Outro exemplo possível de pontuar em relação a isso é quando o Menino transforma caroços de feijão e arroz em flores durante uma refeição.
Além disso, o grupo de pessoas que toca os instrumentos em diferentes momentos da trama também vê num pedaço de metal, por exemplo, algo que pode criar diversas melodias e cores. Esse grupo também utiliza penas, varetas, diversos tecidos e outros materiais para criar modos de se vestir autênticos, também vendo nos componentes não humanos diferentes funções e possibilidades. Já os trabalhadores são praticamente forçados a ver num objeto algo com uma única finalidade. Portanto, há a padronização e planificação nas possibilidades de objetos existentes na cidade industrializada e voltada ao capital, pois em muitos momentos é possível perceber os objetos e pessoas como um bloco uniforme e repetitivo. Assim, o ser humano reduz a si mesmo na medida que reduz suas possibilidades de interação com os objetos, tornando-os estritamente funcionais.
Na verdade, a forma como o próprio filme é realizado pode ser relacionado com affordance. Há inúmeros materiais utilizados de modo criativo para produzir os elementos da animação (indo muito além da programação em softwares 3D), de modo a revelar essa relação existente pessoa-ambiente e as potências funcionais que se revelam entre os dois.
Ademais, esses padrões comportamentais citados anteriormente chamam a atenção para os behavior settings, conceito cunhado por Roger Barker que é a unidade básica da psicologia ambiental ecológica. Esse conceito diz respeito à interdependência pessoa-ambiente correspondente a padrões estáveis de comportamento que ocorrem em tempo e espaço determinados. Trata-se de um sistema limitado, autorregulado e ordenado que caracteriza o programa do setting, o qual é uma sequência prescrita de interações entre comportamento humano e não-humano. Além disso, parte-se da noção de que é mais fácil prever o comportamento dos indivíduos por meio do programa do setting em que estão inseridos do que analisando o indivíduo isoladamente.
Para exemplificar, quando um grupo está unido numa sala de aula, ou num cinema, ou numa festa de família, podemos prever mais facilmente o comportamento de cada pessoa quando inserida nesse ambiente do que analisando-a isoladamente. Assim, situações cotidianas relacionadas a ambientes físicos específicos formam espécies de “programas”, em que todos os indivíduos participantes seguem e reproduzem. Afinal, não se espera que um aluno fique com roupa de praia numa aula ou que alguém vá fazer um exercício de física num cinema.
Voltando ao longa, percebemos que a rotina dos trabalhadores mostra claramente que há programas bem definidos e delimitados. Padrões são percebidos facilmente e de fato é possível prever os comportamentos. Aos 21 minutos de filme, há a cena do pessoal que trabalha para a fábrica de tecido: os comportamentos dos sujeitos em relação ao seu ambiente são previsíveis e ocorrem nessa inter-relação direta pessoa-ambiente. O modo como cada um interage com os algodoeiros e os algodões depende exatamente de sua relação na escala de trabalho, de modo que isso acarreta na disposição comportamental padronizada em relação ao espaço e ao tempo. A vida na cidade também denota a ideia de programas que são seguidos cotidianamente por inúmeros indivíduos, o que também fica marcado em algumas cenas. Por exemplo, quando o amigo do Menino pega o ônibus e chega a sua casa, comendo o mesmo produto e assistindo TV até dormir, a animação passa a ideia de que esse programa é repetido muitas vezes por ele e também pelos outros que estavam em seu ônibus.
Entretanto, é necessário problematizar esses comportamentos previsíveis, uma vez que esses programas não devem ser vistos como algo universal ou natural, invariável de cultura para cultura. O filme mostra de forma muito bem construída como existe uma lógica de exploração extrema pelo sistema capitalista, que afeta diretamente tanto a maioria dos seres humanos quanto o meio ambiente. De modo que os behavior settings existentes no filme não são fruto de uma relação homem-ambiente neutra, mas sim de uma relação construída historicamente e atravessada por interesses intrínsecos ao sistema produtivo atual. O processo de alienação do trabalhador ocasiona indiretamente na sua forma de interagir limitadamente com os objetos e ambientes, uma vez que essas pessoas realizam seus trabalhos mediados pela não detenção dos meios de produção (o que ocasiona o que Marx chama de ruptura metabólica).
Em filmes como O Sangue do Condor (1969, Dir.: Jorge Sanjinés), A Revolução dos Cocos (1999, Dir.: Dom Rotheroe) ou Bacurau (2019, Dir.: Juliano Dornelles & Kleber Mendonça Filho), nota-se que o modo como uma comunidade pode agir de forma muito mais ativa e apropriada de sua realidade, transformado e sendo transformado direta e conscientemente pela relação direta pessoa-ambiente. Na animação, por sua vez, isso quase não existe. Um artifício muito inteligente presente nela é o uso de colagens para tudo que se refere à propaganda, passando a ideia de que os traços e cores originais dos criadores não cabem ao produto artificial, fruto dessa exploração do trabalho.
Também há uma cena específica que mostra claramente a discussão sobre imperialismo ecológico (levantada por John Foster e Brett Clark). As matérias primas são levadas para os países isolados, “organizados” e ricos, enquanto a periferia (caótica e cinza) do capitalismo recebe de volta produtos industrializados, seus dejetos e consequências, como vulnerabilidade socioambiental, destruição gradativa dos ecossistemas e acesso desigual aos recursos produzidos, etc. E isso diz respeito também a outro assunto que perpassa o longa, a sustentabilidade.
O filme mostra como não é possível resolver a questão ambiental por meio da ideia do desenvolvimento sustentável clássica, que diz respeito a existir o equilíbrio entre crescimento econômico, progresso social e manutenção dos recursos. O Menino anda por esse mundo desigual, de modo a não existir espaço para uma responsabilidade igualitária e neutra para todos no que diz respeito aos danos causados ao ambiente. Na lógica capitalista, também se torna difícil a existência de muitas pessoas com comportamento pró-ecológico.
Dessa forma, uma aposta em “consciências éticas e sustentáveis” não é suficiente nesse sistema: o problema é social e político, logo não cabe a responsabilização dos indivíduos isoladamente. Faz-se necessário buscar a educação emancipatória, que exige transformação social e tensão das bases de reprodução da questão ambiental. Assim, aos poucos, por meio da reflexão crítica e ações de cunho social e ecológico, constroem-se cada vez mais novos modos de relação pessoa-pessoa, pessoa-ambiente e pessoa-sociedade-ambiente.
Aliás, uma das mensagens mais importantes que a animação traz diz respeito ao “espírito” de mudança/resistência que surge de uma relação mais harmônica, igualitária e criativa com os objetos e o ambiente, que é personificado pelas pessoas que tocam os instrumentos em grupo. Portanto, O Menino e o Mundo é um filme riquíssimo e as discussões que ele levanta não acabam nesse texto, sendo sempre válido revisitá-lo a fim de descobrir novos detalhes e nuances para refletir as temáticas que despertam em cada espectador.
O Homem que virou suco é uma obra-prima do cinema, pois, além de possuir inúmeros méritos formais e narrativos, consegue ser um filme que resume a vida de milhões de brasileiros usando uma mescla entre drama realista e humor ácido. Neste texto, explico um pouco os motivos para considerá-lo um feito tão importante me utilizando dos valiosos pensamentos de Milton Santos e da questão do estereótipo do povo pobre na 7ª arte.
Ao ler o livro O Espaço do Cidadão (1987) de Milton Santos, um dos maiores pensadores que o nosso país possui, encontrei-me com o seguinte parágrafo:
“A Busca, pelo indivíduo, do futuro, e a libertação dos grilhões que o amarram e o tornam obediente a uma realidade cruel somente se alcançam pela negatividade, tal como Bachelard, Sartre e Schopenhauer haviam exposto. Dizer não é mostrar-se plenamente vivo e portador de uma existência ativa, é recuperar os poderes perdidos e levantar-se sobre os próprios escombros, reaprendendo a liberdade”.
Essa filosofia (revolucionária) sobre o ser humano está presente também em muitos outros autores (que possuem seus pontos de encontro e desencontro). Para citar alguns, consigo lembrar também do pensamento (antirrascista) de Frantz Fanon e do absurdismo de Albert Camus, que possui a célebre paráfrase à máxima de Descartes: “eu me revolto, portanto existo”.
Essa citação me fez lembrar do personagem paraibano Deraldo em O Homem que virou Suco. Ele não só representaria uma pessoa que exerce a libertação dos grilhões proveniente da negação a uma realidade opressiva à existência plena, mas o faz pelo deboche e pela ironia.
No longa, acompanhamos a história desse nordestino que vem a São Paulo para tentar sobreviver de sua arte. A história de Deraldo é a de milhões de brasileiros... Um cidadão empobrecido, sem oportunidades (e sem terra produtiva) para exercer sua existência plenamente e garantir seus direitos básicos, que decide se arriscar migrando à cidade devido à situação de profunda desigualdade social em que se encontra.
E essa situação também me lembrou Milton Santos. Recuperando seu pensamento de modo breve, entendemos que não podemos pensar desigualdade social sem “espacializar” as desigualdades. Isto é, toda desigualdade é espacial, porque são nos territórios concretos que vemos todas as injustiças de uma sociedade expressas materialmente.
Isso significar dizer, pensando o Brasil, que os latifúndios acumulados no campo, o “quartinho de empregada”, as periferias, os condomínios de luxo, o esvaziamento do uso dos espaços públicos e os sem-teto são produto de um mesmo processo. Processo esse que tem relação direta com nossa história colonial e escravocrata, assim como com o papel geopolítico que o país possui em relação aos países “desenvolvidos” em diferentes períodos do capitalismo, dentre muitas outras variáveis.
Ademais, se houve um processo migratório massivo no Brasil, isso não se deu por mera vontade individual de pessoas se desenraizarem subjetiva e fisicamente. Mas, foi fruto de múltiplas variáveis, que englobam, inclusive, a adoção de um modelo econômico e de um Estado que centraliza o capital (nacional e estrangeiro) em áreas específicas do país, como o Sudeste, atendendo a necessidade de crescimento do próprio capital em áreas já previamente valorizadas.
Nesse sentido, o filme realiza a síntese dos caminhos possíveis para um “não-cidadão” migrante, geralmente considerado “resto social” dentro da lógica capitalista. Deraldo literalmente não é um cidadão, pois nem possuía um documento que comprovasse sua existência. Ao chegar à megalópole, tal pessoa vai morar na favela, depois precisa dormir na rua, ou em albergues “beneficentes” para pessoas em situação de rua.
Além disso, o filme é de uma acidez ímpar e isso apresenta de forma explícita e implícita. Deraldo tem de fugir da polícia devido ao recurso irônico utilizado na narrativa: o protagonista parece com outro “paraíba” que foi acusado de um crime bem icônico. O que reforça a ideia de que ele não é ninguém naquela cidade moedora de gente, não possui o status de cidadão.
No longa, também acompanhamos que viver de sua poesia não é possível, o espaço público não o “deseja”, logo ele vai passando por alguns trabalhos que seriam viáveis a alguém em suas condições, todos são informais e mal remunerados. Por meio de uma personagem mulher, também vemos outro caminho possível: a prostituição.
Todavia, ele diz “não” às explorações que o impõem em cada novo local de trabalho e essa pessoa que “mostra-se plenamente vivo e portador de uma existência ativa” acaba por ser caçado e negado de toda forma dentro desses ambientes. O filme também mostra que outros destinos factíveis a esse ser “revoltado” também seriam cercear sua circulação e liberdade (pelo hospício ou prisão). O motivo é simples de entender ao lembrar dos trabalhos de Michel Foucault ou Erwing Goffman: essas instituições totais são geralmente responsáveis pelo apagamento subjetivo de quem ali é jogado.
4. O “não” libertador aos estereótipos da pessoa em situação de pobreza
No artigo Apologia da relação cinema-história (1995), Jorge Nóvoa afirma que “a realidade-ficção do cinema promove leituras e interpretações das camadas sociais que, direta ou indiretamente, controlam os meios de produção cinematográfica”.
Sabendo disso, consigo perceber que, historicamente, os pobres são tratados em diferentes meios (por gente rica) como imundos, muito carentes, moralmente inferiores, desprovidos de inteligência, ameaças à “ordem” social, dentre outros mitos. E tal visão distorcida também está muito presente no cinema (até hoje), mas não se limita apenas a ele.
Mais uma vez, “espacializando” tal debate ao contexto brasileiro, percebemos que, assim como a população negra, os nordestinos migrantes também são encaixados como grupo social que seria uma espécie de materialização desses estereótipos de “gente pobre”. A ironia é que os nordestinos (muitos deles negros também) foram quem efetivamente construíram e habitaram muitas cidades desse país, sendo os exemplos de Brasília e São Paulo os mais ilustres.
E, portanto, O Homem que virou suco reaprende a liberdade simbólica da imagem ao não se valer do estereótipo da pessoa pobre que sofre passivamente diante das desigualdades socioespaciais do seu país.
Pelo contrário, tal pessoa encara de frente toda essa lógica que tenta o eliminar. Para isso, a obra também se vale do símbolo do cangaceiro, para reinterpretar como aquele personagem seria visto a partir de um olhar paulistano, dando um traço de ambiguidade que pode ser interpretado como “loucura” ou resistência. E tal resistência também está presente na trilha sonora, a partir de músicas populares nordestinas que conseguem interpretar o mundo de desigualdade que esse grupo social viveu e vive a chegar na cidade grande.
O filme também é ilustre ao explicitar muitas questões de classe que existem no Brasil, o que não aprofundei por não ser o foco central desse escrito. Afinal, como é convencional em grandes obras, elas possuem muitas camadas a serem exploradas e não se esgotam numa única interpretação ou análise.
Portanto, antes da Jéssica de “Que horas ela volta?” ou o povo de Bacurau, José Dumont interpretou Deraldo, que foi base dessa representação positiva e de resistência do povo nordestino diante do preconceito do olhar estrangeiro.
Considero que as duas melhores décadas do cinema brasileiro são as de 1960 e 2010. E o cinema de Glenda Nicácio e Ary Rosa é um dos motivos que me faz chegar a essa conclusão no que diz respeito à última década.
Ao conhecer Café com Canela (2017), eu tinha percebido que se tratava de algo especial e, com a iniciativa da produtora de disponibilizar a filmografia da dupla de diretores no Youtube gratuitamente até 02/07/20, pude conferir Ilha (2018) e Até o Fim (2020). E, graças a isso, faço esse comentário para falar um pouco do que achei desse conjunto da obra até o momento.
A nível de forma, Rosa e Nicácio constroem um cinema inquieto, que utiliza diversas experimentações estéticas que se conectam e se autorreferenciam em vivências pessoais e do nosso povo. Me soa como uma espécie de Abbas Kiarostami à baiana (e isso é ótimo!). São filmes que não subestimam seu público, trazendo escolhas nada convencionais no que diz respeito à montagem e à condução do enredo. Particularmente, considero que nem todas as ideias ousadas funcionam bem, mas penso que o mais importante é poder acompanhar os processos estéticos construídos no amadurecimento dessa filmografia.
A nível de conteúdo, vejo uma importância ético-política das decisões narrativas escolhidas pela dupla. No encontro, no diálogo, na afetividade de pessoas negras em situações cotidianas percebemos tudo que o nosso país já é e pode ser ainda mais. É o inverso da masculinidade tóxica operando no presente, que sabe tratar de assuntos como morte, machismo, transexualidade e abuso sexual de uma forma construtiva, potente e cuidadosa.
Historicamente, precisamos lembrar que o protagonismo da mulher negra no cinema brasileiro é quase inexistente, de modo que ver o trabalho da Glenda e das atrizes (e atores) que dirige torna-se algo muito relevante e também aponta para um país melhor. Para usar uma experiência pessoal, poder assistir à representação da mulher negra em obras como A Margem (1967) e poucos dias depois assistir algo como Até o Fim (2020) é realmente compensador e esperançoso. Um genuíno avanço simbólico e histórico.
Portanto, é um cinema que aponta a um futuro desejável e possível, a despeito de tudo que o (des)governo atual tem tentado inutilmente fazer para brecar esse avanço simbólico e material na nação. O noticiário nos mostra que nosso país parece só ir para o fundo do poço... Esse cinema mostra o contrário, é exatamente olhando para esses personagens (próximos da realidade) que podemos mirar além. Ou seja, o verdadeiro “vidas negras importam” pode ser sentido na força dessa filmografia, que não trata somente do sofrimento, mas principalmente afirma a potência do povo negro.
Como o público (do século XXI) não consegue enxergar o quão ofensivo esse filme é?
Eu o considero uma verdadeira porcaria cinematográfica. A minha nota só não foi a mais baixa possível porque há um domínio técnico na parte formal da obra. Todavia, qualquer mérito formal existente desaparece diante do conteúdo dela. Ainda, até essa qualidade formal passa muito longe do que eu tinha conhecido em filmes do Scola como Nós que nos amávamos tanto e Um dia especial.
Já assisti dezenas de obras que representam a pobreza mal, usando de diversos estereótipos para explicar essa camada social. Contudo, essa obra parece que conseguiu reunir todos os estereótipos existentes e levá-los a um nível insuportável. E pior, descontextualizando tanto os personagens das relações sociais concretas que só há uma conclusão que esse filme pode levar: por que não eliminar essa escória da sociedade? Todos são ruins, são feios, são sujos, são moralmente horríveis, etc, etc, etc.
Para mim, esse filme só faz sentido se eu for eugenista. De resto, é uma verdadeira humilhação com os estratos mais pobres da sociedade. Passa tão longe, mas tão longe da realidade, que qualquer tentativa de profundidade narrativa se perde. Se isso é para ser uma sátira, se é para conter humor, não consigo enxergar. Há tanta ofensa, que se existia a intenção de crítica social, ela falha muito. Se há elementos cômicos(?) usados para trazer um tom de ridículo ou extremo, esse extremo chega para mim como mero escárnio.
Coincidentemente, assisti há poucos dias Pixote: A Lei do Mais Fraco (1980). É um filme feito na mesma época e que tenta passar uma mensagem próxima ao que esse tentaria fazer aqui. Nele, vemos muitos problemas sociais e os atos negativos que pessoas pobres podem chegar a realizar devido a um contexto muito desfavorável. Nele, os personagens são contextualizados como parte de uma sociedade desigual... Nele, há gente “malvada”, há gente “suja”, há gente “feia”, mas há uma profundidade muito maior sobre essas pessoas, elas não se reduziriam a isso... E ainda há comentários sobre como o Estado promoveria tais circunstâncias subjetivas e sociais desagradáveis. Pixote é um filme tão “sujo” quanto esse, sendo que ele se sustenta por ser efetivo ao que se propõe, muito diferentemente desse longa italiano.
Poderia passar muito mais tempo explicitando meu ponto de vista, contudo, considero que esse filme simplesmente não merece uma análise aprofundada. Portanto, não vou nem explicitar cena a cena os exemplos do que estou argumentando. Nem falarei nada do racismo e do machismo, que também surgem explicitamente como “sátiras” e piadas aqui...
Concluindo, faço questão de deixar o meu repúdio por isso existir. E também minha tristeza/raiva pelas pessoas conseguirem achar que isso representa a pobreza. Nem todos sabem, talvez seja surpreendente... “Gente pobre” é também solidária, se fortalece culturalmente pela sua coletividade criativa, toma diferentes rumos (positivos e negativos) no dia a dia para sobreviver a diversas adversidades existentes, etc, etc, etc...
Repito: se esse filme soa como retrato de algo (ou como sátira de algo), ele é tão raso que agride. Essa obra vai ficar muito guardada como uma das coisas mais ofensivas que pude ter contato. A comparação do mundo da arte que me lembrei foi A Redenção de Cam (1895) de Modesto Brocos. Tal pintura consegue chegar ao nível de insulto de Feios, Sujos e Malvados.
O antônimo dessa obra é A cidade é uma só? (2011, Dir.: Adirley Queirós), também essencial para pensar sobre desigualdade socioespacial. Observamos aqui o que acontece nas coberturas de condomínios de luxo. No filme do Adirley, vemos o inverso: a realidade de quem, com aval do Estado, perdeu o direito de habitar zonas privilegiadas da cidade (por ser pobre e "atrapalhar" o mercado imobiliário). Ou seja, essa dupla revela os dois lados de uma mesma moeda.
Apesar de me interessar pelo cinema cubano, esse trabalho dirigido pelo brasileiro Aldemar Matias deixou a desejar. É o típico filme que possui uma ideia boa que poderia ser bem executada a partir de uma montagem inteligente num curta-metragem, mas vai perdendo sua força por se alongar demais na sua proposta.
Para quem gosta desse estilo cinematográfico, recomendo conhecer Baronesa (2017, Dir.: Juliana Antunes), pois esse é muito bem executado.
O filme traz uma mensagem bem direta: uns entram e outros saem, mas nada abala o Grande Hotel, que continua indiferente aos seres humanos efêmeros. Isso é demonstrado de forma enfática no início por meio da inteligente montagem de discursos no telefone que demarca os protagonistas (passageiros) da trama. Em seguida, há um plano-sequência de quase 5 minutos interligando essas histórias magistralmente na recepção do hotel. E, logo após, acompanhamos um belo plano de cima para baixo, que revela a grande estrutura concêntrica do hotel, a fim de revelar que ele é muito mais imponente do que aqueles humanos que se acham importantes (pelo seu dinheiro), mas viram “formigas” em comparação com tal ambiente.
Ou seja, o hotel se impõe enquanto verdadeiro personagem principal, pois é a estrutura fixa por trás de tudo que passa por ali. Além disso, percebemos durante muitas cenas (fora dos quartos) que sempre há movimentações de pessoas na parte dos planos que não é ocupada pelo corpo/rosto dos protagonistas, intensificando tal ideia de brevidade de quem está provisoriamente em primeiro plano.
Usando de tal metáfora, podemos extrair camadas mais profundas de significados: o hotel pode ser um simulacro: 1) do cinema; e 2) da sociedade (em sua amplitude). A primeira ideia, comento a seguir, já a segunda, destaco no tópico 3.
Grande Hotel é, antes de tudo, um filme ousado. Primeiramente, vale resgatar a inovação histórica que trouxe. Criando o maior set de filmagem existente até então, foi primeiro longa a arriscar algo inédito: convencer 6 grandes “estrelas” hollywoodianas a atuarem juntas e dividir seu protagonismo. E, no fim das contas, a obra revela que nenhuma delas é o foco do filme.
O hotel se torna simulacro da 7ª arte: estrelas vão e voltam, observamos por um tempo seus amores e dores, mas, no fim, o serviço continua para que o edifício possa dar espaço a novas tristezas e felicidades de outrem. Um artifício interessante que percebemos é que a câmera só pode ir até a calçada, nada do que está para além daquele ambiente monumental merece ser acompanhado. Isto é, o enredo não prioriza ninguém exclusivamente (alguns passam longos minutos fora da tela), ele é fiel apenas ao hotel. O limite da tela é o limite do edifício-cinema, o qual espera para “viver” novas pessoas e histórias após as saídas dos protagonistas temporários.
Outra escolha impressionante é a utilização da própria base do cinema hollywoodiano para forjar expectativas falsas do que acontecerá com os personagens. Como incontáveis outros filmes da época, pensamos que vamos ali acompanhar os dilemas do “malandro galanteador” com outras mulheres que querem/não querem ele. Até que ele... Morre! No contexto histórico do filme, poucas coisas poderiam ser mais disruptivas do que matar o galã de forma abrupta. Em outras palavras, usa da expectativa de empatia por uma história de amor para poder passar as críticas sociais que se propõe.
Além disso, assistimos o destino da Flaemmchen, mas não conhecemos a reação da paixão interrompida da mulher russa, o que é outro rompimento do cinema clássico, que faz questão que todos os conflitos criados durante a história sejam resolvidos, para que conheçamos os destinos dos personagens no fim. E, já que falei sobre essas 2 personagens, uma cereja do bolo de Grande Hotel é poder conferir o choque direto entre a atuação “afetada” típica do cinema mudo de Greta Garbo e a ainda iniciante Joan Crawford, com sua atuação mais realista e “moderna”. Isso pode não ter sido intencional, mas isso também traz um tom único à obra.
Grande Hotel possui muitas cenas bem construídas, mas parte essencial de sua maestria está nos seus últimos minutos. Para compreensão dos significados mais profundos do filme, é muito importante dar atenção às escolhas e à montagem realizada na parte final. Vemos a cena do assassinato e não só a escolha de matar o protagonista não é usual, mas o que vem logo em seguida também: uma montagem irônica une o crime à indiferença de funcionárias do hotel ao barulho do telefone (ou a alguma ligação que estava ocorrendo paralelamente). Em cenas posteriores, vemos o cadáver da vítima ser comparado a um pedaço de carne que um açougueiro segura; o cadáver sai, a carne para alimentar os hóspedes entra. Também acompanhamos o cachorro do barão ser literalmente varrido enquanto é retirado daquele espaço “exclusivo”.
Além disso, lembremos de alguns dos personagens... Há o homem “comum” que quer se sentir rico e feliz pela primeira (e única) vez em sua vida por meio do consumo e da sensação de estar ao lado de espaços e pessoas “nobres”. Não menos relevante é o veterano de guerra (portador da moral da história), que está sempre à espera de mensagens e cartas, mas ninguém o lembra. Além disso, há o homem de negócios com sua frase hipócrita: “estou habituado a fazer meus negócios com bases sólidas, sou um negociante honesto, um bom marido e pai, não tenho nada a esconder”. E, em diversos momentos, há vários funcionários, muitas vezes imóveis como parte invisível daquela estrutura, que só se movimentam para servir aos ricos.
Então, o hotel beneficia e agrada todas as pessoas que podem pagar por de todas as benesses, mas assim que elas não geram capital, merecem desaparecer (como trabalhador ou como hóspede descartável). Ele funciona apenas para o benefício de manter a sua estrutura intacta. Assim, o hotel pode ser comparado à própria sociedade capitalista, que, à época, vivia uma crise profunda. Talvez, o momento que tal mensagem surja mais explicitamente seja no conflito direto criado entre o homem de negócios que sequer reconhecia seu funcionário, o qual só pôde usufruir de bens materiais e experiências caras porque sua vida presa à exploração pelo trabalho não teria mais continuidade.
Então, percebemos a alienação daquela vida “moderna” dos ricos ou daqueles que tem um passaporte temporário a estar nessa posição de consumo desenfreado. Não menos importante, notamos a indiferença do hotel-sociedade para as possíveis explorações e tragédias existentes, pois aquelas pessoas são apenas produtos da própria lógica que rege tal hospedaria.
Deixei de lado alguns aspectos nessa análise, como detalhar o belo trabalho de fotografia e mise-en-scène. Cito brevemente que 2 boas demonstrações desses elementos estão nas cenas no quarto depois do assassinato e a cena da discussão de negociação, em que o Preysing vai sendo encurralado pelos negociadores pela posição que os corpos ocupam.
Para finalizar, vou citar algumas observações. Esse filme exemplifica a tradição corrente em filmes americanos clássicos, em que a prostituta é sempre disfarçada e não se apresenta diretamente. O filme mostra por meio de sutilezas que Flaemmchen não se espanta ao ver um homem seminu num quarto, aceita viajar com homens casados, etc. Ademais, o filme também demarca críticas à Rússia soviética em alguns momentos, revelando pelas falas da dançarina de que o país socialista é perigoso e injusto.
Alguns "vícios" típicos da época também existem, o que é algo passível de relevar nesse caso, por ser secundário. Percebemos a necessidade de repetir a “moral” 3 vezes, para deixar bem explícito a mensagem principal. Creio que isso não seria necessário, mas é um elemento válido para o contexto do longa. Nesse sentido, outro aspecto é a centralidade dos papéis femininos para os desejos e vontades de homens. Há alguns exemplos que deixam isso explícito, sendo o principal o da dançarina, que sai do total vazio existencial a um estado completo de felicidade apenas pela rápida paixão por um homem.
Dito tudo isso, destaco também que foi interessante conhecer de onde veio toda a inspiração de figurino e cenário de Grande Hotel Budapeste do Wes Anderson.
Portanto, Grande Hotel é um filme excelente e inovador, que merece ser visto (e revisto) por tudo que apresenta em suas diversas camadas. A história em si é interessante de acompanhar e a experiência fica ainda melhor ao percebemos a ousadia das escolhas narrativas e as críticas sociais implícitas na obra.
0. Quando o olhar se emancipa, incomoda Não gosto de escrever para diminuir nada, geralmente faço da análise algo que potencialize uma obra, sem me valer de comparações negativas. Todavia, ao ver a média de nota aqui, algo relevante à análise que fiz se revela. As avaliações negativas fazem parecer que o filme seria uma mediocridade cinematográfica, quando na verdade ele é o extremo oposto!
É um filme lento? Se for comparar com Hollywood, sim. Mas parar nisso é uma limitação muito grande. O ritmo do filme é condizente com tudo que ele quer passar. Devemos pensar um filme a partir do que ele se propõe, não a partir do que um padrão estabelecido dita como bom de engolir. E aí está a ironia da reação negativa ao filme: uma história sobre a pequenez da colonização espanhola que incomoda quem está acostumado a um olhar colonizado pela indústria cultural. Um tiro só que acerta dois alvos. Para mim, Lucrecia Martel mostra o que é ter um olhar totalmente emancipado que constrói um filme completo. Daqui em diante, vou argumentar por que Zama é a 7ª arte em sua excelência.
Don Diego de Zama: nobre, em sua posição riste, conquistador de um mar raso, mas inalcançável. Acompanhamos a jornada de um oficial da Coroa Espanhola que quer ser transferido para a capital de sua colônia, contudo não consegue. Nesse percurso, a visão incorporada ao filme é a do protagonista, logo conseguimos perceber por meio do ritmo narrativo que acompanhamos uma imobilidade que representa o não alcance do seu propósito.
Na meia hora final, ele sai de sua zona de conforto em busca de sua última oportunidade de conseguir a transferência: buscando se tornar um herói. E, somente quando encontra uma série de riscos à sua integridade física, as cenas ganham uma maior rapidez (pois tudo é novo, desconhecido, não dá tempo de assimilar). Isto é, o filme incorpora na estrutura formal a visão do Diego. Aliás, a cena que ele é usado num ritual pelos indígenas possui muitos cortes rápidos, mostrando uma situação inversa ao que ele passava em sua situação anterior.
Portanto, aqui encontramos um exemplo de total consciência de como unir forma a conteúdo inteligentemente. A seguir, destaco várias outras amostras disso.
Primeiramente, esse filme consegue fazer um ótimo trabalho de ambientação do contexto proposto. A partir dos figurinos, maquiagem, ambientações e fotografia, temos uma ideia muito exata daquele “mundo”. Além disso, algo mais sutil é a associação do modo de vida dos colonizadores a algo falso, usando dois elementos: o som e a montagem. Em poucos momentos vemos a presença de música não diegética (aquela que vem de fora da cena). Um dos usos intensifica situações subjetivas de Zama de distanciamento/esgotamento da realidade. A outra utilização é uma música alegre e pomposa. Nas poucas vezes que ela surge, o som não “liga” organicamente à cena, por dois motivos: pela sua entrada e saída brusca e pelo contexto. A música surge a princípio como algo que deveria se incorporar ao momento, mas acaba por revelar a farsa daquelas situações, mera perfumaria que simboliza todo aquele modo de vida predatório da Corte. Um desses momentos é quando o protagonista vem para um encontro com Luciana. Tais diálogos com ela resumem uma visão geral sobre a mesquinhez da vida privada e cotidiana dos colonizadores.
No que diz respeito à montagem, ressalto que, em muitos inícios de cenas, vemos personagens vestindo ou ajeitando sua peruca para poder fazer ou falar algo, destacando-se novamente a ideia de inautenticidade daquelas pessoas e situações.
Não conheço nenhum filme que tenha passado de uma forma tão interessante o que significa a situação de escravizados enquanto objetos. A mise-en-scène alcança aqui uma perfeição dificilmente vista, que me remete diretamente a “Playtime” do Jacques Tati, sendo que melhor, porque mais profunda de significados. No ambiente privado, os corpos explorados surgem como simples móveis e instrumentos humanos. Forma-se uma integração e interdependência entre colonizador e escravizado. Mas, o modo original como isso é posto em tela faz daquilo tudo muito mais desconcertante do que seria se a diretora repetisse a obviedade da violência física. Desse modo, sentimos mais ainda a violência daquele contexto, devido à excepcionalidade que encontramos no modo de mostrar essas relações de exploração humana.
Ademais, dá para notar que, quando vamos aos ambientes externos/naturais, continuamos a ver indígenas e africanos escravizados, mas não somente. Trata-se de uma escolha política de retratar a colonização fora da visão do europeu, destacando os lados negativos, mas também a resistência desses povos. Devido à profundidade de campo muito bem trabalhada nos enquadramentos, esses corpos aparecem como seres autônomos em diferentes atividades e ações. Um exemplo é quando a “mãe do filho” dele pega a cama presenteada (produto artificial aquele meio) e faz de varal. Mas isso ocorre apenas em segundo plano, porque o centro é a conversa deles em que ela diz que não vai dar roupa nenhuma, pois não é sua mulher. Enfim, o filme inteiro é repleto dessas sutilezas que são contadas pela excelente execução da mise-en-scène.
Zama abre mão de uma abordagem pesadamente séria para debochar sutilmente daquilo tudo que representam os colonizadores, criando um senso de ridículo nas entrelinhas. Acima, já destaquei as “perfumarias”. Aqui, volto ao personagem principal, pois ele resume a simbologia a ser passada sobre a Corte da Espanha.
Falei um pouco de elementos bem postos em cena, mas volto a isso para citar rapidamente um fato: que interpretação magnífica de Daniel Cacho! Acompanhar seus olhares e microexpressões é muito interessante, pois representa uma mistura de angústia, desespero, cobiça e raiva que vai evoluindo (uma bomba-relógio prestes a implodir). Em sua jornada frustrada, ele é vítima daquilo mesmo que representa: um “don” que age mesquinhamente a seu favor em nome da grande metrópole. Pessoas guiadas pelos próprios interesses de exploração e dominação constante que disfarçam isso em burocracia. Como surge resumidamente num diálogo: os espanhóis são muitas “pessoas pequenas”. E são elas que administram o Novo Mundo. Elas estão ali para comemorar mortes que resultem em festas luxuosas de velório ou orelhas dignas de ostentação.
No meio dessa dinâmica, Zama, lhama indefesa, vai se deteriorando aos poucos diante dos seus superiores, que atiram à vontade nos cavalos, objetos ou pessoas indesejadas. Assim, o longa passa a ideia de sua falta de controle em alguns momentos. Em mais de um momento, tiros o assustam e se apresentam fora de plano: quando Zama percebe, a fatalidade já aconteceu. Ou olha assustado pro seu filho “mestiço”, que ele não consegue ver como resultado de suas ações. Nisso, sobra apenas a analogia do peixe feita no início: Zama está num aquário perverso em que cobiça com seu olhar mares e mulheres, mas nada consegue tocar com suas mãos (nada ali o pertence de fato). E, pior, tudo aquilo que ele quer, os outros conseguem com menor esforço. No fim, parece que só em seus delírios ele percebe profundamente todo o absurdo que é aquela realidade forjada. É como uma sensação de que ele está fadado ao fracasso, pois a Coroa em si é um fracasso.
Além de tudo isso, a obra ainda consegue cavar mais uma camada em sua rica construção, fechando o campo de significação de que Zama representa uma síntese da própria Espanha. A tragédia de Diego chega em seu ápice quando ele vai atrás de matar Vicuña Porto. Esse nome representa todo o mau que tenta atrapalhar a atuação benevolente da Coroa. Vicuña comete adultério, assalta, incendia, assassina, cria casas de jogos, mas nunca consegue ser capturado! Obviamente, Porto nada mais é do que tudo aquilo que os membros da Corte faziam e não queriam admitir por cinismo, pois eram nobres espanhóis.
Então, Zama sair na missão de extirpar o símbolo do próprio processo colonizador só poderia ter consequências catastróficas, pois ele é mero produto débil desse processo. Quando está em sua vida medíocre, ele esbarra em situações estranhas a ele, mas que não ameaçam sua sensação de autoridade em relação aos outros povos. Mas, ao confrontar diretamente os territórios não dominados, ele se mostra constantemente ameaçado. É a hora de mostrar sua submissão: são os indígenas usam seu corpo para suprir seus fins e os “capangas” usam-no para conseguir sustentar sonhos turvos de riqueza. Um outro espanhol que está nessa jornada só consegue o considerar traidor por encobrir o vilão fantasma. Assim, um colonizador vive de condenar o outro, numa esquizofrenia de não conseguir enxergar suas próprias violências inexplicáveis. Outrora, vemos um cavalo morto covardemente pelo governador. Nos minutos finais, outro cavalo volta seu olhar ao expectador em primeiro plano, gerando uma estranheza por quebrar totalmente a unidade estética formada até então. O que significa isso? É um recado visual: aqui está o “troco”, agora é a “natureza” que observa o que será feito com o espanhol. E, então, vem a decepação que resulta finalmente numa irônica viagem sua sobre as águas. Não para onde desejava escapar, mas para a consumação de sua existência colonizadora.
Nesse filme, todo o percurso do enredo surge exatamente numa das coisas mais dolorosas que podemos acompanhar: a tentativa incessante de apagamento de uma criança que busca formar uma subjetividade autônoma (seja ancorando-se ou não aos padrões impostos). E isso ocorre demonstrando como os diversos efeitos do racismo, pobreza, normatividade de gênero, bolivarianismo (x neoimperialismo) e viver em periferia se mesclam enquanto determinantes que tentam destruir a possibilidade de um menino fazer algo “porque teve vontade”. Ele é criança, mas não teria o direito de ter infância, pois falta lugar para seus sonhos (os seus desejos parecem não merecer voz).
2. A periferia num país periférico: corpos segregados
Tudo isso introduzido no tópico anterior tem como centro a falta de afetividade entre mãe-filho, a qual surge visualmente pelos enquadramentos escolhidos durante toda a obra. De modo exaustivo, são utilizados planos fechados e primeiros planos, geralmente separando os protagonistas em cada plano enquanto interagem. Isso representaria que há certa limitação, desconforto (até claustrofobia) naquelas pessoas, a nível físico e emocional. Também é comum diminuir-se o espaço de interação/possibilidade afetiva em tela quando se adota uma perspectiva de fora do cômodo, em que há “molduras” com paredes desgastadas, grades ou portas que ocupam grande espaço do que é mostrado. Por vezes, Junior consegue estar enquadrado em conjunto com outras personagens que possuem melhor relação com ele, mas tal aproximação não se mantém em todos os momentos (com exceção de sua amiga), o que demonstra seu afastamento pessoal nessas relações.
Assim, o campo de sentido se intensifica quando outras escolhas técnicas são utilizadas: planos inteiros e planos gerais. São nesses momentos que vemos mais nitidamente os cenários que transparecem descaso, precariedade e aprisionamento. Há um destaque nos muitos padrões/repetições/enclausuramentos (ou grafites e propagandas que compõem aqueles ambientes). A própria natureza só aparece como contraste longínquo num horizonte distante, limitado numa janela ou outra. O céu, por sua vez, só aparece nitidamente na cena da brincadeira entre mulher (que resta ser estuprada ou morta) e homem (militar, armado), o que foi uma referência a como o imaginário infantil é permeado naquele contexto.
Portanto, há uma mescla bem feita que revela simultaneamente o resultado de morar naqueles ambientes, num processo em que a cidade vira reflexo de segregação socioespacial e reprodução de uma série de opressões sistematizadas. A cidade em si não é vivenciada por essas pessoas, ela é apenas caminho/passagem para o trabalho, a vida se resume ao bairro distante em que se mora, de preferências dentro dos lares diminutos, local em que o risco de violência e estupro é amenizada. Isto é, àquelas pessoas (negras e sem dinheiro para mediar relações de consumo em estabelecimentos), a circulação nos espaços evoca desafios diversos materiais e simbólicos, que são revelados e bem explorados nas personagens do longa. Enfim, os limites a nível ambiental e social afetam diretamente as relações entre as pessoas que interagem nesses ambientes.
3. A pele e o “pelo” do homem: teria Junior o direito de existir?
Falando em limites, vamos ao cerne do filme. O sonho de Junior é se sentir mais bonito se embranquecendo (sem cabelo “ruim”) e é possível perceber que todo o contexto cultural em que se encontra o força a querer moldá-lo desde muito cedo a não querer ocupar certos lugares sociais. Sua rejeição aos seus traços negros vem de várias formas (da mídia, das pessoas que convive, do “destino” que percebe ser dos jovens negros), de maneira que seu desejo fixo em aparentar ser outro simboliza a busca pelo padrão que não pertence a um venezuelano pobre (e tudo que pode representar esse fato). Por sua vez, a mãe sintetiza diversas opressões, como um produto perverso de todas as limitações e padrões que ele deveria aceitar e seguir. Em quem ele poderia encontra afeto, suporte e carinho, sobra apenas o desprezo por ele ser quem é.
Junior possui uma meta bem definida e simples, seu sonho é completamente palpável. Mas, ao mesmo tempo, se sentir representado da forma que deseja parece ser algo tão simbolicamente distante... A foto concretizaria fisicamente a identidade social que desejaria para si: cabelo “bom”, podendo cantar, dançar e se vestir à vontade. E há triste ironia nos lugares daqueles meninos nas fotos da loja: o lugar da criança negra é um militar armado, com fundo de tanques venezuelanos, já a criança branca está simplesmente sorrindo e com um fundo falso de um ambiente tranquilo e natural. É esse segundo menino que Junior quer ser, ele deseja ter cabelo liso e poder sorrir, não ser o menino negro destinado à violência. Pelo menos ali, ele quer ser representado daquela forma.
Nesse sentido, percebemos que ele é visto pela mãe como um corpo anormal, que precisa de alguma explicação do saber médico para domesticar/compreender aquele ser em que ela projetou todos os seus medos, preconceitos, angústias e traumas (enquanto o bebê ainda está imune a tudo isso, quase que no outro oposto). Quando o médico valida que “ele é normal”, ainda sim ela não aceita e busca novas explicações para sua projeção distorcida. E, portanto, tudo que ela ache que é “feminino” é motivo de rejeição. Ademais, ele não tem sequer o direito de olhar livremente sua mãe ou tocá-la, ele só deve olhar para ter exemplo do que é ser um homem (num ato totalmente violento com ela mesma e com seu filho). Além disso, ela acha que ser agressiva com ele também seria um exemplo “masculino” que o falta.
Nessa obra, alguns símbolos são utilizados para retratar tal relação conflituosa. E nisso a dança e o cantar são importantes. Quando está com sua mãe, ela canta e dança com ele somente como ironia e o faz sentir medo daquela expressão carregada de sentimentos negativos, já com sua vó ele consegue recuperar a possibilidade de cantar e dançar, ainda que não se trate da música que mais lhe agrade. Assim, demarcam-se as diferenças entre quem não acha possível aquele modo de subjetividade e quem o aceita em suas particularidades. Aliás, a mãe usa a frase “porque tive vontade” de seu filho para realizar essa agressão encenada e cantada, deixando ainda mais demarcado a necessidade de cercear o direito de Junior existir livremente.
Vale ainda ressaltar que em nenhum momento Junior tem vontade de se sentir “feminino”, isso é totalmente uma interpretação imposta pela normatividade de gênero, o que ele queria era poder se expressar autenticamente - sem ser diminuído por isso. O filme demarca sua homossexualidade de forma não estereotipada com sua atração pelo Mário, mas ele é apenas uma criança, sua atração ainda não denota sentido sexual, mas antes uma admiração e uma vontade de espelhar-se naquele modo de ser “homem”, que nada traz de ameaçador ou agressivo. E, com Mário, ele tem a liberdade de olhar diretamente e espelhar algo positivo, diferente de sua mãe com suas tentativas de exemplos de masculinidade.
4. Mulheres à margem: trabalhos e afetos interrompidos
O filme também explora de modo complexo e rico o lugar da mulher nessa sociedade. A Marta tem como objetivo de vida resgatar seu trabalho de vigia, que trazia sentido material e simbólico à sua vida. Por sua vez, a Carmen almeja poder novamente ter um filho para cuidar e dar afeto, visto que o seu seguiu um trágico caminho comum aos jovens negros de periferia (sem oportunidades, restou o tráfico e a morte precoce). Tal filho também era marido e pai, ampliando então a ausência que representa essa fatalidade.
A mãe do menino luta por conseguir um trabalho que parece muito difícil (ela faria tudo para recuperar seu emprego), porque um erro que teria cometido era o suficiente para não conseguir mais reconquistar espaço numa profissão “masculina”. Ironicamente, ela percebe que não é vista enquanto uma profissional capacitada, mas apenas enquanto um corpo objetificado (e só dessa forma consegue voltar ao cargo). Naquela sociedade, seu lugar de trabalho é limpando alguma casa (sem direitos ou garantias). Um detalhe na montagem do filme é que o gozo masculino é demonstrado enquanto algo sempre curto e pouco satisfatório à Marta, o que aumenta a contradição de ela querer o filho ocupando esse mesmo tipo de masculinidade.
Já Carmen busca em Junior o vazio deixado pela perda de seu filho (ela faria tudo para recuperá-lo), como se fosse a última oportunidade de ter o afeto que teve de ser precocemente interrompido. Assim, ela consegue cantar e dançar com ele, costurando com suas próprias mãos uma roupa que representava à sua época de moça um cantor bonito. Já num processo de rejeição e conflito interno, o garoto não vê naquela roupa algo suficientemente masculino, o que o faz rejeitar a peça e impede temporariamente seu objetivo de tirar a foto se sentindo devidamente representado. E, destarte, ele começa a ver na vó uma ameaça de ele se tornar de fato uma “mulherzinha”, fazendo-o recusar inclusive o amor dela. Então, o filme traz novamente como a performance da masculinidade pode ser frágil, uma vez que aquilo que outrora representaria um “galã” pode atualmente soar como o inverso do que seria ser másculo (e vice-versa).
Afinal, destaco que o longa consegue trazer uma realidade própria de diversos países do sul global, mas ainda sim traz uma crítica inteligente ao país em que se passa a história. A cultura violenta, autoritária e machista presente na Venezuela por vezes é personificada indiretamente no culto ao Hugo Chávez, mas também à mescla entre religião e armamentismo. Ali, raspa-se à cabeça em solidariedade ao presidente (com câncer na época), mata-se para tentar curar o presidente. A Santíssima Trindade pode ser Jesus, Maria e um fuzil (enquanto Deus segura um ícone do regime em vigor, a constituição). Nada daquilo parece atrair Junior e, simultaneamente, ele tenta buscar em símbolos/imagens externas à sua realidade tudo aquilo que deseja ser e não pode, puxando-o para um não-lugar, para um conflito existencial dos papéis sociais que não pode ocupar. E o futuro não aparenta ser muito esperançoso...
Quando Junior raspa a cabeça para se adequar ao que sua mãe exigia dele, ele repete o mesmo gesto daqueles que abdicam de seus cabelos em solidariedade ao amor à pátria. A cena final é ele se negando a cantar a canção da pátria, sendo a escola a representação o Estado. Por conseguinte, Marta é uma mistura de individualidade e cultura, como todos nós, logo seus atos não são meras maldades individuais, eles são reflexo de tal contexto sócio-político-econômico em que ser homem (ou mulher) significa seguir uma série de padrões fechados e violentos. A busca por uma identidade social mais flexível não cabe àquele menino, resta esse não-lugar que o puxa à padronização de sua subjetividade. Revela-se o desgaste e sufoco presente na vida inúmeros “corpos anormais” em situação de discriminações e opressões naquele país (realidade não distante do contexto existente no Brasil, por exemplo).
Em conclusão, Pelo Malo é uma excelente “aula” sobre interseccionalidade e um convite a refletir o que é estar/ser latino-americano. A síntese multíssona das questões sociais contemporâneas trazidas nesse filme é algo raro de se encontrar de modo tão preciso e bem executado, tratando-se, portanto, de uma obra-prima realizada pela Mariana Rondón.
Só recentemente fui conferir a filmografia dessa cineasta e algo me chamou a atenção: um elemento central das histórias que decide contar é a ausência de controle do ser humano sobre sua própria vida (e a dos outros). Há sempre algo de irrefreável (nos âmbitos público e privado) que marca definitiva e tragicamente as existências. Tal inspiração vem de sua visão psicanalítica de mundo. Seu olhar é complexo e não se limita apenas à análise individualizante ou familiar, uma vez que também realiza análises culturais sensíveis. As desigualdades e violências físicas e simbólicas da sociedade ocidental (liberal, individual, machista, massificado pelo consumo) se entrelaçam e afetam subjetividades “desencaixadas” desde a infância. A ênfase em aspectos subjetivos ou objetivos na correlação psique-sociedade varia de acordo com cada trabalho da Lynne e, nesse filme, o lado mais social fica um pouco mais sobressalente, mesmo que em direta ligação com as vivências do protagonista.
Dado esse panorama breve, vou destacar alguns símbolos e características que fazem dessa obra um feito excelente e memorável. Uma escolha ousada e incomum presente nesse filme vem já de seus primeiros 5 minutos, que dizem muito sobre o longa. Começamos a acompanhar um momento de inocência infantil poeticamente mostrado em câmera lenta, que é bruscamente brecado pela violência materna. Quando começamos a se aproximar e acompanhar a história daquele menino (que supomos ser o protagonista), ele morre a partir de uma brincadeira que se desenlaça em violência fatal. Essa era a sua infância: ingenuidade e violências, par que se repete até se transformar em tragédia.
Essa morte prematura serve de introdução interessante à história, revelando-se também como uma brevíssima e bem realizada síntese da vida do seu “assassino”, James. Afinal, acompanhamos nos minutos seguintes seu cotidiano permeado de intempéries, mas também de rastros de leveza e afetividade, numa espécie de afirmação da vida até onde ainda era possível. Contudo, o peso da culpa e da desesperança diante da realidade (áspera) o vence. Portanto, a prematuridade existe simultaneamente enquanto forma e conteúdo em Ratcatcher.
A montagem do filme dá uma ênfase aos pés (e calçados) das personagens. É essa parte do corpo que precisa de especial atenção para não pisar em ratoeiras, lixo, nem molhar os pés quando próximo ao canal poluído. Ademais, James recebe um calçado da mãe do falecido menino como realização de presente póstumo (não cabe, ele usa outro tamanho) e seu pai o presenteia com o mesmo item (também não se serve aos seus pés). No primeiro caso, ele até usa e se machuca, de maneira que o mesmo risca seu calçado novo para repetir simbolicamente a violência que ele infringiu ao garoto afogado. Aliás, o protagonista até quase perde o próprio sapato quando entra na água pútrida após o acidente. Assim, a obra passa por meio dessa metáfora a visão de sua não adequabilidade às relações sociais com esses adultos.
Nesse sentido, ele recebe essa proteção material do calçado ocasionalmente, mas ele continua desprotegido a nível psicológico, visto que sem suporte emocional em meio a sua angústia (ele sequer aprendeu a compartilhar sua dor). Efetivamente, ele recebe carinho de sua mãe em apenas 3 momentos: quando ela descobre que seu filho continua vivo; quando penteia seu cabelo para retirar seus piolhos; e quando ela simula um ambiente agradável em sua casa para os assistentes sociais e resolve dançar. E do pai, nada de positivo (só sapatos inadequados). O afeto materno quase nunca surge como ato deliberado e do pai, apenas desamores. Logo, James precisa andar descalço nesses momentos mais insólitos - só encontra algum suporte maior na recém-amiga/namorada, relação que também se esfacela precocemente pela interrupção brutal do grupo de adolescentes. Todavia, com exceção desse grupo, as pessoas não são retratadas de modo unilateral, é como se os adultos se formassem pelos encontros e desencontros de suas ausências simbólicas (e materiais); ninguém ali parece ser maniqueistamente mau (mérito às atuações), embora certas ações complicadas prejudiquem diretamente seus familiares e conhecidos.
Além do mais, percebemos que a infância (símbolo de criatividade, singeleza, pureza, afetividade) já não tem muito espaço em meio tanto entorpecimento emocional/social, tais características só perduram em quem é considerado “anormal” ou ainda não cresceu o suficiente (como Anne Marie). Ao atingir a adolescência, os homens acumulam de modo destrutivo a violência e a hostilidade a tudo e todos. O próprio James não compreende de onde surge tanta agressividade, a qual pode até matar outrem.
Não menos central é aquilo que vai movendo a mudança do bairro, o acúmulo do lixo devido a uma greve. Tal aspecto traz à cena a vulnerabilidade dos habitantes dali (que são “restos sociais”), de modo a aguçar criticamente toda a precariedade de possibilidades e oportunidades presente naquele local. O acúmulo de ratos surge como quociente daquela circunstância. Os adultos só conseguem pensar em matar rapidamente (aquele transmissor de doenças), os adolescentes em matá-los por entretenimento e as crianças variam na forma de tratar esse animal, mesmo que no fim eles só morram mesmo. No lastro de infância que o resta, James chega a salvar ratos e a matá-los, apesar disso ele sonha com a possibilidade irreal do rato fazer uma viagem à lua, o que se descontrói pela imagem de uma TV desfocada que o acorda. Isso é um chamado não só à realidade, mas à dureza de se desvincular dessa criatividade infantil e se voltar à violência da vida real. Assim como o calçado, a TV é um objeto repetido no longa. Sua função narrativa é destacar que, na vida adulta, é apenas pela TV que se pode escapar daquela vida; é ali também que morre qualquer sonho outro que não esteja na programação. O sonho adulto não se encontra na realidade, a imaginação é domesticada por essa mídia de massa dominante na década de 70.
Já que comecei a falar sobre realidade x sonho, resgato agora algo muito importante à obra: o uso escasso de trilha sonora não diegética (isto é, que vem de “fora” do ambiente narrativo), o que dá um tom certeiro, pois fica mais difícil digerir tudo aquilo no “seco”. Além do sonho do rato lunático, outros momentos em que tal música com tom feliz surge é na viagem ne James ao seu outro sonho: viver numa moradia mais digna. No ônibus, na sua primeira e na sua última visita àquele ambiente, tais sons (usados à exaustão no cinema mais convencional) parecem meros delírios em contraste com o restante das cenas.
Realço também que a sensação de não pertencimento/identidade com seu lar e sua vizinhança costuma ser bem nocivo à saúde mental. Assim, parece não haver muitos objetivos e motivações naquelas pessoas enquanto estão ali, logo o filme explora bem isso no ritmo adotado: o enredo não se enraíza em motivações e objetivos bem delimitados, mas sim ao contexto social. E, então, o longa justifica tecnicamente sua ausência de foco delimitado e linear.
Por esse ângulo, é possível perceber que a irmã do protagonista só parece encontrar objetivo em sua vida fora dali, já o James busca num bairro distante seu ideal de vida mais feliz e digna. É possível notar que nessa outra casa, a urina escorrendo por baixo do vaso simboliza sua imediata inadequação àquele ambiente, aquilo tudo não o pertence; o seu retorno ao local fechado reforça isso. E, alimentado por diversas desesperanças, desafetos e desestruturas, ele deita triste num sofá branco que ecoa o caixão do seu amigo, anunciando seu fim submerso que se aproxima. Sem entender bem por que, causou a morte de um amigo e de seu principal sonho... E foi só no sonho que restou sua alegria.
Algumas décadas após “Alemanha, Ano Zero”, surge um suicídio infantil fruto de outro momento sócio-político desolador, que ainda mantém reverberações do pós-Guerra. Embora me recorde diretamente do trabalho do Rossellini pela semelhança trágica,
Ratcatcher se demonstra uma realização excepcional e original da Ramsay. Enquanto girava numa cortina cinematográfica, recebi um tapa na minha cabeça que marcou, que parece não passar.
Com apenas 2 elementos centrais (fogo e água), cria-se uma alquimia visual e metaforicamente preciosa. As 3 cores primárias são as mesmas presentes numa chama: amarelo, vermelho e azul. Ademais, o amarelo ecoa na areia da praia e o azul, no mar. As protagonistas transitam entre essas diferentes nuances da chama e do mar que elas emanam por meio de sua relação, mas também pelos usos primorosos de fotografia e mise-en-scène (onde se inclui figurino: Marianne-vermelho, Héloïse-azul, Sophie-amarelo). A água e o fogo (e suas cores) se relacionam de diferentes modos. Podemos exemplificar tal mistura rica no uso das telas: num momento a tela é molhada, noutro é queimada; uma pintura da Héloïse pega fogo literalmente, já noutra pintura, ela pega fogo ao entrar no mar (representando a perspectiva apaixonada de Marianne, que a viu se despindo pela primeira vez indo ao mar). Isto é, há antagonismo e também complementaridade entre todos os recursos escolhidos e, portanto, com pouco se faz muito. Na verdade, o filme é assim como um todo... O roteiro é como uma orquestra bem ritmada, com diálogos econômicos e potentes, dando ao silêncio entre as protagonistas a mesma importância das trocas verbais. E tal ritmo se deve à grande relevância dada ao olhar nas atuações e à montagem (ligando o passar dos dias quase de modo imperceptível pela tríade pintora-tela-modelo), de modo que a soma das cenas vai construindo um todo muito coerente e bem executado.
2. A arte viva, a memória viva Fica clara a homenagem feita, por meio da 7ª arte, às suas irmãs: a música, a pintura e a literatura. O longa explora a arte enquanto mediadora direta da construção de bons relacionamentos e na formação das memórias pessoais. Não existe hierarquia entre pintora- modelo, nem entre pessoa-obra de arte: é no contato simultâneo que a arte desabrocha e se traça enquanto algo pulsante. A literatura e a música ganham força quando mescladas com emoções e vivências. Ou seja, o filme passa a mensagem que a arte é influenciada e influencia a construção de relações pessoais potentes e cheias de sentido, pois é na correlação que a arte se revela vividamente. Aliás, a própria forma do filme reforça isso: acompanhamos quase que somente as memórias (afetivas) de Marianne, num flashback mediado pelas consequências de sua vida artística.
3. O aborto e outros nascimentos possíveis Do início ao fim, a independência das mulheres é bem demonstrada de diferentes modos (mesmo no limitante contexto do século XVIII). E o aborto, experiência que é vivenciada de modo particular pela mulher, surge como símbolo-chave de tal autonomia. No longa, Sophie está determinada a realizar seu aborto e o faz com ajuda de outras mulheres. A ambiguidade profunda do bebê interagindo com ela durante o ato é memorável, assim como a ambivalência da pintura feita posteriormente sobre esse momento, que parece um aborto e um nascimento ao mesmo tempo devido à pose congelada. Destarte, é como se a arte tivesse esse poder de reavaliar/reconstruir tal memória dolorosa, de forma que algo novo nasce daquele aborto. Além disso, vale destacar que tudo isso ocorre no ápice da paixão entre as protagonistas, já quando elas estão separadas (já sem o contato/suporte presencial), o filho de Héloïse nasce, fruto do casamento arranjado, mas também como um “atestado” daquele novo momento que elas vivem. Mas, para resgatar que o amor delas ainda perdura, há o detalhe da página 28 do livro. Mais uma vez, a arte reavalia/reconstrói momentos passados e circunstâncias desfavoráveis, dando espaço a novos nascimentos.
4. As mulheres Ainda, destaco que esse filme (majoritariamente feito por mulheres) dá uma bela aula sobre como construir personagens complexas, que representam um momento passado por uma ótica atual.
Por exemplo, todas as fases de uma paixão são representadas sem destacar diretamente o sexo, mas não por pudor ou censura, mas como escolha poética e política, visto que, dentro do contexto da obra, uma axila com erva se faz mais sensual do que uma cena que demonstrasse diretamente o ato da masturbação. Dessa maneira, fica difícil botar trechos desse filme no xvideos, servindo como subversão à lógica (masculina) de transformar tudo em pornografia. Então, novamente, o minimalismo de Retrato de uma Jovem em Chamas se mostra cirúrgico e original.
Por fim, minha memória vai guardar com carinho essa obra poderosa, como uma chama que vai e volta, muda de cor, mas perdura. Afinal, o longa em si mostra que é para isso que serve a arte.
Possui alguns méritos, mas também alguns problemas. Talvez, o principal limite dessa série seja que as 6 "catedrais" ficam localizadas em: Europa / Europa / Europa / Estados Unidos / Europa / Europa. O resto do mundo tinha muito a oferecer (e enriquecer) à proposta original, deixando os temas abordados menos repetitivos.
Tive uma experiência relativamente boa com esse filme, reconheci sua influência/impacto em obras que vieram posteriormente, bem como percebi características técnicas majoritariamente positivas nele. Finalizei-o com a vontade de realizar um comentário sobre um aspecto específico desse filme: o enredo. Um longa reflete certos determinantes sócio-políticos e culturais de sua época? Sim. Mas o olhar do espectador sobre a obra também, certo? Então, faço aqui um breve resgate a fim de explicitar como essa obra envelheceu tão mal para mim:
Uma mulher rica gera um conflito, porque quis casar com um homem que seu pai não concorda (e, portanto, a mantém privada de liberdade forçosamente num barco). Ela aparenta descontrole pela injustiça e foge, mas logo demonstra que não possui qualquer capacidade mínima de resolver os problemas e necessidades básicas que surgem. Revela-se, assim, o homem salvador, que pensa e decide por ela, controla e a alimenta, literalmente a carrega por onde e como deseja. Ela, por sua vez, age como um objeto absurdamente passivo e submisso (e ainda se sente grata, feliz e apaixonada ao estar nessa posição). E, teoricamente, ele faz tudo isso para “lucrar” com ela, mas logo acaba também se apaixonando ao assumir toda essa postura de domínio absoluto (só lembrando que ele cita em diferentes momentos que ela merece apanhar e isso é aceito com normalidade). Então, o “malandro” limpa sua alma pelo amor que começa a sentir, logo tudo o que diz ou faz se justifica. Ademais, no decorrer da trama, ela é rasa e previsível (por ser rica e, principalmente, por ser mulher), já ele nos surpreende com suas falas e ações. No fim, ela sai da postura passiva e decide por conta própria voltar ao pai e ao marido (agora indesejado), por raiva de achar que o protagonista não a quer. Mas há um último problema: o pai nunca gostou do marido inicial e vai atrás de conversar com o homem salvador até descobrir que esse sim ele gosta (ao se espelhar em suas características). Aí o pai articula tudo, diz o que a filha deveria fazer e, desse modo, ela aceita e toma a decisão de ficar com o homem que está apaixonada de verdade. O final perfeito se concretiza: ela pode casar com o malandro honesto.
Poderia detalhar mais essa análise (enriquecendo de exemplos e comparações com outras obras), mas acho que isso é minimamente suficiente para demonstrar como minha experiência de comédia e “química entre personagens” foi sendo minada aos poucos no decorrer desse longa. Compreendo que tudo isso era historicamente construído como natural há 85 anos, mas me impressiona que tantas pessoas consigam ver isso tudo com leveza e total simpatia no século XXI. Enfim, ver essa obra me faz pensar como desejo que “aquela noite” deixe cada vez mais de acontecer daqui em diante.
1. Jeans: Deus e o Diabo na terra do sol Fordismo neoliberal e periférico: a hora e a vez do microempreendedorismo individual. Nessa mensagem, o longa acerta demais na sua condução, tornando-se importante na representação das consequências atuais do capitalismo.
A precarização chega com facilidade em locais como Toritama, em que o “viver de produção” traz novas oportunidades de sobrevivência e desperta sonhos opacos de riqueza. O jeans se torna a nova salvação para conseguir “ser bem-sucedido” num local que historicamente vivia da agricultura familiar, mas com condições materiais desfavoráveis e ausência de suporte governamental. O jeans se torna o inferno: ter autonomia para trabalhar “como quiser”, mas ser engolido compulsivamente pela lógica de jornadas de mais de 12h/dia, que são resumidas em repetições mecânicas com condições insalubres de trabalho. Isto é, precariedade e exploração disfarçadas de autonomia. O jeans é como uma praga, tudo alcança (e muda): ambientes, relações sociais, modos de vida, o passado e o futuro. Nesse cenário, tal microempreendedorismo individual surge como um sonho lindo, sintetizado num ouro tardio e azulado para o sertão.
2. Sobre (im)parcialidade e relações pessoa-ambiente É muito bom ver Marcelo Gomes deixar mais que explícito que a obra se trata de um viés pessoal sobre as questões que aborda, o que nega a priori o pressuposto ingênuo e falso que um documentário serve pra transmitir uma verdade, uma realidade. Não necessariamente o longa serve para validar o que seria consenso na cidade sobre determinados assuntos... É uma produção de alguém de fora, as pessoas possuem voz, mas a interpretação sobre isso fica por conta dele. Sua proposta se baseia no choque entre uma Toritama individual, remota, saudosista x Toritama “industrial” estranha às suas memórias. É uma resposta para a seguinte pergunta: o que aconteceu com aqueles lugares que eu guardava aqui como parte de minha identidade, de minha memória afetiva? A partir disso, acertos e erros existem. Muito mais acertos do que erros, na verdade. É passada a ideia de que tradições e modos de vida estão sendo esquecidos, é realmente ruim ver que as pessoas simplesmente vão se descolando totalmente das relações que possuíam com sua própria terra, seu céu, seu lar. Nesse sentido, tudo ok com a narrativa proposta, mas também acredito que em alguns momentos o filme “pesa a mão” na nostalgia, trazendo uma visão precipitada que estimula uma dicotomia tradição x momento atual. Como se antigamente houvesse um sertão “puro” e agora as coisas estão somente piorando... Muita coisa desinteressante tem acontecido lá, mas nem todas as mudanças são necessariamente negativas, até porque havia também desigualdades e problemas sociais antes. Toritama do século XXI é uma consequência direta de tudo aquilo que a cidade oferecia e não oferecia, as coisas se mesclam. Só para dar um exemplo, num momento a montagem induz a pensar que o rap que agora faz parte do cotidiano de jovens seria um contraponto à calmaria e melancolia que suas memórias/sentimentos traziam ao lembrar dos ambientes que vivenciou em décadas passadas. Ou seja, uma maior complexificação do discurso produzido pelo autor poderia potencializar ainda mais a obra, sem passar a impressão ocasional de conservadorismo descontextualizado.
3. A propaganda, o carnaval e o tempo Ressalto novamente que o parasitismo desse modo de produção consome também a forma como as pessoas se relacionam com seus lugares. Todo espaço (familiar ou comercial) existente vai se transformando numa mini fábrica, de modo que a monotonia e massificação engolem simultaneamente possibilidades de vida e ambientes. E, paralelamente, a relação temporal das pessoas também vai sendo devorado e padronizado. Para mim, os 2 momentos que melhor resumem as consequências disso estão no início e no fim do filme. A sequência inicial de pessoas artificializadas (nos outdoors) cobrindo a paisagem do sertão é muito simbólica: o horizonte natural que existe ali é sobreposto/apropriado por blocos de publicidade de pessoas estrangeiras àquele local e que representam idealizações de consumo. É uma metáfora para o modo como boa parte da população tem se relacionado com sua terra. E, no fim, revela-se que o momento de respiro e lazer àquilo tudo seria o carnaval, que necessariamente não se encontra na cidade dessas pessoas. Ironicamente, até objetos do próprio lar precisam ser desfeitos a fim de atingir esse ideal efêmero de diversão. Portanto, tomada de espaços (des)caracterizados para um único propósito, Toritama “tem como nome trabalho e apelido, hora extra”, mas não supre sequer necessidades básicas da população. Ademais, Toritama não parece ter passado nem futuro, Toritama virou apenas o presente.
É uma obra importante: consegue resgatar diversos traços de nossa produção audiovisual que explicam o Brasil dos séculos XX e XXI.
Tendo a mulher-objeto enquanto meio (e fim) de suas tramas, o cinema erótico-popular do período ditatorial se mostra muito revelador. A pornochanchada é simultaneamente produto e fábrica de representações presentes na sociedade brasileira. Com a montagem cirúrgica e irônica, o longa intensifica/reconstrói os significados e discursos dessas produções, as quais são um terreno fértil que simboliza abertamente, por meio do entretenimento, todos os desejos de opressão do homem (de bem).
A edição genial desse cinema popular (mas atualmente marginal) é certeira por mostrar um tom de delírio machista carnavalesco, em que a violência, o consumo exacerbado e a moral hipócrita se misturam com racismo, classismo e neoimperialismo. E o filme mostra que, paradoxalmente, também havia um pouco de espaço nessas peças para críticas e sátiras das regras sociais e leis presentes na ditadura, o que ratifica a relevância do resgate realizado pela diretora.
"Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava" me ensinou mais sobre meu país. Todas as estruturas do Brasil que é capaz de produzir tudo isso enquanto lazer popular continuam presentes, pois as pessoas que se divertiam com esses longas-metragens continuam ocupando (e gerindo) os espaços de opinião pública. A memória social desse cinema vive.
Também vivemos outro momento, pelo menos há mais possibilidades de resistir e tensionar certos discursos mais limitantes de vida... Mas é sempre bom lembrar que a lógica "merda de democracia em que até puta quer ter direitos" permanece muito atual, assim como todas as várias "sombras" de ânsia por dominação e desigualdade social destacadas na obra.
Afinal, quantos "Brasis" possíveis não existem (ainda) devido às reverberações desse Brasil da pornochanchada?
Sublimação por meio da arte em sua melhor forma, recheada de metalinguagens bem construídas. Dá pra perceber que as cores de Almodóvar não são as mesmas durante toda a vida (e isso é ótimo).
Um filme que se constrói por meio das relações e tensões explícitas e se engrandece nos detalhes e metáforas. Diferente do que (ainda) é recorrente no cinema coreano, Parasita consegue de fato criticar e fomentar uma discussão aprofundada das consequências das desigualdades sociais existentes lá. E ele não traz um olhar moral limitado de “bem x mal” ou “aqui se paga, aqui se faz” que também é comum nas produções do país.
O longa traz situações que explicitam a interdependência (e a inconciliabilidade) entre as diferentes posições sociais, de modo a pôr em xeque em diferentes momentos de fato quem seria parasita de quem. Tudo isso por meio de um roteiro original e inventivo e de uma execução excelente.
O filme traz algumas pinceladas de idealização a respeito de ricos “inocentes” e bem feitores, o que me incomodou em alguns momentos. Por exemplo, a mulher da família abastada é sempre inocente e facilmente ludibriável (pelas pessoas “má intencionadas”). Já na cena da festa é projetada uma reunião harmônica e repleta de pessoas felizes e amigáveis, dando a impressão que somente algo externo mudaria o “destino” áureo daquelas pessoas... Mas também há destaque para outros aspectos dessas pessoas privilegiadas, o filme vai apresentando camadas de complexidade. E, por fim, revela-se ao espectador que as pessoas pobres não alcançam de fato a desejada ascensão social, que se atinge somente por situações efêmeras ou por frágeis sonhos e promessas, o que realça um tom mais realista à obra.
O Auto da Compadecida
4.3 2,3K Assista AgoraDesde maio/21, deixei de atualizar essa conta do Filmow. Caso queira me seguir, estou no Letterboxd com perfil de nome "PluriCine / Daniel Corcino".
Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental
3.6 60Se você curtiu a segunda parte desse filme, recomendo conhecer a instalação "Educação para adultos" (2010), do artista alagoano Jonathas de Andrade.
Caixa de Recordações
4.1 22Este belo filme está disponível gratuitamente no streaming do Sesc Digital até 20/02/2021:
https:// sesc.digital/conteudo/ cinema-e-video/ cinema-em-casa-com-sesc/ retablo
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Sete Anos em Maio
4.1 101. Affonso Uchôa: não mais uma promessa, uma realidade
Ao assistir A Vizinhança do Tigre (2014), logo pensei na inovação importante que aquele filme representava à representação da juventude periférica brasileira. Recordei do longa Baronesa (2017, Dir.: Juliana Antunes), que tinha assistido anteriormente e que fazia uma espécie de “duologia da ausência” ao lado desse primeiro filme do Uchôa. Fiquei pensando o quão promissor poderia ser aquele cineasta...
Ao entrar em contato com Arábia (2017, codirigido por João Dumans), pude notar ainda mais a inventividade estética e política que tal filme significava. Nessa grande obra, percebi o que significa cinema de qualidade feito por gente da periferia sobre a periferia. Ali, há as dores de uma pessoa em situação de vulnerabilidade e falta de oportunidades imerso nesse capitalismo neoliberal, e também todo o seu poder de reflexão e potência. Aliás, como já escrevi, Arábia lembra-me uma espécie de “Ladrões de Bicicletas brasileiro” (a “crise do pós-Guerra” é o cotidiano de sempre da periferia no Brasil).
Agora, conhecendo seu último trabalho, Sete Anos em Maio (2019) me faz lembrar de... Sete Anos em Maio. Me lembra Affonso Uchôa.
Acredito que isso significa que apenas com 2 longas e 1 média, esse cineasta já conseguiu consolidar sua própria autoria, numa linguagem cinematográfica única. É possível perceber que, como roteirista e diretor, ele já é muito consciente, sabendo exatamente onde quer chegar com cada um de seus filmes. Ao ponto de criar uma consistência, em que cada obra de sua filmografia vai se complementando, construindo assim uma filmografia de um hibridismo extraordinário e original entre documentário e ficção.
Abaixo, teço comentários e argumentos sobre a sua (excelente) última realização, enquanto faço algumas ligações sobre o que acho do seu cinema.
2. A radicalidade do lugar de fala periférico
Em torno de 40 minutos preciosos, vemos uma construção originalíssima em cinco partes: 1) a caminhada no escuro; 2) a simulação do crime; 3) o relato; 4) o diálogo; e 5) o jogo da morte. Falarei mais adiante sobre a primeira cena, pois faz mais sentido quando unimos o início com os últimos minutos da obra.
Assim sendo, vamos à 2ª parte da simulação da violência policial que acompanhamos. Nesse trecho, tudo parece meio estranho, até que percebemos posteriormente a inventividade formal dessa cena. Historicamente, vemos as perspectivas de pessoas ricas (ou de classe média) sobre o que seriam as pessoas pobres. Não vou detalhar os estereótipos construídos e reproduzidos no cinema brasileiro a esse respeito (já fiz isso recentemente em minha crítica sobre o filme O Homem que Virou Suco), apenas afirmo aqui que essa obra rompe radicalmente todos eles.
Para reproduzir a violência sofrida por Rafael dos Santos Rocha, há o uso de pessoas da periferia de Contagem (MG), os quais podem interpretar o que significa simular a posição dos policiais corrompidos ao mesmo tempo em que se divertem ao ocupar o papel de atores. Nisso, existe essa mescla muito interessante entre documentário e ficção, que retoma o trabalho realizado em A Vizinhança do Tigre.
Destarte, há aqui uma radicalidade da reivindicação do lugar de fala do protagonista (que é periférico), o que representa uma desobediência estética à reprodução das imagens tão repetidas da pessoa de periferia sendo violentada. Abro um parêntese: falo de “radical” não como algo extremo ou exagerado, mas sim daquilo que é relativo à raiz, à origem ou ao fundamento de alguma coisa.
Então, se é para repetir imageticamente essa agressão, que haja algo de construtivo nisso... E, assim, aquilo que a princípio parece esquisito (falso até), revela-se uma escolha (política) muito inteligente. Pois não se trata de “dar voz ao pobre”, é usar da voz dessas pessoas para reconstruir uma tradição simbólica.
E isso é algo que já existe nos dois primeiros filmes desse diretor, contudo que só consegui perceber com mais nitidez em Sete Anos em Maio. Daqui em diante, vou defender a tese de que tal radicalidade estrutura Sete Anos em Maio (e a filmografia do Uchôa como um todo).
3. Um olhar cheio, um olhar vazio
Em duração, o relato do Rafael (3ª parte) é a parte mais longa de Sete Anos em Maio. E isso se justifica pela riqueza de detalhes e a forma como sua vivência é transposta de forma dolorosamente real em tela. Nisso, é possível perceber que mais uma vez há a inovação de deixar a cena fixa num primeiro plano fixo e contínuo, pois não importa simular em imagens aquele trauma enorme, apenas a força de sua fala (e de seu olhar vazio/cheio) é o suficiente. Não há floreios, apenas palavras que machucam, uma imagem sóbria da violência.
Novamente, percebemos que, naquilo que há de documental na obra, não se faz necessário repetir estatísticas que explicitam como pessoas pobres e negras são tratadas como inferiores no Brasil. Estamos em 2020, dados quantitativos dão um quadro consistente acerca da proporção desses processos de exclusão, mas não são capazes de qualificar a experiência de dor e sofrimento subjetivo. Nessa obra, há o espaço para inovação estética a partir vivência crua e direta do que esses dados alarmantes (e tristemente repetidos) tanto apontam.
Para melhor explicar, vou me valer de uma breve comparação. Embora seja um ótimo filme, em Praça Paris (2018), Lúcia Murat tenta meio que se redimir usando cenas de violência de pessoas da favela como apenas fruto da imaginação de uma mulher branca e racista, em contraponto ao que existe muito na nossa cinematografia, inclusive no próprio Quase Dois Irmãos (2004) dessa cineasta... Com Uchôa, não há o que redimir, trata-se da reinvenção desse imaginário, mudado pela raiz desde o início. Dessa forma, apenas a fala do protagonista e sua imagem em primeiro plano já é o bastante para representar exatamente aquilo que está querendo ser passado.
4. Diálogo: o corte é profundo, o trauma é coletivo
A construção melhora quando percebemos o salto simbólico existente na 4ª parte do média-metragem. A radicalidade do lugar de fala continua: aquele relato não estava sendo dito para o espectador (que provavelmente é branco e ocupa um lugar de privilégio, dada a desigualdade de acesso à cultura no Brasil). Ele está sendo dito para ser ouvido e dialogado entre iguais.
Portanto, é no diálogo que aquele trauma individual se torna algo estrutural e histórico para grande parcela dos brasileiros. Isto é, são milhões de “já passei por tanta coisa, que toda história que ouço parece a minha”, de “a sua [história] é diferente?” seguido de “não, é igual a sua”. Esse tipo de relação particular-universal das desigualdades sociais brasileiras já é muito bem construído em Arábia (2017) e se repete aqui.
Se muitas pessoas podem escutar rap para ver sua realidade sendo representada por meio da arte, a filmografia de Uchôa comunica que elas podem também sentir diretamente retratos de suas vidas por meio da 7ª arte. Esses filmes mostram que espaço do cinema (de alto nível) é sim para todos, deve pertencer a todos. Essa ideia está inclusive na coletivização que ele faz em suas obras, sempre ao lado de muitas pessoas que não são (ainda) do cinema, aspecto que destacarei no tópico final.
5. Brincando de genocídio
Os caminhos que Rafael passa são o vício por drogas, o tráfico, a penitenciária, a rua, sempre com o trauma do rosto sanguinário da polícia em sua mente, mesmo depois de toda a tempestade ter diminuído. Se todo o genocídio da população negra é muito bem resumido nessa história, o fim da obra faz questão de usar uma metáfora rica a partir da brincadeira inocente de “morto vivo”, para passar de um modo inédito o que representa a atuação dessa instituição para as pessoas da periferia. Simplesmente doloroso e inesquecível.
O simbolismo é tão original quanto forte, porque para milhões de cidadãos, é exatamente isso que é o nosso Estado: uma máquina indiferente de matar corpos. Ainda, tal brincadeira lembra inclusive que desde a infância esses sujeitos precisam viver tal realidade de ausência de oportunidades e perdas afetivas. Não vou tratar de forma alongada sobre isso, cito apenas que tal cena ficará guardada para mim como uma síntese visual da necropolítica (conceito cunhado pelo Achille Mbembe).
Também destaco que, por a trama se passar em MG, não tive como não lembrar do Hospital Psiquiátrico de Barbacena, conhecido também como o local responsável pelo “holocausto brasileiro”, em que cerca de 60 mil pessoas morreram nas mãos do Estado. O hospício foi praticamente o único caminho “destinado” aos corpos negros e periféricos que Rafael não conheceu em sua fatídica jornada, mas poderia muito bem ter parado lá (e nunca mais ter voltado).
6 – Noite duradoura
Falando em ausências e pilhas de mortos pelo Estado... Chego à última camada que quero comentar. Vou falar da primeira cena, unindo-a com o fim da obra e a fotografia. A princípio, achamos que as cenas que acompanhamos se passam literalmente à noite, entretanto o campo de significado criado a partir do diálogo existente na trama reconstrói tudo que estamos assistindo até então.
A má iluminação pública de Contagem, com seu tom amarelado, mesclada o tempo todo com blocos de escuridão e chamas é transformada no próprio mundo subjetivo do protagonista. Aquilo que o ilumina, é insuficiente ou precisa consumir algo para continuar aceso. Como é dito num momento, a vida dele, que é a de muitos, envolve-se de uma pilha histórica de mortos. Pilha essa que se acumulou ao ponto de tomar a claridade que existia no céu. Trata-se de viver numa noite duradoura, num luto recorrente.
A cena inicial da caminhada no escuro é ao mesmo tempo literal e metafórica. Poderia ser de dia, inclusive; algum carro poderia passar subitamente por cima dele, também. Essa fragilidade e rispidez do ambiente representa a ferida profunda que carrega. Assim como ocorre com o momento final, quando Rocha recusa a morrer na cena, com seu corpo diminuído no plano geral e envolto na escuridão do horizonte citadino. Mais uma vez, as cores e a iluminação indicam essa situação desgastante e diminuída em que se encontra a subjetividade dele.
Então, tudo no mundo do Rafael é esse jogo barroco de claro-escuro. Um jogo de luz forjado radicalmente no ambiente a que pertence, sem nenhum artifício a mais para embelezar as imagens. Até nisso, a obra vai à radicalidade proposta, o que nos faz pensar que esse filme possui uma unidade muito rica e completa entre forma e conteúdo.
7 – Memória social e transformação
Chegando ao fim desse escrito, vale ressaltar que é injusto eu repetir tanto o nome do Affonso sem reforçar que sua filmografia é extremamente coletivizada, o que se exemplifica não só nas parcerias com Aristides de Souza e João Dumans, como também das muitas pessoas que protagonizam seus longas, feitos por atores não profissionais. Logo, o impacto social e político desse cinema é visto das próprias obras. E, assim sendo, não há separação explícita entre ficção e documentário, como citei.
Todo filme é uma obra coletiva, mas nessa filmografia isso é levado a outro nível, pois transforma a vida de pessoas comuns (dentro e fora das obras) ao realocá-las como protagonistas reais de histórias pertinentes aos grupos sociais que historicamente não controlam os meios de produção cinematográfica. E esse tipo de arte ajuda exatamente na produção do não esquecimento, na construção ativa de nossa memória social. Como é dito na obra, esquecer certas atrocidades ou violências existentes seria como completar o serviço de quem atua amolando a faca das estruturas racistas e genocidas do Brasil.
Quanto mais referências se tem, maiores são as possibilidades de uma pessoa realizar conexões com a realidade que nos rodeia. E isso é importante para podermos criticar/agir em direção ao que consideramos potente ou incorreto. Ou seja, essa filmografia é feita para produzir, pela arte, um diálogo entre essas pessoas (comuns) retratadas, para buscarmos uma mudança social efetiva diante dessa realidade corrosiva e revoltante. É um cinema que acredita que, apesar de tudo, “não tem noite que dure para sempre”.
8 – É só o começo
Portanto, será que Uchôa não merece tanta atenção do público brasileiro quanto outros diretores iniciantes estrangeiros? Nomes como Ari Aster, Robert Eggers, Damien Chazelle merecem respeito, mas... Com muito menos dinheiro, Affonso tem produzido verdadeiras obras-primas, com dramas que nos deixam diretamente tocados com o terror que o Brasil significa para boa parte de nosso povo. Sem precisar se ancorar em pirotecnia ou espetacularização de nada... Nesse sentido, a experiência de seus filmes me lembra Belchior: “A minha alucinação / É suportar o dia-a-dia / E meu delírio / É a experiência / Com coisas reais”.
Temos o nosso grande cineasta em início de carreira, falando sobre nossas questões sem nenhuma maquiagem, reinventando o real e o imaginário pela 7ª arte. Caso não o conheça ou não tenha visto alguma das suas 3 primeiras obras, convido você a conhecer seu trabalho. Sua filmografia pode ser alugada por preços acessíveis no site da distribuidora Embaúba Filmes (A Vizinhança do Tigre também está disponível na plataforma MUBI).
Depois de tudo isso, concluo dizendo que não me surpreenderá vê-lo alcançar o mesmo patamar de reconhecimento que o Kleber Mendonça Filho conseguiu nos anos recentes. Não só em festivais (onde ele e seus parceiros já estão sendo reconhecidos), mas principalmente do público geral. Assim espero que aconteça: de Contagem para o mundo, de Contagem para todo mundo.
O Menino e o Mundo
4.3 735 Assista AgoraO Menino e o Mundo (2013, Dir.: Alê Abreu) é uma obra-prima que foge do lugar-comum (em diversos níveis) e também abre espaço para a discussão de muitos temas importantes e complexos. Neste texto, irei demonstrar um pouco a riqueza dessa animação a partir de alguns conceitos da Psicologia Ambiental e também da discussão sobre Imperialismo Ecológico e sustentabilidade no capitalismo.
1. Affordance
Em resumo, o filme trata de um garoto que mora no campo com sua família, mas após a partida de seu pai pela falta de trabalho, ele decide ir atrás dele e descobre a dinâmica de exploração e desigualdade da sociedade em que está inserido.
Em diversos momentos, a animação revela o conceito affordance (da psicologia ambiental ecológica), trabalhado por James Gibson. Affordance é a interação pessoa-ambiente existente por meio das possibilidades funcionais de um objeto, que define sua utilidade para cada um. Ou seja, quando eu vejo uma cadeira num consultório médico ou uma mesa num parque, pensarei num número limitado de possibilidades de interagir com aquele objeto a partir do que ele me comunica num ambiente.
No filme, mostra-se claramente que quase todos os adultos estão presos ao sistema capitalista, de modo que são forçados a exercer comportamentos repetitivos e sem inovação a respeito dos ambientes e objetos que estão em contato diariamente. Contudo, o Menino, principalmente quando no campo, consegue produzir múltiplas possibilidades com as cores e elementos que existem. Na cena inicial, a natureza aparece para ele com objetos que ele corre, mergulha, desliza, escala, anda, contempla. Isto é, as possibilidades funcionais estão presentes nos objetos e ele percebe isso, relacionando-se de modo variado e criativo com esses objetos. Outro exemplo possível de pontuar em relação a isso é quando o Menino transforma caroços de feijão e arroz em flores durante uma refeição.
Além disso, o grupo de pessoas que toca os instrumentos em diferentes momentos da trama também vê num pedaço de metal, por exemplo, algo que pode criar diversas melodias e cores. Esse grupo também utiliza penas, varetas, diversos tecidos e outros materiais para criar modos de se vestir autênticos, também vendo nos componentes não humanos diferentes funções e possibilidades. Já os trabalhadores são praticamente forçados a ver num objeto algo com uma única finalidade. Portanto, há a padronização e planificação nas possibilidades de objetos existentes na cidade industrializada e voltada ao capital, pois em muitos momentos é possível perceber os objetos e pessoas como um bloco uniforme e repetitivo. Assim, o ser humano reduz a si mesmo na medida que reduz suas possibilidades de interação com os objetos, tornando-os estritamente funcionais.
Na verdade, a forma como o próprio filme é realizado pode ser relacionado com affordance. Há inúmeros materiais utilizados de modo criativo para produzir os elementos da animação (indo muito além da programação em softwares 3D), de modo a revelar essa relação existente pessoa-ambiente e as potências funcionais que se revelam entre os dois.
2. Behavior settings
Ademais, esses padrões comportamentais citados anteriormente chamam a atenção para os behavior settings, conceito cunhado por Roger Barker que é a unidade básica da psicologia ambiental ecológica. Esse conceito diz respeito à interdependência pessoa-ambiente correspondente a padrões estáveis de comportamento que ocorrem em tempo e espaço determinados. Trata-se de um sistema limitado, autorregulado e ordenado que caracteriza o programa do setting, o qual é uma sequência prescrita de interações entre comportamento humano e não-humano. Além disso, parte-se da noção de que é mais fácil prever o comportamento dos indivíduos por meio do programa do setting em que estão inseridos do que analisando o indivíduo isoladamente.
Para exemplificar, quando um grupo está unido numa sala de aula, ou num cinema, ou numa festa de família, podemos prever mais facilmente o comportamento de cada pessoa quando inserida nesse ambiente do que analisando-a isoladamente. Assim, situações cotidianas relacionadas a ambientes físicos específicos formam espécies de “programas”, em que todos os indivíduos participantes seguem e reproduzem. Afinal, não se espera que um aluno fique com roupa de praia numa aula ou que alguém vá fazer um exercício de física num cinema.
Voltando ao longa, percebemos que a rotina dos trabalhadores mostra claramente que há programas bem definidos e delimitados. Padrões são percebidos facilmente e de fato é possível prever os comportamentos. Aos 21 minutos de filme, há a cena do pessoal que trabalha para a fábrica de tecido: os comportamentos dos sujeitos em relação ao seu ambiente são previsíveis e ocorrem nessa inter-relação direta pessoa-ambiente. O modo como cada um interage com os algodoeiros e os algodões depende exatamente de sua relação na escala de trabalho, de modo que isso acarreta na disposição comportamental padronizada em relação ao espaço e ao tempo. A vida na cidade também denota a ideia de programas que são seguidos cotidianamente por inúmeros indivíduos, o que também fica marcado em algumas cenas. Por exemplo, quando o amigo do Menino pega o ônibus e chega a sua casa, comendo o mesmo produto e assistindo TV até dormir, a animação passa a ideia de que esse programa é repetido muitas vezes por ele e também pelos outros que estavam em seu ônibus.
Entretanto, é necessário problematizar esses comportamentos previsíveis, uma vez que esses programas não devem ser vistos como algo universal ou natural, invariável de cultura para cultura. O filme mostra de forma muito bem construída como existe uma lógica de exploração extrema pelo sistema capitalista, que afeta diretamente tanto a maioria dos seres humanos quanto o meio ambiente. De modo que os behavior settings existentes no filme não são fruto de uma relação homem-ambiente neutra, mas sim de uma relação construída historicamente e atravessada por interesses intrínsecos ao sistema produtivo atual. O processo de alienação do trabalhador ocasiona indiretamente na sua forma de interagir limitadamente com os objetos e ambientes, uma vez que essas pessoas realizam seus trabalhos mediados pela não detenção dos meios de produção (o que ocasiona o que Marx chama de ruptura metabólica).
Em filmes como O Sangue do Condor (1969, Dir.: Jorge Sanjinés), A Revolução dos Cocos (1999, Dir.: Dom Rotheroe) ou Bacurau (2019, Dir.: Juliano Dornelles & Kleber Mendonça Filho), nota-se que o modo como uma comunidade pode agir de forma muito mais ativa e apropriada de sua realidade, transformado e sendo transformado direta e conscientemente pela relação direta pessoa-ambiente. Na animação, por sua vez, isso quase não existe. Um artifício muito inteligente presente nela é o uso de colagens para tudo que se refere à propaganda, passando a ideia de que os traços e cores originais dos criadores não cabem ao produto artificial, fruto dessa exploração do trabalho.
3. Imperialismo Ecológico e Sustentabilidade
Também há uma cena específica que mostra claramente a discussão sobre imperialismo ecológico (levantada por John Foster e Brett Clark). As matérias primas são levadas para os países isolados, “organizados” e ricos, enquanto a periferia (caótica e cinza) do capitalismo recebe de volta produtos industrializados, seus dejetos e consequências, como vulnerabilidade socioambiental, destruição gradativa dos ecossistemas e acesso desigual aos recursos produzidos, etc. E isso diz respeito também a outro assunto que perpassa o longa, a sustentabilidade.
O filme mostra como não é possível resolver a questão ambiental por meio da ideia do desenvolvimento sustentável clássica, que diz respeito a existir o equilíbrio entre crescimento econômico, progresso social e manutenção dos recursos. O Menino anda por esse mundo desigual, de modo a não existir espaço para uma responsabilidade igualitária e neutra para todos no que diz respeito aos danos causados ao ambiente. Na lógica capitalista, também se torna difícil a existência de muitas pessoas com comportamento pró-ecológico.
Dessa forma, uma aposta em “consciências éticas e sustentáveis” não é suficiente nesse sistema: o problema é social e político, logo não cabe a responsabilização dos indivíduos isoladamente. Faz-se necessário buscar a educação emancipatória, que exige transformação social e tensão das bases de reprodução da questão ambiental. Assim, aos poucos, por meio da reflexão crítica e ações de cunho social e ecológico, constroem-se cada vez mais novos modos de relação pessoa-pessoa, pessoa-ambiente e pessoa-sociedade-ambiente.
Aliás, uma das mensagens mais importantes que a animação traz diz respeito ao “espírito” de mudança/resistência que surge de uma relação mais harmônica, igualitária e criativa com os objetos e o ambiente, que é personificado pelas pessoas que tocam os instrumentos em grupo. Portanto, O Menino e o Mundo é um filme riquíssimo e as discussões que ele levanta não acabam nesse texto, sendo sempre válido revisitá-lo a fim de descobrir novos detalhes e nuances para refletir as temáticas que despertam em cada espectador.
O Homem que Virou Suco
4.1 185O Homem que virou suco é uma obra-prima do cinema, pois, além de possuir inúmeros méritos formais e narrativos, consegue ser um filme que resume a vida de milhões de brasileiros usando uma mescla entre drama realista e humor ácido. Neste texto, explico um pouco os motivos para considerá-lo um feito tão importante me utilizando dos valiosos pensamentos de Milton Santos e da questão do estereótipo do povo pobre na 7ª arte.
1. O “não” libertador
Ao ler o livro O Espaço do Cidadão (1987) de Milton Santos, um dos maiores pensadores que o nosso país possui, encontrei-me com o seguinte parágrafo:
“A Busca, pelo indivíduo, do futuro, e a libertação dos grilhões que o amarram e o tornam obediente a uma realidade cruel somente se alcançam pela negatividade, tal como Bachelard, Sartre e Schopenhauer haviam exposto. Dizer não é mostrar-se plenamente vivo e portador de uma existência ativa, é recuperar os poderes perdidos e levantar-se sobre os próprios escombros, reaprendendo a liberdade”.
Essa filosofia (revolucionária) sobre o ser humano está presente também em muitos outros autores (que possuem seus pontos de encontro e desencontro). Para citar alguns, consigo lembrar também do pensamento (antirrascista) de Frantz Fanon e do absurdismo de Albert Camus, que possui a célebre paráfrase à máxima de Descartes: “eu me revolto, portanto existo”.
Essa citação me fez lembrar do personagem paraibano Deraldo em O Homem que virou Suco. Ele não só representaria uma pessoa que exerce a libertação dos grilhões proveniente da negação a uma realidade opressiva à existência plena, mas o faz pelo deboche e pela ironia.
2. Toda desigualdade é socioespacial
No longa, acompanhamos a história desse nordestino que vem a São Paulo para tentar sobreviver de sua arte. A história de Deraldo é a de milhões de brasileiros... Um cidadão empobrecido, sem oportunidades (e sem terra produtiva) para exercer sua existência plenamente e garantir seus direitos básicos, que decide se arriscar migrando à cidade devido à situação de profunda desigualdade social em que se encontra.
E essa situação também me lembrou Milton Santos. Recuperando seu pensamento de modo breve, entendemos que não podemos pensar desigualdade social sem “espacializar” as desigualdades. Isto é, toda desigualdade é espacial, porque são nos territórios concretos que vemos todas as injustiças de uma sociedade expressas materialmente.
Isso significar dizer, pensando o Brasil, que os latifúndios acumulados no campo, o “quartinho de empregada”, as periferias, os condomínios de luxo, o esvaziamento do uso dos espaços públicos e os sem-teto são produto de um mesmo processo. Processo esse que tem relação direta com nossa história colonial e escravocrata, assim como com o papel geopolítico que o país possui em relação aos países “desenvolvidos” em diferentes períodos do capitalismo, dentre muitas outras variáveis.
Ademais, se houve um processo migratório massivo no Brasil, isso não se deu por mera vontade individual de pessoas se desenraizarem subjetiva e fisicamente. Mas, foi fruto de múltiplas variáveis, que englobam, inclusive, a adoção de um modelo econômico e de um Estado que centraliza o capital (nacional e estrangeiro) em áreas específicas do país, como o Sudeste, atendendo a necessidade de crescimento do próprio capital em áreas já previamente valorizadas.
3. Os caminhos de um não-cidadão migrante
Nesse sentido, o filme realiza a síntese dos caminhos possíveis para um “não-cidadão” migrante, geralmente considerado “resto social” dentro da lógica capitalista. Deraldo literalmente não é um cidadão, pois nem possuía um documento que comprovasse sua existência. Ao chegar à megalópole, tal pessoa vai morar na favela, depois precisa dormir na rua, ou em albergues “beneficentes” para pessoas em situação de rua.
Além disso, o filme é de uma acidez ímpar e isso apresenta de forma explícita e implícita. Deraldo tem de fugir da polícia devido ao recurso irônico utilizado na narrativa: o protagonista parece com outro “paraíba” que foi acusado de um crime bem icônico. O que reforça a ideia de que ele não é ninguém naquela cidade moedora de gente, não possui o status de cidadão.
No longa, também acompanhamos que viver de sua poesia não é possível, o espaço público não o “deseja”, logo ele vai passando por alguns trabalhos que seriam viáveis a alguém em suas condições, todos são informais e mal remunerados. Por meio de uma personagem mulher, também vemos outro caminho possível: a prostituição.
Todavia, ele diz “não” às explorações que o impõem em cada novo local de trabalho e essa pessoa que “mostra-se plenamente vivo e portador de uma existência ativa” acaba por ser caçado e negado de toda forma dentro desses ambientes. O filme também mostra que outros destinos factíveis a esse ser “revoltado” também seriam cercear sua circulação e liberdade (pelo hospício ou prisão). O motivo é simples de entender ao lembrar dos trabalhos de Michel Foucault ou Erwing Goffman: essas instituições totais são geralmente responsáveis pelo apagamento subjetivo de quem ali é jogado.
4. O “não” libertador aos estereótipos da pessoa em situação de pobreza
No artigo Apologia da relação cinema-história (1995), Jorge Nóvoa afirma que “a realidade-ficção do cinema promove leituras e interpretações das camadas sociais que, direta ou indiretamente, controlam os meios de produção cinematográfica”.
Sabendo disso, consigo perceber que, historicamente, os pobres são tratados em diferentes meios (por gente rica) como imundos, muito carentes, moralmente inferiores, desprovidos de inteligência, ameaças à “ordem” social, dentre outros mitos. E tal visão distorcida também está muito presente no cinema (até hoje), mas não se limita apenas a ele.
Mais uma vez, “espacializando” tal debate ao contexto brasileiro, percebemos que, assim como a população negra, os nordestinos migrantes também são encaixados como grupo social que seria uma espécie de materialização desses estereótipos de “gente pobre”. A ironia é que os nordestinos (muitos deles negros também) foram quem efetivamente construíram e habitaram muitas cidades desse país, sendo os exemplos de Brasília e São Paulo os mais ilustres.
E, portanto, O Homem que virou suco reaprende a liberdade simbólica da imagem ao não se valer do estereótipo da pessoa pobre que sofre passivamente diante das desigualdades socioespaciais do seu país.
Pelo contrário, tal pessoa encara de frente toda essa lógica que tenta o eliminar. Para isso, a obra também se vale do símbolo do cangaceiro, para reinterpretar como aquele personagem seria visto a partir de um olhar paulistano, dando um traço de ambiguidade que pode ser interpretado como “loucura” ou resistência. E tal resistência também está presente na trilha sonora, a partir de músicas populares nordestinas que conseguem interpretar o mundo de desigualdade que esse grupo social viveu e vive a chegar na cidade grande.
O filme também é ilustre ao explicitar muitas questões de classe que existem no Brasil, o que não aprofundei por não ser o foco central desse escrito. Afinal, como é convencional em grandes obras, elas possuem muitas camadas a serem exploradas e não se esgotam numa única interpretação ou análise.
Portanto, antes da Jéssica de “Que horas ela volta?” ou o povo de Bacurau, José Dumont interpretou Deraldo, que foi base dessa representação positiva e de resistência do povo nordestino diante do preconceito do olhar estrangeiro.
Até O Fim
3.9 18Considero que as duas melhores décadas do cinema brasileiro são as de 1960 e 2010. E o cinema de Glenda Nicácio e Ary Rosa é um dos motivos que me faz chegar a essa conclusão no que diz respeito à última década.
Ao conhecer Café com Canela (2017), eu tinha percebido que se tratava de algo especial e, com a iniciativa da produtora de disponibilizar a filmografia da dupla de diretores no Youtube gratuitamente até 02/07/20, pude conferir Ilha (2018) e Até o Fim (2020). E, graças a isso, faço esse comentário para falar um pouco do que achei desse conjunto da obra até o momento.
A nível de forma, Rosa e Nicácio constroem um cinema inquieto, que utiliza diversas experimentações estéticas que se conectam e se autorreferenciam em vivências pessoais e do nosso povo. Me soa como uma espécie de Abbas Kiarostami à baiana (e isso é ótimo!). São filmes que não subestimam seu público, trazendo escolhas nada convencionais no que diz respeito à montagem e à condução do enredo. Particularmente, considero que nem todas as ideias ousadas funcionam bem, mas penso que o mais importante é poder acompanhar os processos estéticos construídos no amadurecimento dessa filmografia.
A nível de conteúdo, vejo uma importância ético-política das decisões narrativas escolhidas pela dupla. No encontro, no diálogo, na afetividade de pessoas negras em situações cotidianas percebemos tudo que o nosso país já é e pode ser ainda mais. É o inverso da masculinidade tóxica operando no presente, que sabe tratar de assuntos como morte, machismo, transexualidade e abuso sexual de uma forma construtiva, potente e cuidadosa.
Historicamente, precisamos lembrar que o protagonismo da mulher negra no cinema brasileiro é quase inexistente, de modo que ver o trabalho da Glenda e das atrizes (e atores) que dirige torna-se algo muito relevante e também aponta para um país melhor. Para usar uma experiência pessoal, poder assistir à representação da mulher negra em obras como A Margem (1967) e poucos dias depois assistir algo como Até o Fim (2020) é realmente compensador e esperançoso. Um genuíno avanço simbólico e histórico.
Portanto, é um cinema que aponta a um futuro desejável e possível, a despeito de tudo que o (des)governo atual tem tentado inutilmente fazer para brecar esse avanço simbólico e material na nação. O noticiário nos mostra que nosso país parece só ir para o fundo do poço... Esse cinema mostra o contrário, é exatamente olhando para esses personagens (próximos da realidade) que podemos mirar além. Ou seja, o verdadeiro “vidas negras importam” pode ser sentido na força dessa filmografia, que não trata somente do sofrimento, mas principalmente afirma a potência do povo negro.
Los Silencios
4.1 33 Assista AgoraSe você gostou desse longa, uma espécie de antecessor simbólico dele pode ser vista em A Terra e a Sombra (2015, Dir.: César Augusto Acevedo).
A Terra e a Sombra
3.8 52 Assista AgoraSe você gostou desse longa, uma espécie de continuação simbólica dele pode ser vista em Los Silencios (2018, Dir.: Beatriz Seigner).
Feios, Sujos e Malvados
4.2 107 Assista AgoraComo o público (do século XXI) não consegue enxergar o quão ofensivo esse filme é?
Eu o considero uma verdadeira porcaria cinematográfica. A minha nota só não foi a mais baixa possível porque há um domínio técnico na parte formal da obra. Todavia, qualquer mérito formal existente desaparece diante do conteúdo dela. Ainda, até essa qualidade formal passa muito longe do que eu tinha conhecido em filmes do Scola como Nós que nos amávamos tanto e Um dia especial.
Já assisti dezenas de obras que representam a pobreza mal, usando de diversos estereótipos para explicar essa camada social. Contudo, essa obra parece que conseguiu reunir todos os estereótipos existentes e levá-los a um nível insuportável. E pior, descontextualizando tanto os personagens das relações sociais concretas que só há uma conclusão que esse filme pode levar: por que não eliminar essa escória da sociedade? Todos são ruins, são feios, são sujos, são moralmente horríveis, etc, etc, etc.
Para mim, esse filme só faz sentido se eu for eugenista. De resto, é uma verdadeira humilhação com os estratos mais pobres da sociedade. Passa tão longe, mas tão longe da realidade, que qualquer tentativa de profundidade narrativa se perde. Se isso é para ser uma sátira, se é para conter humor, não consigo enxergar. Há tanta ofensa, que se existia a intenção de crítica social, ela falha muito. Se há elementos cômicos(?) usados para trazer um tom de ridículo ou extremo, esse extremo chega para mim como mero escárnio.
Coincidentemente, assisti há poucos dias Pixote: A Lei do Mais Fraco (1980). É um filme feito na mesma época e que tenta passar uma mensagem próxima ao que esse tentaria fazer aqui. Nele, vemos muitos problemas sociais e os atos negativos que pessoas pobres podem chegar a realizar devido a um contexto muito desfavorável. Nele, os personagens são contextualizados como parte de uma sociedade desigual... Nele, há gente “malvada”, há gente “suja”, há gente “feia”, mas há uma profundidade muito maior sobre essas pessoas, elas não se reduziriam a isso... E ainda há comentários sobre como o Estado promoveria tais circunstâncias subjetivas e sociais desagradáveis. Pixote é um filme tão “sujo” quanto esse, sendo que ele se sustenta por ser efetivo ao que se propõe, muito diferentemente desse longa italiano.
Poderia passar muito mais tempo explicitando meu ponto de vista, contudo, considero que esse filme simplesmente não merece uma análise aprofundada. Portanto, não vou nem explicitar cena a cena os exemplos do que estou argumentando. Nem falarei nada do racismo e do machismo, que também surgem explicitamente como “sátiras” e piadas aqui...
Concluindo, faço questão de deixar o meu repúdio por isso existir. E também minha tristeza/raiva pelas pessoas conseguirem achar que isso representa a pobreza. Nem todos sabem, talvez seja surpreendente... “Gente pobre” é também solidária, se fortalece culturalmente pela sua coletividade criativa, toma diferentes rumos (positivos e negativos) no dia a dia para sobreviver a diversas adversidades existentes, etc, etc, etc...
Repito: se esse filme soa como retrato de algo (ou como sátira de algo), ele é tão raso que agride. Essa obra vai ficar muito guardada como uma das coisas mais ofensivas que pude ter contato. A comparação do mundo da arte que me lembrei foi A Redenção de Cam (1895) de Modesto Brocos. Tal pintura consegue chegar ao nível de insulto de Feios, Sujos e Malvados.
Um Lugar ao Sol
3.9 168 Assista AgoraO antônimo dessa obra é A cidade é uma só? (2011, Dir.: Adirley Queirós), também essencial para pensar sobre desigualdade socioespacial. Observamos aqui o que acontece nas coberturas de condomínios de luxo. No filme do Adirley, vemos o inverso: a realidade de quem, com aval do Estado, perdeu o direito de habitar zonas privilegiadas da cidade (por ser pobre e "atrapalhar" o mercado imobiliário). Ou seja, essa dupla revela os dois lados de uma mesma moeda.
A Arrancada
3.5 3Apesar de me interessar pelo cinema cubano, esse trabalho dirigido pelo brasileiro Aldemar Matias deixou a desejar. É o típico filme que possui uma ideia boa que poderia ser bem executada a partir de uma montagem inteligente num curta-metragem, mas vai perdendo sua força por se alongar demais na sua proposta.
Para quem gosta desse estilo cinematográfico, recomendo conhecer Baronesa (2017, Dir.: Juliana Antunes), pois esse é muito bem executado.
Grande Hotel
3.8 118 Assista Agora1. Quem é o protagonista?
O filme traz uma mensagem bem direta: uns entram e outros saem, mas nada abala o Grande Hotel, que continua indiferente aos seres humanos efêmeros. Isso é demonstrado de forma enfática no início por meio da inteligente montagem de discursos no telefone que demarca os protagonistas (passageiros) da trama. Em seguida, há um plano-sequência de quase 5 minutos interligando essas histórias magistralmente na recepção do hotel. E, logo após, acompanhamos um belo plano de cima para baixo, que revela a grande estrutura concêntrica do hotel, a fim de revelar que ele é muito mais imponente do que aqueles humanos que se acham importantes (pelo seu dinheiro), mas viram “formigas” em comparação com tal ambiente.
Ou seja, o hotel se impõe enquanto verdadeiro personagem principal, pois é a estrutura fixa por trás de tudo que passa por ali. Além disso, percebemos durante muitas cenas (fora dos quartos) que sempre há movimentações de pessoas na parte dos planos que não é ocupada pelo corpo/rosto dos protagonistas, intensificando tal ideia de brevidade de quem está provisoriamente em primeiro plano.
Usando de tal metáfora, podemos extrair camadas mais profundas de significados: o hotel pode ser um simulacro: 1) do cinema; e 2) da sociedade (em sua amplitude). A primeira ideia, comento a seguir, já a segunda, destaco no tópico 3.
2. Ousadia: amor e morte
Grande Hotel é, antes de tudo, um filme ousado. Primeiramente, vale resgatar a inovação histórica que trouxe. Criando o maior set de filmagem existente até então, foi primeiro longa a arriscar algo inédito: convencer 6 grandes “estrelas” hollywoodianas a atuarem juntas e dividir seu protagonismo. E, no fim das contas, a obra revela que nenhuma delas é o foco do filme.
O hotel se torna simulacro da 7ª arte: estrelas vão e voltam, observamos por um tempo seus amores e dores, mas, no fim, o serviço continua para que o edifício possa dar espaço a novas tristezas e felicidades de outrem. Um artifício interessante que percebemos é que a câmera só pode ir até a calçada, nada do que está para além daquele ambiente monumental merece ser acompanhado. Isto é, o enredo não prioriza ninguém exclusivamente (alguns passam longos minutos fora da tela), ele é fiel apenas ao hotel. O limite da tela é o limite do edifício-cinema, o qual espera para “viver” novas pessoas e histórias após as saídas dos protagonistas temporários.
Outra escolha impressionante é a utilização da própria base do cinema hollywoodiano para forjar expectativas falsas do que acontecerá com os personagens. Como incontáveis outros filmes da época, pensamos que vamos ali acompanhar os dilemas do “malandro galanteador” com outras mulheres que querem/não querem ele. Até que ele... Morre! No contexto histórico do filme, poucas coisas poderiam ser mais disruptivas do que matar o galã de forma abrupta. Em outras palavras, usa da expectativa de empatia por uma história de amor para poder passar as críticas sociais que se propõe.
Além disso, assistimos o destino da Flaemmchen, mas não conhecemos a reação da paixão interrompida da mulher russa, o que é outro rompimento do cinema clássico, que faz questão que todos os conflitos criados durante a história sejam resolvidos, para que conheçamos os destinos dos personagens no fim. E, já que falei sobre essas 2 personagens, uma cereja do bolo de Grande Hotel é poder conferir o choque direto entre a atuação “afetada” típica do cinema mudo de Greta Garbo e a ainda iniciante Joan Crawford, com sua atuação mais realista e “moderna”. Isso pode não ter sido intencional, mas isso também traz um tom único à obra.
3. O hotel que afaga é o mesmo que apedreja
Grande Hotel possui muitas cenas bem construídas, mas parte essencial de sua maestria está nos seus últimos minutos. Para compreensão dos significados mais profundos do filme, é muito importante dar atenção às escolhas e à montagem realizada na parte final. Vemos a cena do assassinato e não só a escolha de matar o protagonista não é usual, mas o que vem logo em seguida também: uma montagem irônica une o crime à indiferença de funcionárias do hotel ao barulho do telefone (ou a alguma ligação que estava ocorrendo paralelamente). Em cenas posteriores, vemos o cadáver da vítima ser comparado a um pedaço de carne que um açougueiro segura; o cadáver sai, a carne para alimentar os hóspedes entra. Também acompanhamos o cachorro do barão ser literalmente varrido enquanto é retirado daquele espaço “exclusivo”.
Além disso, lembremos de alguns dos personagens... Há o homem “comum” que quer se sentir rico e feliz pela primeira (e única) vez em sua vida por meio do consumo e da sensação de estar ao lado de espaços e pessoas “nobres”. Não menos relevante é o veterano de guerra (portador da moral da história), que está sempre à espera de mensagens e cartas, mas ninguém o lembra. Além disso, há o homem de negócios com sua frase hipócrita: “estou habituado a fazer meus negócios com bases sólidas, sou um negociante honesto, um bom marido e pai, não tenho nada a esconder”. E, em diversos momentos, há vários funcionários, muitas vezes imóveis como parte invisível daquela estrutura, que só se movimentam para servir aos ricos.
Então, o hotel beneficia e agrada todas as pessoas que podem pagar por de todas as benesses, mas assim que elas não geram capital, merecem desaparecer (como trabalhador ou como hóspede descartável). Ele funciona apenas para o benefício de manter a sua estrutura intacta. Assim, o hotel pode ser comparado à própria sociedade capitalista, que, à época, vivia uma crise profunda. Talvez, o momento que tal mensagem surja mais explicitamente seja no conflito direto criado entre o homem de negócios que sequer reconhecia seu funcionário, o qual só pôde usufruir de bens materiais e experiências caras porque sua vida presa à exploração pelo trabalho não teria mais continuidade.
Então, percebemos a alienação daquela vida “moderna” dos ricos ou daqueles que tem um passaporte temporário a estar nessa posição de consumo desenfreado. Não menos importante, notamos a indiferença do hotel-sociedade para as possíveis explorações e tragédias existentes, pois aquelas pessoas são apenas produtos da própria lógica que rege tal hospedaria.
4. Últimas observações
Deixei de lado alguns aspectos nessa análise, como detalhar o belo trabalho de fotografia e mise-en-scène. Cito brevemente que 2 boas demonstrações desses elementos estão nas cenas no quarto depois do assassinato e a cena da discussão de negociação, em que o Preysing vai sendo encurralado pelos negociadores pela posição que os corpos ocupam.
Para finalizar, vou citar algumas observações. Esse filme exemplifica a tradição corrente em filmes americanos clássicos, em que a prostituta é sempre disfarçada e não se apresenta diretamente. O filme mostra por meio de sutilezas que Flaemmchen não se espanta ao ver um homem seminu num quarto, aceita viajar com homens casados, etc. Ademais, o filme também demarca críticas à Rússia soviética em alguns momentos, revelando pelas falas da dançarina de que o país socialista é perigoso e injusto.
Alguns "vícios" típicos da época também existem, o que é algo passível de relevar nesse caso, por ser secundário. Percebemos a necessidade de repetir a “moral” 3 vezes, para deixar bem explícito a mensagem principal. Creio que isso não seria necessário, mas é um elemento válido para o contexto do longa. Nesse sentido, outro aspecto é a centralidade dos papéis femininos para os desejos e vontades de homens. Há alguns exemplos que deixam isso explícito, sendo o principal o da dançarina, que sai do total vazio existencial a um estado completo de felicidade apenas pela rápida paixão por um homem.
Dito tudo isso, destaco também que foi interessante conhecer de onde veio toda a inspiração de figurino e cenário de Grande Hotel Budapeste do Wes Anderson.
Portanto, Grande Hotel é um filme excelente e inovador, que merece ser visto (e revisto) por tudo que apresenta em suas diversas camadas. A história em si é interessante de acompanhar e a experiência fica ainda melhor ao percebemos a ousadia das escolhas narrativas e as críticas sociais implícitas na obra.
Zama
3.4 510. Quando o olhar se emancipa, incomoda
Não gosto de escrever para diminuir nada, geralmente faço da análise algo que potencialize uma obra, sem me valer de comparações negativas. Todavia, ao ver a média de nota aqui, algo relevante à análise que fiz se revela. As avaliações negativas fazem parecer que o filme seria uma mediocridade cinematográfica, quando na verdade ele é o extremo oposto!
É um filme lento? Se for comparar com Hollywood, sim. Mas parar nisso é uma limitação muito grande. O ritmo do filme é condizente com tudo que ele quer passar. Devemos pensar um filme a partir do que ele se propõe, não a partir do que um padrão estabelecido dita como bom de engolir. E aí está a ironia da reação negativa ao filme: uma história sobre a pequenez da colonização espanhola que incomoda quem está acostumado a um olhar colonizado pela indústria cultural. Um tiro só que acerta dois alvos.
Para mim, Lucrecia Martel mostra o que é ter um olhar totalmente emancipado que constrói um filme completo. Daqui em diante, vou argumentar por que Zama é a 7ª arte em sua excelência.
1. Lentidão
Don Diego de Zama: nobre, em sua posição riste, conquistador de um mar raso, mas inalcançável. Acompanhamos a jornada de um oficial da Coroa Espanhola que quer ser transferido para a capital de sua colônia, contudo não consegue. Nesse percurso, a visão incorporada ao filme é a do protagonista, logo conseguimos perceber por meio do ritmo narrativo que acompanhamos uma imobilidade que representa o não alcance do seu propósito.
Na meia hora final, ele sai de sua zona de conforto em busca de sua última oportunidade de conseguir a transferência: buscando se tornar um herói. E, somente quando encontra uma série de riscos à sua integridade física, as cenas ganham uma maior rapidez (pois tudo é novo, desconhecido, não dá tempo de assimilar). Isto é, o filme incorpora na estrutura formal a visão do Diego. Aliás, a cena que ele é usado num ritual pelos indígenas possui muitos cortes rápidos, mostrando uma situação inversa ao que ele passava em sua situação anterior.
Portanto, aqui encontramos um exemplo de total consciência de como unir forma a conteúdo inteligentemente. A seguir, destaco várias outras amostras disso.
2. Perfumaria vista e ouvida
Primeiramente, esse filme consegue fazer um ótimo trabalho de ambientação do contexto proposto. A partir dos figurinos, maquiagem, ambientações e fotografia, temos uma ideia muito exata daquele “mundo”. Além disso, algo mais sutil é a associação do modo de vida dos colonizadores a algo falso, usando dois elementos: o som e a montagem.
Em poucos momentos vemos a presença de música não diegética (aquela que vem de fora da cena). Um dos usos intensifica situações subjetivas de Zama de distanciamento/esgotamento da realidade. A outra utilização é uma música alegre e pomposa. Nas poucas vezes que ela surge, o som não “liga” organicamente à cena, por dois motivos: pela sua entrada e saída brusca e pelo contexto. A música surge a princípio como algo que deveria se incorporar ao momento, mas acaba por revelar a farsa daquelas situações, mera perfumaria que simboliza todo aquele modo de vida predatório da Corte. Um desses momentos é quando o protagonista vem para um encontro com Luciana. Tais diálogos com ela resumem uma visão geral sobre a mesquinhez da vida privada e cotidiana dos colonizadores.
No que diz respeito à montagem, ressalto que, em muitos inícios de cenas, vemos personagens vestindo ou ajeitando sua peruca para poder fazer ou falar algo, destacando-se novamente a ideia de inautenticidade daquelas pessoas e situações.
3. Escravizado: objeto e pessoa
Não conheço nenhum filme que tenha passado de uma forma tão interessante o que significa a situação de escravizados enquanto objetos. A mise-en-scène alcança aqui uma perfeição dificilmente vista, que me remete diretamente a “Playtime” do Jacques Tati, sendo que melhor, porque mais profunda de significados. No ambiente privado, os corpos explorados surgem como simples móveis e instrumentos humanos. Forma-se uma integração e interdependência entre colonizador e escravizado. Mas, o modo original como isso é posto em tela faz daquilo tudo muito mais desconcertante do que seria se a diretora repetisse a obviedade da violência física. Desse modo, sentimos mais ainda a violência daquele contexto, devido à excepcionalidade que encontramos no modo de mostrar essas relações de exploração humana.
Ademais, dá para notar que, quando vamos aos ambientes externos/naturais, continuamos a ver indígenas e africanos escravizados, mas não somente. Trata-se de uma escolha política de retratar a colonização fora da visão do europeu, destacando os lados negativos, mas também a resistência desses povos. Devido à profundidade de campo muito bem trabalhada nos enquadramentos, esses corpos aparecem como seres autônomos em diferentes atividades e ações. Um exemplo é quando a “mãe do filho” dele pega a cama presenteada (produto artificial aquele meio) e faz de varal. Mas isso ocorre apenas em segundo plano, porque o centro é a conversa deles em que ela diz que não vai dar roupa nenhuma, pois não é sua mulher. Enfim, o filme inteiro é repleto dessas sutilezas que são contadas pela excelente execução da mise-en-scène.
4. A colonização é uma piada (de mau gosto)
Zama abre mão de uma abordagem pesadamente séria para debochar sutilmente daquilo tudo que representam os colonizadores, criando um senso de ridículo nas entrelinhas. Acima, já destaquei as “perfumarias”. Aqui, volto ao personagem principal, pois ele resume a simbologia a ser passada sobre a Corte da Espanha.
Falei um pouco de elementos bem postos em cena, mas volto a isso para citar rapidamente um fato: que interpretação magnífica de Daniel Cacho! Acompanhar seus olhares e microexpressões é muito interessante, pois representa uma mistura de angústia, desespero, cobiça e raiva que vai evoluindo (uma bomba-relógio prestes a implodir). Em sua jornada frustrada, ele é vítima daquilo mesmo que representa: um “don” que age mesquinhamente a seu favor em nome da grande metrópole. Pessoas guiadas pelos próprios interesses de exploração e dominação constante que disfarçam isso em burocracia. Como surge resumidamente num diálogo: os espanhóis são muitas “pessoas pequenas”. E são elas que administram o Novo Mundo. Elas estão ali para comemorar mortes que resultem em festas luxuosas de velório ou orelhas dignas de ostentação.
No meio dessa dinâmica, Zama, lhama indefesa, vai se deteriorando aos poucos diante dos seus superiores, que atiram à vontade nos cavalos, objetos ou pessoas indesejadas. Assim, o longa passa a ideia de sua falta de controle em alguns momentos. Em mais de um momento, tiros o assustam e se apresentam fora de plano: quando Zama percebe, a fatalidade já aconteceu. Ou olha assustado pro seu filho “mestiço”, que ele não consegue ver como resultado de suas ações. Nisso, sobra apenas a analogia do peixe feita no início: Zama está num aquário perverso em que cobiça com seu olhar mares e mulheres, mas nada consegue tocar com suas mãos (nada ali o pertence de fato). E, pior, tudo aquilo que ele quer, os outros conseguem com menor esforço. No fim, parece que só em seus delírios ele percebe profundamente todo o absurdo que é aquela realidade forjada. É como uma sensação de que ele está fadado ao fracasso, pois a Coroa em si é um fracasso.
5. Vicuña Porto
Além de tudo isso, a obra ainda consegue cavar mais uma camada em sua rica construção, fechando o campo de significação de que Zama representa uma síntese da própria Espanha. A tragédia de Diego chega em seu ápice quando ele vai atrás de matar Vicuña Porto. Esse nome representa todo o mau que tenta atrapalhar a atuação benevolente da Coroa. Vicuña comete adultério, assalta, incendia, assassina, cria casas de jogos, mas nunca consegue ser capturado! Obviamente, Porto nada mais é do que tudo aquilo que os membros da Corte faziam e não queriam admitir por cinismo, pois eram nobres espanhóis.
Então, Zama sair na missão de extirpar o símbolo do próprio processo colonizador só poderia ter consequências catastróficas, pois ele é mero produto débil desse processo. Quando está em sua vida medíocre, ele esbarra em situações estranhas a ele, mas que não ameaçam sua sensação de autoridade em relação aos outros povos. Mas, ao confrontar diretamente os territórios não dominados, ele se mostra constantemente ameaçado. É a hora de mostrar sua submissão: são os indígenas usam seu corpo para suprir seus fins e os “capangas” usam-no para conseguir sustentar sonhos turvos de riqueza. Um outro espanhol que está nessa jornada só consegue o considerar traidor por encobrir o vilão fantasma. Assim, um colonizador vive de condenar o outro, numa esquizofrenia de não conseguir enxergar suas próprias violências inexplicáveis.
Outrora, vemos um cavalo morto covardemente pelo governador. Nos minutos finais, outro cavalo volta seu olhar ao expectador em primeiro plano, gerando uma estranheza por quebrar totalmente a unidade estética formada até então. O que significa isso? É um recado visual: aqui está o “troco”, agora é a “natureza” que observa o que será feito com o espanhol. E, então, vem a decepação que resulta finalmente numa irônica viagem sua sobre as águas. Não para onde desejava escapar, mas para a consumação de sua existência colonizadora.
Pelo Malo
4.0 121 Assista Agora1. Ser criança não significa ter infância: a derrota da vontade
Nesse filme, todo o percurso do enredo surge exatamente numa das coisas mais dolorosas que podemos acompanhar: a tentativa incessante de apagamento de uma criança que busca formar uma subjetividade autônoma (seja ancorando-se ou não aos padrões impostos). E isso ocorre demonstrando como os diversos efeitos do racismo, pobreza, normatividade de gênero, bolivarianismo (x neoimperialismo) e viver em periferia se mesclam enquanto determinantes que tentam destruir a possibilidade de um menino fazer algo “porque teve vontade”. Ele é criança, mas não teria o direito de ter infância, pois falta lugar para seus sonhos (os seus desejos parecem não merecer voz).
2. A periferia num país periférico: corpos segregados
Tudo isso introduzido no tópico anterior tem como centro a falta de afetividade entre mãe-filho, a qual surge visualmente pelos enquadramentos escolhidos durante toda a obra. De modo exaustivo, são utilizados planos fechados e primeiros planos, geralmente separando os protagonistas em cada plano enquanto interagem. Isso representaria que há certa limitação, desconforto (até claustrofobia) naquelas pessoas, a nível físico e emocional. Também é comum diminuir-se o espaço de interação/possibilidade afetiva em tela quando se adota uma perspectiva de fora do cômodo, em que há “molduras” com paredes desgastadas, grades ou portas que ocupam grande espaço do que é mostrado. Por vezes, Junior consegue estar enquadrado em conjunto com outras personagens que possuem melhor relação com ele, mas tal aproximação não se mantém em todos os momentos (com exceção de sua amiga), o que demonstra seu afastamento pessoal nessas relações.
Assim, o campo de sentido se intensifica quando outras escolhas técnicas são utilizadas: planos inteiros e planos gerais. São nesses momentos que vemos mais nitidamente os cenários que transparecem descaso, precariedade e aprisionamento. Há um destaque nos muitos padrões/repetições/enclausuramentos (ou grafites e propagandas que compõem aqueles ambientes). A própria natureza só aparece como contraste longínquo num horizonte distante, limitado numa janela ou outra. O céu, por sua vez, só aparece nitidamente na cena da brincadeira entre mulher (que resta ser estuprada ou morta) e homem (militar, armado), o que foi uma referência a como o imaginário infantil é permeado naquele contexto.
Portanto, há uma mescla bem feita que revela simultaneamente o resultado de morar naqueles ambientes, num processo em que a cidade vira reflexo de segregação socioespacial e reprodução de uma série de opressões sistematizadas. A cidade em si não é vivenciada por essas pessoas, ela é apenas caminho/passagem para o trabalho, a vida se resume ao bairro distante em que se mora, de preferências dentro dos lares diminutos, local em que o risco de violência e estupro é amenizada. Isto é, àquelas pessoas (negras e sem dinheiro para mediar relações de consumo em estabelecimentos), a circulação nos espaços evoca desafios diversos materiais e simbólicos, que são revelados e bem explorados nas personagens do longa. Enfim, os limites a nível ambiental e social afetam diretamente as relações entre as pessoas que interagem nesses ambientes.
3. A pele e o “pelo” do homem: teria Junior o direito de existir?
Falando em limites, vamos ao cerne do filme. O sonho de Junior é se sentir mais bonito se embranquecendo (sem cabelo “ruim”) e é possível perceber que todo o contexto cultural em que se encontra o força a querer moldá-lo desde muito cedo a não querer ocupar certos lugares sociais. Sua rejeição aos seus traços negros vem de várias formas (da mídia, das pessoas que convive, do “destino” que percebe ser dos jovens negros), de maneira que seu desejo fixo em aparentar ser outro simboliza a busca pelo padrão que não pertence a um venezuelano pobre (e tudo que pode representar esse fato). Por sua vez, a mãe sintetiza diversas opressões, como um produto perverso de todas as limitações e padrões que ele deveria aceitar e seguir. Em quem ele poderia encontra afeto, suporte e carinho, sobra apenas o desprezo por ele ser quem é.
Junior possui uma meta bem definida e simples, seu sonho é completamente palpável. Mas, ao mesmo tempo, se sentir representado da forma que deseja parece ser algo tão simbolicamente distante... A foto concretizaria fisicamente a identidade social que desejaria para si: cabelo “bom”, podendo cantar, dançar e se vestir à vontade. E há triste ironia nos lugares daqueles meninos nas fotos da loja: o lugar da criança negra é um militar armado, com fundo de tanques venezuelanos, já a criança branca está simplesmente sorrindo e com um fundo falso de um ambiente tranquilo e natural. É esse segundo menino que Junior quer ser, ele deseja ter cabelo liso e poder sorrir, não ser o menino negro destinado à violência. Pelo menos ali, ele quer ser representado daquela forma.
Nesse sentido, percebemos que ele é visto pela mãe como um corpo anormal, que precisa de alguma explicação do saber médico para domesticar/compreender aquele ser em que ela projetou todos os seus medos, preconceitos, angústias e traumas (enquanto o bebê ainda está imune a tudo isso, quase que no outro oposto). Quando o médico valida que “ele é normal”, ainda sim ela não aceita e busca novas explicações para sua projeção distorcida. E, portanto, tudo que ela ache que é “feminino” é motivo de rejeição. Ademais, ele não tem sequer o direito de olhar livremente sua mãe ou tocá-la, ele só deve olhar para ter exemplo do que é ser um homem (num ato totalmente violento com ela mesma e com seu filho). Além disso, ela acha que ser agressiva com ele também seria um exemplo “masculino” que o falta.
Nessa obra, alguns símbolos são utilizados para retratar tal relação conflituosa. E nisso a dança e o cantar são importantes. Quando está com sua mãe, ela canta e dança com ele somente como ironia e o faz sentir medo daquela expressão carregada de sentimentos negativos, já com sua vó ele consegue recuperar a possibilidade de cantar e dançar, ainda que não se trate da música que mais lhe agrade. Assim, demarcam-se as diferenças entre quem não acha possível aquele modo de subjetividade e quem o aceita em suas particularidades. Aliás, a mãe usa a frase “porque tive vontade” de seu filho para realizar essa agressão encenada e cantada, deixando ainda mais demarcado a necessidade de cercear o direito de Junior existir livremente.
Vale ainda ressaltar que em nenhum momento Junior tem vontade de se sentir “feminino”, isso é totalmente uma interpretação imposta pela normatividade de gênero, o que ele queria era poder se expressar autenticamente - sem ser diminuído por isso. O filme demarca sua homossexualidade de forma não estereotipada com sua atração pelo Mário, mas ele é apenas uma criança, sua atração ainda não denota sentido sexual, mas antes uma admiração e uma vontade de espelhar-se naquele modo de ser “homem”, que nada traz de ameaçador ou agressivo. E, com Mário, ele tem a liberdade de olhar diretamente e espelhar algo positivo, diferente de sua mãe com suas tentativas de exemplos de masculinidade.
4. Mulheres à margem: trabalhos e afetos interrompidos
O filme também explora de modo complexo e rico o lugar da mulher nessa sociedade. A Marta tem como objetivo de vida resgatar seu trabalho de vigia, que trazia sentido material e simbólico à sua vida. Por sua vez, a Carmen almeja poder novamente ter um filho para cuidar e dar afeto, visto que o seu seguiu um trágico caminho comum aos jovens negros de periferia (sem oportunidades, restou o tráfico e a morte precoce). Tal filho também era marido e pai, ampliando então a ausência que representa essa fatalidade.
A mãe do menino luta por conseguir um trabalho que parece muito difícil (ela faria tudo para recuperar seu emprego), porque um erro que teria cometido era o suficiente para não conseguir mais reconquistar espaço numa profissão “masculina”. Ironicamente, ela percebe que não é vista enquanto uma profissional capacitada, mas apenas enquanto um corpo objetificado (e só dessa forma consegue voltar ao cargo). Naquela sociedade, seu lugar de trabalho é limpando alguma casa (sem direitos ou garantias). Um detalhe na montagem do filme é que o gozo masculino é demonstrado enquanto algo sempre curto e pouco satisfatório à Marta, o que aumenta a contradição de ela querer o filho ocupando esse mesmo tipo de masculinidade.
Já Carmen busca em Junior o vazio deixado pela perda de seu filho (ela faria tudo para recuperá-lo), como se fosse a última oportunidade de ter o afeto que teve de ser precocemente interrompido. Assim, ela consegue cantar e dançar com ele, costurando com suas próprias mãos uma roupa que representava à sua época de moça um cantor bonito. Já num processo de rejeição e conflito interno, o garoto não vê naquela roupa algo suficientemente masculino, o que o faz rejeitar a peça e impede temporariamente seu objetivo de tirar a foto se sentindo devidamente representado. E, destarte, ele começa a ver na vó uma ameaça de ele se tornar de fato uma “mulherzinha”, fazendo-o recusar inclusive o amor dela. Então, o filme traz novamente como a performance da masculinidade pode ser frágil, uma vez que aquilo que outrora representaria um “galã” pode atualmente soar como o inverso do que seria ser másculo (e vice-versa).
5. Não é minha mãe: é a pátria que me pariu
Afinal, destaco que o longa consegue trazer uma realidade própria de diversos países do sul global, mas ainda sim traz uma crítica inteligente ao país em que se passa a história. A cultura violenta, autoritária e machista presente na Venezuela por vezes é personificada indiretamente no culto ao Hugo Chávez, mas também à mescla entre religião e armamentismo. Ali, raspa-se à cabeça em solidariedade ao presidente (com câncer na época), mata-se para tentar curar o presidente. A Santíssima Trindade pode ser Jesus, Maria e um fuzil (enquanto Deus segura um ícone do regime em vigor, a constituição). Nada daquilo parece atrair Junior e, simultaneamente, ele tenta buscar em símbolos/imagens externas à sua realidade tudo aquilo que deseja ser e não pode, puxando-o para um não-lugar, para um conflito existencial dos papéis sociais que não pode ocupar. E o futuro não aparenta ser muito esperançoso...
Quando Junior raspa a cabeça para se adequar ao que sua mãe exigia dele, ele repete o mesmo gesto daqueles que abdicam de seus cabelos em solidariedade ao amor à pátria. A cena final é ele se negando a cantar a canção da pátria, sendo a escola a representação o Estado. Por conseguinte, Marta é uma mistura de individualidade e cultura, como todos nós, logo seus atos não são meras maldades individuais, eles são reflexo de tal contexto sócio-político-econômico em que ser homem (ou mulher) significa seguir uma série de padrões fechados e violentos. A busca por uma identidade social mais flexível não cabe àquele menino, resta esse não-lugar que o puxa à padronização de sua subjetividade. Revela-se o desgaste e sufoco presente na vida inúmeros “corpos anormais” em situação de discriminações e opressões naquele país (realidade não distante do contexto existente no Brasil, por exemplo).
Em conclusão, Pelo Malo é uma excelente “aula” sobre interseccionalidade e um convite a refletir o que é estar/ser latino-americano. A síntese multíssona das questões sociais contemporâneas trazidas nesse filme é algo raro de se encontrar de modo tão preciso e bem executado, tratando-se, portanto, de uma obra-prima realizada pela Mariana Rondón.
Uma Mulher Alta
3.8 112No filme Mar Adentro, Ramón Sampedro fala num determinado momento que
sorri muito porque aprendeu a chorar com sorrisos.
seus sorrisos também são complexos e, por vezes, carregam muita dor.
O Lixo e o Sonho
4.1 580. Preâmbulo: A incontrolabilidade no cinema de Lynne Ramsay
Só recentemente fui conferir a filmografia dessa cineasta e algo me chamou a atenção: um elemento central das histórias que decide contar é a ausência de controle do ser humano sobre sua própria vida (e a dos outros). Há sempre algo de irrefreável (nos âmbitos público e privado) que marca definitiva e tragicamente as existências. Tal inspiração vem de sua visão psicanalítica de mundo. Seu olhar é complexo e não se limita apenas à análise individualizante ou familiar, uma vez que também realiza análises culturais sensíveis. As desigualdades e violências físicas e simbólicas da sociedade ocidental (liberal, individual, machista, massificado pelo consumo) se entrelaçam e afetam subjetividades “desencaixadas” desde a infância. A ênfase em aspectos subjetivos ou objetivos na correlação psique-sociedade varia de acordo com cada trabalho da Lynne e, nesse filme, o lado mais social fica um pouco mais sobressalente, mesmo que em direta ligação com as vivências do protagonista.
1. Prematuridade
Dado esse panorama breve, vou destacar alguns símbolos e características que fazem dessa obra um feito excelente e memorável. Uma escolha ousada e incomum presente nesse filme vem já de seus primeiros 5 minutos, que dizem muito sobre o longa. Começamos a acompanhar um momento de inocência infantil poeticamente mostrado em câmera lenta, que é bruscamente brecado pela violência materna. Quando começamos a se aproximar e acompanhar a história daquele menino (que supomos ser o protagonista), ele morre a partir de uma brincadeira que se desenlaça em violência fatal. Essa era a sua infância: ingenuidade e violências, par que se repete até se transformar em tragédia.
Essa morte prematura serve de introdução interessante à história, revelando-se também como uma brevíssima e bem realizada síntese da vida do seu “assassino”, James. Afinal, acompanhamos nos minutos seguintes seu cotidiano permeado de intempéries, mas também de rastros de leveza e afetividade, numa espécie de afirmação da vida até onde ainda era possível. Contudo, o peso da culpa e da desesperança diante da realidade (áspera) o vence. Portanto, a prematuridade existe simultaneamente enquanto forma e conteúdo em Ratcatcher.
2. Calçado, descalço
A montagem do filme dá uma ênfase aos pés (e calçados) das personagens. É essa parte do corpo que precisa de especial atenção para não pisar em ratoeiras, lixo, nem molhar os pés quando próximo ao canal poluído. Ademais, James recebe um calçado da mãe do falecido menino como realização de presente póstumo (não cabe, ele usa outro tamanho) e seu pai o presenteia com o mesmo item (também não se serve aos seus pés). No primeiro caso, ele até usa e se machuca, de maneira que o mesmo risca seu calçado novo para repetir simbolicamente a violência que ele infringiu ao garoto afogado. Aliás, o protagonista até quase perde o próprio sapato quando entra na água pútrida após o acidente. Assim, a obra passa por meio dessa metáfora a visão de sua não adequabilidade às relações sociais com esses adultos.
Nesse sentido, ele recebe essa proteção material do calçado ocasionalmente, mas ele continua desprotegido a nível psicológico, visto que sem suporte emocional em meio a sua angústia (ele sequer aprendeu a compartilhar sua dor). Efetivamente, ele recebe carinho de sua mãe em apenas 3 momentos: quando ela descobre que seu filho continua vivo; quando penteia seu cabelo para retirar seus piolhos; e quando ela simula um ambiente agradável em sua casa para os assistentes sociais e resolve dançar. E do pai, nada de positivo (só sapatos inadequados). O afeto materno quase nunca surge como ato deliberado e do pai, apenas desamores. Logo, James precisa andar descalço nesses momentos mais insólitos - só encontra algum suporte maior na recém-amiga/namorada, relação que também se esfacela precocemente pela interrupção brutal do grupo de adolescentes. Todavia, com exceção desse grupo, as pessoas não são retratadas de modo unilateral, é como se os adultos se formassem pelos encontros e desencontros de suas ausências simbólicas (e materiais); ninguém ali parece ser maniqueistamente mau (mérito às atuações), embora certas ações complicadas prejudiquem diretamente seus familiares e conhecidos.
Além do mais, percebemos que a infância (símbolo de criatividade, singeleza, pureza, afetividade) já não tem muito espaço em meio tanto entorpecimento emocional/social, tais características só perduram em quem é considerado “anormal” ou ainda não cresceu o suficiente (como Anne Marie). Ao atingir a adolescência, os homens acumulam de modo destrutivo a violência e a hostilidade a tudo e todos. O próprio James não compreende de onde surge tanta agressividade, a qual pode até matar outrem.
3. Ratos e TV
Não menos central é aquilo que vai movendo a mudança do bairro, o acúmulo do lixo devido a uma greve. Tal aspecto traz à cena a vulnerabilidade dos habitantes dali (que são “restos sociais”), de modo a aguçar criticamente toda a precariedade de possibilidades e oportunidades presente naquele local. O acúmulo de ratos surge como quociente daquela circunstância. Os adultos só conseguem pensar em matar rapidamente (aquele transmissor de doenças), os adolescentes em matá-los por entretenimento e as crianças variam na forma de tratar esse animal, mesmo que no fim eles só morram mesmo. No lastro de infância que o resta, James chega a salvar ratos e a matá-los, apesar disso ele sonha com a possibilidade irreal do rato fazer uma viagem à lua, o que se descontrói pela imagem de uma TV desfocada que o acorda. Isso é um chamado não só à realidade, mas à dureza de se desvincular dessa criatividade infantil e se voltar à violência da vida real. Assim como o calçado, a TV é um objeto repetido no longa. Sua função narrativa é destacar que, na vida adulta, é apenas pela TV que se pode escapar daquela vida; é ali também que morre qualquer sonho outro que não esteja na programação. O sonho adulto não se encontra na realidade, a imaginação é domesticada por essa mídia de massa dominante na década de 70.
4. Som e sonhos
Já que comecei a falar sobre realidade x sonho, resgato agora algo muito importante à obra: o uso escasso de trilha sonora não diegética (isto é, que vem de “fora” do ambiente narrativo), o que dá um tom certeiro, pois fica mais difícil digerir tudo aquilo no “seco”. Além do sonho do rato lunático, outros momentos em que tal música com tom feliz surge é na viagem ne James ao seu outro sonho: viver numa moradia mais digna. No ônibus, na sua primeira e na sua última visita àquele ambiente, tais sons (usados à exaustão no cinema mais convencional) parecem meros delírios em contraste com o restante das cenas.
Realço também que a sensação de não pertencimento/identidade com seu lar e sua vizinhança costuma ser bem nocivo à saúde mental. Assim, parece não haver muitos objetivos e motivações naquelas pessoas enquanto estão ali, logo o filme explora bem isso no ritmo adotado: o enredo não se enraíza em motivações e objetivos bem delimitados, mas sim ao contexto social. E, então, o longa justifica tecnicamente sua ausência de foco delimitado e linear.
Por esse ângulo, é possível perceber que a irmã do protagonista só parece encontrar objetivo em sua vida fora dali, já o James busca num bairro distante seu ideal de vida mais feliz e digna. É possível notar que nessa outra casa, a urina escorrendo por baixo do vaso simboliza sua imediata inadequação àquele ambiente, aquilo tudo não o pertence; o seu retorno ao local fechado reforça isso. E, alimentado por diversas desesperanças, desafetos e desestruturas, ele deita triste num sofá branco que ecoa o caixão do seu amigo, anunciando seu fim submerso que se aproxima. Sem entender bem por que, causou a morte de um amigo e de seu principal sonho... E foi só no sonho que restou sua alegria.
Algumas décadas após “Alemanha, Ano Zero”, surge um suicídio infantil fruto de outro momento sócio-político desolador, que ainda mantém reverberações do pós-Guerra. Embora me recorde diretamente do trabalho do Rossellini pela semelhança trágica,
Retrato de uma Jovem em Chamas
4.4 901 Assista Agora1. O minimalismo potente
Um filme que consegue o máximo com o mínimo: é objetivo e simples, enquanto carrega uma força estética enorme.
Com apenas 2 elementos centrais (fogo e água), cria-se uma alquimia visual e metaforicamente preciosa. As 3 cores primárias são as mesmas presentes numa chama: amarelo, vermelho e azul. Ademais, o amarelo ecoa na areia da praia e o azul, no mar. As protagonistas transitam entre essas diferentes nuances da chama e do mar que elas emanam por meio de sua relação, mas também pelos usos primorosos de fotografia e mise-en-scène (onde se inclui figurino: Marianne-vermelho, Héloïse-azul, Sophie-amarelo).
A água e o fogo (e suas cores) se relacionam de diferentes modos. Podemos exemplificar tal mistura rica no uso das telas: num momento a tela é molhada, noutro é queimada; uma pintura da Héloïse pega fogo literalmente, já noutra pintura, ela pega fogo ao entrar no mar (representando a perspectiva apaixonada de Marianne, que a viu se despindo pela primeira vez indo ao mar). Isto é, há antagonismo e também complementaridade entre todos os recursos escolhidos e, portanto, com pouco se faz muito.
Na verdade, o filme é assim como um todo... O roteiro é como uma orquestra bem ritmada, com diálogos econômicos e potentes, dando ao silêncio entre as protagonistas a mesma importância das trocas verbais. E tal ritmo se deve à grande relevância dada ao olhar nas atuações e à montagem (ligando o passar dos dias quase de modo imperceptível pela tríade pintora-tela-modelo), de modo que a soma das cenas vai construindo um todo muito coerente e bem executado.
2. A arte viva, a memória viva
Fica clara a homenagem feita, por meio da 7ª arte, às suas irmãs: a música, a pintura e a literatura. O longa explora a arte enquanto mediadora direta da construção de bons relacionamentos e na formação das memórias pessoais. Não existe hierarquia entre pintora- modelo, nem entre pessoa-obra de arte: é no contato simultâneo que a arte desabrocha e se traça enquanto algo pulsante. A literatura e a música ganham força quando mescladas com emoções e vivências. Ou seja, o filme passa a mensagem que a arte é influenciada e influencia a construção de relações pessoais potentes e cheias de sentido, pois é na correlação que a arte se revela vividamente. Aliás, a própria forma do filme reforça isso: acompanhamos quase que somente as memórias (afetivas) de Marianne, num flashback mediado pelas consequências de sua vida artística.
3. O aborto e outros nascimentos possíveis
Do início ao fim, a independência das mulheres é bem demonstrada de diferentes modos (mesmo no limitante contexto do século XVIII). E o aborto, experiência que é vivenciada de modo particular pela mulher, surge como símbolo-chave de tal autonomia. No longa, Sophie está determinada a realizar seu aborto e o faz com ajuda de outras mulheres. A ambiguidade profunda do bebê interagindo com ela durante o ato é memorável, assim como a ambivalência da pintura feita posteriormente sobre esse momento, que parece um aborto e um nascimento ao mesmo tempo devido à pose congelada. Destarte, é como se a arte tivesse esse poder de reavaliar/reconstruir tal memória dolorosa, de forma que algo novo nasce daquele aborto.
Além disso, vale destacar que tudo isso ocorre no ápice da paixão entre as protagonistas, já quando elas estão separadas (já sem o contato/suporte presencial), o filho de Héloïse nasce, fruto do casamento arranjado, mas também como um “atestado” daquele novo momento que elas vivem. Mas, para resgatar que o amor delas ainda perdura, há o detalhe da página 28 do livro. Mais uma vez, a arte reavalia/reconstrói momentos passados e circunstâncias desfavoráveis, dando espaço a novos nascimentos.
4. As mulheres
Ainda, destaco que esse filme (majoritariamente feito por mulheres) dá uma bela aula sobre como construir personagens complexas, que representam um momento passado por uma ótica atual.
Por exemplo, todas as fases de uma paixão são representadas sem destacar diretamente o sexo, mas não por pudor ou censura, mas como escolha poética e política, visto que, dentro do contexto da obra, uma axila com erva se faz mais sensual do que uma cena que demonstrasse diretamente o ato da masturbação. Dessa maneira, fica difícil botar trechos desse filme no xvideos, servindo como subversão à lógica (masculina) de transformar tudo em pornografia. Então, novamente, o minimalismo de Retrato de uma Jovem em Chamas se mostra cirúrgico e original.
Por fim, minha memória vai guardar com carinho essa obra poderosa, como uma chama que vai e volta, muda de cor, mas perdura. Afinal, o longa em si mostra que é para isso que serve a arte.
Catedrais da Cultura
3.6 3Possui alguns méritos, mas também alguns problemas. Talvez, o principal limite dessa série seja que as 6 "catedrais" ficam localizadas em: Europa / Europa / Europa / Estados Unidos / Europa / Europa. O resto do mundo tinha muito a oferecer (e enriquecer) à proposta original, deixando os temas abordados menos repetitivos.
Aconteceu Naquela Noite
4.2 332 Assista AgoraTive uma experiência relativamente boa com esse filme, reconheci sua influência/impacto em obras que vieram posteriormente, bem como percebi características técnicas majoritariamente positivas nele. Finalizei-o com a vontade de realizar um comentário sobre um aspecto específico desse filme: o enredo. Um longa reflete certos determinantes sócio-políticos e culturais de sua época? Sim. Mas o olhar do espectador sobre a obra também, certo? Então, faço aqui um breve resgate a fim de explicitar como essa obra envelheceu tão mal para mim:
Uma mulher rica gera um conflito, porque quis casar com um homem que seu pai não concorda (e, portanto, a mantém privada de liberdade forçosamente num barco). Ela aparenta descontrole pela injustiça e foge, mas logo demonstra que não possui qualquer capacidade mínima de resolver os problemas e necessidades básicas que surgem. Revela-se, assim, o homem salvador, que pensa e decide por ela, controla e a alimenta, literalmente a carrega por onde e como deseja. Ela, por sua vez, age como um objeto absurdamente passivo e submisso (e ainda se sente grata, feliz e apaixonada ao estar nessa posição). E, teoricamente, ele faz tudo isso para “lucrar” com ela, mas logo acaba também se apaixonando ao assumir toda essa postura de domínio absoluto (só lembrando que ele cita em diferentes momentos que ela merece apanhar e isso é aceito com normalidade). Então, o “malandro” limpa sua alma pelo amor que começa a sentir, logo tudo o que diz ou faz se justifica. Ademais, no decorrer da trama, ela é rasa e previsível (por ser rica e, principalmente, por ser mulher), já ele nos surpreende com suas falas e ações.
No fim, ela sai da postura passiva e decide por conta própria voltar ao pai e ao marido (agora indesejado), por raiva de achar que o protagonista não a quer. Mas há um último problema: o pai nunca gostou do marido inicial e vai atrás de conversar com o homem salvador até descobrir que esse sim ele gosta (ao se espelhar em suas características). Aí o pai articula tudo, diz o que a filha deveria fazer e, desse modo, ela aceita e toma a decisão de ficar com o homem que está apaixonada de verdade. O final perfeito se concretiza: ela pode casar com o malandro honesto.
Poderia detalhar mais essa análise (enriquecendo de exemplos e comparações com outras obras), mas acho que isso é minimamente suficiente para demonstrar como minha experiência de comédia e “química entre personagens” foi sendo minada aos poucos no decorrer desse longa. Compreendo que tudo isso era historicamente construído como natural há 85 anos, mas me impressiona que tantas pessoas consigam ver isso tudo com leveza e total simpatia no século XXI. Enfim, ver essa obra me faz pensar como desejo que “aquela noite” deixe cada vez mais de acontecer daqui em diante.
Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar
4.3 2101. Jeans: Deus e o Diabo na terra do sol
Fordismo neoliberal e periférico: a hora e a vez do microempreendedorismo individual. Nessa mensagem, o longa acerta demais na sua condução, tornando-se importante na representação das consequências atuais do capitalismo.
A precarização chega com facilidade em locais como Toritama, em que o “viver de produção” traz novas oportunidades de sobrevivência e desperta sonhos opacos de riqueza. O jeans se torna a nova salvação para conseguir “ser bem-sucedido” num local que historicamente vivia da agricultura familiar, mas com condições materiais desfavoráveis e ausência de suporte governamental. O jeans se torna o inferno: ter autonomia para trabalhar “como quiser”, mas ser engolido compulsivamente pela lógica de jornadas de mais de 12h/dia, que são resumidas em repetições mecânicas com condições insalubres de trabalho. Isto é, precariedade e exploração disfarçadas de autonomia. O jeans é como uma praga, tudo alcança (e muda): ambientes, relações sociais, modos de vida, o passado e o futuro. Nesse cenário, tal microempreendedorismo individual surge como um sonho lindo, sintetizado num ouro tardio e azulado para o sertão.
2. Sobre (im)parcialidade e relações pessoa-ambiente
É muito bom ver Marcelo Gomes deixar mais que explícito que a obra se trata de um viés pessoal sobre as questões que aborda, o que nega a priori o pressuposto ingênuo e falso que um documentário serve pra transmitir uma verdade, uma realidade. Não necessariamente o longa serve para validar o que seria consenso na cidade sobre determinados assuntos... É uma produção de alguém de fora, as pessoas possuem voz, mas a interpretação sobre isso fica por conta dele. Sua proposta se baseia no choque entre uma Toritama individual, remota, saudosista x Toritama “industrial” estranha às suas memórias. É uma resposta para a seguinte pergunta: o que aconteceu com aqueles lugares que eu guardava aqui como parte de minha identidade, de minha memória afetiva?
A partir disso, acertos e erros existem. Muito mais acertos do que erros, na verdade. É passada a ideia de que tradições e modos de vida estão sendo esquecidos, é realmente ruim ver que as pessoas simplesmente vão se descolando totalmente das relações que possuíam com sua própria terra, seu céu, seu lar. Nesse sentido, tudo ok com a narrativa proposta, mas também acredito que em alguns momentos o filme “pesa a mão” na nostalgia, trazendo uma visão precipitada que estimula uma dicotomia tradição x momento atual. Como se antigamente houvesse um sertão “puro” e agora as coisas estão somente piorando... Muita coisa desinteressante tem acontecido lá, mas nem todas as mudanças são necessariamente negativas, até porque havia também desigualdades e problemas sociais antes. Toritama do século XXI é uma consequência direta de tudo aquilo que a cidade oferecia e não oferecia, as coisas se mesclam. Só para dar um exemplo, num momento a montagem induz a pensar que o rap que agora faz parte do cotidiano de jovens seria um contraponto à calmaria e melancolia que suas memórias/sentimentos traziam ao lembrar dos ambientes que vivenciou em décadas passadas. Ou seja, uma maior complexificação do discurso produzido pelo autor poderia potencializar ainda mais a obra, sem passar a impressão ocasional de conservadorismo descontextualizado.
3. A propaganda, o carnaval e o tempo
Ressalto novamente que o parasitismo desse modo de produção consome também a forma como as pessoas se relacionam com seus lugares. Todo espaço (familiar ou comercial) existente vai se transformando numa mini fábrica, de modo que a monotonia e massificação engolem simultaneamente possibilidades de vida e ambientes. E, paralelamente, a relação temporal das pessoas também vai sendo devorado e padronizado. Para mim, os 2 momentos que melhor resumem as consequências disso estão no início e no fim do filme. A sequência inicial de pessoas artificializadas (nos outdoors) cobrindo a paisagem do sertão é muito simbólica: o horizonte natural que existe ali é sobreposto/apropriado por blocos de publicidade de pessoas estrangeiras àquele local e que representam idealizações de consumo. É uma metáfora para o modo como boa parte da população tem se relacionado com sua terra. E, no fim, revela-se que o momento de respiro e lazer àquilo tudo seria o carnaval, que necessariamente não se encontra na cidade dessas pessoas. Ironicamente, até objetos do próprio lar precisam ser desfeitos a fim de atingir esse ideal efêmero de diversão. Portanto, tomada de espaços (des)caracterizados para um único propósito, Toritama “tem como nome trabalho e apelido, hora extra”, mas não supre sequer necessidades básicas da população. Ademais, Toritama não parece ter passado nem futuro, Toritama virou apenas o presente.
Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava
3.7 71É uma obra importante: consegue resgatar diversos traços de nossa produção audiovisual que explicam o Brasil dos séculos XX e XXI.
Tendo a mulher-objeto enquanto meio (e fim) de suas tramas, o cinema erótico-popular do período ditatorial se mostra muito revelador. A pornochanchada é simultaneamente produto e fábrica de representações presentes na sociedade brasileira. Com a montagem cirúrgica e irônica, o longa intensifica/reconstrói os significados e discursos dessas produções, as quais são um terreno fértil que simboliza abertamente, por meio do entretenimento, todos os desejos de opressão do homem (de bem).
A edição genial desse cinema popular (mas atualmente marginal) é certeira por mostrar um tom de delírio machista carnavalesco, em que a violência, o consumo exacerbado e a moral hipócrita se misturam com racismo, classismo e neoimperialismo. E o filme mostra que, paradoxalmente, também havia um pouco de espaço nessas peças para críticas e sátiras das regras sociais e leis presentes na ditadura, o que ratifica a relevância do resgate realizado pela diretora.
"Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava" me ensinou mais sobre meu país. Todas as estruturas do Brasil que é capaz de produzir tudo isso enquanto lazer popular continuam presentes, pois as pessoas que se divertiam com esses longas-metragens continuam ocupando (e gerindo) os espaços de opinião pública. A memória social desse cinema vive.
Também vivemos outro momento, pelo menos há mais possibilidades de resistir e tensionar certos discursos mais limitantes de vida... Mas é sempre bom lembrar que a lógica "merda de democracia em que até puta quer ter direitos" permanece muito atual, assim como todas as várias "sombras" de ânsia por dominação e desigualdade social destacadas na obra.
Afinal, quantos "Brasis" possíveis não existem (ainda) devido às reverberações desse Brasil da pornochanchada?
Dor e Glória
4.2 619 Assista AgoraSublimação por meio da arte em sua melhor forma, recheada de metalinguagens bem construídas. Dá pra perceber que as cores de Almodóvar não são as mesmas durante toda a vida (e isso é ótimo).
Parasita
4.5 3,6K Assista AgoraUm filme que se constrói por meio das relações e tensões explícitas e se engrandece nos detalhes e metáforas. Diferente do que (ainda) é recorrente no cinema coreano, Parasita consegue de fato criticar e fomentar uma discussão aprofundada das consequências das desigualdades sociais existentes lá. E ele não traz um olhar moral limitado de “bem x mal” ou “aqui se paga, aqui se faz” que também é comum nas produções do país.
O longa traz situações que explicitam a interdependência (e a inconciliabilidade) entre as diferentes posições sociais, de modo a pôr em xeque em diferentes momentos de fato quem seria parasita de quem. Tudo isso por meio de um roteiro original e inventivo e de uma execução excelente.
O filme traz algumas pinceladas de idealização a respeito de ricos “inocentes” e bem feitores, o que me incomodou em alguns momentos. Por exemplo, a mulher da família abastada é sempre inocente e facilmente ludibriável (pelas pessoas “má intencionadas”). Já na cena da festa é projetada uma reunião harmônica e repleta de pessoas felizes e amigáveis, dando a impressão que somente algo externo mudaria o “destino” áureo daquelas pessoas... Mas também há destaque para outros aspectos dessas pessoas privilegiadas, o filme vai apresentando camadas de complexidade. E, por fim, revela-se ao espectador que as pessoas pobres não alcançam de fato a desejada ascensão social, que se atinge somente por situações efêmeras ou por frágeis sonhos e promessas, o que realça um tom mais realista à obra.