Gábor Bódy é um dos principais nomes do cinema húngaro. Traduzir seus três principais filmes não foi uma tarefa fácil. Foram quase exatas 4000 entradas, e não quaisquer, algumas bem complicadas de se traduzir. É com muito prazer que trago a síntese de sua obra pela primeira vez no Brasil, ao menos no mundo virtual. Bódy morreu com apenas 39 anos e erigiu películas colossais.
Comecei seu trabalho pelo monumental Narciso e Psique, que filme espetacular! Mais de 4 horas, legendas difíceis... sensacional. Tendo em visto o seu teor mítico, Narciso nos evoca tudo aquilo que é corpóreo, uma estética do corpo. Psique, como no mito de Eros, representa a alma, suas paixões e conflitos. Os dois tentam se enlaçar cada vez mais, a independência dos dois, porém, se sobressai, de modo que o toque e a relação são falhas, mas não o espelhamento. Os dois invertem os papéis, o corpo quer conhecer a alma e vice-versa, isso sem a necessidade de uma união.
Os sofrimentos de Psique envolvem a carne, o sexo, a violação – o sangue não aprisiona a alma, mas a liberta, mostra ao impalpável o vociferar de um prazer oculto, a sensação de estar aí, no mundo. Narciso, ao contrário, busca o transcendental, um horizonte capaz de fixar seus escritos, um mundo onde as nuvens sejam seus quadros, contemplados por todos os mortais.
Narciso é essencialmente espelho, como no mito. Para Lacan, em sua teoria do imaginário, é precisamente o narcisismo o movimento primeiro para a constituição de um “eu”, aquele contemplar de si mesmo dentro da mente e diante do espelho. Aquela imagem refletida mostra a si a presença ontológica, uma estrutura vivente, espécie de “eu ideal”. Seu corpo se dissolve pelo mundo, em imagens, fragmentos aos olhos dos outros. A alteridade revela o “eu real”, aquele que é presentificado. Psique é aquela que tudo aguenta, a alma. Vaga por entre o silêncio e a balbúrdia à procura de repouso. Sozinha, a alma não tem protagonismo, é mera luz obliterada pelos temerosos cantos escuros. Frente aos outros, porém, consegue acumular os vislumbres da existência, os desejos do corpo.
Tomemos como exemplo Descartes e Hobbes. O primeiro assume um dualismo entre corpo e alma, o segundo um monismo corpóreo. É mister lembrarmos que, a partir de Descartes, a noção de uma pessoa “psicológica” recebe estatuto ontológico, posto que o “eu” indaga a sua própria existência e a conclui como dado claro e distinto. Em Hobbes, tudo é corpo, mesmo a imagem do “corpo” de Deus, as paixões se explicam através do movimento, assim como o próprio pensar. A constituição de seu pensamento se dá na física.
Narciso e Psique vivem nessa realidade hobbesiana, indo até os limites do corpo com o objetivo de encontrar um ideal estético. Para Psique, a beleza de seus poemas está no concreto, no erótico, na capacidade de fazer o leitor sentir que se deita com ela. Para Narciso, o belo é abstrato, o etéreo, a metáfora. Um tem ao outro dentro de si, e por isso mesmo não se misturam, a alma está em Narciso e o corpo em Psique, há uma certa completude egoísta, em especial na monomania de Narciso, preocupado somente com os seus escritos. Quanto mais Psique se aproxima, tanto mais o espelho torna distante, o oposto ocorre. É preciso pô-lo em esquecimento para que este reflita outra imagem, pois esquecer é fadar o imaginário à morte.
Para o antropólogo Gilbert Durand, o imaginário se forma com a consciência da morte. A humanidade cria imagens, símbolos, arquétipos, mitos, tudo isso como tentativa de reverter a morte. Heidegger dizia: “a possibilidade da impossibilidade”. Esse impossível nos chama ao “cuidado”, ao querer cuidar, comunicar. Essa comunicação forma o imaginário, formas de linguagem que dizem o outro, alegoria. Agoreuein é justamente “dizer o outro”, e esse “outro” é comunicado aos outros. Tudo se põe em relação de alteridade.
Além das situações metafísicas, essa obra-prima de Gábor Bódy também se mostra feminista, pondo Psique em sua plena liberdade intelectual e sexual. O sexo, como a guerra, só funciona com uma previsão de paz. O orgasmo revela essa abertura ao mundo, uma declaração de tempos mais tranquilos. Se não funciona, a guerra surge posteriormente, nas tensões sobre aquilo que é ausente.
Achei interessante o fato de haver vários narradores. Parece que um não fica contente com o outro e faz questão de reafirmá-lo. Isso me pareceu uma forma de reforçar os diferentes estados do corpo e da alma, eles não são tão simples para um único narrador, não há onisciência por parte de quem narra. Como o filme se divide em três partes, classifiquei cada uma delas da seguinte maneira: alma poética, alma política e alma errante. Tendo em vista que Psique é a personagem principal, e não Narciso, cada capítulo pode ser assim categorizado. Na primeira parte, temos o amor pela poesia, a ânsia da alma em tudo ver, tudo experimentar. Esse desejo acaba desencadeando na política, reino dos outros, e é neles que de tudo se experiencia. Já a terceira parte reflete essa errância, as viagens terminais da alma por aquilo que acha mais necessário.
Há uma clara destruição do poético pelo político, a peça de Narciso é destruída pelo símbolo do pilar grego em ruína. Narciso e Psique se unem na morte, o corpo e a alma, ambos vão embora, a união se dá na impossibilidade. É interessante sabermos um pouco sobre Sándor Weöres, o autor do livro. Seus poemas receberam adaptações musicais por Zoltán Kodály e Ligeti, o que mostra a sua relevância no cenário. O filme é uma verdadeira obra de arte, visual e filosófica. Está no panteão dos grandes filmes húngaros, ao lado de obras como as de Miklós Jancsó e Béla Tarr. Não deixem de ver esse filmaço!
“Não há nada para escrever. Tudo o que você precisa fazer é se sentar em frente de sua máquina de escrever e sangrar” – Ernest Hemingway.
Quando a protagonista recebe o manuscrito de seu ex-marido, que até então ela acreditava ser um escritor que não iria para frente, ela é fisgada já nas primeiras linhas, e assim vai até o final do livro. Se antes ela achava que o ex-marido era fraco, o livro é como se fosse a confirmação do contrário. É criativo e forte. Em uma das cenas, a personagem principal (Amy Adams), diz que o ex a chamava de “Animal Noturno”, e o livro tem o título “Animais Noturnos”. Possivelmente, os animais noturnos, que são retratados como assassinos e estupradores, são a analogia daquilo que o personagem de Jake Gyllenhaal sentiu ao perder a mulher para um outro homem, dado que ele constata sob a chuva, vendo os dois em um carro. Há uma cena em que Susan (Amy Adams), diz que se arrependeria de abortar o filho de Tony (Gyllenhaal), e é justamente o momento que Tony os flagra juntos. A filha parece não ter sido abortada, vemos o momento em que Susan liga para ela, mas ela não tem conhecimento de que Tony é seu pai, assim como a figura do policial Bobby, que diz não ter esposa, mas tem uma filha que nem sabe de sua existência. Não sabendo desse fato, Tony possivelmente escreveu o livro como uma metáfora, onde sua filha foi morta e também sua mulher – a família morta é a família que Tony perdeu ao se separar da inconstante esposa.
O resto no site: https://eliasdourado.com/animais-noturnos-2016-globo-de-ouro/
Em uma cidade fria, de paisagens ermas e distantes, as relações sociais seguem rumo semelhante, ríspidas e diretas, atravessam os ouvidos como o mais profundo frio. É curioso perceber como todo contraste é construído no ápice do filme, quando vemos a casa do personagem principal em chamas, momento com tons de laranja e vermelho, opõem-se diretamente ao clima central do filme, que é sumamente de tonalidade branca, gelada. São justamente as chamas de um passado distante que movem o problemático protagonista, desmotivado e provavelmente depressivo. O fogo interno que o desloca é o contraste maior da cidade natal que o consome no grosso gelo de memórias indesejáveis. "Manchester à Beira-Mar" é, substancialmente, um filme sobre a memória e a batalha que travamos contra as lembranças mais desconfortáveis.
O resto no site: https://eliasdourado.com/manchester-beira-mar-2016-globo-de-ouro/
"Remova o documento - e você remove o homem" - Mikhail Bulgakov
Muito já foi dito sobre a burocracia no cinema. Filmes consagrados como Viver (1952) de Kurosawa ou desconhecidos como Feldobott Kö (1969) de Sándor Sára são indispensáveis para embarcar na jornada de terceiras pessoas. Como diria Alexandra Kollontai: "Terceiros cuidando da sua vida: essa é a essência da burocracia." Será essa essência a grande chave do filme? Será a mão que afaga a mesma que apedreja e confunde? Katie, a mãe solteira e com dois filhos no filme, em determinado momento da sessão, tenta se afastar de Daniel Blake, por vergonha e dignidade. Não são as conversas e situações sociais "ocultas zonas de guerra", como diria o personagem Khan de Star Trek? O medo, a subalternação e o espanto das palavras são como granadas que voam pelo front, podem explodir a qualquer momento. Em vida, a comunicação com terceiros é sumamente verbal, seria isso a síntese de uma burocracia de relações?
Eu, Daniel Blake é mais humano que essas hipóteses, apesar de seus momentos de tristeza e horror burocrático. O que poderia vir a ser uma relação de amizade abusiva é retratada como rara ligação de altruísmo. Blake, ao mesmo tempo que é constantemente recusado pelo sistema inglês de assistência social, o que parece ser mordaz crítica ao welfare state e, de certa forma, uma metáfora do ataque que o Brexit causou, também ajuda Katie, mulher em situação parecida, em busca de auxílio monetário. O otimismo de Ken Loach não é piegas e nem exagerado, aliás, funciona tão bem no filme que o torna muito agradável de assistir. Curiosamente, quando a ajuda troca de lado, quando chega a vez de Blake ser ajudado, ele não aguenta e sofre novo ataque cardíaco. Blake é altruísta. É um filme sobre dignidade. Ele não aceita a ajuda de seu vizinho “China” e sempre ironiza a assistência social. No fundo, me pareceu um homem decidido desde o início, como se já sentisse que a morte estava próxima e agora deveria desafiar aqueles que reduzem a humanidade a documentos. A pichação no final do filme é seu grito de dignidade e possível indiferença àqueles que são indiferentes ao mundo, como os responsáveis pela burocracia. “Dignidade, sempre dignidade”, como diria Gene Kelly em Cantando na Chuva.
O resto no site: eliasdourado.com
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Narciso e Psique
3.7 5Gábor Bódy é um dos principais nomes do cinema húngaro. Traduzir seus três principais filmes não foi uma tarefa fácil. Foram quase exatas 4000 entradas, e não quaisquer, algumas bem complicadas de se traduzir. É com muito prazer que trago a síntese de sua obra pela primeira vez no Brasil, ao menos no mundo virtual. Bódy morreu com apenas 39 anos e erigiu películas colossais.
Comecei seu trabalho pelo monumental Narciso e Psique, que filme espetacular! Mais de 4 horas, legendas difíceis... sensacional. Tendo em visto o seu teor mítico, Narciso nos evoca tudo aquilo que é corpóreo, uma estética do corpo. Psique, como no mito de Eros, representa a alma, suas paixões e conflitos. Os dois tentam se enlaçar cada vez mais, a independência dos dois, porém, se sobressai, de modo que o toque e a relação são falhas, mas não o espelhamento. Os dois invertem os papéis, o corpo quer conhecer a alma e vice-versa, isso sem a necessidade de uma união.
Os sofrimentos de Psique envolvem a carne, o sexo, a violação – o sangue não aprisiona a alma, mas a liberta, mostra ao impalpável o vociferar de um prazer oculto, a sensação de estar aí, no mundo. Narciso, ao contrário, busca o transcendental, um horizonte capaz de fixar seus escritos, um mundo onde as nuvens sejam seus quadros, contemplados por todos os mortais.
Narciso é essencialmente espelho, como no mito. Para Lacan, em sua teoria do imaginário, é precisamente o narcisismo o movimento primeiro para a constituição de um “eu”, aquele contemplar de si mesmo dentro da mente e diante do espelho. Aquela imagem refletida mostra a si a presença ontológica, uma estrutura vivente, espécie de “eu ideal”. Seu corpo se dissolve pelo mundo, em imagens, fragmentos aos olhos dos outros. A alteridade revela o “eu real”, aquele que é presentificado. Psique é aquela que tudo aguenta, a alma. Vaga por entre o silêncio e a balbúrdia à procura de repouso. Sozinha, a alma não tem protagonismo, é mera luz obliterada pelos temerosos cantos escuros. Frente aos outros, porém, consegue acumular os vislumbres da existência, os desejos do corpo.
Tomemos como exemplo Descartes e Hobbes. O primeiro assume um dualismo entre corpo e alma, o segundo um monismo corpóreo. É mister lembrarmos que, a partir de Descartes, a noção de uma pessoa “psicológica” recebe estatuto ontológico, posto que o “eu” indaga a sua própria existência e a conclui como dado claro e distinto. Em Hobbes, tudo é corpo, mesmo a imagem do “corpo” de Deus, as paixões se explicam através do movimento, assim como o próprio pensar. A constituição de seu pensamento se dá na física.
Narciso e Psique vivem nessa realidade hobbesiana, indo até os limites do corpo com o objetivo de encontrar um ideal estético. Para Psique, a beleza de seus poemas está no concreto, no erótico, na capacidade de fazer o leitor sentir que se deita com ela. Para Narciso, o belo é abstrato, o etéreo, a metáfora. Um tem ao outro dentro de si, e por isso mesmo não se misturam, a alma está em Narciso e o corpo em Psique, há uma certa completude egoísta, em especial na monomania de Narciso, preocupado somente com os seus escritos. Quanto mais Psique se aproxima, tanto mais o espelho torna distante, o oposto ocorre. É preciso pô-lo em esquecimento para que este reflita outra imagem, pois esquecer é fadar o imaginário à morte.
Para o antropólogo Gilbert Durand, o imaginário se forma com a consciência da morte. A humanidade cria imagens, símbolos, arquétipos, mitos, tudo isso como tentativa de reverter a morte. Heidegger dizia: “a possibilidade da impossibilidade”. Esse impossível nos chama ao “cuidado”, ao querer cuidar, comunicar. Essa comunicação forma o imaginário, formas de linguagem que dizem o outro, alegoria. Agoreuein é justamente “dizer o outro”, e esse “outro” é comunicado aos outros. Tudo se põe em relação de alteridade.
Além das situações metafísicas, essa obra-prima de Gábor Bódy também se mostra feminista, pondo Psique em sua plena liberdade intelectual e sexual. O sexo, como a guerra, só funciona com uma previsão de paz. O orgasmo revela essa abertura ao mundo, uma declaração de tempos mais tranquilos. Se não funciona, a guerra surge posteriormente, nas tensões sobre aquilo que é ausente.
Achei interessante o fato de haver vários narradores. Parece que um não fica contente com o outro e faz questão de reafirmá-lo. Isso me pareceu uma forma de reforçar os diferentes estados do corpo e da alma, eles não são tão simples para um único narrador, não há onisciência por parte de quem narra. Como o filme se divide em três partes, classifiquei cada uma delas da seguinte maneira: alma poética, alma política e alma errante. Tendo em vista que Psique é a personagem principal, e não Narciso, cada capítulo pode ser assim categorizado. Na primeira parte, temos o amor pela poesia, a ânsia da alma em tudo ver, tudo experimentar. Esse desejo acaba desencadeando na política, reino dos outros, e é neles que de tudo se experiencia. Já a terceira parte reflete essa errância, as viagens terminais da alma por aquilo que acha mais necessário.
Há uma clara destruição do poético pelo político, a peça de Narciso é destruída pelo símbolo do pilar grego em ruína. Narciso e Psique se unem na morte, o corpo e a alma, ambos vão embora, a união se dá na impossibilidade. É interessante sabermos um pouco sobre Sándor Weöres, o autor do livro. Seus poemas receberam adaptações musicais por Zoltán Kodály e Ligeti, o que mostra a sua relevância no cenário. O filme é uma verdadeira obra de arte, visual e filosófica. Está no panteão dos grandes filmes húngaros, ao lado de obras como as de Miklós Jancsó e Béla Tarr. Não deixem de ver esse filmaço!
Minha tradução disponível em: makingoff.org
Animais Noturnos
4.0 2,2K Assista Agora“Não há nada para escrever. Tudo o que você precisa fazer é se sentar em frente de sua máquina de escrever e sangrar” – Ernest Hemingway.
Quando a protagonista recebe o manuscrito de seu ex-marido, que até então ela acreditava ser um escritor que não iria para frente, ela é fisgada já nas primeiras linhas, e assim vai até o final do livro. Se antes ela achava que o ex-marido era fraco, o livro é como se fosse a confirmação do contrário. É criativo e forte. Em uma das cenas, a personagem principal (Amy Adams), diz que o ex a chamava de “Animal Noturno”, e o livro tem o título “Animais Noturnos”. Possivelmente, os animais noturnos, que são retratados como assassinos e estupradores, são a analogia daquilo que o personagem de Jake Gyllenhaal sentiu ao perder a mulher para um outro homem, dado que ele constata sob a chuva, vendo os dois em um carro. Há uma cena em que Susan (Amy Adams), diz que se arrependeria de abortar o filho de Tony (Gyllenhaal), e é justamente o momento que Tony os flagra juntos. A filha parece não ter sido abortada, vemos o momento em que Susan liga para ela, mas ela não tem conhecimento de que Tony é seu pai, assim como a figura do policial Bobby, que diz não ter esposa, mas tem uma filha que nem sabe de sua existência. Não sabendo desse fato, Tony possivelmente escreveu o livro como uma metáfora, onde sua filha foi morta e também sua mulher – a família morta é a família que Tony perdeu ao se separar da inconstante esposa.
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Manchester à Beira-Mar
3.8 1,4K Assista AgoraEm uma cidade fria, de paisagens ermas e distantes, as relações sociais seguem rumo semelhante, ríspidas e diretas, atravessam os ouvidos como o mais profundo frio. É curioso perceber como todo contraste é construído no ápice do filme, quando vemos a casa do personagem principal em chamas, momento com tons de laranja e vermelho, opõem-se diretamente ao clima central do filme, que é sumamente de tonalidade branca, gelada. São justamente as chamas de um passado distante que movem o problemático protagonista, desmotivado e provavelmente depressivo. O fogo interno que o desloca é o contraste maior da cidade natal que o consome no grosso gelo de memórias indesejáveis. "Manchester à Beira-Mar" é, substancialmente, um filme sobre a memória e a batalha que travamos contra as lembranças mais desconfortáveis.
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Eu, Daniel Blake
4.3 532 Assista Agora"Remova o documento - e você remove o homem" - Mikhail Bulgakov
Muito já foi dito sobre a burocracia no cinema. Filmes consagrados como Viver (1952) de Kurosawa ou desconhecidos como Feldobott Kö (1969) de Sándor Sára são indispensáveis para embarcar na jornada de terceiras pessoas. Como diria Alexandra Kollontai: "Terceiros cuidando da sua vida: essa é a essência da burocracia." Será essa essência a grande chave do filme? Será a mão que afaga a mesma que apedreja e confunde? Katie, a mãe solteira e com dois filhos no filme, em determinado momento da sessão, tenta se afastar de Daniel Blake, por vergonha e dignidade. Não são as conversas e situações sociais "ocultas zonas de guerra", como diria o personagem Khan de Star Trek? O medo, a subalternação e o espanto das palavras são como granadas que voam pelo front, podem explodir a qualquer momento. Em vida, a comunicação com terceiros é sumamente verbal, seria isso a síntese de uma burocracia de relações?
Eu, Daniel Blake é mais humano que essas hipóteses, apesar de seus momentos de tristeza e horror burocrático. O que poderia vir a ser uma relação de amizade abusiva é retratada como rara ligação de altruísmo. Blake, ao mesmo tempo que é constantemente recusado pelo sistema inglês de assistência social, o que parece ser mordaz crítica ao welfare state e, de certa forma, uma metáfora do ataque que o Brexit causou, também ajuda Katie, mulher em situação parecida, em busca de auxílio monetário. O otimismo de Ken Loach não é piegas e nem exagerado, aliás, funciona tão bem no filme que o torna muito agradável de assistir. Curiosamente, quando a ajuda troca de lado, quando chega a vez de Blake ser ajudado, ele não aguenta e sofre novo ataque cardíaco. Blake é altruísta. É um filme sobre dignidade. Ele não aceita a ajuda de seu vizinho “China” e sempre ironiza a assistência social. No fundo, me pareceu um homem decidido desde o início, como se já sentisse que a morte estava próxima e agora deveria desafiar aqueles que reduzem a humanidade a documentos. A pichação no final do filme é seu grito de dignidade e possível indiferença àqueles que são indiferentes ao mundo, como os responsáveis pela burocracia. “Dignidade, sempre dignidade”, como diria Gene Kelly em Cantando na Chuva.
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