Kusturica é um dos raros artistas que integram o seleto grupo dos diretores que venceram a Palma de Ouro em Cannes duas vezes. Conhecido por obras que mesclam comentários sociais sobre a vida na antiga Ioguslávia com lampejos de surrealismo escapista e comicidade, o multipremiado realizador nascido em Sarajevo revisita alguns temas caros de sua filmografia em Na Via Láctea, seu primeiro longa-metragem de ficção desde Promessas (2007).
Com ecos visuais que fazem referência direta ao excelente Vida Cigana (1988), mas com um comentário político que não faz jus à tenacidade dos celebrados Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios (1985) e Underground - Mentiras de Guerra (1995), seu trabalho mais recente é uma fábula em três atos sobre o amor em tempos de guerra composta tanto por belos lampejos poéticos quanto por deslizes na tonalidade do filme e exageros.
Com um clima bucólico que quase evoca certa atemporalidade e induz falsos anacronismos, a trama se passa durante um período de cessar fogo nunca respeitado pelos soldados durante Guerra da Bósnia (1992-1995). Neste contexto, o gentil e reservado leiteiro Kosta enfrenta o fogo cruzado para entregar suprimentos para combatentes na zona de conflito na região rural de seu país. Interpretado pelo próprio Kusturica, o personagem, que carrega muito da personalidade do próprio diretor, anda montado num burro com uma ave de rapina nos ombros, ama música e é capaz de fazer um falcão dançar quando toca um instrumento. Ele é vizinho da extrovertida Milena (Sloboda Mićalović), uma ex-ginasta que não hesita em mostrar suas habilidades esportivas nas horas mais inapropriadas, que está de casamento marcado com Kosta.
Um dia, Milena leva a personagem referida apenas como Noiva para casa. Interpretada por Monica Bellucci, a personagem que já enlouqueceu homens de desejo é uma simples mulher italiana com raízes sérvias que tem um passado traumático. Milena acolheu a forasteira para forçá-la a se casar com o pitoresco Zaga (Predrag Manojlović), um herói de guerra que funciona no enredo para expor o lado mais ridículo do espírito militarista. Na Via Láctea ganha ares de romance trágico clássico quando Kosta e a Noiva desafiam convenções e se apaixonam.
Kusturica dá diversas provas de sua criatividade para subverter a realidade com boas metáforas visuais. Em um filme marcado pela memória afetiva de seu realizador, o diretor comenta a dureza e impetuosidade do passar do tempo com um imenso relógio descontrolado que fere quem tenta alterar seus rumos. Como numa fábula da Disney à la A Branca de Neve, há muitos bichos ao redor do protagonista. Aqui os animais estão entre os personagens mais carismáticos e encarnam uma humanidade solene, qualidade que os próprios humanos parecem renegar em tempos de guerra. Os delírios visuais do longa-metragem também rendem de risadas (a alusão a Flashdance - Em Ritmo de Embalo, a galinha que briga com o espelho, os bêbados que aprendem a mover a orelha) à embrulhos no estômago (quando gansos nadam em sangue de porco, um falcão come um olho humano) ou ambas (como quando a orelha de Kosta é costurada de volta à sua cabeça pela Noiva).
O apelo surrealista do filme, um dos trunfos de sua primeira metade, perde força na medida que a trama principal avança se perde ao tentar equilibrar seu tom escapista com os comentários sobre a guerra e o enredo romântico. O roteiro assinado por Kusturica não se furta de apelar para Deus ex machina e a sucessão de situações mirabolantes torna-se cansativa e prejudica os bons simbolismos do enredo — como o paralelo com a história de Adão e Eva. Os efeitos especiais ruins também pesam contra a obra, por mais que também possam ser entendidos como mais uma estratégia cômica.
Como ator, Kusturica entrega uma perforamance regular. Com pouco em mãos, Bellucci consegue tirar leite de pedra com uma atuação elegante e para uma personagem sem muitas dimensões. Manojlović também se destaca graças à insanidade de Milena.
Mais uma vez, a paixão do diretor pela cultura e passado de seu país exala bons momentos e uma vibrante energia na tela, mas até a mais bem intencionada carta de amor corre o risco de pecar pelo exagero e Na Via Láctea ocupa um lugar menor na consagrada filmografia de Kusturica.
(Texto publicado no dia 11 de nov. de 2017 no site AdoroCinema como parte da minha cobertura do Festival MIMO de Cinema na cidade do Rio de Janeiro)
Depois de alguns meses sem conseguir me concentrar para ver filmes, superei a dispersão mental e assisti o drama polonês Corpus Christi (2019). Que grata surpresa.
No longa-metragem, um jovem com passado de delinquência deixa a detenção em regime de liberdade provisória. Cheio de fantasmas internos e com a alma torturada, ele aspira ingressar no seminário para se tornar padre, mas descobre que alguém com seu passado não poderia aspirar isso. Ao chegar em uma cidade provinciana, ele finge ser um clérigo recém ordenado. A mentira cresce como uma bola de neve até que Daniel, então "escória" (como é chamado por um policial), assume a direção de uma pequena paróquia.
Daniel encontra uma comunidade traumatizada e cheia de cicatrizes abertas, assim como ele. Com seu método nada ortodoxo (para dizer o mínimo) de realizar as tarefas de padre, Daniel aos poucos percebe que precisa ser um agente de reconciliação espiritual naquele local. Ele é um homem falho, errante, mas também são muitos daqueles cidadãos comuns, cheios de esqueletos no armário.
A atuação expressiva de Bartosz Bielenia no papel de Daniel é o coração do filme dirigido por Jan Komasa. Bielenia encarna as contradições de um homem que já aprendeu que não cabe a ele atirar a primeira pedra. Não mais.
O filme aborda o conceito de Graça de forma inquietante. Uma Graça acessível a todos que flui de formas misteriosas, de forma certa por linhas tortas -- de forma "torta" por linhas "certas".
Há um certo misticismo na noção de nostalgia. Sentir saudade é sentir uma estranha presença de uma ausência, uma sensação que confunde os antagonismos de felicidade e tristeza. Sentir a falta de uma pessoa, emoção ou experiência faz parte da experiência humana e essa angústia é explorada pelo anime Shiki Oriori: O Sabor da Juventude. O longa-metragem sino japonês é estruturado como uma antologia guiada por um mesmo eixo temático e com três histórias diferentes ambientadas em cidades distintas da China (escolha que certamente é um aceno ao segundo maior mercado de cinema do mundo).
O filme, distribuído pela Netflix, tem sido vendido com uma ênfase no fato de que a produção foi desenvolvida pelo estúdio CoMix Wave Films, casa do diretor e roteirista japonês Makoto Shinkai, do fenomenal Your Name. Entretanto, onde Your Name, o anime de maior sucesso comercial de todos os tempos, acerta, Shiki Oriori erra. O tríptico filme episódico carece de um desenvolvimento profundo de seus personagens, derrapa em clichês e parece parodiar de forma involuntária o sentimentalismo melodramático mas ao mesmo tempo honesto e eventualmente tocante dos melhores trabalhos de Shinkai.
A impressão que dá é que a obra tem ciência de que seu público alvo é composto por adolescentes, apesar da natureza adulta do tipo de reflexões que propõe, e por isso subestima o espectador regurgitando fórmulas ou se limitando a narrativas rasas. Erro crasso.
O segmento "O Macarrão de Arroz", dirigido por Jiaoshou Yi Xiaoxing, abre o filme. O episódio que mais se relaciona com o subtítulo de Shiki Oriori no Brasil acompanha a vida de Xiao Ming, um homem que foi morar em Pequim, mas vive imerso em suas lembranças de sua infância em sua cidade natal. Ao revisitar o passado, percebemos que o que a sétima arte é para o menino de Cinema Paradiso, o macarrão bifum é para o rapaz. Apesar das belas e detalhadas tomadas de pratos que certamente se tornarão gifs em páginas do Tumblr e podem referenciar a obsessão de Hayao Miyazaki em transformar culinária em animação, falta substância no caldo deste lámen.
Não há nenhum espaço para a subjetividade na morosa narração do protagonista com linhas que denunciam a impessoalidade e frieza da vida em uma metrópole de forma óbvia. O roteiro prefere deixar o personagem principal narrar sua própria vida dizendo algo como “estou triste” do que criar situações que mostrem tal tristeza. Quase não há diálogos aqui. Todas as impressões de mundo do rapaz chegam mastigadas. Nos flashbacks, a música incessante torna ainda mais frágil a tentativa do filme de romantizar os olhares que o menino lança para uma garota na rua. As obviedades também saltam narrativamente. Basta o rapaz dizer "Onde foram parar as lembranças?" para o filme voltar alguns anos no tempo. Por fim, pouco ou quase nada é dito sobre a personalidade de Xiao Ming para além de seus gostos culinários.
Yoshitaka Takeuchi, diretor de 3DCG de diversos filmes de Makoto Shinkai, dirige "Nosso Pequeno Desfile de Moda". Tirando uma cena que envolve chuva, o visual deste trecho de Shiki Oriori é tão desinspirado que mal parece se tratar de uma produção com o selo CoMix Wave Films, que já entregou produções com níveis impressionantes de detalhismo visual como O Jardim das Palavras. Ao menos os personagens conversam mais entre si, o que já representa um alívio em relação a "O Macarrão de Arroz".
Na trama, ambientada em Guangzhou, duas irmãs, Yi Lin e Lulu, lidam com a falta dos pais enquanto tentam se conectar afetivamente uma com a outra. Yi, a mais velha, é modelo e o filme parece resumir a vida das profissionais da passarela a obsessão pela beleza e disputa com outras mulheres. Lulu, a mais nova, é uma aspirante a estilista que não sabe se terá uma chance para mostrar seu talento. A história é rasa e sem complexidade. As viradas de roteiro são previsíveis e dada a sua inofensividade, "Pequeno Desfile de Moda" consegue ser mais fraco do que o pretensioso segmento que o precedeu. Para não dizer que tudo está perdido, este é o segmento que tem a trilha sonora mais sofisticada.
É só no terço final de Shiki Oriori que o longa-metragem mostra seu real potencial. A história de "Amor em Xangai", dirigido por Li Haoling, evoca a incomunicabilidade entre pessoas que se amam, como Your Name, mas sem o componente transcendental/sobrenatural. É a única parte realmente boa, consistente, dramaticamente convincente e narrativamente robusta do filme. Por ficar no desfecho, “Amor em Xangai” quase deixa a sensação de que o segmento final redime os demais erros do filme.
No enredo, Li Mo, já um arquiteto adulto, encontra uma fita cassete com a voz de Xiao Yu, a menina que foi sua paixão oculta na infância e mudou para sempre a trajetória de sua vida. Encontrar aquele objeto o faz propor para si mesmo uma arqueologia de seu afeto. O roteiro se preocupa em dosar drama e comédia para fugir do registrcoo do sentimentalismo monotemático e constrói uma história que complexifica seus personagens.
Aqui há motivações, pulsões, uma melancolia que se faz sentir para além do que é verbalizado. Quando "Amor em Xangai" foca na infância dos protagonistas, eles jamais precisam declarar o que sentem, mas situações como o colo que Li Mo oferece a Xiao Yu e as conversas resignadas que os dois tem densificam esta relação. Além disso, este é o segmento com a angulação de enredo menos egocêntrica dos três. Para além da ligação romântica, este trecho de Shiki Oriori é o mais eficiente em fornecer comentários sobre a sociedade na qual a trama se desenvolve, contextualizando valores sociais pela forma como as famílias se comportam, abordando temas como abusos e conflitos de gerações, e traçando um paralelo das histórias das pessoas com o desenvolvimento urbano de Xangai. Mesmo sem um desfecho catártico, o episódio consegue guardar surpresas até o final e definitivamente se firma como uma deliciosa recompensa.
Disponível em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-265658/criticas-adorocinema/
Por um lado, é bom que um filme como Sequestro Relâmpago seja realizado. O cinema nacional que ambiciona maiores bilheterias ainda é pouco aberto para além da dicotomia drama-comédia. Um filme de gênero, um suspense, como este projeto dirigido por Tata Amaral, é um bom exercício de diversificação de linguagem no cinema comercial contemporâneo brasileiro. Entretanto, a falta de diálogos e situações críveis e um desenvolvimento caricatural para a protagonista debilita a capacidade deste longa-metragem de causar o que ele pretende: tensão.
Marina Ruy Barbosa, que inicia com este projeto e com o romance Todas as Canções de Amor uma guinada cinematográfica após dezenas de trabalhos para a televisão, interpreta Maria Isabel, uma jovem carioca de classe média que leva uma vida cosmopolita em São Paulo, como mostra a sequência de abertura ao som de "Eu Sou Um Monstro", de Karina Buhr. Nos primeiros minutos do filme, Isabel é sequestrada depois de se encontrar com amigos em um bar à noite. Sidney Santiago interpreta Matheus, que tem pouca experiência com crimes que age em conjunto com Japonês, inconstante personagem de Daniel Rocha. As personalidades distintas da dupla causam uma série de conflitos entre os dois a respeito da maneira como a ação será conduzida. Depois de uma tentativa frustrada de sacar o dinheiro da conta bancária de Isabel em um caixa eletrônico antes das 22h, a dupla decide manter a jovem com eles até o amanhecer, quando poderão sacar alguns milhares de reais da conta dela.
Sequestro Relâmpago é capaz de maquinar uma sucessão de erros e perigos ao longo da madrugada: tentativas de fuga de Isabel, a proximidade da polícia, apuros com outros bandidos, brigas internas entre os sequestradores, a constante ameaça de violência sexual contra a jovem. Delimitando boa parte da ação a coisas que acontecem dentro do carro, Amaral consegue trabalhar bem enquanto diretora neste contexto restrito e usa jogos de câmera para mostrar como se dão as relações de poder naquele ambiente. Mesmo com potencial para ser um bom thriller, o que sabota a tensão do filme é são as atitudes pouco críveis dos personagens, especialmente da protagonista. Além disso, falta urgência nas atuações nos primeiros momentos do sequestro, algo que teria sido fundamental para pontuar de forma verossimilhante os riscos daquela situação.
O roteiro, assinado pela diretora em conjunto com Marton Olympio e Henrique Pinto, cria uma Isabel que incorpora discursos ativistas de forma caricatural, mais preocupada em chamar um segurança que poderia tê-la ajudado de "machista" do que falar de forma mais clara que ela estava sendo sequestrada e precisava de apoio. A forma como a personagem de Marina Ruy Barbosa canta "Rap é Compromisso", clássico do Sabotage, para mostrar que também gosta de hip hop na tentativa de conquistar a simpatia de seus algozes, beira o ridículo. Mas mais fora de tom ainda são os comentários que ela faz para tentar dizer que ela, de uma classe média supostamente decadente, e os dois bandidos estão no mesmo patamar social ao citar a concentração de riqueza dos 1% mais abastados do mundo. O momento "Quem é patricinha agora?" também é pouco natural. Também pesa contra o filme que a personagem de Barbosa dirija e (indiretamente) elogie um carro da mesma marca da qual a atriz é garota propaganda. Uma fronteira melhor delimitada entre o que seria uma publicidade escancarada e uma ficção dramática teria ajudado o longa-metragem a não ter um elemento extra fílmico distrativo.
O maior potencial do texto do filme são os contrastes entre os diferentes, a relação entre crime e desigualdade, as forças complexas de gênero, raça e classe que estão em jogo naquela incômoda relação entre vítima e bandidos. Só que isso tudo teria sido costurado com diálogos melhores. Ainda assim, há aspectos interessantes. A figura de Matheus é a mais interessante do filme. O personagem começa o longa-metragem como o "bom bandido", preocupado apenas em cumprir a tarefa e levar o dinheiro para sua família. Com a melhor atuação do projeto, Santiago aos poucos escancara suas próprias contradições de seu papel, algo fundamental para um filme que pretende gerar reflexões. Em alguns momentos, depois do começo arrastado, o trio principal mostra química em cena e leva a refletir qual tipo de realidade social teria permitido que os três fossem, talvez, amigos.
Digno em retratar a cidade de São Paulo, com seus contrastes próprios, como um outro organismo próprio do filme, Sequestro Relâmpago teria sido um filme bem melhor caso tivesse conseguido transmitir com uma eficácia mais consistente os perigos que apresenta.
Filme visto no 20º Festival do Rio, em novembro de 2018.
(Disponível em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-255539/criticas-adorocinema/)
Por vezes o cinema de terror é erroneamente referido como um tipo de entretenimento meramente reativo, um cinema de escapismo feito apenas para provocar reações mais físicas do que intelectuais. Qualquer olhar mais sério e menos preconceituoso para o gênero ajuda para perceber que esse tipo de filme é capaz de costurar comentários profundos sobre os medos e anseios de uma sociedade. Morto Não Fala, de Dennison Ramalho, apresenta um interessante comentário sobre violência urbana e dialoga tematicamente com produções recentes do cinema nacional, como Trabalhar Cansa, ao propor um terror que parte de questões tipicamente periféricas.
Com roteiro de Ramalho e Claudia Jouvin, com base nos contos de terror do jornalista Marco de Castro, o filme leva Daniel de Oliveira para mais uma atuação intensa após Aos Teus Olhos e 10 Segundos para Vencer. O ator vive Stênio, retraído plantonista noturno de um necrotério que tem a capacidade de conversar com os cadáveres. Na definição de um traficante morto pela ROTA, tropa de elite da PM paulista, o protagonista é "a última voz que eles vão ouvir antes de conversar com o Diabo". Os segredos que o personagem escuta dos mortos o levam a quebrar uma regra não escrita e usar as confidências mórbidas para arquitetar a morte de Jaime (Marco Ricca), amante de sua esposa, Odete (Fabíula Nascimento). Tal ato desencadeia uma espiral de pânico na família de Stênio e faz dele, seus dois filhos pequenos e a inocente Lara (Bianca Comparato), filha de Jaime, os alvos de uma fúria sobrenatural.
Saltam aos olhos os méritos estéticos deste projeto. Mergulhando em cheio na explicitude do terror gore, o filme investe pesado nas cenas mais gráficas ao representar a rotina de autópsias no IML. Membros decepados, litros de sangue falso, vísceras expostas, estados de putrefação... Tudo isso faz parte do léxico visual do filme. Rodado em sua maior parte em ambientes internos, Morto Não Fala tem na fotografia texturizada de tons esmaecidos e cinzentos uma adequada representação do estado de espírito de Stênio. Os momentos em que os cadáveres falam são repletos de bizarrice, causando uma bem vinda estranheza em função da fusão de efeitos práticos e digitais, mas tal estranheza está em sintonia com a emoções que as cenas visam suscitar no longa-metragem. Entre os aspectos técnicos, porém, é preciso ressaltar que o trabalho de som ganha um protagonismo maior do que deveria quando uma vez que o filme parece abusar de ruídos extremamente acintosos como uma muleta para alguns sustos.
Ao optar por olhar para uma figura tão underground quanto um técnico do IML, o filme evoca os medos sociais da violência urbana que retroalimentam discursos políticos abrasivos e coberturas policiais de telejornais sensacionalistas. Morto Não Fala parte de realidades concretas das periferias brasileiras — morte de traficantes, feminicídio, crimes passionais, presença da religiosidade evangélica — para o lado fantasioso que atrai o pior de seus protagonistas. É como uma visita a uma espécie de "deep web" da vida real.
O roteiro opta por um retrato um tanto dúbio da principal figura feminina do filme, Odete, no que é a questão mais problemática do enredo. Mesmo sendo ela a vítima de um machismo mesquinho, o roteiro parece trabalhar para que Stênio, com todo o seu egoísmo, seja tratado de maneira mais empática e reste a mulher, em vida ou depois, o status de megera. Até faz, de certa forma, sentido no universo criado pelo longa-metragem que o espírito de Odete adote uma postura tão agressiva em um mundo tão impiedoso para todos eles. Entretanto, não teria feito mal pontuar de maneira mais clara que Stênio deveria ser o grande vilão da história.
O balanço entre o realismo do universo do IML e a fantasia proposta pela abordagem sobrenatural se dá de maneira um tanto bruta, uma vez que o filme parece ter duas seções distintas que até dialogam entre si, mas sem a naturalidade adequada. Em sua segunda metade, o longa se torna mais um filme sobre uma casa mal assombrada do que um filme sobre um homem que conversa com cadáveres, recurso que poderia ter sido melhor explorado. O caminho rumo ao clímax também se esgarça demais, com novos elementos e situações pipocando na tela a cada nova virada de enredo. Ainda assim, o filme é eficiente em criar situações de terror genuíno, como a primeira cena em que as crianças do elenco têm um contato com as forças sobrenaturais, na aflitiva cena do cerol, na perturbadora cena de sexo oral. O final aberto que dá margem para uma sequência ou o desdobramento em uma série de TV, o que frustra quem esperava um desfecho mais consistente. Com todas as reticências, Morto Não Fala é um filme competente que, mesmo com suas falhas, traz boas atuações, uma atmosfera extrema e representa um êxito honesto em sua proposta de fazer um terror urbano brasileiro.
Filme visto no 20º Festival do Rio, em novembro de 2018.
Um jovem afro-americano visita um grupo de brancos em uma casa isolada nos Estados Unidos e as coisas não terminam bem. A descrição poderia dar conta de um breve resumo de Corra!, terror-satírico-sensação repleto de simbolismos sobre a falácia de uma América pós-racial, mas também serve para definir a sinopse deste filme dirigido e roteirizado pelo chileno Sebastián Silva. Em Tyrel, a experiência do racismo não ganha contornos tão extremos quanto no premiado filme de Jordan Peele. Não há banho de sangue, não há a complexa representação de processos históricos de exclusão por meio de metáforas visuais. Mas o mesmo tipo de tensão interpassa as relações sociais apresentadas no longa-metragem com um acréscimo: o filme também examina um tipo bem específico de sociabilidade masculina e a noção de pertencimento.
Depois de atuações grandes atuações em Straight Outta Compton - A História do N.W.A. e Mudbound - Lágrimas Sobre o Mississippi, Jason Mitchell entrega mais uma boa performance como protagonista deste drama. Ele interpreta Tyler, um rapaz que aceita passar um final de semana com os amigos de seu melhor amigo Johnny (Christopher Abbott) que ele ainda não conhece. O encontro se dá em uma cabana no meio da floresta no estado de Nova York onde será comemorado o aniversário de Pete, um sujeito de personalidade expansiva que não por acaso é interpretado por Caleb Landry Jones, que vive em Corra! um inconveniente (e perturbador) personagem similar
O roteiro de Silva é inteligente em instigar uma sensação de apreensão contínua que se constrói de maneira natural na forma em que Tyler — erroneamente chamado de Tyrel por um um branco que não estava prestando muita atenção no "intruso" — lida com aquela situação. A opção, entretanto, pode pode ser frustrante para o espectador que é levado a crer que o longa-metragem reserva uma conclusão mais catártica para aquele ciclo de animosidades, algo que jamais acontece. A ideia aqui pe criar um panorama de situações sociais fundamentais de uma masculinidade muito dependente da aprovação de terceiros e de rituais de auto-afirmação. Assim, Tyler ocupa no filme a imagem do forasteiro, posição que não se estabelece apenas por sua cor de pele, mas é acentuada por este fator. A todo momento Tyler é escanteado por não conhecer as brincadeiras do grupo, o tipo de bebida que eles consomem, as canções favoritas do R.E.M. (o rock alternativo branco é apresentado como o oposto do hip hop neste filme)...
Em um filme sobre constrangimento, Mitchell é capaz de representar um desconforto quase palpável em determinadas cenas com uma atuação segura. Uma das mais contundentes é a sequência na qual o grupo brinca de imitar sotaques com base em um sorteio. Assim, eles fazem troça de chineses e indianos para as risadas de todos até que o sotaque negro é sorteado. É simbólico que a única pessoa na sala descontente com a brincadeira tenha sido o único amigo abertamente homossexual do grupo, o que acena para uma ideia de que as minorias tendem a serem mais empáticas entre. Por fim, Tyler acaba cedendo, quase sem perceber, e decide parodiar o que seria o sotaque de uma "velhinha de Nova Orleans". Os demais homens se divertem. Mas a linha entre "rindo com Tyler" e "rindo de Tyler e consequentemente endossando a ideia de que negros são piada" fica no ar.
Deste momento em diante, Tyler passa a se retrair cada vez mais e recorrer ao álcool na medida em que se sente mais excluído — o que acontece com mais intensidade quase sempre que novos desconhecidos chegam. É interessante notar que a dramaturgia proposta por Silva deixa o espectador em alerta para a maneira como Tyler é tratado e para a maneira como ele se porta, provocando uma reflexão sobre as sutilezas, limites e reservas das relações raciais. Sendo assim, mesmo o uso de expressões como "buraco negro" e os questionamentos sobre os gostos de Tyler no café da manhã podem ser vistos como hostilidades subliminares. Tudo isso ganha ainda mais peso quando se situa a temporalidade do filme no dia da posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos entre personagens que se autodeclaram liberais ou progressistas.
Silva claramente deseja subverter expectativas no filme indicando rompantes que de fato nunca acontecem. Por mais que isso mostre a fidelidade do realizador às suas próprias ideias, a proposta também faz o filme perder parte de seu impacto potencial e até entrar em uma narrativa redundante, uma vez que não aponta para nenhuma grande conclusão. Talvez a ideia não seja retratar rupturas radicais ou possíveis conciliações raciais, mas apenas observar as subjetividades de um processo delicado de relação que envolve fatores complexos. Com certo faro para o humor, o diretor repete a parceria com Michael Cera (com quem trabalhou em Crystal Fairy e o Cactus Mágico) e faz acenos à comédia. O personagem de Cera chega na casa no meio da comemoração e parece ser o único disposto a tentar tornar a vida de Tyler mais fácil naqueles dias.
Usando uma lente objetiva grande-angular, as bordas distorcidas do quadro ajudam a formular a sensação e ebriedade que o filme exala em muitos momentos. O uso constante da câmera na mão casa bem com atmosfera de caos que se dá naquela casa cheia de homens barulhentos movidos à bebida do momento em que acordam até a alta madrugada. Sendo assim, há um aspecto cacofônico que, por ser tão constante, causa incômodo. Nota-se também uma opção por um trabalho de câmera mais fechado no rosto dos atores, o que permite que se evidencie as boas atuações de Mitchell, Abbott, Cera e Jones.
Tyrel é um filme sobre um estranho numa terra estranha que chega perto de esgotar seu conceito, mas é uma produção eficiente em apontar as nuances entre hostilidade e cordialidade nas relações raciais.
Filme visto no 20º Festival do Rio, em novembro de 2018.
A música brasileira nunca mais foi a mesma desde que a Maria Bethânia substituiu Nara Leão no espetáculo Opinião em 1965, conquistando o lugar que os deuses da música reservaram para ela no panteão da cultura brasileira. Em mais de 50 anos de carreira, porém, algo além de sua possante "voz de cobre", nas palavras do irmão Caetano Veloso, se manteve intacto: O interesse pela cantora pelos mistérios da fé.
Fevereiros examina a importância das tradições culturais na construção da identidade pessoal e coletiva. O longa exibe o lado ensolarado da alma de Bethânia em seu ritual anual de retorno às suas raízes durante a Festa da Purificação. A celebração é realizada no início do ano em Santo Amaro, cidade natal da artista. Do reencontro com as origens, o filme traça um paralelo entre a cidade baiana e o Rio de Janeiro (que ganha perspectiva histórica no depoimento do professor Luiz Antônio Simas). O elo se dá através do samba. Em 2016 a Abelha Rainha foi homenageada com o enredo "Maria Bethânia, a menina dos olhos de Oyá", da Estação Primeira de Mangueira. O longa-metragem também acompanha os preparativos e o grande momento do desfile da verde e rosa na Marquês de Sapucaí, que colocou fim no jejum de títulos da escola de samba.
Em seus depoimentos, Bethânia fala sobre sua religiosidade sincrética, da formação católica à iniciação no Candomblé, com uma contundência oratória que, mesmo sem o contorno da militância política, levanta a bandeira da liberdade de culto. A devoção é retratada para além das palavras, quando a câmera mostra a ativa participação nas festas de Santo Amaro e, não raro, suas lágrimas sinceras. Coadjuvantes, porém não menos importantes, os depoimentos de Caetano e de Mabel Velloso enriquecem o filme com falas sobre o DNA mestiço da família e as diferentes formas de interpretar aqueles fenômenos religiosos.
As reflexões sobre religião feitas por Caetano e Bethânia, um ateu e uma devota, poderiam ser antagônicas, mas complementam-se. O cantor e compositor chega contar que Mãe Menininha do Gantois (1894- 1986), Iyálorixá mais famosa do Brasil, já disse que os dois são a mesma pessoa. Enquanto ele explica que o eu-lírico do verso "Quem é ateu e viu milagres como eu" é, na verdade, Jorge Amado e não ele mesmo, mostra que seu respeito pelo candomblé e por sua irmã fizeram com que ele chegasse até a se iniciar na religião. Enquanto isso, Bethânia diz que sua cosmovisão religiosa começou a mudar ainda na infância quando seu irmão, também criança e já convencido da descrença em um ser superior, a fez começar a perder um medo exacerbado aprendido na Igreja Católica quando a levou a pensar que o divino está dentro de cada pessoa.
(Texto publicado por mim no site AdoroCinema. Disponível em http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-135597/)
"Não me chame de femme fatale de Lou Reed", é uma das frases mais marcantes de Nico nesta cinebiografia. Aliás, ela também não gosta de ser chamada pelo apelido que a revelou para o mundo na colaboração com a banda The Velvet Underground. Nico é um nome artístico que a alemã Christa Päffgen ganhou quando ainda era modelo, na adolescência, antes de suas colaborações com Andy Warhol em Nova York. A alcunha teria sido concedida por um fotógrafo por ela namorar o diretor Nikos Papatakis. A Christa interpretada com um paradoxal vigor sorumbático pela atriz dinamarquesa Trine Dyrholm no filme Nico, 1988 é uma mulher que não quer ser definida por seu passado, por sua beleza e muito menos pelos homens com quem dormiu.
A cineasta italiana Susanna Nicchiarelli opta por um olhar carinhoso para uma figura que outros diretores facilmente poderiam retratar de forma tacanha como um trem desgovernado. Os traumas pessoais, o vício em drogas e os momentos decadentes de Nico não são demônios a serem exorcizados pelo longa-metragem, mas sim abraçados, como se fosse possível para ela alcançar algum conforto. "Por favor não me confronte com meus fracassos / Eu não esqueci deles", já cantou Nico em sua música mais icônica, "These Days". Nico, 1988 traz o fracasso à tona, mas de forma circunstancial, não como um fator determinante. A performance cheia de camadas de Dyrholm, que em um primeiro momento se apresenta como uma figura gélida, é capaz de fazer o espectador entender que estamos diante de uma atriz que assume uma personagem (Christa), que também carrega o lastro de uma outra personagem (Nico).
A trama se passa nos dois últimos anos de vida de Nico, que inicia uma turnê pela Europa após um empresário/fã (interpretado por John Gordon Sinclair, ótimo em cena) de Manchester assistir a um de seus concertos e estimular a cantora a passar por países como Itália, França, Tchecoslováquia e Polônia. Entre 1986 e 1988, no crepúsculo de sua vida e carreira, a cantora cujo nome artístico é um anagrama de icon olhava para a fama na década de 1960 com desdém. Para ela, estar no topo e experimentar o ostracismo comercial eram situações igualmente "vazias". A forma do roteiro, também assinado por Nicchiarelli, de reforçar a noção de descrença com a vaidade do estrelato é bastante precisa. A narrativa constrói uma Nico muito ciente de si mesma, uma mulher disposta a cortar as excessivas ligações que fazem entre a sua figura e os feitos de outros homens.
Os constantes enquadramentos do rosto de Dyrholm em primeiro plano, principal característica da direção de Nicchiarelli, são impiedosos, mas também empáticos. Seu semblante na maior parte do filme exprime, obviamente, grande melancolia, mas essa sisudez é complexificada na relação de Nico com seu filho, Ari (Sandor Funtek). O rapaz é fruto de um relacionamento de Christa com o ator Alain Delon, foi abandonado pela mãe na infância e sequer foi reconhecido pelo pai. Com vícios semelhantes, mãe e filho compartilham de um laço longe dos clichês. Ela o retira de uma clínica de reabilitação para que Ari seja sua companhia durante a turnê na Europa. Claramente não é o que o rapaz precisa naquele momento e o filme sabe explorar as contradições da dinâmica entre os dois dali em diante, quando muito é expresso por gestos, não por palavras.
A figura quase gótica de uma Nico quase cinquentenária configura um contraste com seu passado de arquétipo de musa loira-hipster-before-it-was-cool. Nicchiarelli evoca tempos pregressos em Nico, 1988 através de curtos flashbacks com imagens reais da cantora e modelo. A textura das imagens alude a uma lembrança empoeirada. A matiz de cores imagina o passado como uma uma memória quase psicodélica, delirante. A mensagem é que não se deve se estribar no que já passou. A infância da cantora, entretanto, é brevemente encenada por uma atriz mirim fascinada pela destruição da Alemanha pelos Aliados ao final da Segunda Guerra Mundial.
Em termos históricos, Nico, 1988 só derrapa na tentativa de aliviar a imagem de antissemita que Nico teve em vida. Os preconceitos que a artista demonstrou, de acordo com relatos até de seus amigos pessoais, são suavizados no longa-metragem pelo retrato que Nicchiarelli escolhe fazer da relação cordial da cantora com um homem judeu. Se fosse para tocar no espinhoso assunto, melhor seria ter abordado essa parte polêmica da vida de Nico com mais honestidade.
Nico foi dona de uma das vozes mais peculiares que o rock ‘n’ roll já conheceu. Sua lânguida voz de contralto, quase desafinada, é uma propriedade típica demais para ser imitada, mas Dyrholm conseguiu fazer isso sem soar caricatural.
Sem grandes devaneios e distrações formais em sua estrutura narrativa, Nico, 1988 é uma cinebiografia musical típica. O filme se propõe a canalizar cada fase de sua biografada através de apresentações de músicas adequadamente escolhidas para refletir o estado espírito da personagem de momento em momento durante a turnê. Uma escolha óbvia, é claro, mas que funciona.
Com arranjos feitos pela banda italiana Gatto Ciliegia contro il Grande Freddo, o catálogo de Nico é revisitado com propriedade pela voz de Dyrholm. A versão sepulcral de "Janitor of Lunacy" tocada no bar de Manchester é de assombrar. A interpretação de "All Tomorrow's Parties", em um registro mais raivoso do que na gravação original do The Velvet Underground, faz todo o sentido com a proposta do filme. Quando as circunstâncias do enredo fazem Nico cantar com uma banda de jazz, a performance do standard "Nature Boy" faz a gente pensar numa colaboração hipotética entre Nico e Chet Baker.
A grande catarse musical do filme, entretanto, se dá quando Nico e sua banda ultrapassam a Cortina de Ferro para tocar para um grupo pequeno, mas fiel, de fãs na Tchecoslováquia comunista. O sentimento anti-esquerdista da cantora aflora e ela se indispõe com o público, mas basta começar a cantar para que Dyrholm se entregue à música na canção-desabafo "My Heart is Empty". Raras vezes o "som da derrota", tão buscado por Nico, soou tão glorioso.
(Crítica publicada por mim no site AdoroCinema. Disponível em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-257616/criticas-adorocinema/)
Reza a lenda que há 10 anos, quando Mártires foi exibido no Festival de Cannes como um excitante representante do chamado New French Extremism, houve choro e ranger de dentes. O longa-metragem intensamente violento de aspirações sócio-filosóficas do diretor Pascal Laugier teria sido recebido com desmaios, vômitos, lágrimas e debandadas da sala em sua primeira projeção. O espectro daquela sessão ronda Laugier até hoje e sempre que um novo trabalho do cineasta é anunciado os fãs de terror que acompanham seu trabalho se questionam: será que o realizador segue firme em sua tentativa de embrulhar estômagos mundo afora?
A Casa do Medo - Incidente em Ghostland chega aos cinemas uma década depois de Mártires, que representou um tipo de contraponto conceitual a filmes como Jogos Mortais e O Albergue, por, nas palavras de Laugier, usar a dor como meio, não como fim. O recente trabalho do cineasta, entretanto, parece jogar de acordo com as regras do jogo do cinema de terror de forma ambivalente. O filme, por vezes, se apresenta como um comentário sobre a própria natureza sádica e espetacularizante do gênero cinematográfico do qual faz parte ao mesmo tempo em que parece não saber medir bem a linha entre a auto-sátira e o clichê. Ainda assim, mesmo que o projeto não seja tão impactante quanto a maior obra do diretor francês, o cineasta ainda sabe como incomodar — e fazer refletir com seus subtextos.
A trama começa como tantas outras tramas de filmes de terror: uma família se muda para uma casa remota repleta de objetos macabros/bizarros onde se torna alvo de psicopatas. Mylène Farmer, diva pop francesa de décadas passadas, vive Pauline, mãe solo das adolescentes Beth e Vera, que inicialmente têm suas diferenças, naturais entre irmãs da mesma idade, mas têm os laços reafirmados no meio das atrocidades que vivenciam. Beth, interpretada em sua fase jovem por Emilia Jones e como adulta por Crystal Reed, é uma entusiasta da literatura de fantasia e terror do escritor Howard Phillips Lovecraft e por vezes se perde em seus devaneios. Vera, interpretada por Taylor Hickson quando jovem e por Anastasia Phillips em sua espinhosa fase adulta, é dona de uma personalidade mais extrovertida.
A Casa do Medo - Incidente em Ghostland tem como vilões, duas figuras rasas e grotescas. Por um lado, isso prejudica a complexidade do enredo. Ao contrário do que acontece em Mártires, por exemplo, nada se sabe sobre o que motiva aquelas atrocidades e o que uniu psicopatas de perfis aparentemente tão distintos a agirem juntos. Por outro lado, a escolha de Laugier — também roteirista — de apresentar a dupla de antagonistas como meros arquétipos (uma espécie de ogro e uma espécie de bruxa) faz com que o olhar do espectador se concentre nas vítimas.
É comum que filmes de terror tragam um background trágico para a jornada de seus monstros. Leatherface (referenciado em A Casa do Medo na figura do "ogro") é fruto de uma família de sociopatas que certamente influenciou em sua postura perversa. Até mesmo Freddy Krueger e Jason Voorhees têm histórias traumáticas no passado. O que acontece neste longa-metragem, entretanto, é que há a chance de pensar em como as protagonistas, especialmente a personagem Beth, processam o trauma de experimentar uma violência tão brutal enquanto ela acontece. Há aí um interessante ponto sobre os próprios filmes de terror.
Como não poderia deixar de ser, a guinada de violência que o filme tem é mesmo intensa, radical e desumana. A ambiguidade com a qual o filme lida com sua própria metalinguagem dá margem para que se pense a crueldade como um escape vazio em si mesmo. Entretanto, o que Laugier propõe é uma reflexão, ainda que vacilante, sobre o sadismo enquanto entretenimento. A existência da pavorosa casa que se torna palco para onde a mãe leva suas filhas e a presença de vilões que mais parecem uma lenda urbana faz tão pouco sentido dentro do universo de verossimilhança do filme que nos é permitido pensar que muito em A Casa do Medo é um trabalho de auto-sátira.
Os clichês do terror, como as luzes que piscam antes de uma situação de tensão e a presença de bonecas tétricas usadas como elementos de ambientação na casa que é cenário de tanta violência, estão presentes de maneira intencional. O que o longa-metragem questiona, quase como um argumentum ad nauseam, é a perversidade por trás de filmes no qual o único fim é fazer mulheres, geralmente jovens, sofrerem. Em muitos longas-metragens do gênero, especialmente os do subgênero slasher, ao qual A Casa do Medo faz referência, personagens são trucidadas com uma latente misoginia, especialmente quando as personagens são sexualmente ativas. O medo da sexualidade feminina e as tentativas dos vilões de enquadrar as flageladas adolescentes em estereótipos de feminilidade arcaicos são maneiras claras do filme de denunciar, através do choque, não apenas o sexismo repetidos em filmes de terror, mas na sociedade.
Há uma cena icônica e angustiante na qual Beth aparenta um pavor crível ao ser submetida a uma sessão de maquiagem forçada. Os close-ups sufocantes de Laugier conferem ao momento uma claustrofobia mortal que iguala (simbolicamente, é claro) aquele momento às outras violências que as garotas sofrem nas mãos dos algozes. Ao som de uma valsa, a lágrima da menina se mistura com o blush, o que parece ser do interesse dos vilões desde o início: impor um comportamento, um padrão estético impossível e uma atitude de total passividade por parte delas. Uma importante semelhança entre A Casa do Medo e Mártires é o tema da cumplicidade feminina em momentos de crise e desesperança.
Apesar das ideias, a direção de Laugier para este projeto é apenas convencional e por vezes faz escolhas duvidosas, como a nudez desnecessária (uma das contradições deste projeto) e uma sequência de comicidade involuntária envolvendo uma das bonecas macabras da casa. A atuação de Emilia Jones como a jovem Beth é a que mais se destaca, uma vez que a personagem é mais exigida ao longo do filme. Entretanto, as demais atuações são mais genéricas em suas hipérboles, especialmente o registro de Reed como a versão adulta de Beth. Um outro problema do filme são os diálogos rasos. Por mais que haja o flerte com a metalinguagem, as falas poderiam ser mais contundentes e não se limitar à mera funcionalidade ou redundância.
O realismo do trabalho de maquiagem coordenado por Brenda Magalas mostra incômodos rostos deformados das protagonistas como se quisesse confrontar o espectador com os contrassensos dos filmes classificados como torture porn. É claro que determinados públicos podem interpretar este projeto como mais um filme gore descerebrado, mas são os subtextos deste longa-metragem que garantem as reflexões mais profundas.
Com algumas viradas surpreendentes, A Casa do Medo - Incidente em Ghostland revisita traumas desesperadores em um filme que, mesmo com tanta violência e maldade, é mais sobre a força de suas protagonistas do que sobre a brutalidade que elas sofrem.
(Crítica publicada por mim no site AdoroCinema. Disponível em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-246532/criticas-adorocinema/)
A cineasta Debra Granik entrega mais um drama contemplativo que gravita em torno do amadurecimento de uma jovem personagem feminina que vive situações incomuns para alguém da sua idade. Em Sem Rastros, como no premiado Inverno da Alma (2014), último filme dramático da diretora, a jornada é tão importante quanto o desfecho e a compaixão da realizadora por seus personagens é o que dá dinamismo emocional a um filme de sentimentos reprimidos, gestos singelos e silêncios eloquentes.
Roteirizado por Granik e Anne Rosellini com base no romance My Abandonment, de Peter Rock, o longa-metragem acompanha com dignidade e respeito os percalços internos e externos de um pai e uma filha em uma rotina incomum. Will, vivido por um intenso Ben Foster, é um veterano da Guerra do Iraque que sofre de stress pós-traumático e decidiu se retirar da sociedade organizada. Para isso, criou uma estrutura complexa de vida na densa mata de um parque florestal em Portland, Oregon. Seu estilo de vida sobrevivencialista, regrado e em sintonia com o ambiente que o cerca é compartilhado por sua filha de 13 anos, Tom, defendida com muito talento por Thomasin McKenzie. Um dia Tom é avistada por uma pessoa e, com a chegada da polícia e assistentes sociais, os dois são forçados a viver em uma casa comum, com um emprego comum para o pai e uma vida escolar comum para a filha.
A maneira como Will e Tom vivem podem suscitar comparações com Capitão Fantástico, mas este longa-metragem tem uma sensibilidade mais sutil e conflitos claros, mas menos catárticos do que no filme estrelado por Viggo Mortensen. Há ainda uma narrativa enigmática proposta por Granik na maneira vagarosa como são revelados os detalhes da situação vivida pelos protagonistas. A diretora evita espetacularizar a situação dos dois. Leva um tempo até se descobrir que Will é um veterano e alguns detalhes nunca são revelados completamente (como a identidade da mãe de Tom, por exemplo). Ao espectador, é exigida uma postura mais ativa, com bastante espaço para se supor uma série de coisas à respeito das lacunas que Granik e Rosellini deixam vagas.
A questão da liberdade individual ganha espaço em duas frentes no filme. A primeira tem a ver com a maneira como o Estado trata os dois, classificando como "sem teto" duas pessoas que levavam uma vida perfeitamente funcional e sustentável. Não é à toa que quando é obrigado a se conformar com a vida em sociedade, é oferecido para Will um trabalho mecânico e um contato "cordialmente forçado" com a religião. A fotografia de Michael McDonough dá conta de explorar os contrastes das etapas diferentes das vidas dos protagonistas. Inicialmente é a exuberância do verde intenso da floresta que, mesmo banhado por uma luz fria, toma de assalto a retina. Em seguida as cores sem vida da casa para onde Will e Tom são enviados ajuda a reforçar que o conceito de lar é mais complexo do que uma estrutura de paredes. A segunda noção de liberdade está na maneira como o bem estar de Tom precisa superar os traumas de seu pai. Por mais que haja amor entre os dois, e esse sentimento é representado com uma rústica afabilidade, chegará o momento em que mesmo o laço de sangue não será capaz de conter a autonomia de outro ser. E é assim que a vida deve ser.
O meticuloso efeito que balanceia tranquilidade e potência de forma intrigante é explicado pelas performances precisas dos protagonistas de Sem Traços. Conturbado, mas sem as explosões de A Qualquer Custo, Ben Foster demonstra um grande controle de um personagem marcado por fantasmas misteriosos que nunca conhecemos totalmente. Em plena sintonia com Foster, mas representando uma espécie de espelho imaculado do pai, Thomasin McKenzie tem como o maior trunfo de sua atuação o naturalismo como encara com desenvoltura as cenas na floresta, a melancolia dos dias sob a tutela do Estado e futuro incerto com pai depois que os dois fogem. Suas reações são exatamente o que se esperaria de uma pessoa que passou por aquele tipo de situação.
Há muita sincronia na maneira como os dois dividem tarefas, dividem os mesmos espaços, cuidam um do outro. Mas aos poucos fica claro o quanto esta dinâmica prejudica a menina e o quanto ela não precisa herdar o peso que seu pai carrega na alma. Aí reside um grande dilema. Em qual medida o apego de Will por Tom deixa de ser saudável para se tornar um impedimento do desenvolvimento da garota? Granik apresenta as ambiguidades e contradições dessa relação de forma honesta e entrega um desfecho justo e tocante para o impasse.
É desnecessário comparar a performance McKenzie com a de Jennifer Lawrence em O Inverno da Alma, mas o fato é que, assim como a J. Law iniciante, McKenzie também tem potencial para conquistar cada vez mais espaço em Hollywood.
Filme visto no 20º Festival do Rio, em novembro de 2018.
Texto publicado por mim no site AdoroCinema. Disponível em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-254171/criticas-adorocinema/
Em A Mulher dos Cachorros, esconder é mais importante do que explicitar. Contemplar é mais relevante do que entender. Sentir é mais urgente do que saber. O drama argentino dirigido por Verónica Llinás e Laura Citarella acompanha uma protagonista sem nome, em uma história sem clímax envernizada por um drama virtualmente sem diálogos. A fábula sobrevivencialista opta por ser vaga em alguns aspectos para potencializar seu caráter metafórico e permitir que diferentes lentes sejam usadas na interpretação desta obra.
Llinás acumula a função de cineasta e roteirista com o trabalho de atuação interpretando a tenaz protagonista, uma figura solitária e resiliente que vive em uma área rural da parte pobre de Buenos Aires. Situada na periferia da periferia, isolada e sozinha no meio da mata, ela mostra habilidades de sobrevivência que fazem par com os talentos do personagem de Viggo Mortensen em Capitão Fantástico. O mais próximo de família que a mujer de los perros tem são os dez ou mais cachorros que a acompanham por todos os cantos, dividem a cama com ela, mas não são exatamente tratados por ela com a ternura de uma mãe. A ligação da mulher com sua matilha está mais próxima da irmandade.
De início, a câmera quase documental de Citarella e Llinás oferece uma lenta crônica dos hábitos desta mulher sobre quem pouco se sabe. A vemos reconstruir seu barraco a cada nova estação, caçar para comer, garimpar lixeiras em busca de algo que a sirva, fazer suas necessidades fisiológicas ao ar livre, caminhar longas distâncias em busca de água potável e suprimentos, defender seu território com uma postura altiva diante de quem ela sente que pode ser uma ameaça. O filme parece querer discutir a natureza da humanidade através de paralelos entre o homo sapiens e outras espécies, questão abordada pela filosofia desde Platão, mas chega a ser um pouco redundante em seus postulados quando se envereda por este caminho.
As gigantescas elipses sobre a identidade da mulher são o que a trama traz de mais instigante ao mesmo tempo em que não teria feito mal se o roteiro revelasse, mesmo que de maneira subjetiva ou esfíngica, mais sobre ela. Seria a mulher uma eremita que quer fugir do materialismo da sociedade de consumo como o Christopher McCandless de Na Natureza Selvagem ou apenas mais uma pessoa pobre da América Latina que sobrevive à duras penas? Seu asilo longe de sua comunidade foi autoimposto ou forçado? Esta Eva sem Adão e sem Deus em seu Éden no terceiro mundo ganha vida na contundente performance de Llinás, que imprime em sua personagem até mesmo uma certa elegância inesperada, fugindo da armadilha de uma atuação melancólica óbvia ou de uma ênfase em trejeitos animalescos que seria totalmente caricatural e dispensável. Com uma bela entrega às exigências do papel e as ótimas interações com a matilha, a atriz faz parecer fácil atuar em circunstâncias tão rigorosas.
Em termos estéticos, as cineastas alternam composições quase documentais com planos mais contemplativos, trançando uma identidade visual ambivalente para A Mulher dos Cachorros. A proposta de acompanhar a protagonista ao longo das quatro estações do ano também é uma oportunidade muito bem explorada pela fotografia de Soledad Rodríguez que assume uma nova atmosfera a cada segmento. A intercalação de close ups e planos abertos contextualiza a força desta quase-heroína em sua interação com o ambiente e a maneira como seu corpo se impõe como uma fortaleza em determinadas circunstâncias. Há problemas, porém, no ritmo proposto por esta narrativa, que parece andar em círculos e se arrastar quando mostra a mulher repetindo situações de sua rotina (sendo que o filme não é dos mais longos com 95 minutos de duração). Neste sentido, o carimbo de “filme de arte” pode ser muito sentido, para o mal e para o bem.
A Mulher dos Cachorros pode ser encarado como um libelo sobre a autossuficiência feminina, como uma obra sobre ser leal a si mesmo, como um tratado da força das pessoas que vivem com muito pouco. Um bom filme que sofre e se beneficia das escolhas radicais de suas autoras.
Filme visto na 12ª CineBH - Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte, em agosto de 2018.
(Crítica publicada por mim no site AdoroCinema, disponível em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-235001/criticas-adorocinema/)
O cinema de gênero têm seus códigos e seu cânone. Falar em filmes de zumbi, por exemplo, remonta a uma tradição epitomizada em A Noite dos Mortos Vivos, longa-metragem lançado há meio século que até hoje inspira quase tudo que envolve esta seara de produções, de The Walking Dead ao videoclipe de “Thriller”. O filme de George A. Romero, de tão influente e inovador, criou um template facilmente reconhecível para representar os mortos-vivos. As criaturas cadavéricas que se arrastam de forma grotesca e intuitiva são uma imagem recorrente.
Em Contágio - Epidemia Mortal (lançado na Netflix com o título Maggie: A Transformação), longa-metragem de estreia de Henry Hobson, a ideia é romper com estereótipos ou ressignificá-los. O passo lento de alguém afetado pelo vírus zumbi assume um outro sentido, representando mais uma morosidade de uma alma angustiada do que a putrefação do corpo em si. Existem ameaças externas aos protagonistas sim, mas o maior "vilão" é uma circunstância que não pode ser controlada. Estruturalmente, o longa-metragem deixa de lado os sustos previsíveis, o fetiche pela figura humana decomposta, o gore e até mesmo as cenas de ação para investir no drama. (Para fins de classificação, Maggie é mais um drama familiar pós-apocalíptico do que um terror.) O filme aponta para direções promissoras, mas sua narrativa é anêmica demais, o que prejudica o ritmo e o impacto das ideias trazidas pelo longa-metragem.
Na trama, roteirizada por John Scott 3 (outro estreante na função), Arnold Schwarzenegger interpreta Wade Vogel, um homem rural do Meio-Oeste do Estados Unidos cuja filha foi infectada por um vírus "necroambulambista". Ciente de será um risco para seus familiares, a jovem Maggie, vivida por Abigail Breslin, foge de casa, mas é resgatada por Wade duas semanas depois. Ao encontrá-la, o homem desobedece as recomendações das autoridades, leva a filha de volta para o lar e se recusa a receber os policiais que querem encaminhá-la para uma quarentena de onde nenhum infectado sai curado ou com vida. O roteiro cria uma imagem tenebrosa na mente do espectador (que nunca é mostrada). Diz-se em um dos diálogos que na quarentena os infectados se devoram até a morte.
A escalação de Schwarzenegger para o papel é quase uma outra dimensão do filme dentro dele mesmo. Ícone da hipermasculinidade explicitada por filmes de ação onde socos e tiros podem resolver qualquer problema, seu personagem não é definido por suas capacidades físicas. Por mais que ele seja filmado empunhando armas (de fogo ou não), há uma certa noção de debilidade nestes artefatos. Wade é basicamente impotente diante do avanço da doença da filha e não vai ser nenhuma altercação com policiais que vai mudar isso. A sensação de desconforto e urgência causada pela câmera na mão de Hobson casa com o retrato melancólico do personagem. Quando a câmera captura uma lágrima descer lentamente pelo rosto de um ator que representou a catarse alcançada pela força bruta, o momento de presumida autoconsciência, de intertextualidade com a persona fílmica do astro austríaco, engrandece o longa-metragem.
Maggie não é o Gran Torino de Schwarzenegger (faltam muitas qualidades a este drama zumbi para chegar perto do nível do último grande filme de Clint Eastwood como ator), mas é uma oportunidade de ver o brutamontes de outrora atuar fora de sua zona de conforto.
A verdadeira protagonista do filme, porém, é a personagem da atriz que despontou em Pequena Miss Sunshine. Se Schwarzenegger é o personagem que precisa se manter forte o tempo inteiro, cabe a Breslin exteriorizar de forma mais contundente o que está sentindo enquanto seu corpo (em um bom trabalho de maquiagem) definha.
Maggie parece abrir mão das alegorias sociais e políticas que o tema dos zumbis permite para desenvolver um comentário sobre a infecção como um problema de saúde sem cura. Estar desenganada é o que faz de Maggie uma morta-viva. Ao propor um estudo de personagem nestas condições, o roteiro acerta em mostrar outros momentos da vida da garota e retirar o ponto de vista exclusivo do pai. Quando a jovem se encontra com um ex-namorado, também infectado, o beijo entre dois zumbis é retratado de forma respeitosa e bela. Estar vivo, afinal, é mais do que um diagnóstico. A boa atuação de Breslin é capaz de humanizar um papel que poderia ter sido resumido a choros e gritos.
Entretanto, o tom macambúzio do filme, reforçado pela estética visual em tons de cinza e marrom e pela trilha sonora constante, não tem a geografia de altos e baixos necessária para fazer desta uma narrativa menos letárgica. O problema não é a falta de cenas de ação ou de sustos, afinal bons filmes não dependem apenas disso. O problema é que Hobson, como diretor, parece mais empenhado em criar um estado de espírito melancólico com cenas sem diálogos e construções visuais competentes, mas monótonas, do que adicionar nuances e relevo ao longa-metragem. Nem mesmo o dilema principal envolvendo a relação entre Wade e Maggie consegue ser ter a tensão necessária. Somos cercados pela ideia de que o pai pode ter que intervir e dar cabo da vida da filha antes que o vírus avance, mas Hobson e Scott parecem não ter coragem de abordar este complicado dilema moral do roteiro.
(Crítica publicada por mim no site AdoroCinema, disponível em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-192334/criticas-adorocinema/)
Pensando de forma enciclopédica, a trajetória de Romain Gary (1914 - 1980) sempre pareceu urgir por uma dramatização cinematográfica. Nascido na Polônia, em um território que hoje pertence à Lituânia e que na época fazia parte do Império Russo, Gary viveu de forma intensa. Judeu radicado na França, foi diplomata, aviador digno de honrarias durante a Segunda Guerra Mundial, eventual diretor de cinema e, principalmente, romancista, notabilizando-se como um dos autores mais prolíficos de sua geração. Sua história envolve relacionamentos amorosos com figuras notáveis, como a atriz Jean Seberg, múltiplas viagens e residência em diferentes continentes. Com um material tão rico em mãos, o diretor Eric Barbier (O Último Diamante) fez um trabalho competente em Promessa ao Amanhecer ao escolher costurar a narrativa do longa-metragem não com as vicissitudes da vida de Gary em si, mas com a complexa relação do escritor com sua mãe, uma figura apresentada como a ambivalente rosa dos ventos do protagonista.
O roteiro, assinado por Barbier em parceria com Marie Eynard, adapta o livro autobiográfico que dá nome ao filme. Em mais uma prova de sua versatilidade como atriz, Charlotte Gainsbourg encarna Nina Kacew uma figura materna que pode parecer meramente arquetípica, mas, aos poucos, se revela intrincada, cheia de traumas e esperanças. A ligação umbilical com Romain, vivido na fase adulta por Pierre Niney e na infância e adolescência por Pawel Puchalski e Némo Schiffman, respectivamente, se dá de forma ambígua, mas sempre carinhosa.
Os dois se amam com muita intensidade e Promessa ao Amanhecer mostra como esse sentimento pode assumir facetas das mais distintas, da cumplicidade ao afastamento, da dedicação incondicional ao antagonismo. Com uma mãe que o moldou para a grandeza, o filme trata de como Romain viveu tendo que suprir as projeções que ela fez sobre ele, o que se transforma numa angústia que só cresce e dá ao filme um ritmo envolvente em suas mais de duas horas de duração. É comum assistir a cinebiografias que valorizam em demasia a figura que se propõe a retratar. Por isso mesmo é interessante acompanhar esta narrativa em que os feitos do protagonista não são um fim, mas sim um meio de lidar com uma uma pressão que age nele como uma faca de dois gumes, parecendo esgotá-lo e motivá-lo em igual medida.
É particularmente especial o tempo que o filme reserva à infância de Romain na Polônia, onde a câmera de Barbier se posiciona na altura dos olhos do protagonista e o espectador tem a oportunidade de enxergar Nina com a mesma admiração e temor que o menino. Puchalski entrega uma atuação doce e segura enquanto sua inocência pueril é desafiada pelo crescente antissemitismo europeu do período entreguerras, pelos problemas financeiros enfrentados por sua mãe e pelas experiências com a arte, o amor e a violência. Nesta fase, a iluminação natural é capturada de forma brilhante, criando uma atmosfera de sonho, de nostalgia.
Barbier conduz seu filme de maneira segura e sem muitos maneirismos distrativos, parecendo seguir a tradição das (boas) cinebiografias produzidas no Reino Unido. O filme não é perfeito, entretanto. O diretor lança mão de alguns clichês de direção (a despedida na estação de trem é onde o melodrama desanda brevemente) e de roteiro (como as falas "proféticas" que Gary ouve em sua infância e o fato de ser fácil deduzir o desfecho do filme muito antes de seu final por conta de linhas sugestivas demais), mas também sabe entregar uma produção multivalente em qualidades. O design de produção recria com fidelidade os ambientes da época, os figurinos são impecáveis, a direção de arte é competente e a montagem é cirúrgica.
Há fluidez entre os diversos segmentos do longa-metragem, que cobre décadas na vida de Gary. A boa continuidade se deve ao ótimo trabalho de atuação do elenco principal que faz com que a passagem do tempo se dê de forma natural da pureza do pequeno Puchalski, à tempestividade do adolescente Schiffman até chegar no turbilhão emocional de Niney, que na fase adulta precisa aprender a lidar com o legado de expectativas deixadas por sua mãe. Gainsbourg, que curiosamente costuma falar abertamente sobre a pressão de ser filha de dois artistas famosos, é gigante em cena no papel de uma mãe que projeta suas realizações em seu único filho. Sua personagem tem a força necessária para ser tanto um abraço amigo quanto uma postura inquisidora, o que força Gary a inventar êxitos que não teve em nome de sua aprovação. Nina, porém, está longe de ser minimamente vilanesca. Ela é o motor das aventuras do filho e a relação afetiva deles só funciona tão bem em cena por conta da fina sintonia entre Gainsbourg e Niney. Eles fazem de Promessa ao Amanhecer ser quase um filme de romance que troca o amor romântico por um difuso e árduo amor fraternal.
(Crítica publicada por mim no site AdoroCinema em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-236367/criticas-adorocinema/)
Não há nada tão bom que não possa melhorar? Não exatamente. Apresentar uma nova versão de um filme clássico que funcionou tão bem em seu contexto original e, mesmo décadas depois, ainda ressoa de forma relevante não é tarefa fácil. O diretor dinamarquês Michael Noer (R, Vesterbro), na direção de seu primeiro longa-metragem com diálogos em inglês, encarou o desafio de maneira minimamente digna, mas apenas funcional em Papillon, sem conseguir ser capaz de imprimir muita personalidade (ou originalidade) no projeto.
Há de convir que a nova versão do clássico filme de 1973 — dirigido por um audacioso Franklin J. Schaffner e com o cacife de ser estrelado por Steve McQueen e Dustin Hoffman — tem seus méritos. O filme é eficiente na ação, razoável na criação de tensão e até emula e atualiza parte dos infernais perigos tropicais da opressiva colônia penal para onde os protagonistas são levados. O problema é que o drama, o grande destaque do filme original, nunca decola completamente, fruto da falta de ousadia do filme.
Charlie Hunnam vive Henri Charriere, também conhecido como Papillon, ou Papi, por conta da simbólica tatuagem de borboleta que estampa no peito. Ao contrário do filme original, este remake opta por mostrar uma espécie de prólogo sobre a vida de Henri antes da condenação injusta por homicídio que recebeu em Paris no início da década de 1930. A medida mergulha o espectador em uma França folclórica de crime e hedonismo nas esquinas de neon dos arredores do Moulin Rouge. Vítima de uma armação, Papillon é enviado para uma cadeia de segurança máxima na Guiana Francesa, onde a exuberância da natureza é proporcional aos riscos que o local oferece. Destinado a fugir, custe o que custar, Henri se aproxima de Louis Dega, vivido por Rami Malek, um sujeito de classe alta condenado por fraudes financeiras que carrega no reto o dinheiro necessário para tentar sobreviver na prisão.
É difícil superar a presença de cena e o charme de Steve McQueen, mas Hunnam tenta. O ator faz o necessário para entregar uma performance com elegância e força, mas carece da insolência calculada que um personagem como Henri tanto precisa. Hunnam surpreende, entretanto, nas cenas em que está fragilizado, especialmente no flerte com a loucura que se dá nas duas estadias que Papillon tem na solitária. Para um filme sobre determinação, é importante que o ator que se destacou em Sons Of Anarchy consiga mergulhar fundo nas sucessivas tentativas de desumanização que seu personagem enfrenta. Malek tem uma atuação cheia de maneirismos — não que a de Hoffman também não seja assim — para Dega, mas também impressiona quando seu personagem é mais intensamente testado.
Em termos estilísticos, Noer não se furta de recriar tomadas do filme original enquanto o texto de Aaron Guzikowski, inspirado na autobiografia publicada por Henri Charrière e no roteiro de Dalton Trumbo e Lorenzo Semple Jr., recorre à frases ipsis litteris do filme original com frequência. Nada disso é exatamente ruim quando se considera o alto nível do longa-metragem original, mas são sinais da falta de originalidade de Noer.
Pode-se discutir a equivalência da violência gráfica da versão de 2018 com a apresentada pelo filme de 1973. O sangue falso no clássico estrelado por McQueen parece datado para o espectador moderno. Em contrapartida, o filme atual investe em um nível de realismo gráfico, com direito decapitação, tripas fora do corpo e facadas convincentes. Há quem argumente que a violência do filme é um mero fetiche para atingir as sensibilidades de um público cada vez mais sedento por estímulos nesta direção. Mas mesmo as sequências mais sanguinolentas estão contextualizadas na atmosfera de ameaças que Papillon quer atingir — especialmente para fazer aflorar o sentimento de que é o instinto de sobrevivência que move o enredo.
A fotografia de Hagen Bogdanski é capaz de transmitir a atmosfera desesperançosa da prisão aliada a um design de produção que torna os ambientes ainda mais tétricos e insalubres do que no filme original. Nas cenas externas, o destaque fica por conta da maneira como os aspectos da natureza são filmados de uma maneira que ressalta seus perigos. A trilha sonora de David Buckley é um tanto genérica e não tem a mesma gravidade que a identidade musical criada por Jerry Goldsmith há quatro décadas e meia. Ainda nos aspectos técnicos é estranho que, em uma produção deste porte, a maquiagem utilizada para envelhecer Hunnam seja tão pouco convincente (especialmente no epílogo).
Superar o filme de Schaffner era mais difícil do que fugir da Ilha do Diabo e este novo Papillon passa longe disso. Há que se louvar, no contexto de 2018, a importância do comentário sobre o sadismo do sistema penal, as denúncias colaterais aos horrores do colonialismo e a moral sobre o valor da integridade individual diante de um contexto opressivo, mas tudo isso já estava lá de forma muito mais completa em 1973. Ainda assim, mesmo inferior, Papillon entretém.
(Crítica publicada por mim no site AdoroCinema em outubro de 2018)
No ano passado, o termo "pós-verdade" foi eleito a palavra do ano no Dicionário Oxford. O conceito da palavra indica uma forma de interpretar a disseminar dados dando mais importância à emoção ou crença pessoal pré-estabelecida. O verbete costuma vir carregado de uma conotação negativa, mas entre 2012 e 2013 algo que poderia ser lido como uma "pós-verdade" que lançou luz a uma questão que passou à margem da opinião pública por décadas: O sofrimento do povo Guarani-Kaiowá em sua pacífica luta para fazer valer seus direitos.
Muitos devem lembrar da onda que tomou ativistas e apoiadores nas redes sociais, quando milhares de pessoas mudaram seus sobrenomes em perfis no Facebook para "Guarani-Kaiowá". O gesto de solidariedade surgiu após circular pela internet uma carta assinada por líderes da comunidade Pyelito Kue, que enfrentavam um processo de despejo e fizeram um apelo ao Governo Federal, afirmando que seria uma "morte coletiva" para o grupo de 170 indígenas sair do local de onde vivem. O documento gerou comoção nacional e internacional ao ser interpretado como o anúncio de um suicídio coletivo.
"Eles anunciavam que ficariam lá até serem mortos, não que se suicidariam, mas o entendimento geral de que haveria um suicídio ajudou muito a deter o despejo", afirma um dos índios escutados em Martírio, filme de Vincent Carelli que apresenta com didatismo um vasto olhar histórico, antropológico e também emotivo sobre o tema.
Carelli começou a rodar o filme em 1988, antes mesmo de saber o que faria com aquelas imagens, e assim fez até 1999, acompanhando o que os índios chamam de retomada da tekoha, a terra sagrada, numa incessante busca por suas terras ancestrais, dilaceradas pela ambição do agronegócio e pela ação do Estado. Criador do projeto Vídeo nas Aldeias, dedicado à formação de cineastas indígenas, e militante da causa desde a década de 1970, o cineasta retornou ao grupo que acompanhou décadas antes após o assassinato do cacique Nísio no final de 2012 e rodou as cenas mais recentes de Martírio.
Entre passado e presente, o filme apresenta muitas frentes narrativas. Há a justaposição dos trechos gravados entre por Carelli e sua equipe nos dois períodos distintos; há a intenção de dar profundidade histórica à perseguição aos índios ao longo da História do Brasil; há a colagem de materiais de arquivo e reportagens jornalísticas que ganham muito tempo de tela.
A universalidade do luto é um recurso utilizado pelo filme para cativar a atenção e empatia do espectador, afinal, em um filme sobre genocídio a morte nunca seria apenas coadjuvante. São inúmeros os depoimentos de indígenas que perderam, pai, mãe, filhos, sobrinhos, irmãos e irmãs. É impossível não se emocionar com o desespero de uma sobrinha no funeral do tio assassinado à mando de fazendeiros. Em um momento tocante, uma indígena mais idosa chora copiosamente ao lembrar das indignidades à qual sua comunidade foi submetida e escuta uma frase que sintetiza o caráter de luta e coragem que permeia a obra: "Tente ser forte. Você tem que falar".
A postura pacifista dos Guarani-Kaiowás diante de seus inimigos evidencia a desproporcionalidade dessa disputa. É interessante notar que os índios estão sim, revoltados, mas, movidos por sua espiritualidade chegam até a rezar por aqueles que os fazem mal, justificando porque foram chamados pelos jesuítas de "gente de índole benigna, costumes pacíficos e tendências bem pronunciadas para a civilização". Martírio também prova sua horizontalidade ao incluir diversas cenas gravadas pelos próprios índios, como um tenso ataque armado realizados por capangas de fazendeiros contra uma ocupação indígena.
Na parte didática do filme, é mostrado como o Estado brasileiro teve uma ação fundamental no drama daquelas pessoas, mostrando que o desdém das autoridades pelos Guarani-Kaiowás do Império à República, de Dom Pedro II à Dilma Rousseff. O longa metragem, aliás, não se atém a questões binárias de esquerda ou direita, e critica a postura do governo da ex-presidente. "Nós todos votamos na Dilma para ela ouvir apenas os fazendeiros?", questiona uma índia. Outros episódios escabrosos da História do Brasil resgatados pelo filme são a criação do Serviço de Proteção ao Índio pelo Marechal Rondon, que, apesar do nome, visava dissolver as tradições dos povos descaracterizando suas culturas, e a criação da Guarda Rural Indígena, milícia armada formada por índios-soldados treinados durante a ditadura militar que espalhava terror nas aldeias com a prática de espancamentos, estupros e torturas de outros índios.
Quando foca na atulidade, Martírio aborda as discussões públicas sobre a PEC 215 — que visava tirar do Executivo e colocar nas mãos do Legislativo o poder de definir as áreas de reservas indígenas —, expondo discuros dos mais reacionários proferidos por políticos como André Puccinelli (PMDB), ex-governador do Mato Grosso do Sul, pela senadora Kátia Abreu (que estava no PSD na época) e do senador Ronaldo Caiado (DEM), que na época era deputado federal.
Talvez a melhor imagem de arquivo que o filme exibe é o potente e histórico discuro do líder indígena Ailton Krenak na Assembleia Nacional Constituinte de 1987, quando o ativista pintou o rosto enquanto argumentava contra a proposta de excluir das demarcações de terra os índios que já tinham entrado em contato com a cultura do homem branco. É um grande momento imagético num filme em que a estética crua do cinema direto não é capaz de alcançar uma força visual independente.
As vezes o longa-metragem peca pelo excesso de informações e pela distribuição muito fragmentada dos fatos, mas enquanto filme-protesto, o trabalho de Carelli, Carvalho e Tita é digno de palmas.
(Texto publicado por mim no site AdoroCinema durante a cobertura da 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2017)
Era o Hotel Cambridge expande o conceito de imigrante, de forasteiro, mostrando estrangeiros e brasileiros de outros Brasis juntos, comungando de esperanças e medos similares em um mesmo espaço. O filme se passa dentro do hotel presente no título da obra, que foi ocupado por grupos em prol da luta por moradia digna na cidade de São Paulo. Lá, convivem juntos nordestinos, paulistanos, palestinos, congoleses e pessoas de diversos países da América Latina que não tem condições para viver em outro lugar e seguem à risca o Inciso XXIII do Artigo 5 da Constituição Federal de 1988.
Naturalmente há alguns conflitos menores entre eles, mas quando um tribunal decide que as famílias terão de deixar o local, cresce a tensão sobre o destino daquele grupo, que se une disposto a lutar até o fim.
Com construções imagéticas potentes — como o espetacular e quase escheriano plano em contra plongé da espiral da escada do prédio —, o longa-metragem traz uma estética que é audaz sim, mas ao contrário do documentário excessivamente estilizado e éticamente questionável Fogo no Mar, aqui o que está em primeiro lugar são as vozes dos personagens, com uma abordagem humanista que lembra o modus operandis de Eduardo Coutinho (e também o fato do prédio ser um personagem próprio, assim como em Edifício Master).
Como em Taxi Teerã ou César Deve Morrer, fica muito difícil estabelecer o que é ficção do que é documental. O filme de Caffé une o melhor dos dois mundos. Os atores profissionais José Dumont (que já trabalhou com a cineasta em Narradores de Javé) e Suely Franco abrilhantam cada frame em que aparecessem, mas o foco principal está nos não-atores.
Entre as pessoas que interpretam a si mesmas, há três personagens inesquecíveis. Carmem Silva, líder da ocupação e ativista, é uma verdadeira força da natureza. É ela quem delega tarefas, peita autoridades e diz frases peculiares como "artista não quer nada". Sua presença é totalmente alinhada à temática de valorização de mulheres fortes proposta pela curadoria da Mostra de Tiradentes. O poeta palestino engrandece o filme com sua elegância e reflexões sobre o conflito Israel - Palestina. O imigrante congolês que se envolve amorosamente com uma cineasta, traz um importante debate sobre os aspectos autoritários do Estatuto dos Refugiados de 1951, que proíbe um refugiado de participar de manifestações políticas. O africano também levanta uma questão relativa à exploração dos recursos naturais da África por países de primeiro mundo. Tântalo e cobalto, que servem de matéria prima para componentes de celulares e computadores, alimentam uma indústria sangrenta no Congo, movida inclusive à trabalho infantil, o que não parece incomodar muito companhias como Apple e Samsumg.
Realizado através do esforço coletivo da produção do filme com o MSTC (Movimento Sem Teto do Centro), o GRIST (Grupo Refugiados e Imigrantes Sem Teto) e um núcleo de estudantes de arquitetura da Escola da Cidade, Era o Hotel Cambridge é contundente como uma marretada no concreto na parede de um prédio abandonado que não cumpre sua função social. Sim, o filme toma partido e assume uma postura combativa, mas há músculo e coração na obra de Eliana Caffé, que é muito mais do que mero panfleto.
(Texto publicado por mim no site AdoroCinema durante a cobertura da 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2017)
Assistir Liga da Justiça conseguiu ser uma experiência parcialmente recompensadora e frustrante ao mesmo tempo. Há boas ideias, um bom ritmo e um inegável carisma da maior parte dos heróis, o que é mérito tanto do cânone da DC Comics quanto das atuações. O problema desta vez é que o filme peca por falta de ambição. O flerte com a fórmula da Marvel Studios foi quase um flerte fatal. Soou como uma declaração de rendição ao template do estúdio de Kevin Feige. É como se a DC dissesse: "Olha, precisamos de sucesso comercial, não podemos arriscar novamente e não é possível propor uma alternativa bem sucedida ao sucesso da Marvel. Só nos cabe imitá-los." Não há nada de errado com um pouco de humor, mas precisa ficar claro que o problema de Batman Vs Superman não era o filme ser sombrio demais. Christopher Nolan e Tim Burton fizeram ótimos filmes do Batman apostando em uma atmosfera dark. Não era preciso repelir totalmente esta carcterística em Liga da Justiça para ter apelo com o público.
Por mais que Gal Gadot esteja incrível novamente como Mulher-Maravilha e seja ótimo que Diana Prince assuma a liderança daqui em diante, Liga da Justiça descaracteriza demais o Batman ao fazer dele um imitador do estado de espírito do Tony Stark de Robert Downey Jr. nos filmes da Marvel. Sem contar que as habilidades de Bruce Wayne são quase que totalmente jogadas para escanteio. A única coisa que o melhor detetive de Gotham sabe fazer no filme é ficar no canto enquanto os heróis com poderes cuidam da ação. Se o objetivo era apontar para a saída de Ben Affleck da franquia (como se especula), isso poderia ter sido feito de outra forma.
Era sabido previamente que a Warner tinha imposto um limite de extensão para o longa-metragem, então dava para esperar que os maiores detalhes sobre as origens dos novos personagens do DCEU (Flash, Aquaman e Ciborgue) fossem deixados para seus respectivos filmes solo. Isso não é propriamente ruim. Foi o bom timming da montagem que fez de Liga da Justiça a produção mais dinâmica do DCEU até então. Como diversão, Liga da Justiça é um trabalho muito mais satisfatório do que que Homem de Aço e Batman Vs Superman por conta do ritmo ágil e preciso.
O longa chega a dar a impressão de que vai se debruçar sobre temas interessantes. Cogita explorar o apelo do discurso reacionário em tempos de desesperança, o extremismo fundamentalista ou até desenvolver melhor as alegorias religiosas com as figuras do Superman e o vilão Lobo da Estepe (um antagonista genérico e esquecível, mas este mal está longe de ser exclusividade do DCEU). Ao evitar se enveredar por esses subtextos, a obra se contenta com sua função de entretenimento puro e perde a chance de avançar nas boas discussões que poderia trazer. No final, qual é a grande mensagem de Liga da Justiça? "Você não pode salvar o mundo sozinho"? Só isso?
Andreia Horta está, de fato, idêntica a Elis Regina. A pergunta que temos que fazer é: Isso basta para fazer desta cinebiografia boa? Por querer abranger diversos momentos da carreira cantora que foi a maior voz da MPB, "Elis" acaba apresentando um ritmo inconsistente, onde a sequência de cenas surge de forma atropelada, passando por excessivos eventos da vida da atriz sem maior profundidade e muito didatismo. Saí da sessão com a impressão de que sobraram números musicais e faltou envergadura narrativa.
A direção de David Robert Mitchell é ótima. O medo permeia cada frame da obra, que conta com um apuro visual e com enquadramentos dignos dos grandes cânones do cinema. O roteiro do cineasta, entretanto, deixa a desejar especialmente em seu climax confuso, mas ainda assim o filme tem um caráter aterrorizante louvável.
Assisti hoje na Netflix o documentário Rejoice and Shout, que apresenta a história da música gospel negra nos Estados Unidos, partindo de suas origens, no século XIX até os dias atuais. Há muitos problemas na montagem e no formato das entrevistas, mas as imagens de arquivo são espetaculares, com apresentações maravilhosas de artistas como Sister Rosetta Tharpe, Mahalia Jackson, The Blind Boys of Alabama e The Staple Singers. O documentário reforça a influência deste gênero musical tipicamente afro-americano em tudo que veio posteriormente (blues, jazz, r&b, soul e rock'n'roll) e mostra como a música serviu de porto seguro da época da escravidão até a luta pelos direitos civis nos anos 60.
É um filme com boas ideias, com uma boa temática central sobre o mundo do entretenimento na era da hiperinformação, mas poderia ter sido melhor, apesar de alguns ótimos momentos de humor.
"A atuação de Fernando Alves Pinto é convincente e condiz com a tortuosidade psicológica de seu personagem. Seu rosto não mostra feições extremadas, mas seu olhar soturno e seu modo lento e grave de falar vão revelando convulsões internas. A fotografia do filme sublinha diversas vezes o perfil do rosto de Fernando, como se evidenciasse a todo momento que aquele personagem, com pulsões represadas de violência, esconde uma faceta sombria e desconhecida." http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-122129/
Na Via Láctea
3.4 5Kusturica é um dos raros artistas que integram o seleto grupo dos diretores que venceram a Palma de Ouro em Cannes duas vezes. Conhecido por obras que mesclam comentários sociais sobre a vida na antiga Ioguslávia com lampejos de surrealismo escapista e comicidade, o multipremiado realizador nascido em Sarajevo revisita alguns temas caros de sua filmografia em Na Via Láctea, seu primeiro longa-metragem de ficção desde Promessas (2007).
Com ecos visuais que fazem referência direta ao excelente Vida Cigana (1988), mas com um comentário político que não faz jus à tenacidade dos celebrados Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios (1985) e Underground - Mentiras de Guerra (1995), seu trabalho mais recente é uma fábula em três atos sobre o amor em tempos de guerra composta tanto por belos lampejos poéticos quanto por deslizes na tonalidade do filme e exageros.
Com um clima bucólico que quase evoca certa atemporalidade e induz falsos anacronismos, a trama se passa durante um período de cessar fogo nunca respeitado pelos soldados durante Guerra da Bósnia (1992-1995). Neste contexto, o gentil e reservado leiteiro Kosta enfrenta o fogo cruzado para entregar suprimentos para combatentes na zona de conflito na região rural de seu país. Interpretado pelo próprio Kusturica, o personagem, que carrega muito da personalidade do próprio diretor, anda montado num burro com uma ave de rapina nos ombros, ama música e é capaz de fazer um falcão dançar quando toca um instrumento. Ele é vizinho da extrovertida Milena (Sloboda Mićalović), uma ex-ginasta que não hesita em mostrar suas habilidades esportivas nas horas mais inapropriadas, que está de casamento marcado com Kosta.
Um dia, Milena leva a personagem referida apenas como Noiva para casa. Interpretada por Monica Bellucci, a personagem que já enlouqueceu homens de desejo é uma simples mulher italiana com raízes sérvias que tem um passado traumático. Milena acolheu a forasteira para forçá-la a se casar com o pitoresco Zaga (Predrag Manojlović), um herói de guerra que funciona no enredo para expor o lado mais ridículo do espírito militarista. Na Via Láctea ganha ares de romance trágico clássico quando Kosta e a Noiva desafiam convenções e se apaixonam.
Kusturica dá diversas provas de sua criatividade para subverter a realidade com boas metáforas visuais. Em um filme marcado pela memória afetiva de seu realizador, o diretor comenta a dureza e impetuosidade do passar do tempo com um imenso relógio descontrolado que fere quem tenta alterar seus rumos. Como numa fábula da Disney à la A Branca de Neve, há muitos bichos ao redor do protagonista. Aqui os animais estão entre os personagens mais carismáticos e encarnam uma humanidade solene, qualidade que os próprios humanos parecem renegar em tempos de guerra. Os delírios visuais do longa-metragem também rendem de risadas (a alusão a Flashdance - Em Ritmo de Embalo, a galinha que briga com o espelho, os bêbados que aprendem a mover a orelha) à embrulhos no estômago (quando gansos nadam em sangue de porco, um falcão come um olho humano) ou ambas (como quando a orelha de Kosta é costurada de volta à sua cabeça pela Noiva).
O apelo surrealista do filme, um dos trunfos de sua primeira metade, perde força na medida que a trama principal avança se perde ao tentar equilibrar seu tom escapista com os comentários sobre a guerra e o enredo romântico. O roteiro assinado por Kusturica não se furta de apelar para Deus ex machina e a sucessão de situações mirabolantes torna-se cansativa e prejudica os bons simbolismos do enredo — como o paralelo com a história de Adão e Eva. Os efeitos especiais ruins também pesam contra a obra, por mais que também possam ser entendidos como mais uma estratégia cômica.
Como ator, Kusturica entrega uma perforamance regular. Com pouco em mãos, Bellucci consegue tirar leite de pedra com uma atuação elegante e para uma personagem sem muitas dimensões. Manojlović também se destaca graças à insanidade de Milena.
Mais uma vez, a paixão do diretor pela cultura e passado de seu país exala bons momentos e uma vibrante energia na tela, mas até a mais bem intencionada carta de amor corre o risco de pecar pelo exagero e Na Via Láctea ocupa um lugar menor na consagrada filmografia de Kusturica.
(Texto publicado no dia 11 de nov. de 2017 no site AdoroCinema como parte da minha cobertura do Festival MIMO de Cinema na cidade do Rio de Janeiro)
Corpus Christi
3.9 92 Assista AgoraDepois de alguns meses sem conseguir me concentrar para ver filmes, superei a dispersão mental e assisti o drama polonês Corpus Christi (2019). Que grata surpresa.
No longa-metragem, um jovem com passado de delinquência deixa a detenção em regime de liberdade provisória. Cheio de fantasmas internos e com a alma torturada, ele aspira ingressar no seminário para se tornar padre, mas descobre que alguém com seu passado não poderia aspirar isso. Ao chegar em uma cidade provinciana, ele finge ser um clérigo recém ordenado. A mentira cresce como uma bola de neve até que Daniel, então "escória" (como é chamado por um policial), assume a direção de uma pequena paróquia.
Daniel encontra uma comunidade traumatizada e cheia de cicatrizes abertas, assim como ele. Com seu método nada ortodoxo (para dizer o mínimo) de realizar as tarefas de padre, Daniel aos poucos percebe que precisa ser um agente de reconciliação espiritual naquele local. Ele é um homem falho, errante, mas também são muitos daqueles cidadãos comuns, cheios de esqueletos no armário.
A atuação expressiva de Bartosz Bielenia no papel de Daniel é o coração do filme dirigido por Jan Komasa. Bielenia encarna as contradições de um homem que já aprendeu que não cabe a ele atirar a primeira pedra. Não mais.
O filme aborda o conceito de Graça de forma inquietante. Uma Graça acessível a todos que flui de formas misteriosas, de forma certa por linhas tortas -- de forma "torta" por linhas "certas".
Shiki Oriori: O Sabor da Juventude
3.6 103 Assista AgoraHá um certo misticismo na noção de nostalgia. Sentir saudade é sentir uma estranha presença de uma ausência, uma sensação que confunde os antagonismos de felicidade e tristeza. Sentir a falta de uma pessoa, emoção ou experiência faz parte da experiência humana e essa angústia é explorada pelo anime Shiki Oriori: O Sabor da Juventude. O longa-metragem sino japonês é estruturado como uma antologia guiada por um mesmo eixo temático e com três histórias diferentes ambientadas em cidades distintas da China (escolha que certamente é um aceno ao segundo maior mercado de cinema do mundo).
O filme, distribuído pela Netflix, tem sido vendido com uma ênfase no fato de que a produção foi desenvolvida pelo estúdio CoMix Wave Films, casa do diretor e roteirista japonês Makoto Shinkai, do fenomenal Your Name. Entretanto, onde Your Name, o anime de maior sucesso comercial de todos os tempos, acerta, Shiki Oriori erra. O tríptico filme episódico carece de um desenvolvimento profundo de seus personagens, derrapa em clichês e parece parodiar de forma involuntária o sentimentalismo melodramático mas ao mesmo tempo honesto e eventualmente tocante dos melhores trabalhos de Shinkai.
A impressão que dá é que a obra tem ciência de que seu público alvo é composto por adolescentes, apesar da natureza adulta do tipo de reflexões que propõe, e por isso subestima o espectador regurgitando fórmulas ou se limitando a narrativas rasas. Erro crasso.
O segmento "O Macarrão de Arroz", dirigido por Jiaoshou Yi Xiaoxing, abre o filme. O episódio que mais se relaciona com o subtítulo de Shiki Oriori no Brasil acompanha a vida de Xiao Ming, um homem que foi morar em Pequim, mas vive imerso em suas lembranças de sua infância em sua cidade natal. Ao revisitar o passado, percebemos que o que a sétima arte é para o menino de Cinema Paradiso, o macarrão bifum é para o rapaz. Apesar das belas e detalhadas tomadas de pratos que certamente se tornarão gifs em páginas do Tumblr e podem referenciar a obsessão de Hayao Miyazaki em transformar culinária em animação, falta substância no caldo deste lámen.
Não há nenhum espaço para a subjetividade na morosa narração do protagonista com linhas que denunciam a impessoalidade e frieza da vida em uma metrópole de forma óbvia. O roteiro prefere deixar o personagem principal narrar sua própria vida dizendo algo como “estou triste” do que criar situações que mostrem tal tristeza. Quase não há diálogos aqui. Todas as impressões de mundo do rapaz chegam mastigadas. Nos flashbacks, a música incessante torna ainda mais frágil a tentativa do filme de romantizar os olhares que o menino lança para uma garota na rua. As obviedades também saltam narrativamente. Basta o rapaz dizer "Onde foram parar as lembranças?" para o filme voltar alguns anos no tempo. Por fim, pouco ou quase nada é dito sobre a personalidade de Xiao Ming para além de seus gostos culinários.
Yoshitaka Takeuchi, diretor de 3DCG de diversos filmes de Makoto Shinkai, dirige "Nosso Pequeno Desfile de Moda". Tirando uma cena que envolve chuva, o visual deste trecho de Shiki Oriori é tão desinspirado que mal parece se tratar de uma produção com o selo CoMix Wave Films, que já entregou produções com níveis impressionantes de detalhismo visual como O Jardim das Palavras. Ao menos os personagens conversam mais entre si, o que já representa um alívio em relação a "O Macarrão de Arroz".
Na trama, ambientada em Guangzhou, duas irmãs, Yi Lin e Lulu, lidam com a falta dos pais enquanto tentam se conectar afetivamente uma com a outra. Yi, a mais velha, é modelo e o filme parece resumir a vida das profissionais da passarela a obsessão pela beleza e disputa com outras mulheres. Lulu, a mais nova, é uma aspirante a estilista que não sabe se terá uma chance para mostrar seu talento. A história é rasa e sem complexidade. As viradas de roteiro são previsíveis e dada a sua inofensividade, "Pequeno Desfile de Moda" consegue ser mais fraco do que o pretensioso segmento que o precedeu. Para não dizer que tudo está perdido, este é o segmento que tem a trilha sonora mais sofisticada.
É só no terço final de Shiki Oriori que o longa-metragem mostra seu real potencial. A história de "Amor em Xangai", dirigido por Li Haoling, evoca a incomunicabilidade entre pessoas que se amam, como Your Name, mas sem o componente transcendental/sobrenatural. É a única parte realmente boa, consistente, dramaticamente convincente e narrativamente robusta do filme. Por ficar no desfecho, “Amor em Xangai” quase deixa a sensação de que o segmento final redime os demais erros do filme.
No enredo, Li Mo, já um arquiteto adulto, encontra uma fita cassete com a voz de Xiao Yu, a menina que foi sua paixão oculta na infância e mudou para sempre a trajetória de sua vida. Encontrar aquele objeto o faz propor para si mesmo uma arqueologia de seu afeto. O roteiro se preocupa em dosar drama e comédia para fugir do registrcoo do sentimentalismo monotemático e constrói uma história que complexifica seus personagens.
Aqui há motivações, pulsões, uma melancolia que se faz sentir para além do que é verbalizado. Quando "Amor em Xangai" foca na infância dos protagonistas, eles jamais precisam declarar o que sentem, mas situações como o colo que Li Mo oferece a Xiao Yu e as conversas resignadas que os dois tem densificam esta relação. Além disso, este é o segmento com a angulação de enredo menos egocêntrica dos três. Para além da ligação romântica, este trecho de Shiki Oriori é o mais eficiente em fornecer comentários sobre a sociedade na qual a trama se desenvolve, contextualizando valores sociais pela forma como as famílias se comportam, abordando temas como abusos e conflitos de gerações, e traçando um paralelo das histórias das pessoas com o desenvolvimento urbano de Xangai. Mesmo sem um desfecho catártico, o episódio consegue guardar surpresas até o final e definitivamente se firma como uma deliciosa recompensa.
Disponível em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-265658/criticas-adorocinema/
Sequestro Relâmpago
2.3 137Por um lado, é bom que um filme como Sequestro Relâmpago seja realizado. O cinema nacional que ambiciona maiores bilheterias ainda é pouco aberto para além da dicotomia drama-comédia. Um filme de gênero, um suspense, como este projeto dirigido por Tata Amaral, é um bom exercício de diversificação de linguagem no cinema comercial contemporâneo brasileiro. Entretanto, a falta de diálogos e situações críveis e um desenvolvimento caricatural para a protagonista debilita a capacidade deste longa-metragem de causar o que ele pretende: tensão.
Marina Ruy Barbosa, que inicia com este projeto e com o romance Todas as Canções de Amor uma guinada cinematográfica após dezenas de trabalhos para a televisão, interpreta Maria Isabel, uma jovem carioca de classe média que leva uma vida cosmopolita em São Paulo, como mostra a sequência de abertura ao som de "Eu Sou Um Monstro", de Karina Buhr. Nos primeiros minutos do filme, Isabel é sequestrada depois de se encontrar com amigos em um bar à noite. Sidney Santiago interpreta Matheus, que tem pouca experiência com crimes que age em conjunto com Japonês, inconstante personagem de Daniel Rocha. As personalidades distintas da dupla causam uma série de conflitos entre os dois a respeito da maneira como a ação será conduzida. Depois de uma tentativa frustrada de sacar o dinheiro da conta bancária de Isabel em um caixa eletrônico antes das 22h, a dupla decide manter a jovem com eles até o amanhecer, quando poderão sacar alguns milhares de reais da conta dela.
Sequestro Relâmpago é capaz de maquinar uma sucessão de erros e perigos ao longo da madrugada: tentativas de fuga de Isabel, a proximidade da polícia, apuros com outros bandidos, brigas internas entre os sequestradores, a constante ameaça de violência sexual contra a jovem. Delimitando boa parte da ação a coisas que acontecem dentro do carro, Amaral consegue trabalhar bem enquanto diretora neste contexto restrito e usa jogos de câmera para mostrar como se dão as relações de poder naquele ambiente. Mesmo com potencial para ser um bom thriller, o que sabota a tensão do filme é são as atitudes pouco críveis dos personagens, especialmente da protagonista. Além disso, falta urgência nas atuações nos primeiros momentos do sequestro, algo que teria sido fundamental para pontuar de forma verossimilhante os riscos daquela situação.
O roteiro, assinado pela diretora em conjunto com Marton Olympio e Henrique Pinto, cria uma Isabel que incorpora discursos ativistas de forma caricatural, mais preocupada em chamar um segurança que poderia tê-la ajudado de "machista" do que falar de forma mais clara que ela estava sendo sequestrada e precisava de apoio. A forma como a personagem de Marina Ruy Barbosa canta "Rap é Compromisso", clássico do Sabotage, para mostrar que também gosta de hip hop na tentativa de conquistar a simpatia de seus algozes, beira o ridículo. Mas mais fora de tom ainda são os comentários que ela faz para tentar dizer que ela, de uma classe média supostamente decadente, e os dois bandidos estão no mesmo patamar social ao citar a concentração de riqueza dos 1% mais abastados do mundo. O momento "Quem é patricinha agora?" também é pouco natural. Também pesa contra o filme que a personagem de Barbosa dirija e (indiretamente) elogie um carro da mesma marca da qual a atriz é garota propaganda. Uma fronteira melhor delimitada entre o que seria uma publicidade escancarada e uma ficção dramática teria ajudado o longa-metragem a não ter um elemento extra fílmico distrativo.
O maior potencial do texto do filme são os contrastes entre os diferentes, a relação entre crime e desigualdade, as forças complexas de gênero, raça e classe que estão em jogo naquela incômoda relação entre vítima e bandidos. Só que isso tudo teria sido costurado com diálogos melhores. Ainda assim, há aspectos interessantes. A figura de Matheus é a mais interessante do filme. O personagem começa o longa-metragem como o "bom bandido", preocupado apenas em cumprir a tarefa e levar o dinheiro para sua família. Com a melhor atuação do projeto, Santiago aos poucos escancara suas próprias contradições de seu papel, algo fundamental para um filme que pretende gerar reflexões. Em alguns momentos, depois do começo arrastado, o trio principal mostra química em cena e leva a refletir qual tipo de realidade social teria permitido que os três fossem, talvez, amigos.
Digno em retratar a cidade de São Paulo, com seus contrastes próprios, como um outro organismo próprio do filme, Sequestro Relâmpago teria sido um filme bem melhor caso tivesse conseguido transmitir com uma eficácia mais consistente os perigos que apresenta.
Filme visto no 20º Festival do Rio, em novembro de 2018.
(Disponível em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-255539/criticas-adorocinema/)
Morto Não Fala
3.4 384 Assista AgoraPor vezes o cinema de terror é erroneamente referido como um tipo de entretenimento meramente reativo, um cinema de escapismo feito apenas para provocar reações mais físicas do que intelectuais. Qualquer olhar mais sério e menos preconceituoso para o gênero ajuda para perceber que esse tipo de filme é capaz de costurar comentários profundos sobre os medos e anseios de uma sociedade. Morto Não Fala, de Dennison Ramalho, apresenta um interessante comentário sobre violência urbana e dialoga tematicamente com produções recentes do cinema nacional, como Trabalhar Cansa, ao propor um terror que parte de questões tipicamente periféricas.
Com roteiro de Ramalho e Claudia Jouvin, com base nos contos de terror do jornalista Marco de Castro, o filme leva Daniel de Oliveira para mais uma atuação intensa após Aos Teus Olhos e 10 Segundos para Vencer. O ator vive Stênio, retraído plantonista noturno de um necrotério que tem a capacidade de conversar com os cadáveres. Na definição de um traficante morto pela ROTA, tropa de elite da PM paulista, o protagonista é "a última voz que eles vão ouvir antes de conversar com o Diabo". Os segredos que o personagem escuta dos mortos o levam a quebrar uma regra não escrita e usar as confidências mórbidas para arquitetar a morte de Jaime (Marco Ricca), amante de sua esposa, Odete (Fabíula Nascimento). Tal ato desencadeia uma espiral de pânico na família de Stênio e faz dele, seus dois filhos pequenos e a inocente Lara (Bianca Comparato), filha de Jaime, os alvos de uma fúria sobrenatural.
Saltam aos olhos os méritos estéticos deste projeto. Mergulhando em cheio na explicitude do terror gore, o filme investe pesado nas cenas mais gráficas ao representar a rotina de autópsias no IML. Membros decepados, litros de sangue falso, vísceras expostas, estados de putrefação... Tudo isso faz parte do léxico visual do filme. Rodado em sua maior parte em ambientes internos, Morto Não Fala tem na fotografia texturizada de tons esmaecidos e cinzentos uma adequada representação do estado de espírito de Stênio. Os momentos em que os cadáveres falam são repletos de bizarrice, causando uma bem vinda estranheza em função da fusão de efeitos práticos e digitais, mas tal estranheza está em sintonia com a emoções que as cenas visam suscitar no longa-metragem. Entre os aspectos técnicos, porém, é preciso ressaltar que o trabalho de som ganha um protagonismo maior do que deveria quando uma vez que o filme parece abusar de ruídos extremamente acintosos como uma muleta para alguns sustos.
Ao optar por olhar para uma figura tão underground quanto um técnico do IML, o filme evoca os medos sociais da violência urbana que retroalimentam discursos políticos abrasivos e coberturas policiais de telejornais sensacionalistas. Morto Não Fala parte de realidades concretas das periferias brasileiras — morte de traficantes, feminicídio, crimes passionais, presença da religiosidade evangélica — para o lado fantasioso que atrai o pior de seus protagonistas. É como uma visita a uma espécie de "deep web" da vida real.
O roteiro opta por um retrato um tanto dúbio da principal figura feminina do filme, Odete, no que é a questão mais problemática do enredo. Mesmo sendo ela a vítima de um machismo mesquinho, o roteiro parece trabalhar para que Stênio, com todo o seu egoísmo, seja tratado de maneira mais empática e reste a mulher, em vida ou depois, o status de megera. Até faz, de certa forma, sentido no universo criado pelo longa-metragem que o espírito de Odete adote uma postura tão agressiva em um mundo tão impiedoso para todos eles. Entretanto, não teria feito mal pontuar de maneira mais clara que Stênio deveria ser o grande vilão da história.
O balanço entre o realismo do universo do IML e a fantasia proposta pela abordagem sobrenatural se dá de maneira um tanto bruta, uma vez que o filme parece ter duas seções distintas que até dialogam entre si, mas sem a naturalidade adequada. Em sua segunda metade, o longa se torna mais um filme sobre uma casa mal assombrada do que um filme sobre um homem que conversa com cadáveres, recurso que poderia ter sido melhor explorado. O caminho rumo ao clímax também se esgarça demais, com novos elementos e situações pipocando na tela a cada nova virada de enredo. Ainda assim, o filme é eficiente em criar situações de terror genuíno, como a primeira cena em que as crianças do elenco têm um contato com as forças sobrenaturais, na aflitiva cena do cerol, na perturbadora cena de sexo oral. O final aberto que dá margem para uma sequência ou o desdobramento em uma série de TV, o que frustra quem esperava um desfecho mais consistente. Com todas as reticências, Morto Não Fala é um filme competente que, mesmo com suas falhas, traz boas atuações, uma atmosfera extrema e representa um êxito honesto em sua proposta de fazer um terror urbano brasileiro.
Filme visto no 20º Festival do Rio, em novembro de 2018.
Tyrel
3.4 1Um jovem afro-americano visita um grupo de brancos em uma casa isolada nos Estados Unidos e as coisas não terminam bem. A descrição poderia dar conta de um breve resumo de Corra!, terror-satírico-sensação repleto de simbolismos sobre a falácia de uma América pós-racial, mas também serve para definir a sinopse deste filme dirigido e roteirizado pelo chileno Sebastián Silva. Em Tyrel, a experiência do racismo não ganha contornos tão extremos quanto no premiado filme de Jordan Peele. Não há banho de sangue, não há a complexa representação de processos históricos de exclusão por meio de metáforas visuais. Mas o mesmo tipo de tensão interpassa as relações sociais apresentadas no longa-metragem com um acréscimo: o filme também examina um tipo bem específico de sociabilidade masculina e a noção de pertencimento.
Depois de atuações grandes atuações em Straight Outta Compton - A História do N.W.A. e Mudbound - Lágrimas Sobre o Mississippi, Jason Mitchell entrega mais uma boa performance como protagonista deste drama. Ele interpreta Tyler, um rapaz que aceita passar um final de semana com os amigos de seu melhor amigo Johnny (Christopher Abbott) que ele ainda não conhece. O encontro se dá em uma cabana no meio da floresta no estado de Nova York onde será comemorado o aniversário de Pete, um sujeito de personalidade expansiva que não por acaso é interpretado por Caleb Landry Jones, que vive em Corra! um inconveniente (e perturbador) personagem similar
O roteiro de Silva é inteligente em instigar uma sensação de apreensão contínua que se constrói de maneira natural na forma em que Tyler — erroneamente chamado de Tyrel por um um branco que não estava prestando muita atenção no "intruso" — lida com aquela situação. A opção, entretanto, pode pode ser frustrante para o espectador que é levado a crer que o longa-metragem reserva uma conclusão mais catártica para aquele ciclo de animosidades, algo que jamais acontece. A ideia aqui pe criar um panorama de situações sociais fundamentais de uma masculinidade muito dependente da aprovação de terceiros e de rituais de auto-afirmação. Assim, Tyler ocupa no filme a imagem do forasteiro, posição que não se estabelece apenas por sua cor de pele, mas é acentuada por este fator. A todo momento Tyler é escanteado por não conhecer as brincadeiras do grupo, o tipo de bebida que eles consomem, as canções favoritas do R.E.M. (o rock alternativo branco é apresentado como o oposto do hip hop neste filme)...
Em um filme sobre constrangimento, Mitchell é capaz de representar um desconforto quase palpável em determinadas cenas com uma atuação segura. Uma das mais contundentes é a sequência na qual o grupo brinca de imitar sotaques com base em um sorteio. Assim, eles fazem troça de chineses e indianos para as risadas de todos até que o sotaque negro é sorteado. É simbólico que a única pessoa na sala descontente com a brincadeira tenha sido o único amigo abertamente homossexual do grupo, o que acena para uma ideia de que as minorias tendem a serem mais empáticas entre. Por fim, Tyler acaba cedendo, quase sem perceber, e decide parodiar o que seria o sotaque de uma "velhinha de Nova Orleans". Os demais homens se divertem. Mas a linha entre "rindo com Tyler" e "rindo de Tyler e consequentemente endossando a ideia de que negros são piada" fica no ar.
Deste momento em diante, Tyler passa a se retrair cada vez mais e recorrer ao álcool na medida em que se sente mais excluído — o que acontece com mais intensidade quase sempre que novos desconhecidos chegam. É interessante notar que a dramaturgia proposta por Silva deixa o espectador em alerta para a maneira como Tyler é tratado e para a maneira como ele se porta, provocando uma reflexão sobre as sutilezas, limites e reservas das relações raciais. Sendo assim, mesmo o uso de expressões como "buraco negro" e os questionamentos sobre os gostos de Tyler no café da manhã podem ser vistos como hostilidades subliminares. Tudo isso ganha ainda mais peso quando se situa a temporalidade do filme no dia da posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos entre personagens que se autodeclaram liberais ou progressistas.
Silva claramente deseja subverter expectativas no filme indicando rompantes que de fato nunca acontecem. Por mais que isso mostre a fidelidade do realizador às suas próprias ideias, a proposta também faz o filme perder parte de seu impacto potencial e até entrar em uma narrativa redundante, uma vez que não aponta para nenhuma grande conclusão. Talvez a ideia não seja retratar rupturas radicais ou possíveis conciliações raciais, mas apenas observar as subjetividades de um processo delicado de relação que envolve fatores complexos. Com certo faro para o humor, o diretor repete a parceria com Michael Cera (com quem trabalhou em Crystal Fairy e o Cactus Mágico) e faz acenos à comédia. O personagem de Cera chega na casa no meio da comemoração e parece ser o único disposto a tentar tornar a vida de Tyler mais fácil naqueles dias.
Usando uma lente objetiva grande-angular, as bordas distorcidas do quadro ajudam a formular a sensação e ebriedade que o filme exala em muitos momentos. O uso constante da câmera na mão casa bem com atmosfera de caos que se dá naquela casa cheia de homens barulhentos movidos à bebida do momento em que acordam até a alta madrugada. Sendo assim, há um aspecto cacofônico que, por ser tão constante, causa incômodo. Nota-se também uma opção por um trabalho de câmera mais fechado no rosto dos atores, o que permite que se evidencie as boas atuações de Mitchell, Abbott, Cera e Jones.
Tyrel é um filme sobre um estranho numa terra estranha que chega perto de esgotar seu conceito, mas é uma produção eficiente em apontar as nuances entre hostilidade e cordialidade nas relações raciais.
Filme visto no 20º Festival do Rio, em novembro de 2018.
Fevereiros
4.3 35 Assista AgoraA música brasileira nunca mais foi a mesma desde que a Maria Bethânia substituiu Nara Leão no espetáculo Opinião em 1965, conquistando o lugar que os deuses da música reservaram para ela no panteão da cultura brasileira. Em mais de 50 anos de carreira, porém, algo além de sua possante "voz de cobre", nas palavras do irmão Caetano Veloso, se manteve intacto: O interesse pela cantora pelos mistérios da fé.
Fevereiros examina a importância das tradições culturais na construção da identidade pessoal e coletiva. O longa exibe o lado ensolarado da alma de Bethânia em seu ritual anual de retorno às suas raízes durante a Festa da Purificação. A celebração é realizada no início do ano em Santo Amaro, cidade natal da artista. Do reencontro com as origens, o filme traça um paralelo entre a cidade baiana e o Rio de Janeiro (que ganha perspectiva histórica no depoimento do professor Luiz Antônio Simas). O elo se dá através do samba. Em 2016 a Abelha Rainha foi homenageada com o enredo "Maria Bethânia, a menina dos olhos de Oyá", da Estação Primeira de Mangueira. O longa-metragem também acompanha os preparativos e o grande momento do desfile da verde e rosa na Marquês de Sapucaí, que colocou fim no jejum de títulos da escola de samba.
Em seus depoimentos, Bethânia fala sobre sua religiosidade sincrética, da formação católica à iniciação no Candomblé, com uma contundência oratória que, mesmo sem o contorno da militância política, levanta a bandeira da liberdade de culto. A devoção é retratada para além das palavras, quando a câmera mostra a ativa participação nas festas de Santo Amaro e, não raro, suas lágrimas sinceras. Coadjuvantes, porém não menos importantes, os depoimentos de Caetano e de Mabel Velloso enriquecem o filme com falas sobre o DNA mestiço da família e as diferentes formas de interpretar aqueles fenômenos religiosos.
As reflexões sobre religião feitas por Caetano e Bethânia, um ateu e uma devota, poderiam ser antagônicas, mas complementam-se. O cantor e compositor chega contar que Mãe Menininha do Gantois (1894- 1986), Iyálorixá mais famosa do Brasil, já disse que os dois são a mesma pessoa. Enquanto ele explica que o eu-lírico do verso "Quem é ateu e viu milagres como eu" é, na verdade, Jorge Amado e não ele mesmo, mostra que seu respeito pelo candomblé e por sua irmã fizeram com que ele chegasse até a se iniciar na religião. Enquanto isso, Bethânia diz que sua cosmovisão religiosa começou a mudar ainda na infância quando seu irmão, também criança e já convencido da descrença em um ser superior, a fez começar a perder um medo exacerbado aprendido na Igreja Católica quando a levou a pensar que o divino está dentro de cada pessoa.
(Texto publicado por mim no site AdoroCinema. Disponível em http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-135597/)
Nico, 1988
3.4 23"Não me chame de femme fatale de Lou Reed", é uma das frases mais marcantes de Nico nesta cinebiografia. Aliás, ela também não gosta de ser chamada pelo apelido que a revelou para o mundo na colaboração com a banda The Velvet Underground. Nico é um nome artístico que a alemã Christa Päffgen ganhou quando ainda era modelo, na adolescência, antes de suas colaborações com Andy Warhol em Nova York. A alcunha teria sido concedida por um fotógrafo por ela namorar o diretor Nikos Papatakis. A Christa interpretada com um paradoxal vigor sorumbático pela atriz dinamarquesa Trine Dyrholm no filme Nico, 1988 é uma mulher que não quer ser definida por seu passado, por sua beleza e muito menos pelos homens com quem dormiu.
A cineasta italiana Susanna Nicchiarelli opta por um olhar carinhoso para uma figura que outros diretores facilmente poderiam retratar de forma tacanha como um trem desgovernado. Os traumas pessoais, o vício em drogas e os momentos decadentes de Nico não são demônios a serem exorcizados pelo longa-metragem, mas sim abraçados, como se fosse possível para ela alcançar algum conforto. "Por favor não me confronte com meus fracassos / Eu não esqueci deles", já cantou Nico em sua música mais icônica, "These Days". Nico, 1988 traz o fracasso à tona, mas de forma circunstancial, não como um fator determinante. A performance cheia de camadas de Dyrholm, que em um primeiro momento se apresenta como uma figura gélida, é capaz de fazer o espectador entender que estamos diante de uma atriz que assume uma personagem (Christa), que também carrega o lastro de uma outra personagem (Nico).
A trama se passa nos dois últimos anos de vida de Nico, que inicia uma turnê pela Europa após um empresário/fã (interpretado por John Gordon Sinclair, ótimo em cena) de Manchester assistir a um de seus concertos e estimular a cantora a passar por países como Itália, França, Tchecoslováquia e Polônia. Entre 1986 e 1988, no crepúsculo de sua vida e carreira, a cantora cujo nome artístico é um anagrama de icon olhava para a fama na década de 1960 com desdém. Para ela, estar no topo e experimentar o ostracismo comercial eram situações igualmente "vazias". A forma do roteiro, também assinado por Nicchiarelli, de reforçar a noção de descrença com a vaidade do estrelato é bastante precisa. A narrativa constrói uma Nico muito ciente de si mesma, uma mulher disposta a cortar as excessivas ligações que fazem entre a sua figura e os feitos de outros homens.
Os constantes enquadramentos do rosto de Dyrholm em primeiro plano, principal característica da direção de Nicchiarelli, são impiedosos, mas também empáticos. Seu semblante na maior parte do filme exprime, obviamente, grande melancolia, mas essa sisudez é complexificada na relação de Nico com seu filho, Ari (Sandor Funtek). O rapaz é fruto de um relacionamento de Christa com o ator Alain Delon, foi abandonado pela mãe na infância e sequer foi reconhecido pelo pai. Com vícios semelhantes, mãe e filho compartilham de um laço longe dos clichês. Ela o retira de uma clínica de reabilitação para que Ari seja sua companhia durante a turnê na Europa. Claramente não é o que o rapaz precisa naquele momento e o filme sabe explorar as contradições da dinâmica entre os dois dali em diante, quando muito é expresso por gestos, não por palavras.
A figura quase gótica de uma Nico quase cinquentenária configura um contraste com seu passado de arquétipo de musa loira-hipster-before-it-was-cool. Nicchiarelli evoca tempos pregressos em Nico, 1988 através de curtos flashbacks com imagens reais da cantora e modelo. A textura das imagens alude a uma lembrança empoeirada. A matiz de cores imagina o passado como uma uma memória quase psicodélica, delirante. A mensagem é que não se deve se estribar no que já passou. A infância da cantora, entretanto, é brevemente encenada por uma atriz mirim fascinada pela destruição da Alemanha pelos Aliados ao final da Segunda Guerra Mundial.
Em termos históricos, Nico, 1988 só derrapa na tentativa de aliviar a imagem de antissemita que Nico teve em vida. Os preconceitos que a artista demonstrou, de acordo com relatos até de seus amigos pessoais, são suavizados no longa-metragem pelo retrato que Nicchiarelli escolhe fazer da relação cordial da cantora com um homem judeu. Se fosse para tocar no espinhoso assunto, melhor seria ter abordado essa parte polêmica da vida de Nico com mais honestidade.
Nico foi dona de uma das vozes mais peculiares que o rock ‘n’ roll já conheceu. Sua lânguida voz de contralto, quase desafinada, é uma propriedade típica demais para ser imitada, mas Dyrholm conseguiu fazer isso sem soar caricatural.
Sem grandes devaneios e distrações formais em sua estrutura narrativa, Nico, 1988 é uma cinebiografia musical típica. O filme se propõe a canalizar cada fase de sua biografada através de apresentações de músicas adequadamente escolhidas para refletir o estado espírito da personagem de momento em momento durante a turnê. Uma escolha óbvia, é claro, mas que funciona.
Com arranjos feitos pela banda italiana Gatto Ciliegia contro il Grande Freddo, o catálogo de Nico é revisitado com propriedade pela voz de Dyrholm. A versão sepulcral de "Janitor of Lunacy" tocada no bar de Manchester é de assombrar. A interpretação de "All Tomorrow's Parties", em um registro mais raivoso do que na gravação original do The Velvet Underground, faz todo o sentido com a proposta do filme. Quando as circunstâncias do enredo fazem Nico cantar com uma banda de jazz, a performance do standard "Nature Boy" faz a gente pensar numa colaboração hipotética entre Nico e Chet Baker.
A grande catarse musical do filme, entretanto, se dá quando Nico e sua banda ultrapassam a Cortina de Ferro para tocar para um grupo pequeno, mas fiel, de fãs na Tchecoslováquia comunista. O sentimento anti-esquerdista da cantora aflora e ela se indispõe com o público, mas basta começar a cantar para que Dyrholm se entregue à música na canção-desabafo "My Heart is Empty". Raras vezes o "som da derrota", tão buscado por Nico, soou tão glorioso.
(Crítica publicada por mim no site AdoroCinema. Disponível em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-257616/criticas-adorocinema/)
A Casa do Medo: Incidente em Ghostland
3.5 749Reza a lenda que há 10 anos, quando Mártires foi exibido no Festival de Cannes como um excitante representante do chamado New French Extremism, houve choro e ranger de dentes. O longa-metragem intensamente violento de aspirações sócio-filosóficas do diretor Pascal Laugier teria sido recebido com desmaios, vômitos, lágrimas e debandadas da sala em sua primeira projeção. O espectro daquela sessão ronda Laugier até hoje e sempre que um novo trabalho do cineasta é anunciado os fãs de terror que acompanham seu trabalho se questionam: será que o realizador segue firme em sua tentativa de embrulhar estômagos mundo afora?
A Casa do Medo - Incidente em Ghostland chega aos cinemas uma década depois de Mártires, que representou um tipo de contraponto conceitual a filmes como Jogos Mortais e O Albergue, por, nas palavras de Laugier, usar a dor como meio, não como fim. O recente trabalho do cineasta, entretanto, parece jogar de acordo com as regras do jogo do cinema de terror de forma ambivalente. O filme, por vezes, se apresenta como um comentário sobre a própria natureza sádica e espetacularizante do gênero cinematográfico do qual faz parte ao mesmo tempo em que parece não saber medir bem a linha entre a auto-sátira e o clichê. Ainda assim, mesmo que o projeto não seja tão impactante quanto a maior obra do diretor francês, o cineasta ainda sabe como incomodar — e fazer refletir com seus subtextos.
A trama começa como tantas outras tramas de filmes de terror: uma família se muda para uma casa remota repleta de objetos macabros/bizarros onde se torna alvo de psicopatas. Mylène Farmer, diva pop francesa de décadas passadas, vive Pauline, mãe solo das adolescentes Beth e Vera, que inicialmente têm suas diferenças, naturais entre irmãs da mesma idade, mas têm os laços reafirmados no meio das atrocidades que vivenciam. Beth, interpretada em sua fase jovem por Emilia Jones e como adulta por Crystal Reed, é uma entusiasta da literatura de fantasia e terror do escritor Howard Phillips Lovecraft e por vezes se perde em seus devaneios. Vera, interpretada por Taylor Hickson quando jovem e por Anastasia Phillips em sua espinhosa fase adulta, é dona de uma personalidade mais extrovertida.
A Casa do Medo - Incidente em Ghostland tem como vilões, duas figuras rasas e grotescas. Por um lado, isso prejudica a complexidade do enredo. Ao contrário do que acontece em Mártires, por exemplo, nada se sabe sobre o que motiva aquelas atrocidades e o que uniu psicopatas de perfis aparentemente tão distintos a agirem juntos. Por outro lado, a escolha de Laugier — também roteirista — de apresentar a dupla de antagonistas como meros arquétipos (uma espécie de ogro e uma espécie de bruxa) faz com que o olhar do espectador se concentre nas vítimas.
É comum que filmes de terror tragam um background trágico para a jornada de seus monstros. Leatherface (referenciado em A Casa do Medo na figura do "ogro") é fruto de uma família de sociopatas que certamente influenciou em sua postura perversa. Até mesmo Freddy Krueger e Jason Voorhees têm histórias traumáticas no passado. O que acontece neste longa-metragem, entretanto, é que há a chance de pensar em como as protagonistas, especialmente a personagem Beth, processam o trauma de experimentar uma violência tão brutal enquanto ela acontece. Há aí um interessante ponto sobre os próprios filmes de terror.
Como não poderia deixar de ser, a guinada de violência que o filme tem é mesmo intensa, radical e desumana. A ambiguidade com a qual o filme lida com sua própria metalinguagem dá margem para que se pense a crueldade como um escape vazio em si mesmo. Entretanto, o que Laugier propõe é uma reflexão, ainda que vacilante, sobre o sadismo enquanto entretenimento. A existência da pavorosa casa que se torna palco para onde a mãe leva suas filhas e a presença de vilões que mais parecem uma lenda urbana faz tão pouco sentido dentro do universo de verossimilhança do filme que nos é permitido pensar que muito em A Casa do Medo é um trabalho de auto-sátira.
Os clichês do terror, como as luzes que piscam antes de uma situação de tensão e a presença de bonecas tétricas usadas como elementos de ambientação na casa que é cenário de tanta violência, estão presentes de maneira intencional. O que o longa-metragem questiona, quase como um argumentum ad nauseam, é a perversidade por trás de filmes no qual o único fim é fazer mulheres, geralmente jovens, sofrerem. Em muitos longas-metragens do gênero, especialmente os do subgênero slasher, ao qual A Casa do Medo faz referência, personagens são trucidadas com uma latente misoginia, especialmente quando as personagens são sexualmente ativas. O medo da sexualidade feminina e as tentativas dos vilões de enquadrar as flageladas adolescentes em estereótipos de feminilidade arcaicos são maneiras claras do filme de denunciar, através do choque, não apenas o sexismo repetidos em filmes de terror, mas na sociedade.
Há uma cena icônica e angustiante na qual Beth aparenta um pavor crível ao ser submetida a uma sessão de maquiagem forçada. Os close-ups sufocantes de Laugier conferem ao momento uma claustrofobia mortal que iguala (simbolicamente, é claro) aquele momento às outras violências que as garotas sofrem nas mãos dos algozes. Ao som de uma valsa, a lágrima da menina se mistura com o blush, o que parece ser do interesse dos vilões desde o início: impor um comportamento, um padrão estético impossível e uma atitude de total passividade por parte delas. Uma importante semelhança entre A Casa do Medo e Mártires é o tema da cumplicidade feminina em momentos de crise e desesperança.
Apesar das ideias, a direção de Laugier para este projeto é apenas convencional e por vezes faz escolhas duvidosas, como a nudez desnecessária (uma das contradições deste projeto) e uma sequência de comicidade involuntária envolvendo uma das bonecas macabras da casa. A atuação de Emilia Jones como a jovem Beth é a que mais se destaca, uma vez que a personagem é mais exigida ao longo do filme. Entretanto, as demais atuações são mais genéricas em suas hipérboles, especialmente o registro de Reed como a versão adulta de Beth. Um outro problema do filme são os diálogos rasos. Por mais que haja o flerte com a metalinguagem, as falas poderiam ser mais contundentes e não se limitar à mera funcionalidade ou redundância.
O realismo do trabalho de maquiagem coordenado por Brenda Magalas mostra incômodos rostos deformados das protagonistas como se quisesse confrontar o espectador com os contrassensos dos filmes classificados como torture porn. É claro que determinados públicos podem interpretar este projeto como mais um filme gore descerebrado, mas são os subtextos deste longa-metragem que garantem as reflexões mais profundas.
Com algumas viradas surpreendentes, A Casa do Medo - Incidente em Ghostland revisita traumas desesperadores em um filme que, mesmo com tanta violência e maldade, é mais sobre a força de suas protagonistas do que sobre a brutalidade que elas sofrem.
(Crítica publicada por mim no site AdoroCinema. Disponível em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-246532/criticas-adorocinema/)
Sem Rastros
3.6 191 Assista AgoraA cineasta Debra Granik entrega mais um drama contemplativo que gravita em torno do amadurecimento de uma jovem personagem feminina que vive situações incomuns para alguém da sua idade. Em Sem Rastros, como no premiado Inverno da Alma (2014), último filme dramático da diretora, a jornada é tão importante quanto o desfecho e a compaixão da realizadora por seus personagens é o que dá dinamismo emocional a um filme de sentimentos reprimidos, gestos singelos e silêncios eloquentes.
Roteirizado por Granik e Anne Rosellini com base no romance My Abandonment, de Peter Rock, o longa-metragem acompanha com dignidade e respeito os percalços internos e externos de um pai e uma filha em uma rotina incomum. Will, vivido por um intenso Ben Foster, é um veterano da Guerra do Iraque que sofre de stress pós-traumático e decidiu se retirar da sociedade organizada. Para isso, criou uma estrutura complexa de vida na densa mata de um parque florestal em Portland, Oregon. Seu estilo de vida sobrevivencialista, regrado e em sintonia com o ambiente que o cerca é compartilhado por sua filha de 13 anos, Tom, defendida com muito talento por Thomasin McKenzie. Um dia Tom é avistada por uma pessoa e, com a chegada da polícia e assistentes sociais, os dois são forçados a viver em uma casa comum, com um emprego comum para o pai e uma vida escolar comum para a filha.
A maneira como Will e Tom vivem podem suscitar comparações com Capitão Fantástico, mas este longa-metragem tem uma sensibilidade mais sutil e conflitos claros, mas menos catárticos do que no filme estrelado por Viggo Mortensen. Há ainda uma narrativa enigmática proposta por Granik na maneira vagarosa como são revelados os detalhes da situação vivida pelos protagonistas. A diretora evita espetacularizar a situação dos dois. Leva um tempo até se descobrir que Will é um veterano e alguns detalhes nunca são revelados completamente (como a identidade da mãe de Tom, por exemplo). Ao espectador, é exigida uma postura mais ativa, com bastante espaço para se supor uma série de coisas à respeito das lacunas que Granik e Rosellini deixam vagas.
A questão da liberdade individual ganha espaço em duas frentes no filme. A primeira tem a ver com a maneira como o Estado trata os dois, classificando como "sem teto" duas pessoas que levavam uma vida perfeitamente funcional e sustentável. Não é à toa que quando é obrigado a se conformar com a vida em sociedade, é oferecido para Will um trabalho mecânico e um contato "cordialmente forçado" com a religião. A fotografia de Michael McDonough dá conta de explorar os contrastes das etapas diferentes das vidas dos protagonistas. Inicialmente é a exuberância do verde intenso da floresta que, mesmo banhado por uma luz fria, toma de assalto a retina. Em seguida as cores sem vida da casa para onde Will e Tom são enviados ajuda a reforçar que o conceito de lar é mais complexo do que uma estrutura de paredes. A segunda noção de liberdade está na maneira como o bem estar de Tom precisa superar os traumas de seu pai. Por mais que haja amor entre os dois, e esse sentimento é representado com uma rústica afabilidade, chegará o momento em que mesmo o laço de sangue não será capaz de conter a autonomia de outro ser. E é assim que a vida deve ser.
O meticuloso efeito que balanceia tranquilidade e potência de forma intrigante é explicado pelas performances precisas dos protagonistas de Sem Traços. Conturbado, mas sem as explosões de A Qualquer Custo, Ben Foster demonstra um grande controle de um personagem marcado por fantasmas misteriosos que nunca conhecemos totalmente. Em plena sintonia com Foster, mas representando uma espécie de espelho imaculado do pai, Thomasin McKenzie tem como o maior trunfo de sua atuação o naturalismo como encara com desenvoltura as cenas na floresta, a melancolia dos dias sob a tutela do Estado e futuro incerto com pai depois que os dois fogem. Suas reações são exatamente o que se esperaria de uma pessoa que passou por aquele tipo de situação.
Há muita sincronia na maneira como os dois dividem tarefas, dividem os mesmos espaços, cuidam um do outro. Mas aos poucos fica claro o quanto esta dinâmica prejudica a menina e o quanto ela não precisa herdar o peso que seu pai carrega na alma. Aí reside um grande dilema. Em qual medida o apego de Will por Tom deixa de ser saudável para se tornar um impedimento do desenvolvimento da garota? Granik apresenta as ambiguidades e contradições dessa relação de forma honesta e entrega um desfecho justo e tocante para o impasse.
É desnecessário comparar a performance McKenzie com a de Jennifer Lawrence em O Inverno da Alma, mas o fato é que, assim como a J. Law iniciante, McKenzie também tem potencial para conquistar cada vez mais espaço em Hollywood.
Filme visto no 20º Festival do Rio, em novembro de 2018.
Texto publicado por mim no site AdoroCinema. Disponível em
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-254171/criticas-adorocinema/
A Mulher dos Cachorros
3.6 1Em A Mulher dos Cachorros, esconder é mais importante do que explicitar. Contemplar é mais relevante do que entender. Sentir é mais urgente do que saber. O drama argentino dirigido por Verónica Llinás e Laura Citarella acompanha uma protagonista sem nome, em uma história sem clímax envernizada por um drama virtualmente sem diálogos. A fábula sobrevivencialista opta por ser vaga em alguns aspectos para potencializar seu caráter metafórico e permitir que diferentes lentes sejam usadas na interpretação desta obra.
Llinás acumula a função de cineasta e roteirista com o trabalho de atuação interpretando a tenaz protagonista, uma figura solitária e resiliente que vive em uma área rural da parte pobre de Buenos Aires. Situada na periferia da periferia, isolada e sozinha no meio da mata, ela mostra habilidades de sobrevivência que fazem par com os talentos do personagem de Viggo Mortensen em Capitão Fantástico. O mais próximo de família que a mujer de los perros tem são os dez ou mais cachorros que a acompanham por todos os cantos, dividem a cama com ela, mas não são exatamente tratados por ela com a ternura de uma mãe. A ligação da mulher com sua matilha está mais próxima da irmandade.
De início, a câmera quase documental de Citarella e Llinás oferece uma lenta crônica dos hábitos desta mulher sobre quem pouco se sabe. A vemos reconstruir seu barraco a cada nova estação, caçar para comer, garimpar lixeiras em busca de algo que a sirva, fazer suas necessidades fisiológicas ao ar livre, caminhar longas distâncias em busca de água potável e suprimentos, defender seu território com uma postura altiva diante de quem ela sente que pode ser uma ameaça. O filme parece querer discutir a natureza da humanidade através de paralelos entre o homo sapiens e outras espécies, questão abordada pela filosofia desde Platão, mas chega a ser um pouco redundante em seus postulados quando se envereda por este caminho.
As gigantescas elipses sobre a identidade da mulher são o que a trama traz de mais instigante ao mesmo tempo em que não teria feito mal se o roteiro revelasse, mesmo que de maneira subjetiva ou esfíngica, mais sobre ela. Seria a mulher uma eremita que quer fugir do materialismo da sociedade de consumo como o Christopher McCandless de Na Natureza Selvagem ou apenas mais uma pessoa pobre da América Latina que sobrevive à duras penas? Seu asilo longe de sua comunidade foi autoimposto ou forçado? Esta Eva sem Adão e sem Deus em seu Éden no terceiro mundo ganha vida na contundente performance de Llinás, que imprime em sua personagem até mesmo uma certa elegância inesperada, fugindo da armadilha de uma atuação melancólica óbvia ou de uma ênfase em trejeitos animalescos que seria totalmente caricatural e dispensável. Com uma bela entrega às exigências do papel e as ótimas interações com a matilha, a atriz faz parecer fácil atuar em circunstâncias tão rigorosas.
Em termos estéticos, as cineastas alternam composições quase documentais com planos mais contemplativos, trançando uma identidade visual ambivalente para A Mulher dos Cachorros. A proposta de acompanhar a protagonista ao longo das quatro estações do ano também é uma oportunidade muito bem explorada pela fotografia de Soledad Rodríguez que assume uma nova atmosfera a cada segmento. A intercalação de close ups e planos abertos contextualiza a força desta quase-heroína em sua interação com o ambiente e a maneira como seu corpo se impõe como uma fortaleza em determinadas circunstâncias. Há problemas, porém, no ritmo proposto por esta narrativa, que parece andar em círculos e se arrastar quando mostra a mulher repetindo situações de sua rotina (sendo que o filme não é dos mais longos com 95 minutos de duração). Neste sentido, o carimbo de “filme de arte” pode ser muito sentido, para o mal e para o bem.
A Mulher dos Cachorros pode ser encarado como um libelo sobre a autossuficiência feminina, como uma obra sobre ser leal a si mesmo, como um tratado da força das pessoas que vivem com muito pouco. Um bom filme que sofre e se beneficia das escolhas radicais de suas autoras.
Filme visto na 12ª CineBH - Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte, em agosto de 2018.
(Crítica publicada por mim no site AdoroCinema, disponível em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-235001/criticas-adorocinema/)
Maggie: A Transformação
2.7 449O cinema de gênero têm seus códigos e seu cânone. Falar em filmes de zumbi, por exemplo, remonta a uma tradição epitomizada em A Noite dos Mortos Vivos, longa-metragem lançado há meio século que até hoje inspira quase tudo que envolve esta seara de produções, de The Walking Dead ao videoclipe de “Thriller”. O filme de George A. Romero, de tão influente e inovador, criou um template facilmente reconhecível para representar os mortos-vivos. As criaturas cadavéricas que se arrastam de forma grotesca e intuitiva são uma imagem recorrente.
Em Contágio - Epidemia Mortal (lançado na Netflix com o título Maggie: A Transformação), longa-metragem de estreia de Henry Hobson, a ideia é romper com estereótipos ou ressignificá-los. O passo lento de alguém afetado pelo vírus zumbi assume um outro sentido, representando mais uma morosidade de uma alma angustiada do que a putrefação do corpo em si. Existem ameaças externas aos protagonistas sim, mas o maior "vilão" é uma circunstância que não pode ser controlada. Estruturalmente, o longa-metragem deixa de lado os sustos previsíveis, o fetiche pela figura humana decomposta, o gore e até mesmo as cenas de ação para investir no drama. (Para fins de classificação, Maggie é mais um drama familiar pós-apocalíptico do que um terror.) O filme aponta para direções promissoras, mas sua narrativa é anêmica demais, o que prejudica o ritmo e o impacto das ideias trazidas pelo longa-metragem.
Na trama, roteirizada por John Scott 3 (outro estreante na função), Arnold Schwarzenegger interpreta Wade Vogel, um homem rural do Meio-Oeste do Estados Unidos cuja filha foi infectada por um vírus "necroambulambista". Ciente de será um risco para seus familiares, a jovem Maggie, vivida por Abigail Breslin, foge de casa, mas é resgatada por Wade duas semanas depois. Ao encontrá-la, o homem desobedece as recomendações das autoridades, leva a filha de volta para o lar e se recusa a receber os policiais que querem encaminhá-la para uma quarentena de onde nenhum infectado sai curado ou com vida. O roteiro cria uma imagem tenebrosa na mente do espectador (que nunca é mostrada). Diz-se em um dos diálogos que na quarentena os infectados se devoram até a morte.
A escalação de Schwarzenegger para o papel é quase uma outra dimensão do filme dentro dele mesmo. Ícone da hipermasculinidade explicitada por filmes de ação onde socos e tiros podem resolver qualquer problema, seu personagem não é definido por suas capacidades físicas. Por mais que ele seja filmado empunhando armas (de fogo ou não), há uma certa noção de debilidade nestes artefatos. Wade é basicamente impotente diante do avanço da doença da filha e não vai ser nenhuma altercação com policiais que vai mudar isso. A sensação de desconforto e urgência causada pela câmera na mão de Hobson casa com o retrato melancólico do personagem. Quando a câmera captura uma lágrima descer lentamente pelo rosto de um ator que representou a catarse alcançada pela força bruta, o momento de presumida autoconsciência, de intertextualidade com a persona fílmica do astro austríaco, engrandece o longa-metragem.
Maggie não é o Gran Torino de Schwarzenegger (faltam muitas qualidades a este drama zumbi para chegar perto do nível do último grande filme de Clint Eastwood como ator), mas é uma oportunidade de ver o brutamontes de outrora atuar fora de sua zona de conforto.
A verdadeira protagonista do filme, porém, é a personagem da atriz que despontou em Pequena Miss Sunshine. Se Schwarzenegger é o personagem que precisa se manter forte o tempo inteiro, cabe a Breslin exteriorizar de forma mais contundente o que está sentindo enquanto seu corpo (em um bom trabalho de maquiagem) definha.
Maggie parece abrir mão das alegorias sociais e políticas que o tema dos zumbis permite para desenvolver um comentário sobre a infecção como um problema de saúde sem cura. Estar desenganada é o que faz de Maggie uma morta-viva. Ao propor um estudo de personagem nestas condições, o roteiro acerta em mostrar outros momentos da vida da garota e retirar o ponto de vista exclusivo do pai. Quando a jovem se encontra com um ex-namorado, também infectado, o beijo entre dois zumbis é retratado de forma respeitosa e bela. Estar vivo, afinal, é mais do que um diagnóstico. A boa atuação de Breslin é capaz de humanizar um papel que poderia ter sido resumido a choros e gritos.
Entretanto, o tom macambúzio do filme, reforçado pela estética visual em tons de cinza e marrom e pela trilha sonora constante, não tem a geografia de altos e baixos necessária para fazer desta uma narrativa menos letárgica. O problema não é a falta de cenas de ação ou de sustos, afinal bons filmes não dependem apenas disso. O problema é que Hobson, como diretor, parece mais empenhado em criar um estado de espírito melancólico com cenas sem diálogos e construções visuais competentes, mas monótonas, do que adicionar nuances e relevo ao longa-metragem. Nem mesmo o dilema principal envolvendo a relação entre Wade e Maggie consegue ser ter a tensão necessária. Somos cercados pela ideia de que o pai pode ter que intervir e dar cabo da vida da filha antes que o vírus avance, mas Hobson e Scott parecem não ter coragem de abordar este complicado dilema moral do roteiro.
(Crítica publicada por mim no site AdoroCinema, disponível em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-192334/criticas-adorocinema/)
Promessa Ao Amanhecer
4.0 25 Assista AgoraPensando de forma enciclopédica, a trajetória de Romain Gary (1914 - 1980) sempre pareceu urgir por uma dramatização cinematográfica. Nascido na Polônia, em um território que hoje pertence à Lituânia e que na época fazia parte do Império Russo, Gary viveu de forma intensa. Judeu radicado na França, foi diplomata, aviador digno de honrarias durante a Segunda Guerra Mundial, eventual diretor de cinema e, principalmente, romancista, notabilizando-se como um dos autores mais prolíficos de sua geração. Sua história envolve relacionamentos amorosos com figuras notáveis, como a atriz Jean Seberg, múltiplas viagens e residência em diferentes continentes. Com um material tão rico em mãos, o diretor Eric Barbier (O Último Diamante) fez um trabalho competente em Promessa ao Amanhecer ao escolher costurar a narrativa do longa-metragem não com as vicissitudes da vida de Gary em si, mas com a complexa relação do escritor com sua mãe, uma figura apresentada como a ambivalente rosa dos ventos do protagonista.
O roteiro, assinado por Barbier em parceria com Marie Eynard, adapta o livro autobiográfico que dá nome ao filme. Em mais uma prova de sua versatilidade como atriz, Charlotte Gainsbourg encarna Nina Kacew uma figura materna que pode parecer meramente arquetípica, mas, aos poucos, se revela intrincada, cheia de traumas e esperanças. A ligação umbilical com Romain, vivido na fase adulta por Pierre Niney e na infância e adolescência por Pawel Puchalski e Némo Schiffman, respectivamente, se dá de forma ambígua, mas sempre carinhosa.
Os dois se amam com muita intensidade e Promessa ao Amanhecer mostra como esse sentimento pode assumir facetas das mais distintas, da cumplicidade ao afastamento, da dedicação incondicional ao antagonismo. Com uma mãe que o moldou para a grandeza, o filme trata de como Romain viveu tendo que suprir as projeções que ela fez sobre ele, o que se transforma numa angústia que só cresce e dá ao filme um ritmo envolvente em suas mais de duas horas de duração. É comum assistir a cinebiografias que valorizam em demasia a figura que se propõe a retratar. Por isso mesmo é interessante acompanhar esta narrativa em que os feitos do protagonista não são um fim, mas sim um meio de lidar com uma uma pressão que age nele como uma faca de dois gumes, parecendo esgotá-lo e motivá-lo em igual medida.
É particularmente especial o tempo que o filme reserva à infância de Romain na Polônia, onde a câmera de Barbier se posiciona na altura dos olhos do protagonista e o espectador tem a oportunidade de enxergar Nina com a mesma admiração e temor que o menino. Puchalski entrega uma atuação doce e segura enquanto sua inocência pueril é desafiada pelo crescente antissemitismo europeu do período entreguerras, pelos problemas financeiros enfrentados por sua mãe e pelas experiências com a arte, o amor e a violência. Nesta fase, a iluminação natural é capturada de forma brilhante, criando uma atmosfera de sonho, de nostalgia.
Barbier conduz seu filme de maneira segura e sem muitos maneirismos distrativos, parecendo seguir a tradição das (boas) cinebiografias produzidas no Reino Unido. O filme não é perfeito, entretanto. O diretor lança mão de alguns clichês de direção (a despedida na estação de trem é onde o melodrama desanda brevemente) e de roteiro (como as falas "proféticas" que Gary ouve em sua infância e o fato de ser fácil deduzir o desfecho do filme muito antes de seu final por conta de linhas sugestivas demais), mas também sabe entregar uma produção multivalente em qualidades. O design de produção recria com fidelidade os ambientes da época, os figurinos são impecáveis, a direção de arte é competente e a montagem é cirúrgica.
Há fluidez entre os diversos segmentos do longa-metragem, que cobre décadas na vida de Gary. A boa continuidade se deve ao ótimo trabalho de atuação do elenco principal que faz com que a passagem do tempo se dê de forma natural da pureza do pequeno Puchalski, à tempestividade do adolescente Schiffman até chegar no turbilhão emocional de Niney, que na fase adulta precisa aprender a lidar com o legado de expectativas deixadas por sua mãe. Gainsbourg, que curiosamente costuma falar abertamente sobre a pressão de ser filha de dois artistas famosos, é gigante em cena no papel de uma mãe que projeta suas realizações em seu único filho. Sua personagem tem a força necessária para ser tanto um abraço amigo quanto uma postura inquisidora, o que força Gary a inventar êxitos que não teve em nome de sua aprovação. Nina, porém, está longe de ser minimamente vilanesca. Ela é o motor das aventuras do filho e a relação afetiva deles só funciona tão bem em cena por conta da fina sintonia entre Gainsbourg e Niney. Eles fazem de Promessa ao Amanhecer ser quase um filme de romance que troca o amor romântico por um difuso e árduo amor fraternal.
(Crítica publicada por mim no site AdoroCinema em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-236367/criticas-adorocinema/)
Papillon
3.7 223 Assista AgoraNão há nada tão bom que não possa melhorar? Não exatamente. Apresentar uma nova versão de um filme clássico que funcionou tão bem em seu contexto original e, mesmo décadas depois, ainda ressoa de forma relevante não é tarefa fácil. O diretor dinamarquês Michael Noer (R, Vesterbro), na direção de seu primeiro longa-metragem com diálogos em inglês, encarou o desafio de maneira minimamente digna, mas apenas funcional em Papillon, sem conseguir ser capaz de imprimir muita personalidade (ou originalidade) no projeto.
Há de convir que a nova versão do clássico filme de 1973 — dirigido por um audacioso Franklin J. Schaffner e com o cacife de ser estrelado por Steve McQueen e Dustin Hoffman — tem seus méritos. O filme é eficiente na ação, razoável na criação de tensão e até emula e atualiza parte dos infernais perigos tropicais da opressiva colônia penal para onde os protagonistas são levados. O problema é que o drama, o grande destaque do filme original, nunca decola completamente, fruto da falta de ousadia do filme.
Charlie Hunnam vive Henri Charriere, também conhecido como Papillon, ou Papi, por conta da simbólica tatuagem de borboleta que estampa no peito. Ao contrário do filme original, este remake opta por mostrar uma espécie de prólogo sobre a vida de Henri antes da condenação injusta por homicídio que recebeu em Paris no início da década de 1930. A medida mergulha o espectador em uma França folclórica de crime e hedonismo nas esquinas de neon dos arredores do Moulin Rouge. Vítima de uma armação, Papillon é enviado para uma cadeia de segurança máxima na Guiana Francesa, onde a exuberância da natureza é proporcional aos riscos que o local oferece. Destinado a fugir, custe o que custar, Henri se aproxima de Louis Dega, vivido por Rami Malek, um sujeito de classe alta condenado por fraudes financeiras que carrega no reto o dinheiro necessário para tentar sobreviver na prisão.
É difícil superar a presença de cena e o charme de Steve McQueen, mas Hunnam tenta. O ator faz o necessário para entregar uma performance com elegância e força, mas carece da insolência calculada que um personagem como Henri tanto precisa. Hunnam surpreende, entretanto, nas cenas em que está fragilizado, especialmente no flerte com a loucura que se dá nas duas estadias que Papillon tem na solitária. Para um filme sobre determinação, é importante que o ator que se destacou em Sons Of Anarchy consiga mergulhar fundo nas sucessivas tentativas de desumanização que seu personagem enfrenta. Malek tem uma atuação cheia de maneirismos — não que a de Hoffman também não seja assim — para Dega, mas também impressiona quando seu personagem é mais intensamente testado.
Em termos estilísticos, Noer não se furta de recriar tomadas do filme original enquanto o texto de Aaron Guzikowski, inspirado na autobiografia publicada por Henri Charrière e no roteiro de Dalton Trumbo e Lorenzo Semple Jr., recorre à frases ipsis litteris do filme original com frequência. Nada disso é exatamente ruim quando se considera o alto nível do longa-metragem original, mas são sinais da falta de originalidade de Noer.
Pode-se discutir a equivalência da violência gráfica da versão de 2018 com a apresentada pelo filme de 1973. O sangue falso no clássico estrelado por McQueen parece datado para o espectador moderno. Em contrapartida, o filme atual investe em um nível de realismo gráfico, com direito decapitação, tripas fora do corpo e facadas convincentes. Há quem argumente que a violência do filme é um mero fetiche para atingir as sensibilidades de um público cada vez mais sedento por estímulos nesta direção. Mas mesmo as sequências mais sanguinolentas estão contextualizadas na atmosfera de ameaças que Papillon quer atingir — especialmente para fazer aflorar o sentimento de que é o instinto de sobrevivência que move o enredo.
A fotografia de Hagen Bogdanski é capaz de transmitir a atmosfera desesperançosa da prisão aliada a um design de produção que torna os ambientes ainda mais tétricos e insalubres do que no filme original. Nas cenas externas, o destaque fica por conta da maneira como os aspectos da natureza são filmados de uma maneira que ressalta seus perigos. A trilha sonora de David Buckley é um tanto genérica e não tem a mesma gravidade que a identidade musical criada por Jerry Goldsmith há quatro décadas e meia. Ainda nos aspectos técnicos é estranho que, em uma produção deste porte, a maquiagem utilizada para envelhecer Hunnam seja tão pouco convincente (especialmente no epílogo).
Superar o filme de Schaffner era mais difícil do que fugir da Ilha do Diabo e este novo Papillon passa longe disso. Há que se louvar, no contexto de 2018, a importância do comentário sobre o sadismo do sistema penal, as denúncias colaterais aos horrores do colonialismo e a moral sobre o valor da integridade individual diante de um contexto opressivo, mas tudo isso já estava lá de forma muito mais completa em 1973. Ainda assim, mesmo inferior, Papillon entretém.
(Crítica publicada por mim no site AdoroCinema em outubro de 2018)
Martírio
4.6 59No ano passado, o termo "pós-verdade" foi eleito a palavra do ano no Dicionário Oxford. O conceito da palavra indica uma forma de interpretar a disseminar dados dando mais importância à emoção ou crença pessoal pré-estabelecida. O verbete costuma vir carregado de uma conotação negativa, mas entre 2012 e 2013 algo que poderia ser lido como uma "pós-verdade" que lançou luz a uma questão que passou à margem da opinião pública por décadas: O sofrimento do povo Guarani-Kaiowá em sua pacífica luta para fazer valer seus direitos.
Muitos devem lembrar da onda que tomou ativistas e apoiadores nas redes sociais, quando milhares de pessoas mudaram seus sobrenomes em perfis no Facebook para "Guarani-Kaiowá". O gesto de solidariedade surgiu após circular pela internet uma carta assinada por líderes da comunidade Pyelito Kue, que enfrentavam um processo de despejo e fizeram um apelo ao Governo Federal, afirmando que seria uma "morte coletiva" para o grupo de 170 indígenas sair do local de onde vivem. O documento gerou comoção nacional e internacional ao ser interpretado como o anúncio de um suicídio coletivo.
"Eles anunciavam que ficariam lá até serem mortos, não que se suicidariam, mas o entendimento geral de que haveria um suicídio ajudou muito a deter o despejo", afirma um dos índios escutados em Martírio, filme de Vincent Carelli que apresenta com didatismo um vasto olhar histórico, antropológico e também emotivo sobre o tema.
Carelli começou a rodar o filme em 1988, antes mesmo de saber o que faria com aquelas imagens, e assim fez até 1999, acompanhando o que os índios chamam de retomada da tekoha, a terra sagrada, numa incessante busca por suas terras ancestrais, dilaceradas pela ambição do agronegócio e pela ação do Estado. Criador do projeto Vídeo nas Aldeias, dedicado à formação de cineastas indígenas, e militante da causa desde a década de 1970, o cineasta retornou ao grupo que acompanhou décadas antes após o assassinato do cacique Nísio no final de 2012 e rodou as cenas mais recentes de Martírio.
Entre passado e presente, o filme apresenta muitas frentes narrativas. Há a justaposição dos trechos gravados entre por Carelli e sua equipe nos dois períodos distintos; há a intenção de dar profundidade histórica à perseguição aos índios ao longo da História do Brasil; há a colagem de materiais de arquivo e reportagens jornalísticas que ganham muito tempo de tela.
A universalidade do luto é um recurso utilizado pelo filme para cativar a atenção e empatia do espectador, afinal, em um filme sobre genocídio a morte nunca seria apenas coadjuvante. São inúmeros os depoimentos de indígenas que perderam, pai, mãe, filhos, sobrinhos, irmãos e irmãs. É impossível não se emocionar com o desespero de uma sobrinha no funeral do tio assassinado à mando de fazendeiros. Em um momento tocante, uma indígena mais idosa chora copiosamente ao lembrar das indignidades à qual sua comunidade foi submetida e escuta uma frase que sintetiza o caráter de luta e coragem que permeia a obra: "Tente ser forte. Você tem que falar".
A postura pacifista dos Guarani-Kaiowás diante de seus inimigos evidencia a desproporcionalidade dessa disputa. É interessante notar que os índios estão sim, revoltados, mas, movidos por sua espiritualidade chegam até a rezar por aqueles que os fazem mal, justificando porque foram chamados pelos jesuítas de "gente de índole benigna, costumes pacíficos e tendências bem pronunciadas para a civilização". Martírio também prova sua horizontalidade ao incluir diversas cenas gravadas pelos próprios índios, como um tenso ataque armado realizados por capangas de fazendeiros contra uma ocupação indígena.
Na parte didática do filme, é mostrado como o Estado brasileiro teve uma ação fundamental no drama daquelas pessoas, mostrando que o desdém das autoridades pelos Guarani-Kaiowás do Império à República, de Dom Pedro II à Dilma Rousseff. O longa metragem, aliás, não se atém a questões binárias de esquerda ou direita, e critica a postura do governo da ex-presidente. "Nós todos votamos na Dilma para ela ouvir apenas os fazendeiros?", questiona uma índia. Outros episódios escabrosos da História do Brasil resgatados pelo filme são a criação do Serviço de Proteção ao Índio pelo Marechal Rondon, que, apesar do nome, visava dissolver as tradições dos povos descaracterizando suas culturas, e a criação da Guarda Rural Indígena, milícia armada formada por índios-soldados treinados durante a ditadura militar que espalhava terror nas aldeias com a prática de espancamentos, estupros e torturas de outros índios.
Quando foca na atulidade, Martírio aborda as discussões públicas sobre a PEC 215 — que visava tirar do Executivo e colocar nas mãos do Legislativo o poder de definir as áreas de reservas indígenas —, expondo discuros dos mais reacionários proferidos por políticos como André Puccinelli (PMDB), ex-governador do Mato Grosso do Sul, pela senadora Kátia Abreu (que estava no PSD na época) e do senador Ronaldo Caiado (DEM), que na época era deputado federal.
Talvez a melhor imagem de arquivo que o filme exibe é o potente e histórico discuro do líder indígena Ailton Krenak na Assembleia Nacional Constituinte de 1987, quando o ativista pintou o rosto enquanto argumentava contra a proposta de excluir das demarcações de terra os índios que já tinham entrado em contato com a cultura do homem branco. É um grande momento imagético num filme em que a estética crua do cinema direto não é capaz de alcançar uma força visual independente.
As vezes o longa-metragem peca pelo excesso de informações e pela distribuição muito fragmentada dos fatos, mas enquanto filme-protesto, o trabalho de Carelli, Carvalho e Tita é digno de palmas.
(Texto publicado por mim no site AdoroCinema durante a cobertura da 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2017)
Era o Hotel Cambridge
4.2 99Era o Hotel Cambridge expande o conceito de imigrante, de forasteiro, mostrando estrangeiros e brasileiros de outros Brasis juntos, comungando de esperanças e medos similares em um mesmo espaço. O filme se passa dentro do hotel presente no título da obra, que foi ocupado por grupos em prol da luta por moradia digna na cidade de São Paulo. Lá, convivem juntos nordestinos, paulistanos, palestinos, congoleses e pessoas de diversos países da América Latina que não tem condições para viver em outro lugar e seguem à risca o Inciso XXIII do Artigo 5 da Constituição Federal de 1988.
Naturalmente há alguns conflitos menores entre eles, mas quando um tribunal decide que as famílias terão de deixar o local, cresce a tensão sobre o destino daquele grupo, que se une disposto a lutar até o fim.
Com construções imagéticas potentes — como o espetacular e quase escheriano plano em contra plongé da espiral da escada do prédio —, o longa-metragem traz uma estética que é audaz sim, mas ao contrário do documentário excessivamente estilizado e éticamente questionável Fogo no Mar, aqui o que está em primeiro lugar são as vozes dos personagens, com uma abordagem humanista que lembra o modus operandis de Eduardo Coutinho (e também o fato do prédio ser um personagem próprio, assim como em Edifício Master).
Como em Taxi Teerã ou César Deve Morrer, fica muito difícil estabelecer o que é ficção do que é documental. O filme de Caffé une o melhor dos dois mundos. Os atores profissionais José Dumont (que já trabalhou com a cineasta em Narradores de Javé) e Suely Franco abrilhantam cada frame em que aparecessem, mas o foco principal está nos não-atores.
Entre as pessoas que interpretam a si mesmas, há três personagens inesquecíveis. Carmem Silva, líder da ocupação e ativista, é uma verdadeira força da natureza. É ela quem delega tarefas, peita autoridades e diz frases peculiares como "artista não quer nada". Sua presença é totalmente alinhada à temática de valorização de mulheres fortes proposta pela curadoria da Mostra de Tiradentes. O poeta palestino engrandece o filme com sua elegância e reflexões sobre o conflito Israel - Palestina. O imigrante congolês que se envolve amorosamente com uma cineasta, traz um importante debate sobre os aspectos autoritários do Estatuto dos Refugiados de 1951, que proíbe um refugiado de participar de manifestações políticas. O africano também levanta uma questão relativa à exploração dos recursos naturais da África por países de primeiro mundo. Tântalo e cobalto, que servem de matéria prima para componentes de celulares e computadores, alimentam uma indústria sangrenta no Congo, movida inclusive à trabalho infantil, o que não parece incomodar muito companhias como Apple e Samsumg.
Realizado através do esforço coletivo da produção do filme com o MSTC (Movimento Sem Teto do Centro), o GRIST (Grupo Refugiados e Imigrantes Sem Teto) e um núcleo de estudantes de arquitetura da Escola da Cidade, Era o Hotel Cambridge é contundente como uma marretada no concreto na parede de um prédio abandonado que não cumpre sua função social. Sim, o filme toma partido e assume uma postura combativa, mas há músculo e coração na obra de Eliana Caffé, que é muito mais do que mero panfleto.
(Texto publicado por mim no site AdoroCinema durante a cobertura da 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2017)
Jacquot de Nantes
4.3 19Puro deslumbre e sensibilidade. Não é só o Jacques Demy que revisita sua infância nesta cinebiografia. Varda nos convida a intimamente fazer o mesmo
Fé Corrompida
3.7 375 Assista AgoraMeu filme favorito de 2018
Liga da Justiça
3.3 2,5K Assista AgoraAssistir Liga da Justiça conseguiu ser uma experiência parcialmente recompensadora e frustrante ao mesmo tempo. Há boas ideias, um bom ritmo e um inegável carisma da maior parte dos heróis, o que é mérito tanto do cânone da DC Comics quanto das atuações. O problema desta vez é que o filme peca por falta de ambição. O flerte com a fórmula da Marvel Studios foi quase um flerte fatal. Soou como uma declaração de rendição ao template do estúdio de Kevin Feige. É como se a DC dissesse: "Olha, precisamos de sucesso comercial, não podemos arriscar novamente e não é possível propor uma alternativa bem sucedida ao sucesso da Marvel. Só nos cabe imitá-los." Não há nada de errado com um pouco de humor, mas precisa ficar claro que o problema de Batman Vs Superman não era o filme ser sombrio demais. Christopher Nolan e Tim Burton fizeram ótimos filmes do Batman apostando em uma atmosfera dark. Não era preciso repelir totalmente esta carcterística em Liga da Justiça para ter apelo com o público.
Por mais que Gal Gadot esteja incrível novamente como Mulher-Maravilha e seja ótimo que Diana Prince assuma a liderança daqui em diante, Liga da Justiça descaracteriza demais o Batman ao fazer dele um imitador do estado de espírito do Tony Stark de Robert Downey Jr. nos filmes da Marvel. Sem contar que as habilidades de Bruce Wayne são quase que totalmente jogadas para escanteio. A única coisa que o melhor detetive de Gotham sabe fazer no filme é ficar no canto enquanto os heróis com poderes cuidam da ação. Se o objetivo era apontar para a saída de Ben Affleck da franquia (como se especula), isso poderia ter sido feito de outra forma.
Era sabido previamente que a Warner tinha imposto um limite de extensão para o longa-metragem, então dava para esperar que os maiores detalhes sobre as origens dos novos personagens do DCEU (Flash, Aquaman e Ciborgue) fossem deixados para seus respectivos filmes solo. Isso não é propriamente ruim. Foi o bom timming da montagem que fez de Liga da Justiça a produção mais dinâmica do DCEU até então. Como diversão, Liga da Justiça é um trabalho muito mais satisfatório do que que Homem de Aço e Batman Vs Superman por conta do ritmo ágil e preciso.
O longa chega a dar a impressão de que vai se debruçar sobre temas interessantes. Cogita explorar o apelo do discurso reacionário em tempos de desesperança, o extremismo fundamentalista ou até desenvolver melhor as alegorias religiosas com as figuras do Superman e o vilão Lobo da Estepe (um antagonista genérico e esquecível, mas este mal está longe de ser exclusividade do DCEU). Ao evitar se enveredar por esses subtextos, a obra se contenta com sua função de entretenimento puro e perde a chance de avançar nas boas discussões que poderia trazer. No final, qual é a grande mensagem de Liga da Justiça? "Você não pode salvar o mundo sozinho"? Só isso?
Elis
3.5 522 Assista AgoraAndreia Horta está, de fato, idêntica a Elis Regina. A pergunta que temos que fazer é: Isso basta para fazer desta cinebiografia boa? Por querer abranger diversos momentos da carreira cantora que foi a maior voz da MPB, "Elis" acaba apresentando um ritmo inconsistente, onde a sequência de cenas surge de forma atropelada, passando por excessivos eventos da vida da atriz sem maior profundidade e muito didatismo. Saí da sessão com a impressão de que sobraram números musicais e faltou envergadura narrativa.
Corrente do Mal
3.2 1,8K Assista AgoraA direção de David Robert Mitchell é ótima. O medo permeia cada frame da obra, que conta com um apuro visual e com enquadramentos dignos dos grandes cânones do cinema. O roteiro do cineasta, entretanto, deixa a desejar especialmente em seu climax confuso, mas ainda assim o filme tem um caráter aterrorizante louvável.
Rejoice and Shout
3.8 2Assisti hoje na Netflix o documentário Rejoice and Shout, que apresenta a história da música gospel negra nos Estados Unidos, partindo de suas origens, no século XIX até os dias atuais. Há muitos problemas na montagem e no formato das entrevistas, mas as imagens de arquivo são espetaculares, com apresentações maravilhosas de artistas como Sister Rosetta Tharpe, Mahalia Jackson, The Blind Boys of Alabama e The Staple Singers. O documentário reforça a influência deste gênero musical tipicamente afro-americano em tudo que veio posteriormente (blues, jazz, r&b, soul e rock'n'roll) e mostra como a música serviu de porto seguro da época da escravidão até a luta pelos direitos civis nos anos 60.
Porta dos Fundos - Contrato Vitalício
2.0 352 Assista AgoraÉ um filme com boas ideias, com uma boa temática central sobre o mundo do entretenimento na era da hiperinformação, mas poderia ter sido melhor, apesar de alguns ótimos momentos de humor.
Para Minha Amada Morta
3.5 95 Assista Agora"A atuação de Fernando Alves Pinto é convincente e condiz com a tortuosidade psicológica de seu personagem. Seu rosto não mostra feições extremadas, mas seu olhar soturno e seu modo lento e grave de falar vão revelando convulsões internas. A fotografia do filme sublinha diversas vezes o perfil do rosto de Fernando, como se evidenciasse a todo momento que aquele personagem, com pulsões represadas de violência, esconde uma faceta sombria e desconhecida."
http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-122129/