O Sean Baker é aquele cara que fez um filme inteiro usando um iPhone 5s e uma engenhoca como adaptador de lentes, em 2015. Saiu "Tangerine" (2015), que faturou uma porção de prêmios no circuito independente (o Independent Spirit e o Gotham Independent Film Awards são os de maior destaque, mas também chamou a atenção em Sundance). Essa, aliás, é a veia do diretor: a produção independente de baixo orçamento, com qualidade inversamente proporcional.
Em "Projeto Flórida", apesar de tecnicamente mais bem elaborado, Baker mantém seu espírito. Depois de algum tempo de pesquisa entre trabalhadores e moradores dos arredores dos grandes parques da Disney, em Orlando, saiu com essa análise profunda da vida barata que circunda aquele universo mágico capitalista.
Rodado em 35 milímetros, o filme se aproxima de Moonee, uma garotinha (interpretada magistralmente pela Brooklyn Price) que mora com a mãe num hotel barato no entorno da Disneylândia. O hotel, ironicamente, se chama "Magic Castle Inn", gerenciado pelo Bobby (papel que rendeu a Willem Dafoe uma indicação ao Oscar na categoria de melhor ator coadjuvante.)
Moonee e seus coleguinhas atazanam a vida dos vizinhos com suas molecagens. Criança é cruel até quando brinca, todo mundo sabe disso. A falta de malícia existe para bem e para mal, o bom senso é quase zero. E se por um lado acompanhamos a garotinha inescrupulosamente cuspindo no carro da vizinha que mora no hotel ao lado (que se chama "Futureland". Barato e irônico), com a mesma facilidade ela é capaz de fazer amizade com a filha da vítima. Essa facilidade em relevar o contexto e seguir vivendo - visto de modo mais claro nessas pequenas aventuras do dia a dia infantil - abre a porta para que enxerguemos a verdadeira matéria do filme: a condição precária em que vivem aquelas pessoas, sem instrução, grana contada, sem sustentação emocional e afetiva, e a força que a criançada encontra para crescer e se desenvolver à parte do caos.
De frente para a tela, estamos acostumados a uma visão mais extremada da aridez nas relações sociais. A pobreza é aquela sintetizada como ausência total de recursos básicos como comida, moradia, roupa. Aqui, o incômodo vem principalmente pelo caos emocional. Porque os recursos materiais são poucos, mas não falta comida ou roupas. A grana é curta, mas nada que um trambique bem executado não resolva. O teto pode sumir a qualquer momento, mas a amizade (ainda que turbulenta) com o gerente garante uns dias a mais de aconchego e privacidade. Mas do lado emocional, puxa-se a coberta para cobrir a cabeça, destampa-se os pés.
Se por um lado Moonee tem o carinho que julga necessário e suficiente de sua mãe, socialmente isso pode não parecer o mais adequado. Nossos olhos, inclusive, fazem o papel de inevitável assistente social, a vasculhar cada falta de zelo de Halley (a mãe), a bagunça do quarto, a falta de vigilância e educação das crianças. E não é que Halley não seja carinhosa: ela é. Mas não do jeito que esperamos. Apenas da forma como é possível ser.
Não vou comentar o final do filme. Mas é tocante. Contrasta com o ritmo parcialmente monótono que Baker insiste em impor durante certa parte da obra, conforme vamos nos acostumando às pequenas aventuras das crianças.
Vivamos em que mundo for, no final das contas, a realidade bate à porta. Injusta ou não, a conta vem. E quando isso acontece, cada um foge para o castelo que lhe estiver ao alcance.
Ps.: Vamos concordar numa coisa: Que cartaz sensacional o desse filme, hein?
Fica bem mais interessante assistir aos Jogos Olímpicos de Inverno depois de conhecer a história de Tonya Harding, patinadora da equipe olímpica americana de 1994. A saga da brasileira Isadora Williams esse ano em PyeongChang, por exemplo, toma contornos épicos! Para quem sempre foi entusiasta da patinação no gelo então, o filme é um prato cheio.
“Eu, Tonya” (2017) é o mais novo filme do diretor Craig Gillespie, e adota o tom de docudrama para recontar a polêmica história da atleta americana. Gillespie ficou conhecido pelo filme “Garota Ideal”, de 2007. Na verdade, não tão conhecido assim, o que o torna uma agradável surpresa dentre os lançamentos deste ano.
No início da década de 1990, Tonya (interpretada de forma muito competente por Margot Robbie) teve uma rápida ascensão à fama depois de se destacar nas competições nacionais de patinação do gelo, tornando-se quase uma popstar. Foi a primeira mulher americana a realizar o salto triplo axel em competições.
Adotando um visual um pouco mais rude do que as outras competidoras e optando por trilhas musicais bem menos clássicas, Harding conquistou a simpatia do público mas deixou os narizes dos juízes torcidos por distanciar-se da imagem ideal de “patinadora princesa”. Uma espécie de André Agassi do gelo (exceto pelo fato de que, no tênis, os resultados não dependem de um julgamento tão subjetivo dos árbitros).
Ares de tribunal
A coisa começa a tomar tons mais pessoais e dramáticos quando caminha para “o incidente”. Como todo mundo acompanhou pela imprensa na época (portanto, tecnicamente não estou dando nenhum spoiler), Tonya foi acusada de, junto com seu marido, Jeff Gillooly (encarnado pelo Sebastian Stan, o irreconhecível “Soldado Invernal” da Marvel), perpetrar ataques físicos contra sua principal concorrente, Nancy Kerrigan.
No julgamento popular e midiático, Tonya sempre soube e teve participação ativa no ataque a Kerrigan. O filme, entretanto, tenta trazer uma nova visão ao incidente.
É interessante notar que, apesar de se chamar “Eu, Tonya”, o filme não se reveste da visão individual da personagem Tonya Harding. Pelo contrário, toma ares de tribunal, jogando o depoimento de testemunhas na tela para patrocinar a “versão Tonya” dos fatos. Durante vários momentos, entretanto, temos a nítida impressão de que a própria Harding não tem o domínio completo da realidade que lhe seria favorável e, eventualmente, lhe absolveria das acusações sérias impostas pela imprensa.
Assim, a obra transita de forma bastante interessante entre os depoimentos da mãe de Tonya (magnífica, Allison Janney é favoritíssima ao Oscar), o segurança pessoal Shawn Eckhart (também em atuação muito boa), o repórter e produtor Martin Maddox (Bobby Cannavale mostrando o lado da mídia na parada) e uma das treinadoras de Tonya, Diane Rawling (interpretada por Julianne Nicholson, conhecida mais no mundo das séries).
Em certo ponto, entretanto, causa certo incômodo a tentativa do diretor de retirar qualquer autoria do discurso do filme. Sim, sabemos que a versão construída na tela não pertence a ninguém especificamente, isso foi informado logo nos créditos iniciais com os cortes no estilo entrevista. Mas não bastasse isso, os próprios personagens, no decorrer da história, assumem um tom onisciente e quebram a quarta parede, dirigindo-se diretamente ao espectador para transmitir suas impressões.
Esse efeito utilizado mais de uma, duas ou três vezes descamba para a propaganda publicitária, tirando um pouco da credibilidade da narrativa e afastando o espectador do universo do filme. A experiência perde um pouco da imersão absoluta.
White trash
Um lado muito importante e pouco discutido que o filme traz também diz respeito ao racismo e à pobreza nos Estados Unidos – assunto de fundamental importância na Era Trump. Tonya era branca, pobre, violentada diuturnamente pelo namorado e desprezada pela mãe. A perfeita encarnação do conceito de “white trash”, construído desde o século 19, e que pode ser definido como as letras miúdas no contrato que dá acesso ao “sonho americano”.
Desde a época das comunidades pobres de imigrantes europeus, segregadas pelos “verdadeiros americanos” antes da guerra civil americana em nome da pureza hereditária (a chamada “one-drop rule” ou regra da gota de sangue única, em que americanos legítimos não podiam se casar com imigrantes europeus), existe um nicho de pessoas brancas, operárias, pobres e sem instrução que enfrenta muito mais dificuldade em ascender socialmente na terra das oportunidades.
A América não é tão grandiosa para essas pessoas. E esse discurso é brutalmente escancarado para Tonya (e para nós, inocentes espectadores) quando da fala de um dos árbitros, ao justificar uma nota baixa a uma performance da atleta: Harding não é a imagem que as pessoas querem como representante dos Estados Unidos da América. Meritocracia não é a única moeda de troca.
“Eu, Tonya” está entre os indicados à 90ª edição do Oscar. Margot Robbie concorre na categoria de Melhor Atriz, Allison Janney na de Melhor Atriz Coadjuvante e Tatiana S. Riegel é a responsável pela indicação na categoria de Melhor Edição/Montagem. O prêmio será merecidíssimo, caso venha para qualquer uma delas.
Com uma trilha sonora vibrante – parte do universo de Tonya da vida real – as duas horas de projeção passam voando, alternando entre momentos de euforia, melancolia e até perplexidade (essa última, quase sempre, de responsabilidade dos personagens de Stan e de Janney).
Tonya Harding foi – e permanece – como um ponto fora da curva na história da patinação do gelo. Mas sua vida na tela nos faz lembrar que, na carreira de qualquer atleta, por mais que pareçam duros, os tombos da pista de patinação são apenas a ponta de um iceberg muito mais profundo.
PS: Não deixe de assistir no YouTube o vídeo completo da performance real de Tonya Harding em Lillehammer, nos Jogos Olímpicos de Inverno de 1994. Emocionante.
O novo filme do diretor sul-coreano Bong Joon-ho, “Okja”, começou a gerar alardes antes mesmo de estrear. E as polêmicas que carrega têm a ver, basicamente, com uma expressão, utilizada em dois contextos diferentes: “distribuição em massa”.
A primeira questão surgiu no Festival de Cannes desse ano, no qual a obra concorria à Palma de Ouro. “Okja” é uma produção da rede de streaming Netflix, uma plataforma virtual que distribui suas produções de forma direta. Até o ano passado, era impossível encontrar uma produção original Netflix num cinema perto de você. Os críticos em geral e, posteriormente, a própria organização do evento passaram a questionar se um filme que não tem distribuição regular estaria apto a concorrer. Afinal, como premiar uma obra que não foi exibida em nenhum cinema?
Dessa vez, passou batido. Quando a logo da Netflix apareceu, pela primeira vez na história, na tela de exibição do Grande Teatro Lumière do Palácio de Festivais, a plateia vaiou. Mas o filme de Bong Joon-ho foi exibido mesmo assim, e aplaudido ao final. Concorreu, mas não levou nada.
De todo modo, levantar essa questão quanto à forma de distribuição de uma obra audiovisual serviu para questionar a própria essência dos filmes e a sua função social. Afinal, se uma obra não é amplamente distribuída e de acesso fácil a qualquer pessoa do mundo, qual a sua serventia? Para quê produzir, se não se vai exibir? A quem é conveniente elitizar o acesso à produção cinematográfica? Enfim, acertados ou não, questionamentos pipocaram para todos os lados.
Esse tipo de polêmica não estava nos planos do diretor Joon-ho. Mas, sem dúvida nenhuma, foi um excelente marketing para outro tipo de questionamento – esse sim, pensado cuidadosamente por ele na trama do filme. A segunda polêmica envolvendo “distribuição em massa”.
“Okja” é o nome de um superporco. “Superporco” é um animal geneticamente modificado, com a forma aproximada de um hipopótamo. Sua carne é comestível, mas com sabor ainda desconhecido (um dos personagens brinca, a certo ponto: “vamos torcer para que seja gostoso”.) E é a principal esperança de grana fácil para a “Mirando Corporation”, uma espécie de Friboi mundial.
O filme começa com uma propaganda didática da Mirando, na qual a CEO Nancy Mirando (interpretada pela sempre competente Tilda Swinton) explica para seus investidores, jornalistas e a nós, espectadores, a premissa básica do produto – e do filme. O mundo passa por uma crise na produção de alimentos. O futuro é incerto. Com base nisso, a espécie humana precisa se virar para continuar sobrevivendo. A esperança surge quando a Mirando, uma empresa ambientalmente comprometida (ra-ram) encontra por acaso (ra-raaaam) uma espécie nova na natureza: os superporcos. Nancy então assume seu lado Silvio Santos e esclarece que a Mirando conseguiu reproduzir em cativeiro a nova espécie, resultando em 26 novos filhotes. Tais espécimes foram distribuídas a fazendeiros ambientalmente comprometidos do mundo inteiro. A partir daí, como uma espécie de Presidente Alma Coin, de Jogos Vorazes, Nancy declara aberta a competição na busca do melhor superporco do mundo. O resultado seria conhecido depois de 10 anos.
“Okja” é o nome que recebeu o superporco distribuído à Coreia do Sul, ao pai de Mija (interpretada pela ótima Ahn Seo-Hyun). Dez anos depois, quando a Mirando retorna para buscar o animal, Mija e Okja não querem mais desgrudar uma da outra. E a garota vai ter que lutar para não se separar da sua melhor amiga.
A estória é contada em forma de fábula. O que pode, num primeiro instante, desagradar aos que buscam um filme mais sério, de questionamento social profundo. Mas não se apresse: Okja não é um filme para crianças.
Tudo bem que o roteiro, no geral, lembre um típico filme da Sessão da Tarde, com saídas meio óbvias de roteiro e um ritmo bastante previsível. A jornada do herói, descrita por Joseph Campbell em “O herói de mil faces”, está ali o tempo todo, cumprindo requisitos básicos que Syd Field impõe em seu manual de roteiro. Temos a protagonista destemida, a vilã caricata (só faltou ter um bordão), os camaleões, os pícaros, mentores. Jake Gyllenhaal surge num exagerado papel secundário, Steve Yeun parece reprisar seu papel de Glenn em “The Walking Dead”, Paul Dano aparece sóbrio, consistente, interpretando o que pediram para ele interpretar. Giancarlo Esposito tira os óculos, mas ainda não teve oportunidade de mostrar mais do que o já conhecido Gus Fring, de “Breaking Bad”. Está tudo lá, mais ou menos repetido. A ponto de antevermos o que vai acontecer no final.
O formato de fábula, entretanto, adiciona um elemento interessante. Remonta aos filmes de Hayao Miyazaki e outros mestres da animação japonesa. Não por acaso, “Okja” lembra bastante Totoro, o mascote dos Estúdios Ghibli e símbolo da obra de Miyazaki (Tilda Swinton e Bong são fãs confessos). A trupe que acompanha Mija em sua jornada também lembra bastante equipes como a de Cowboy Bebop, Gantz, Yu Yu Hakusho, ou até mesmo a atuação desastrada da “Rocket Team” de Pokémon. Esse clima de anime permeia toda a obra, em momentos de tensão e de reflexão. E reveste o questionamento mais profundo da obra: o sistema de produção e distribuição de alimentos no mundo. Não à toa, Otto Von Bismarck teria dito que ninguém dormiria à noite se soubesse como são feitas as leis e as salsichas.
O diretor Bong declarou que escolheu um porco como animal protagonista da trama porque achou que seria o mais comumente associado a comida. Pessoas comuns vêem bichinhos apenas de duas formas: estimação ou alimentação. E o porco seria o campeão em alimentação, com todo o seu bacon, pernil, presunto, salsichas, linguiças e tudo mais.
Toda a saga de Mija por tentar salvar sua doce Okja da eliminação redunda na negação completa do cruel sistema de produção. E da impotência em enfrentá-lo. O sistema é triste, é indigno, frio, cruel. E necessário, ao mesmo tempo. A luta contra ele deve ser racional, equilibrada. A crítica bem-humorada à militância radical e desequilibrada, inclusive, é mostrada em vários trechos.
Mas a realidade é pesada. Por mais lúdica e simples que seja a história, nos mostra a cruel verdade que está aí para todos verem, mas à qual muitos viram a cabeça. Os campos de produção agropecuários talvez sejam o mais próximo de campos de concentração que jamais conheceremos – as referências também são claras na tela. O próprio Bong Joon-ho virou pescetariano (alimenta-se só de vegetais e peixes) após a conclusão da obra.
Não há final feliz. Não há como passar incólume por todos esses tipos de questionamento. E ainda que a saída oferecida pelo roteiro pareça ser a melhor para todo mundo, os próprios personagens não parecem aceitá-la muito bem. O que sobra é um melancólico sorriso de Mona Lisa.
Uma pequena dica: não perca a cena pós-créditos. O recado que fica é que a militância não está morta, a luta não pode acabar. Pensemos, todos nós, no tipo de alimento que queremos em nossas mesas, e na forma como ele chega lá. Equilíbrio e racionalidade são a chave de tudo.
Novo filme de Laís Bodanzky debate o papel social da mulher
Esta semana, saiu em home vídeo pelas plataformas de streaming o mais novo filme de Laís Bodansky, “Como Nossos Pais” (2017). Diretora de obras como “Bicho de Sete Cabeças” (2001), “Chega de Saudade” (2008) e “As Melhores Coisas do Mundo” (2010), nesse novo trabalho, Laís – que também assina o roteiro em conjunto com Luiz Bolognesi – coloca como pano de fundo as relações familiares para explorar um tema difícil (porque delicado), mas importantíssimo: o papel social da mulher.
Não dá para afirmar assim, de cara, que o objetivo do filme é levantar a bandeira do feminismo – ainda que Bodanzky, vencedora de seis Kikitos no Festival de Gramado deste ano, seja inequivocamente uma grande feminista. Mas ao se deter sobre os bônus e ônus que sua protagonista Rosa joga na balança, ao tentar ser boa filha, dedicada esposa e carinhosa mãe, fica mais do que claro que a análise das dinâmicas familiares brasileiras está visceralmente ligada à crítica quanto ao papel social da mulher. Uma família perfeita precisa de uma mulher dedicada. Quem nunca ouviu?
A tonalidade do filme é estabelecida logo nas primeiras cenas: a aparente alegria que paira sobre um almoço familiar é abruptamente rasgada por discussões comezinhas, daquelas típicas de relacionamentos desgastados pelos anos de convivência. Mãe briga com filha, que briga com marido, que joga na cara de cunhada, que cutuca genro… todo mundo sabe como é. E isso termina numa grande tempestade – literal e figurativamente.
Rosa (magistralmente interpretada por Maria Ribeiro), que como qualquer pessoa normal quer, conscientemente ou não, corresponder a todos os papéis comumente atribuídos a ela, se vê cada vez mais acossada frente à sua implacável falibilidade. Não dá para ser perfeita, cumprir com todas as missões de forma impecável, quase onisciente. E no meio de uma discussão com sua mãe, Clarice (Clarisse Abujamra, numa interpretação inicialmente caricata, mas que logo brilha), descobre de forma absolutamente inesperada uma reviravolta em seu passado. Não bastasse isso, dias depois, toma ciência de uma guinada também em seu futuro.
Mesma balança
Balizada por esses dois fatos pesados envolvendo nascimento e morte de planos, sonhos e lembranças, Rosa – que é pressionada a assumir a posição de supermãe pelas gerações anteriores e posteriores – inicia uma jornada de profunda autocrítica. Sua rotina a sufoca, a impele à irritação, frequentemente lidando com a pressão de ser perfeita, até que o copo transborda. A perfeição não existe, e as pequenas mentiras cotidianamente contadas precisam ser enfrentadas nesse processo de transformação.
A trama perde um pouco da profundidade ao colocar os personagens masculinos todos na mesma balança, de forma plana. Inicialmente, a intenção talvez tenha sido a de cravar que a mulher é a única responsável por assumir o papel que quiser, da forma que quiser, independentemente do machismo que a rodeia, ainda que para isso seja necessária uma boa dose de sacrifício – o que é uma conclusão lógica do filme. Mas, em que pese a ausência de personagens francamente machistas no enredo – o que afasta a obra das discussões rasas a respeito de desigualdade de gênero -, todos os homens retratados são patéticos.
Pegos em contradições flagrantes, donjuanismos canastrões, descontrole orçamentário, desleixo com a rotina, submissão, defeitos óbvios e deslizes infantis, nenhum dos homens se salva. Pedro (Felipe Rocha), em especial, é erguido ao mais alto patamar, protagonizando uma cena de arrancar suspiros na plateia, para em seguida figurar numa das mais patéticas cenas de derrocada moral.
Contraponto americano
Nesse ponto, é interessante um intertexto que se pode fazer com “Big Little Lies”, uma série recentemente lançada pela HBO que conta com Reese Whiterspoon, Nicole Kidman e Laura Dern no elenco. O drama americano narra a história de mulheres envoltas em seus conflitos sociais numa pequena cidade da Califórnia. A trama bem elaborada com o tom “girl power” evidencia a força e superação femininas – individualmente e em conjunto – fazendo coro ao pedido de Chimamanda Ngozi Adichie: sejamos todos feministas; homens, inclusive. (Na série gringa, entretanto, as personagens masculinos são tratados de forma mais profunda e digna.)
Mas, conforme já dito, “Como Nossos Pais” não é um filme de bandeira. É muito mais profundo e urgente do que isso. O diálogo final entre Rosa e seu patético marido Dado (que, me desculpe a Clarice, não é tão legal assim), vivido por um Paulo Vilhena que interpreta a si mesmo – como quase sempre -, é de arrepiar.
Pela verdade, pela sobriedade, pela sinceridade. É preciso abandonar as pequenas mentiras do dia a dia se quisermos descobrir a nós mesmos. Jogar a roupa suja fora. E, mais especificamente quanto às mulheres, pressionadas por papéis sociais impostos geração após geração, é preciso reconhecer que a força feminina vem justamente de se saber falha, com honestidade e sinceridade para consigo mesma, mas compreender-se sem limites para buscar a própria felicidade.
Lágrimas no escuro - o drama pungente de "Extraordinário"
Preparem os lenços. Foi o comentário anônimo que ouvi após o trailer de “Extraordinário” (2017), no escuro de uma dessas sessões de cinema. E o marketing que acompanhou todo o período de divulgação do filme se confirmou na semana passada, com a estreia em circuito nacional: muita gente fungando na penumbra.
A proposta do diretor e roteirista Stephen Chbosky – de “As Vantagens de Ser Invisível” (2012) – foi tratar do bullying, um problema cada vez mais frequente nas escolas americanas (e do mundo todo). Ao escolher como protagonista o pequeno Auggie Pullman (encarnado por Jacob Tremblay e alguns quilos de maquiagem), elevou a questão ao máximo, já que o garoto apresenta o rosto deformado por complicações no nascimento. Se crianças comuns já sofrem nas mãos dos valentões, imagine um pequeno pintado com a cara do Corcunda de Notre Dame.
Aliás, talvez o grande problema do longa esteja justamente nesse aspecto. Ao aproximar a sistemática da história da de uma fábula infantil, inclusive com a narração de Auggie em primeira pessoa, a produção infantiliza a visão de mundo da obra, tornando o enfrentamento da questão superficial. Se por um lado estimula o uso do lenço durante a sessão, por outro, afasta o espectador do questionamento maduro.
Auggie mora com os pais – o simpático Nate (Owen Wilson) e a vibrante Isabel (Julia Roberts) – e com a irmã Via (Isabela Vidovic), que o seguraram na redoma doméstica o quanto puderam. Até que a mãe achou por bem mandá-lo à escola comum, quando a educação informal do lar começou a dar mostras de insuficiência. E é aí que o coração de todos os pais e mães da plateia começa a apertar (que eu tenha notado, não houve crianças chorando nesse filme).
Armas
Existem reminiscências não intencionais de “ET – o Extraterrestre” (1982) e da saga “Harry Potter” em diversas passagens do longa. A temática se aproxima bastante, já que no mundo de “Extraordinário” o sonho de Auggie é ser astronauta. Em sua pequena cabecinha, é a única maneira de conciliar o fato de não ser parte do meio, mas não ser rejeitado.
Tal qual um bruxo vivendo entre mortais, ou um extraterrestre, o garoto passa a vida dentro de fantasias (literais e sociais) esperando a hora em que alguém lhe enxergará verdadeiramente, em sua essência (o filme também tem seus ‘Elliots’, ‘Ronis’, ‘Hermiones’ e até um ‘Dumbledore’ chamado ‘Mr. Tushman’, traduzido como ‘Sr. Buzanfa’).
Um grande trunfo da obra é ramificar a narrativa em determinado ponto. Quando achamos ser um filme sobre o pequeno Auggie, Chbosky mostra as cartas de outros personagens, ampliando o espectro de análise – inclusive com a mudança de narrador. Passamos a notar que, por maior que seja a piedade em relação ao garotinho protagonista, outros astros orbitam em sua volta e são diretamente afetados por ele.
Lenços e lentes
Cada um tem sua necessidade de ser reconhecido, aceito e valorizado autonomamente. Ao ressaltar o problema físico de Auggie quase ao ponto de justificar o bullying, Chbosky faz o contraste com seus parceiros e reforça a inutilidade dos rótulos sociais: quem é normal, afinal de contas? Não somos todos anormais, em algum ponto? Não usamos, todos, máscaras?
Não fosse extremamente didático e, por vezes, pateticamente explícito (a cena do valentão levando sermão na sala do diretor beira ao ridículo), com soluções fáceis, personagens planos (todo mundo é bonzinho, exceto os maus) e uma trama característica dos mais agradáveis filmes da sessão da tarde, “Extraordinário” poderia se juntar ao time de “Precisamos Falar sobre Kevin” (2011), “Carrie – a Estranha” (1976), “Elefante” (2003) ou mesmo “Super Dark Times” (2017) como arautos de uma nova forma de pensar o bullying escolar. Afinal, é mesmo necessário colocar o problema em perspectiva – quem é que não tem aquele tio conservador, ou aquele amigo macho-man que ainda vaticina “Ah, os moleques vão crescer frescos desse jeito! No meu tempo, não tinha esse tipo de frescura”?
Independentemente do que mais possa se falar sobre o filme, não deixe de levar os lenços quando for ao cinema.
No mundo dos mortos, a Pixar celebra a vida em um de seus melhores filmes
Os Estúdios Pixar parecem nunca errar. Filme após filme, se firmam cada vez mais como um modelo técnico e sentimental a ser seguido, sabendo explorar temas delicados de forma inteligente e divertida. O resultado é o respeito extremo com seu público-alvo – as crianças -, sem excluir aqueles responsáveis por levá-las às salas de cinema: os adultos.
Com “Viva – a Vida É uma Festa!”, que acaba de ganhar o Globo de Ouro 2018 de Melhor Animação, a companhia se superou uma vez mais. Dirigido por Lee Unkrich (o nome por trás do emocionante “Toy Story 3”, de 2010, e Adrian Molina, o filme conta a história de Miguel Rivera, um garoto aspirante a músico que precisa enfrentar os dogmas familiares para ir atrás de seu sonho.
Mas os Rivera rejeitam a música em todas as suas expressões, impondo ao garoto obediência à continuidade do sugestivo ofício de sapateiro, passado de geração a geração. Sapatos para quem precisa manter os pés no chão – ou para quem não consegue alçar vôo, pregaria o teólogo da Libertação Leonardo Boff.
Trata-se de uma animação, não nos esqueçamos disso. Existem personagens caricatos, momentos pastelões e até o toque musical característico das produções Disney/Pixar, tudo em busca de fisgar o público infantil. Mas tudo feito com muito capricho, num esmero técnico inédito até para as produções da empresa. As texturas, cenários, iluminação e a ação em geral estão melhores do que nunca! A personagem de Inez (no original, ela chama-se “Coco”, diminutivo de “Socorro”), bisavó de Miguel, por exemplo, é de uma perfeição estética fascinante.
Experiência renovadora
Como toda produção Pixar, a temática é profunda. Miguel é um garoto absolutamente comum, com uma avó superprotetora (hoje em dia, dir-se-ia “helicóptero”) e a impotência diante da imposição superior.
E, como já é comum em roteiros da Pixar ou da Disney, o ponto de virada para o segundo ato vem com a revolta do protagonista – foi assim também em “Toy Story” (1995), “Procurando Nemo” (2003), “Valente” (2012), “Divertida Mente” (2015), “Moana” (2016). Aquela chutada de balde que rompe com o status quo e permite a experiência renovadora. A rebeldia necessária que impulsiona o sujeito para o mundo e dá aquela provocada em seu superego.
Aliás, interessante perceber essa intenção camuflada que a Pixar utiliza ao trazer temas universais para universos tão peculiares: a paternidade discutida em “Procurando Nemo” e “Monstros S/A”, a formação da identidade coletiva e individual em “Toy Story” e “Os Incríveis” (2004), a família e a memória em “Up – Altas Aventuras” (2009) e agora nesse belíssimo “Viva – a Vida É uma Festa!”.
Tudo isso sem nunca subestimar a inteligência de seu espectador (aliás, em um certo diálogo, o personagem Hector, de “Viva”, chega a dizer que está tomando cuidado com o que fala, pois existe criança ouvindo, em uma piada de duplo sentido perceptível apenas para os adultos da sala).
Memória e respeito
O fato é que “Viva” consegue ser um dos filmes mais emocionantes já produzidos pela Pixar, ao utilizar-se da morte como veículo para discutir a memória e a família. Tudo contextualizado com o “Dia de los muertos”, uma data significativa para os mexicanos. Aliás, é bom dizer que foram necessários mais de três anos de pesquisas para o roteiro ficar pronto, numa demonstração singular de respeito às tradições e culturas do México – algo pouco comum a Hollywood, acostumada, em geral, com humilhações ou exageros ao retratar países estrangeiros. O respeito na tela é tocante.
A parte musical do filme também impressiona, com canções belíssimas. Aliás, o filme também concorreu ao Globo de Ouro como Melhor Canção original com a música “Remember Me” (“Lembre de Mim”), que perdeu para o tema do filme “O Rei do Show” (“This Is Me”).
Em todo caso, pode-se dizer que “Remember Me” é a canção-tema mais marcante desde “Let it Go”, e deverá faturar alguns prêmios. As adaptações das canções no filme são muito bem feitas ao português (aliás, outro aspecto que a Disney e a Pixar sempre priorizaram em seus filmes). Impossível não sair do cinema cantando.
“Viva – a Vida É uma Festa!” é daqueles raros filmes que, de uma forma muito natural, te carregam no colo durante todo o tempo de exibição, deixando-te com certo aconchego no coração ao voltar pra casa. Não há quem não se lembre, emocionado, de um ente querido que já se foi, ou de uma criança que acaba de chegar à família.
O escritor Amós Oz, certa feita, disse que estaremos no mundo só até o dia em que morrer a última pessoa a se lembrar de nós. Carregando essa premissa, “Viva” deixa essa missão a todos os que se importam: estar vivo é também manter viva a memória dos que você ama, dos que compõem sua identidade.
Poucos títulos definiram de forma tão eficaz a trama de uma obra como “Three Billboards Outside Ebbing, Missouri” – que se fosse traduzido ao pé da letra, daria em algo como “Três outdoors à beira de Ebbing, Missouri”. Aqui no Brasil, o filme mais recente de Martin McDonagh ganhou o rótulo de “Três Anúncios para um Crime” (2017), retirando completamente a essência de estudo de personagens que é essa obra.
Logo de cara, “Três Anúncios” caiu nas graças da crítica especializada e do público dos principais festivais pelos quais passou. Estreando no Festival de Toronto sob uma avalanche de aplausos depois de levar o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza, atravessou o tapete vermelho do Globo de Ouro em grande estilo, faturando quatro das seis indicações que recebeu (Melhor Filme de Drama, Melhor Atriz em Filme de Drama, Melhor Ator Coadjuvante e Melhor Roteiro). Na categoria de Melhor Diretor, McDonagh perdeu para Guillermo Del Toro, de “A Forma da Água”, e em Melhor Trilha Sonora, Alexandre Desplat, também de “A Forma da Água” levou o caneco.
O título original funciona bem melhor do que qualquer outro que poderiam inventar porque, a despeito do que possam falar, a trama é bastante simplista: numa modorrenta cidade do Missouri, uma mulher perde a filha em um crime brutal, e após sofrer com a incompetência da polícia local em esclarecer o crime, resolve alugar três outdoors para protestar. O primeiro ato já coloca isso no colo do espectador, porque o que importa é como as coisas vão se transformar a partir da fixação dessas placas.
Vivos e mortos
Existe muita influência das grandes obras policiais de humor negro no filme de McDonagh. A pergunta “Quem Matou Laura Palmer?”, por exemplo, que tangencia a trama de “Twin Peaks”, aclamada série de David Lynch, se aplicaria perfeitamente aqui, não só por utilizarem a morte de uma adolescente como ponto de partida.
Em ambos, o crime em si não interessa. Não é reconstituído, não está no centro das atenções dos personagens e não serve de gancho para fisgar o telespectador. Os mortos já estão mortos e permanecem apenas como pano de fundo. O que interessa é como os vivos vão se virar – o que, frequentemente, desencadeia situações absurdas, patéticas, cômicas, comoventes e mais um mar sem fim de sensações.
Por outro lado, o padrinho maior de “Três Anúncios para um Crime” parece mesmo ser “Fargo”, um clássico de 1996 dirigido pelos irmãos Joel e Ethan Coen, e que se reforça no trabalho espetacular de atuação de Frances McDormand (que, aliás, é casada com Joel Coen). Neste filme de McDonagh, o tom peculiar dos personagens, a forma de expô-los em todas as suas contradições, nos incidentes e no poder do imprevisível, tudo remete à escrita dos Coen. Parece difícil escolher outra atriz para protagonizá-lo, senão a própria Frances.
Por outro lado, a direção do longa não é nada mais do que competente. Plana em significados, esmera-se em passar a mensagem do roteiro de forma direta, sem muita malandragem. Não há o que se comparar com o requinte de Lynch ou a urgência disfarçada dos Coen – ambos inspirações com uma marca autoral mais profunda. Obviamente que a direção não se restringe a aspectos de fotografia, mas fica a sensação de que o roteiro é muito mais forte do que a direção em si.
Aliás, um olhar mais detido sobre o tão elogiado roteiro revela inúmeros furos, contradições, diálogos desnecessários e saídas fáceis, evidenciando que a sua intenção não foi especificamente o modo de contar a estória, mas sim a profundidade dos personagens.
(E aqui, alguns spoilers que comprovam esse argumento – se você ainda não assistiu ao filme, recomendo que pule para o próximo parágrafo: Os outdoors alugados por Mildred Hayes, além de servirem de pressão em cima do xerife, estão no local onde Angela Hayes foi morta, numa estrada de pouco movimento. No decorrer do filme, entretanto, a estrada apresenta um movimento imensamente maior, com trânsito constante, repórteres, funcionários e a própria polícia, o que esvazia um pouco o significado das placas. [2] Em que pese não terem relação direta entre si, o círculo de personagens parece muito restrito. Vítimas e agressores se topam o tempo todo, tudo o que acontece na cidade está ligado a Mildred, ao xerife Willoughby ou ao policial Dixon. Ebbing, Missouri, é na verdade quatro ou cinco pessoas. [3] As variações no tom do roteiro o fazem perder o foco. O xerife Willoughby, por exemplo, sai de uma figura suspeita e cínica, no início do filme, a um mestre sábio onisciente, quando passa a enviar cartas a seus pupilos. James, o anão, vira uma figura patética simplesmente por ser anão. Charles, o ex-marido, passa de uma interessante e incômoda verruga no mundo sentimental de Mildred para um alívio cômico de sessão da tarde. [4] A cena do suco de laranja, no hospital, é um carrossel de emoções baratas, ridículas e desnecessárias. Enfim. Ao final, todos esses aspectos viram uma tentativa meio frustrada de emular o clima dos filmes dos irmãos Coen, tirando a energia que o roteiro poderia conseguir por si só).
Favorita ao Oscar
O forte do filme, sem dúvida nenhuma, são os personagens. Estruturados em diversas camadas, apresentam uma profundidade interessantíssima responsável por carregar o filme nas costas. Frances, que faz a protagonista Mildred Hayes, é favoritíssima ao Oscar (vale lembrar que a Academia, até a presente data, nem divulgou ainda seus indicados!), com toda a justiça do mundo.
Woody Harrelson também passa a credibilidade de sempre com seu xerife condenado (pelo destino, por Mildred e pelo espectador). E Sam Rockwell fecha a tríade com o famigerado policial Jason Dixon, um verdadeiro pacote de defeitos humanos mimado pela mãe, mas que ainda assim consegue nos despertar certa compaixão no fechar da conta. Créditos ao McDonagh roteirista.
Há ainda espaço para personagens secundários muito bons, como o ex-marido Charlie (John Hawkes), o carente James (Peter Dinklage, de Game of Thrones) e o tótem moral Abercrombie (Clarke Peters) – todos com suas aparições menores, mas fundamentais.
No frigir dos ovos, o filme é sobre raiva, e até onde ela pode mover alguém respaldado por objetivos fortes. Ou sobre a raiva como autoflagelação por uma culpa insuportavelmente grande. Ou sobre raiva como sintoma de uma impotência, diante da autoestima baixa. Não interessa. Porque os outdoors – muito mais sintomas do que causas – continuarão gritando do lado de fora de Ebbing, Missouri.
Quando Selton Mello veio a Goiânia, no último dia 23/07, para a avant-première de seu mais novo filme, "O filme da minha vida", disse que gostaria muito que os goianos recebessem a obra como um presente. Uma flor, um bálsamo para os olhos. Porque, mais do que nunca, em tempos como os em que vivemos, precisamos de coisas assim: simples, sensíveis, bonitas e que toquem fundo o coração. E não há definição mais exata para a obra.
Baseado no livro chileno "Um pai de cinema", de Antonio Skármeta (também autor de "O carteiro e o poeta" e fazendo uma ponta na tela), esse é o terceiro filme dirigido por Selton, adaptado por ele e por seu parceiro nos longas anteriores, Marcelo Vindicato. Considerando que o responsável pela fotografia é Walter Carvalho (responsável também por "Febre do Rato", "Baixio das Bestas", "O céu de Suely", "Central do Brasil", "Terra Estrangeira", "Carandiru", "Amarelo Manga" e, talvez seu trabalho mais primoroso, "Lavoura Arcaica"), já temos nessa pequena ficha técnica o indicativo de mais uma grande obra do cinema nacional.
Tony Terranova, o protagonista vivido de forma competente por Johnny Massaro, deixa sua família na Serra Gaúcha para ir cursar a faculdade na cidade grande. Quando retorna, alguns anos depois, dá de cara com a ausência de seu pai, o francês Nicolas (o francês mais brasileiro do mundo, Vincent Cassel), que abandonou a esposa brasileira, Sofia (Ondina Clais Castilho), e voltou para a França. Simplesmente desapareceu, sem deixar motivo algum.
Como é de se esperar, Tony entra numa espiral melancólica tremenda, dividindo seu crescimento pessoal com a vontade de descobrir o que é feito do pai, atolado em memórias de infância. Paco, um antigo amigo da família vivido pelo próprio Selton Mello, preenche de forma troncha o papel paterno, dando conselhos ou servindo como escape emocional vez ou outra. Aliás, é ele o símbolo da contradição humana: o conselheiro que recomenda perseguir o futuro, mas que ainda briga contra a evolução tecnológica. O homem que se julga superior ao porco, mas que carrega em si a dúvida quanto a qual classe mamífera pertence. Que veste a capa de heroi, mas esconde dentro de si o chiqueiro.
O primeiro ato do filme reforça o tempo todo a prisão emocional que estagna a vida de Tony, dividido entre a idealização do pai e o inconformismo com seu abandono. Isso cria o clima perfeito para as reviravoltas que o filme dá, já que os relances da busca pela maturidade frequentemente trazem surpresas.
Um papel discreto mas bastante importante foi reservado a Rolando Boldrin: o maquinista Giuseppe que, nas suas próprias palavras, "tem uma das funções mais nobres de todas: levar as pessoas para resolverem coisas". Boldrin cuida da linha de trem que une as cidades de Recanto, onde vive Tony e a mãe, e Fronteira, um povoado um pouco maior onde a vida flui mais - seja pela existência do único cinema das redondezas, seja pela movimentada "casa da luz vermelha" – dois palcos fundamentais para a estória. O maquinista, tal qual Caronte, da mitologia grega, será fundamental na jornada de Tony para resolver coisas entre dois mundos.
No fim das contas, "O filme da minha vida" compõe de forma digna mais esse tijolo na já consistente obra de Selton por trás das câmeras. Uma ou outra falha de roteiro, ou mesmo a solução rasa para o final da estória passam despercebidos por trás de sua delicadeza e sensibilidade técnicas. A fotografia toda forjada em tons de sépia, como num álbum de fotos antigo, e a trilha sonora recheada de músicas nostálgicas remetem à melancolia de tempos em que o afeto e a ligação entre as pessoas era a coisa mais importante do mundo. O amor salva tudo.
Quando for ao cinema para assistir ao filme, no dia 03/08, lembre-se das palavras de Selton na pré-estreia e aproveite o presente. Porque na ferrovia da vida, o início e o fim são importantes, mas é o meio que faz da viagem inesquecível.
O diretor e escritor Jim Jarmusch meio que se autodenomina um obcecado por padrões. Em inglês, "padrões" pode ser traduzido como "patterns", mormente aqueles inseridos no mundo da estética. Seu mais recente filme, "Paterson", pode até gerar uma brincadeira fonética com "Pattern son". Filho de padrões. Um obcecado.
Mas não é apenas essa leitura apressada (e forçada, reconheço), que ressalta sua habilidade em brincar com padrões. "Paterson" é também o nome do protagonista da obra. E da cidade na qual se passa a estória. Paterson, vivido por Adam Driver, é um motorista de ônibus que vive em Paterson, Nova Jersey. Driver, no português, significa motorista.
Paterson, que mora em Paterson, Nova Jersey, é um cara pacato, que tem uma vida simples ao lado da esposa Laura (interpretada por Golshifteh Farahani) e se dedica fiel e resignadamente a cumprir com sua rotina diária. Acorda pouco depois das 6h da manhã, dá um beijo na esposa, toma o café e sai à pé para o trabalho. Conversa brevemente com o chefe, pega e deixa passageiros - e se deixa levar anonimamente por suas conversas casuais - volta para casa. Janta, passeia com o cachorro, toma uma cerveja no bar da vizinhança e volta para a cama.
Para muitos, a vida mais entediante do mundo. Mas o nosso Paterson se encarrega de preencher esse emaranhado de padrões com poesia. Sempre que tem um tempo livre, tira do bolso seu caderninho de notas (o caderno secreto) e joga ali versos despretensiosos. O motorista não se define como poeta. Ou se define, mas não gosta de sair falando aos quatro ventos sobre isso - talvez se reconheça assim apenas lá no fundo.
O curioso é que Jim Jamusch nos leva para a sala de cinema com uma proposta dessas - assistir a monótona vida de um cara comum - contrariando à própria lógica escapista da experiência cinematográfica, para mostrar que sempre existe um outro lado a se observar nas coisas comuns. Vamos ao cinema para fugir de nossas rotinas. Para viver aventuras, dramas, experiências diferentes. Mas lá está Jamusch com seu Paterson para provar o contrário, mostrar o outro lado.
Essa dualidade permeia o filme todo. A esposa do conformado Paterson, por exemplo, representa o imprevisível. O lado inquieto das coisas, com sonhos inusitados (como ser uma cantora country, ou ser a Rainha do Cupcake da cidade) e propostas ousadas de mudança de vida (seja enriquecendo-se, seja tornando-se famosa, seja estimulando o marido a tornar-se). É obcecada por preto e branco, e espalha pelas paredes, cortinas, tapetes e forros esses padrões geométricos monocromáticos (em inglês, "patterns on". Põe na conta do Jimmy, de novo). Os padrões do imprevisível - como se isso fosse possível - saltam no colo, na lancheira, no lençol da cama de Paterson. Mas, ao contrário do que possamos imaginar, para ele está tudo bem. Não há pessimismo. Uma espécie de Bukowski às avessas.
Paterson, o poeta, soa meio bobo às vezes. Esperamos mais de suas reações (as fotos em sua cabeceira indicam que já serviu à Marinha americana - como, aliás, o próprio Driver também o fez), ficamos apreensivos com suas caminhadas noturnas, nos irritamos com sua esposa. Mas nada o atinge. O que, pouco a pouco, evidencia o quão longe estamos daquele universo psicológico. Paterson está em paz. Quer continuar assim. Não usa celular, não é ansioso como nós, do lado de cá da tela. E simplesmente introjeta a tristeza e a melancolia, quando qualquer um de nós chutaria o balde para bem longe, quando algo sai do controle. Exceto pelos seus poemas (escritos, originalmente, por Ron Padgett) sobrepostos à imagem (com sua caligrafia) e som (com sua voz), não temos absolutamente nenhum acesso ao que ele pensa, o que espera ou o que teme na vida. Paterson - sujeito e cidade - simplesmente é.
Existe toda uma infinidade de referências culturais que o filme explora. Seja ao mencionar filhos famosos da cidade de Paterson, como Lou Costello e William Carlos Williams (poeta cujo nome parece perfeito para figurar num filme que brinca com padrões), seja a autores americanos reclusos, como Emily Dickinson e Ernest Hemingway, ou mesmo a uma paralela que a crítica traçou entre os estilos de Jamusch e Wes Anderson, quando uma dupla de personagens de "Moonrise Kingdom" conversa sobre anarquismo (os fãs adoram).
O filme é pura poesia. Seja na interpretação bastante elogiada de Adam Driver, seja na fotografia bem planejada (que, aliás, chega a lembrar Wes Anderson em algumas passagens), seja na direção de arte ou na trilha sonora, tudo é bonito e lírico - ainda que não necessariamente explícito.
Pode até soar monótono, mas certamente vai levar o espectador a gastar horas e horas tentando desvendá-lo. Se insere em toda uma gama de filmes - como "A cidade onde envelheço" e "Na natureza selvagem", por exemplo - que questionam a forma de viver do ser humano, suas experiências, a influência e a relatividade de suas escolhas, e à marca que cada um quer deixar no mundo.
É uma obra simples e profunda. Honesta e divertida. Para ser revisitada sempre e desvendada aos poucos. Como a rotina. E como a poesia de Paterson.
Assistir ao novo filme de Terrence Malick, "De canção em canção", é como ouvir um disco novo de uma banda indie, de cabo a rabo, sem interrupção. Você vai se divertir num momento ou outro, mas na maior parte do tempo se sentirá entediado, melancólico e, por vezes, confuso.
Malick, aclamado por filmes como "Além da linha vermelha" (1998) e "A árvore da vida" (2011), é famoso por seu entusiasmo com a linguagem cinematográfica em si, muito mais do que com qualquer outro aspecto do filme. Suas obras trazem imagens exuberantes, muito bem trabalhadas, e com uma forte puxada filosófica.
Dessa vez, o diretor e roteirista reuniu um elenco pesado para brincar com a câmera, e escolheu imprimir um lirismo maior do que em sua filmografia passada. A sinopse oficial diz tratar-se de uma olhada geral na vida de dois casais em Austin, Texas, fortemente ligados pela cena musical da região, e que perseguem o sucesso através da sedução, traição e do rock'n'roll. Mas não chega a ser tão divertido quanto parece.
Na linha de frente, um Ryan Gosling pré-La La Land (já que as filmagens dessa obra aqui começaram em setembro de 2012) e Rooney Mara surgem como BV e Faye, o casal mente aberta bonzinho que tenta encaminhar uma vida estável juntos. Michael Fassbender é Cook, um empresário musical arrojado e bem sucedido, que enganará várias ninfetas, inclusive Faye e a inocente garçonete Rhonda, composta pela sempre linda Natalie Portman.
Para a experiência, Malick preferiu abandonar as decupagens de roteiro tradicionais e os storyboards, instruiu os atores superficialmente, os colocou em cena e levou a câmera para a mão na maior parte do tempo. Com poucos takes, o objetivo era captar a ação de forma mais natural e crua possível. O efeito é bastante convincente quando se vê Fassbender rolando no chão com Anthony Kiedis, Flea e Chad Smith, do Red Hot Chilli Peppers, ou aguentando uma conversa enjoada de Iggy Pop. De outro lado, Mara adota Patti Smith como mentora e chega a subir ao palco com o sumido (mas muito bem-vindo de volta) Val Kilmer. As cenas de shows foram, em sua maioria, gravadas no Austin City Limits Music Festival e no SXSW 2016.
O filme começa morno, lembrando bastante comercial de cemitério ou de empresa de seguros, mas tem lá seus picos de emoção. Aos poucos, a identificação com os personagens aumenta, e a curiosidade por saber onde tudo vai parar ajuda a esperar pelo final das pouco mais de duas horas de exibição.
O problema é que o roteiro é fraco. Em que pese a beleza da narrativa visual e sonora, ainda que tremulantes, a história dos casais principais é apresentada de forma bastante superficial, e não fosse pelos artifícios do diretor - inclusive em apresentar o enredo de forma não-cronológica - o roteirista Malick seria facilmente confundido com o de um filme qualquer da sessão da tarde. Até mesmo os pontos de virada, com um bom potencial dramático envolvendo a aparição de Cate Blanchet (por um lado) e a saída de cena de Portman (em outro momento, com belos planos de câmera fixa - especialidade inclusive filosófica do diretor), são bastante discretos, evidenciando que não era a intenção de Terrence explorar uma grande trama em primeiro plano.
O filme, que conta ainda com Holly Hunter e Bérénice Marlohe no elenco (Christian Bale e Benício Del Toro chegaram a gravar cenas, mas foram cortados de última hora), estreou nos Estados Unidos no último dia 10 de março, na programação do Festival SXSW 2017 (South By Southwest Festival). Chega às telas brasileiras em circuito reduzido, agendado para o dia 20 de julho. A expectativa é bastante alta de quem ainda não assistiu, mas as opiniões dos críticos se dividem. Recomenda-se parcimônia na audição.
Teresa (Elizabete Francisca Santos) vem de algum lugar, por algum motivo, e chega em Belo Horizonte com o objetivo de dar um novo rumo para a vida. Francisca (Francisca Manuel) já está na capital mineira há cerca de um ano, mas não parece muito satisfeita com o que sua vida se tornou, e parece procurar novos rumos, ainda que de forma tímida.
A motivação do longa de Marília Rocha, "A cidade onde envelheço" está aí. De onde viemos? Para onde vamos? O que queremos? O que nos leva a querer algo mais, ou achar que não queremos mais nada? E pinçando apenas uma janela de existência, somos convidados a observar esse retrato do encontro entre quem está chegando e quem já quer ir embora.
O filme foi considerado o melhor longa-metragem do 49° Festival de Cinema de Brasília, no ano passado. Lançado na rede de cinemas nacionalmente no início do ano, e apenas recentemente liberado em home vídeo e plataformas de streaming, a produção é uma importante parceria Brasil-Portugal que se passa em Minas Gerais, mas que aborda de forma sensível e universal a discussão sobre o lugar de cada um no mundo.
Como imigrante portuguesa recém-chegada em terras brasileiras, Teresa não sabe bem o que vai encontrar por aqui. Seu único elo é com Francisca, uma amiga de infância que já vive como brasileira há um tempo. A cena inicial de Francisca liberando espaço em sua própria casa é significativa, porque ao mesmo tempo que simboliza o pequeno incômodo trazido pela chegada de Teresa, também é a novidade que traz cor à rotina da dona da casa.
É difícil se adaptar a mudanças. Todo mundo sabe que enfrentar uma nova escola, uma nova faculdade, uma nova família, uma nova cidade ou qualquer outro caminho que destoa da rota traçada inicialmente traz dor de cabeça. A busca por Teresa em estabelecer-se e criar vínculos soa um pouco desesperada no início, em diálogos com estranhos no aeroporto ou enquanto toma um lanche num bar seboso qualquer da cidade. Todos somos assim. Existe certo desespero inicial em fugir do estranho, em ser reconhecido, querido, pertencido. Porque só quando não temos mais preocupação em ser aceitos é que podemos, de forma livre, simplesmente ser. Ou não?
Francisca traz o outro lado da moeda. Não lhe resta muito vigor em inserir-se num país diferente do seu, com costumes exóticos ou um jeito de ser pretensamente preguiçoso. Quando não existe mais nada a ser explorado e a rotina bate forte, resta a saudade de quando não éramos. O desejo de retornar às raízes, ao frescor da busca, a adrenalina da inexperiência. Dos vínculos mais fortes com o passado e com a família.
Narciso acha feio o que não é espelho. E a ausência de reflexo, numa via de mão dupla, pode ocorrer quando não há espelho, ou quando este já está gasto e empoeirado. Assim se enfrentam Teresa e Francisca.
A obra tem um clima leve e sensível, recheado de situações cotidianas engraçadas, expressos em diálogos gostosos. Grandes questões universais são jogadas sobre a mesa como guardanapos e copos de cerveja, quase que convidando-nos a dar opinião também. A atuação de Elizabete Francisca Santos e Francisca Manuel se destaca, e sem dúvida nenhuma é um dos pontos fortes do filme, junto com a trilha sonora que traz Jards Macalé, Dead Combo e Jonnata Doll e os Garotos Solventes (estes últimos com performances divertidíssimas ao vivo. Jonnata chamou a atenção do Brasil recentemente, como um dos convidados na turnê do show de comemoração de 30 anos do lançamento do disco "Legião Urbana", com Dado e Bonfá).
Enfim, Tereza e Francisca nos mostram que viver não consiste apenas em achar seu lugar no mundo. Consiste em estar bem consigo mesmo, onde quer que se esteja. Encontrar seu lugar dentro de si próprio. E tendo isso como norte, o título do filme, carregado de ambiguidade, também explicita a dualidade expressa pelas nossas complexas personagens: Quem não quer ter uma cidade para se envelhecer? Por outro lado, quem é que quer envelhecer?
Não gostei. Por que Tiradentes entrou para a história? Não está no filme. Em nenhum momento. Em nada. E se a História não se preocupou em registrar determinados aspectos da vida do alferes, decerto que é porque não acrescentam absolutamente nada. O filme é belo, tecnicamente falando. Bem executado, bem intencionado. Mas o roteiro se configura numa curiosidade voyeurista de saber algo que ninguém sabe. Uma parte da vida de Tiradentes que não interessa a absolutamente ninguém. Chato, tedioso, maçante.
A melhor cena do filme é a última, que traz uma metáfora do que será a parte interessante da vida do colono. Parte essa que não aparece no filme.
Caramba! Filme divertido e denso ao mesmo tempo! A lição que fica: é preciso ter cabeça para retornar ao estado natural do ser humano. Despir-se de roupas e entregar-se ao prazer, ao natural, ao afastamento da civilização requer certo equilíbrio emocional. Do contrário, pode ser uma viagem sem volta.
Enfim, é preciso saber brincar com fogo. Como o próprio cartaz diz, uns se bronzeiam. Outros, queimam.
Numa primeira vista, Personal Shopper (2016), o filme mais recente de Olivier Assayas, parece um exercício burocrático de uma aula de roteiro da faculdade. "Faça um roteiro envolvendo o mundo da moda, com fantasmas e colocando uma pitada de drama e thriller psicológico". Mas o roteirista e diretor francês famoso por nos apresentar "Acima das Nuvens" com Juliette Binoche, em 2014, consegue sair do convencional, entregando uma estória envolvente até o ponto em que consegue ligar esses elementos aparentemente desconexos.
Como o próprio título entrega, o filme é inteiramente escorado em Maureen Cartwright (vivida por Kristen Stewart), contratada por uma celebridade francesa local para cuidar de seu guarda-roupas. A única missão de Maureen é percorrer as lojas mais famosas de Paris (aliás, chega a dar um pulo em Londres também) comprando roupas, sapatos e jóias para compor o visual de sua patroa. Sem limites no cartão de crédito.
O que pode parecer divertido para muitos, entretanto, é uma tarefa extremamente enfadonha para a garota. Aliás, nesse ponto convém ressaltar a boa atuação de Kristen. Na sua carreira, em geral criticada pela inexpressividade e falta de adensamento psicológico na interpretação de seus personagens, a atriz agora convence no papel de uma jovem inexpressiva e corroída por uma vida vazia (há quem diga que Stewart continua a interpretar a si mesma, algo que demandaria uma análise mais detalhista. O fato é que, aqui, ela funciona até bem).
Maureen, entretanto, busca algo mais em sua vida. Gostaria de ser outra pessoa, mas não tem certeza de quem. Coloca um olho comprido para cima dos glamourosos vestidos que compra para sua patroa, mas não se sente bem usando-os. Aliás, os veste escondida, puramente pelo prazer da adrenalina. Comprar um colar Cartier lhe é tão vazio quanto bater o cartão de ponto no final do expediente.
Esse algo que falta na vida de Maureen provavelmente tem ligação com a morte de seu irmão Lewis, poucos meses antes, em decorrência de um mal súbito no coração. E aí surge uma dimensão diferente dada por Assayas ao longa - algo que incomodou os mais altos críticos de Cannes, onde o filme foi exibido pela primeira vez, no ano passado.
Maureen e seu irmão Lewis possuem o dom sobrenatural de manter contato com espíritos. São médiuns. E combinaram, enquanto vivos, que o primeiro que se fosse enviaria um sinal ao que ficasse. O irmão se foi, e 95 dias depois do passamento, a irmã ainda não havia obtido nenhum sinal do além.
O roteirista Olivier escolhe flertar com David Lynch e Stephen King, mas o diretor Olivier talvez tenha preferido tirar suas influências de Kubrick e Shyamalan. O resultado é um filme que, sem dúvidas, dá uma série de calafrios ao espectador, mas que acrescenta certa reflexão ao suspense. A constante utilização de uma fotografia mais densa, aliada à câmera na mão, traz a sensação de susto eminente. Mas isso não afasta o aprofundamento à crítica social do materialismo e da ostentação como formas de preenchimento existencial.
"No fundo, todo mundo acredita em fantasmas, mas damos a eles nomes muito diferentes", declarou Assayas em Cannes, no ano passado. E o que ele quer dizer, basicamente, é que o meio imaterial - o que quer que isso seja - sempre prevalece ao material - qualquer que ele seja. O segundo é mero instrumento do primeiro. A busca de Maureen ao tentar se livrar do que ela é talvez se resolveria com a confirmação de que o irmão está bem, num mundo além. Confirmando essa busca pelo imaterial, aliás, a cena em que Kristen veste-se com as roupas da patroa e deita em sua cama traz um significado especial: a tentativa de despir-se de sua realidade e experimentar outra pele. O que culmina no prazer orgásmico.
Aliás, algo interessante que Assayas incorpora em seu filme é a presença da tecnologia. Num contexto em que sua protagonista está se afogando num mar de itens de luxo, com um pé numa vida de ostentação mas com o resto do corpo perdido num apartamento escuro de subúrbio, a desmaterialização é mostrada também em videoconferências pela internet, pequenos filmes explicativos de YouTube e numa troca de mensagens de celular. A certo ponto, chegamos a acompanhar minutos a fio de um diálogo tenso, sem piscar, vidrados na tela do smartphone de Maureen. O intertexto de mídias acena para a evolução do próprio cinema (é engraçado pensar que, na cena dos vídeos de YouTube, todos os espectadores do filme - inclusive os críticos de Cannes - assistiram a uma micro-projeção diretamente do iPhone 6 de Maureen).
De certa forma, todo mundo busca salvação no invisível. Damos um jeito de atribuir ao oculto a origem e a solução de tudo o que não entendemos. E nesse processo, surge a impressão nítida de que a matéria nos prende, limita nossas impressões sobre a realidade. Sendo algo limitador, até quando exerce também interferência? "Quando os monstros da sua cabeça estão muito perto, sua sanidade pode entrar em colapso", declarou a própria Kristen sobre o filme, em Cannes.
Apesar de vaiado pelos críticos na competitiva pela Palma de Ouro, foi ovacionado por mais de 4 minutos pelo público, após a premiére. E se o público e a crítica de Cannes não conseguiram chegar a um consenso sobre a obra, talvez seja esse o melhor conselho sobre o que esperar do filme: não espere nada. Mantenha a mente aberta e deixe-se surpreender.
Nas últimas semanas, pregou-se muito que a atuação Scarlett Johansson como protagonista de "A vigilante do amanhã" (2017), que estreou essa semana nos cinemas brasileiros, diminuiria a força do filme. Não diminuiu, pelo contrário. Mas é preciso analisar com cuidado o cerne das discussões para entender que a mais nova obra de Rupert Sanders tem a sua dose de polêmica.
No início da década de 80, William Gibson, um contista américo-canadense que vinha se destacando em publicações de baixa tiragem lançou seu primeiro romance. Com ele, embalado pelo clima noir-futurista de "Blade Runner" (1982), desenhou praticamente todo um universo que seria, a partir de então, exaustivamente explorado em obras de ficção científica. "Neuromancer", o primeiro da "série Sprawl", trouxe ideias como "hackear", "surfar na rede", "pirataria digital", cunhou oficialmente o termo "cyberspace", e originou o movimento cyberpunk (uma mistura de noir, com ação e tecnologia). Tudo isso muito antes do surgimento da internet como a conhecemos.
Mas foram os japoneses que abusaram desse universo, criando uma série de obras seminais, principalmente através dos quadrinhos (mangás) e animações (animes). Podem ser citados "Akira" (1982), "Battle Angel Alita" (1990), "Cowboy Bebop" (1998) e "Gantz" (2013), por exemplo. Os japas são aficcionados por esse tema.
"Ghost in the shell", o mangá que embasou o filme estrelado por Johansson, está nesse mesmo baralho. Publicado no Japão entre 1989 e 1991, de autoria de Masamune Shirow, conta a história de um grupo secreto de elite da polícia japonesa, que tem na Major Motoko Kusanagi sua principal agente. Ela é uma ciborgue (cérebro humano num corpo robótico) que luta contra o ciberterrorismo, o tráfico de informações e a espionagem industrial no ano de 2029. O mangá virou animação e foi para as telonas em 1995, pelas mãos de Mamoru Oshii, e se tornou referência mundial. Basta dizer que as irmãs Wachowski jogaram "Ghost" e "Neuromancer" num liquidificador e apareceram com "Matrix", em 1999, para entender a importância dessas obras todas (para explorar mais dessa relação simbiótica entre "Matrix" e os animes, é imperdível assistir à série "Animatrix", de 2003).
Sempre foi sonho dos fãs que fosse feita uma adaptação em live-action (filme com atores reais) para a obra de Masamune. Mas um leve estranhamento começou quando anunciaram que Scarlett estava confirmada no papel da Major Motoko. Afinal, Hollywood sempre bebeu na fonte criativa nipônica, mas isso quase sempre significou a desfiguração completa da obra original. E trocar a protagonista japonesa por uma americana loira indicava, num primeiro instante, uma intenção perigosa da produção. Por algum tempo pairou essa dúvida: adaptação fiel, ou versão americanizada? O pessoal da Paramount chegou a admitir que foram feitos testes de maquiagem e computação gráfica para alterar os traços de Johansson, tornando suas feições um pouco mais "asiáticas". Terrível.
Então, espera aí: se o filme seria fiel aos quadrinhos, ambientado no Japão do futuro, com personagens japoneses, porque escalar uma atriz loira americana para o papel principal? Ainda que o casting também conte com Juliette Binoche, Pilou Asbaek e Michael Pitt interpretando personagens não-japoneses, mas a protagonista Motoko Kusanagi é visivelmente asiática na obra original. Choveram críticas e acusações de "apropriação cultural" e o chamado "whitewashing", um termo cunhado para designar especificamente essa adaptação de elementos de outras etnias para o padrão branco de ser. (A título de curiosidade, a Netflix também vem sendo criticada de forma semelhante pela produção do filme "Death Note", adaptação do consagrado mangá japonês).
De qualquer forma, o filme é muito bom para os admiradores do gênero - só não será unanimidade porque envolve um nicho de interesse bem específico. As principais cenas e motivações de roteiro foram mantidas intactas, e é interessantíssimo ver cenas sincronizadas da animação de 95 com o filme recém-lançado - algo que uma consulta rápida no YouTube pode propiciar. A direção e a fotografia são bastante competentes e conseguem resgatar o clima dos quadrinhos em cada plano rodado. Parecem pinturas. As cenas de ação, visivelmente influenciadas pelas correrias de Neo, Morpheus e Trinity dentro da Matrix, são de encher os olhos. Tudo embalado por uma trilha psicodélica-eletrônica que lembra bastante a onda techno oitentista, copiada recentemente pelo seriado "Stranger Things", da Netflix. Enfim, supera bastante as expectativas de quem estivesse com medo de encontrar pela frente um "Aeon Flux" (2005) ou um "Riddick" (2000, 2004 e 2013 - todos fiascos).
O filme é forte. O "senão" fica apenas na escalação da protagonista, algo que incomoda durante a projeção, e que muito provavelmente resulta de uma escolha puramente comercial. Talvez pudesse mesmo ter havido um pouco mais de consideração com Shirow, Oshii e a cultura japonesa em geral, que aparece como tema implícito na película, mas cujos elementos são tomados apenas como coadjuvantes. Ao contrário do que alguns possam argumentar, não se trata aqui de uma versão americana da estória contada pelos japas. A intenção foi uma adaptação fiel. E como tal, ainda que deslumbrante, Scarlett Johansson está no lugar errado. Lembra-se de Madonna interpretando a Evita em inglês, lá em 1996? Pega mal. É o tipo de cuidado que os ingleses fazem questão, como por exemplo na escalação de atores e carros da franquia de James Bond (dizem que quando a rainha viu Pierce Brosnan dirigindo uma alemã BMW, caiu da cadeira), ou no pudor que J.K. Rowling sempre manteve quando levou Harry e seus amigos para passearem nas telas.
"Você pode ser o que você quiser", declara um dos personagens de "Fragmentado" (2017) a si mesmo, olhando para o espelho. M. Night Shyamalan, o diretor, esperneou durante um tempo até descobrir que não, depois de se atingir um certo nível de qualidade no cinema, não dá para ser qualquer coisa. É preciso, no mínimo, atender às expectativas.
Depois de se engalfinhar com Will e Jaden Smith no fiasco de "Depois da Terra" (2013), já vindo de uma derrota vergonhosa com "A Dama da Água" (2006), choveram críticas e diagnósticos de que M. Night já era (aliás, merece um estudo o fato de os franceses, ao contrário dos americanos, tenham continuado a dar suporte à suas obras de forma mais incisiva mesmo durante esse período conturbado). Dai agora ele lança esse petardo que é "Fragmentado", contrariando a torcida adversária.
A ideia inicial do filme é bem simples. Inclusive, já a encontramos distribuída por algumas outras obras como "O silêncio dos inocentes" (1991), "A cela" (2000) e "O quarto de Jack"(2015), por exemplo. Um cara vigia três garotas por alguns dias, as sequestra e encarcera em algum lugar isolado, sem contato com o resto da civilização. A missão do telespectador é tentar descobrir o que está acontecendo, e acompanhar as tentativas (frustradas ou não) de fuga das reféns. Um pouco de síndrome de estocolmo ali, traumas de infância acolá, enfim.
A coisa começa a ficar realmente interessante quando descobrimos, junto com as sequestradas, que o captor é portador de um Transtorno Dissociativo de Identidade (popularmente conhecido como Transtorno de Personalidade Múltipla). O que abre as cortinas para um show de interpretação de James McAvoy. Kevin, o criminoso interpretado por McAvoy, tem nada menos que 23 personalidades (a do moleque de 9 anos, Hedwig, é simplesmente sensacional). Na tela, desfilam um pouco menos, mas encontramos referências a todas elas espalhadas pelo filme. E assim que se dá conta disso, Casey, uma das reclusas, interpretada também de forma magistral por Anya Taylor-Joy (revelada no thriller "A bruxa", de 2015), começa a ousar em um truque psicológico ou outro na tentativa de penetrar na mente do sequestrador. Vale ressaltar, aliás, a excelente cenografia, que transforma todo o ambiente do cativeiro em uma excelente metáfora para essa mente doentia de Kevin.
É interessante que, desde o início, percebemos um certo tirocínio em Casey. Algo mexe com ela de forma diferente em tudo aquilo (perceba a forma como ela rapidamente aconselha sua amiga Márcia a escapar da primeira investida de Kevin, agora assumido na personalidade "Dennis" - não se preocupe, não vou revelar mais do que isso). Infelizmente, por mais que Casey e sua trupe tentem, tudo leva a crer que nunca será possível saber tudo sobre Kevin/Dennis/Hedwig/Patrícia e todas as outras personalidades. Inclusive, a personagem de Betty Bluckey, Dra. Karen Fletcher, de força dramática um pouco menor, até tenta nos auxiliar nessa dissecação das personalidades. Mas existe sempre uma porta a mais a ser aberta. E de soslaio, indícios de que algo mais brutal está brotando daquela moçoroca de personalidades - como o pôster já avisa, muito possivelmente uma 24a personalidade.
Shyamalan, como sempre, entrega uma direção instigante. O uso constante de câmeras subjetivas (as mais hitchcockianas, como os olhares através de buracos de fechadura, frestas de portas e de armários, são sempre as mais prazerosas), ou em planos móveis (os famosos "travellings") conduzem sempre o fio da atenção em meio a diálogos reveladores - em que pese num ritmo um pouco mais lento dessa vez.
Mas o grande responsável por jogar o diretor de volta aos holofotes após os desastres de público e crítica que se tornaram as últimas duas ou três de suas grandes produções é o roteiro. Shyamalan levou algo em torno de 10 anos para escrevê-lo, instigado pelos estudos em psicologia que sua esposa vinha levando desde então. Aliás, sabendo disso, torna-se ainda mais interessante que o filme tenha repercutido no público de hoje, uma década depois.
Existem algumas falhas básicas, como por exemplo ter escalado três garotas como vítimas, mas fazer um bom uso narrativo de apenas uma - nossa protagonista. As outras duas são estereotipadas, sem uma base de construção (não sabemos absolutamente nada sobre elas - exceto que são perfeitinhas demais), e mal sabemos seus nomes - algo que sempre indica um futuro não muito promissor na trama. Mas, situando o filme dentro do gênero a que se propõe, nada que não possa ser perdoado.
Muita gente ficou perdida com o final do filme. Não é para menos. Existe ali uma referência surpresa a uma de suas outras obras - algo que o diretor fez questão de comentar em sua mais recente visita ao Brasil. Aliás, acostumados que estamos a grandes viradas de enredo ("plot twists"), que se tornaram a marca registrada de Shyamalan (as mais famosas, em "Sexto Sentido" e "A Vila", realmente são de cair da cadeira), o fim desse filme perde um pouco a força ao se escorar apenas nessa "surpresa". Pessoalmente, saí arrepiado. Mas, vá lá, assista e julgue por si.
A mensagem que fica é que M. Night Shyamalan está de volta na cena. "Os que sofrem são os mais evoluídos", diz uma das facetas de Kevin. Agradando a público e crítica (leia-se, faturando alto sem perder a qualidade), quando as luzes da sala de projeção se acendem, temos uma certeza: vem mais coisa boa por aí.
A primeira cena de "Nise: O coração da loucura" (2015), de Roberto Berliner, incomoda pela sutileza. Um plano aberto, chapado em um grande muro cinza, revela um pequeno portão que, em minutos, recebe pancadas de uma mulher querendo entrar. A câmera deveria estar fixa, mas não está. A técnica de câmera na mão, utilizada em um momento totalmente inapropriado, transmite, nas entrelinhas, o incômodo e a falta de adequação que testemunharemos na próxima hora e meia, assim que aquela personagem entrar para além do muro. A moça querendo entrar é Nise da Silveira, e o muro cerca o Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II - no Engenho de Dentro, Rio de Janeiro - e a mente de centenas de internos.
Nise está entre as primeiras mulheres no Brasil a se formar em Medicina, em 1931. Isso o filme não mostra. Aliás, um dos aspectos instigantes da obra está justamente no fato de ser um recorte rígido de um período específico da vida de Nise, deixando-nos todos curiosos a respeito do antes e do depois de sua passagem pela História. Isso obviamente tem um motivo de ser.
O que se vê na tela inicialmente é a sua reintegração enquanto funcionária da saúde pública, adentrando um meio claustrofóbico física e socialmente. Médicos empertigados no machismo de seus jalecos brancos dividem suas teorias mal comprovadas com o sofrimento escatológico de pacientes à margem da sanidade. Um purgatório na Terra, esquecido por Dante e pelo resto da humanidade. Não há espaço para a luz, para a esperança, ou para qualquer expressão individual criativa - consciente ou inconscientemente.
A chegada da médica, entretanto, causa um rebuliço na rotina do sanatório. Ao aplicar técnicas pioneiras como o uso das artes plásticas e do contato com animais como forma de humanização - fruto muito mais de sua capacidade de observação e intuição do que de quilos de literatura médica - Nise revoluciona a psiquiatria. Os reflexos podem ser apontados até hoje por qualquer profissional da área.
O que o filme deixa de lado, talvez numa preocupação excessiva em evitar qualquer tipo de propaganda ideológica, é que Nise da Silveira era militante comunista na juventude. Há tímidas referências em um ou outro diálogo. Nascida em Maceió, mudou-se para o Rio de Janeiro em 1927, já casada com o sanitarista Mário Magalhães da Silveira, onde começou a engajar-se nos meios artístico e literário, principalmente com aplicação na área médica. Chegou a militar pelo Partido Comunista Brasileiro. Em meados da década de 30, entretanto, durante a Intentona Comunista, foi denunciada por uma enfermeira enquanto carregava livros de doutrina marxista, o que a levou à prisão em 1936. No presídio Frei Caneca, permaneceu por mais de um ano, onde fez amizade com Graciliano Ramos, recluso também naquele estabelecimento. Fato curioso é que Nise é mencionada no livro "Memórias do Cárcere", do alagoano.
Encontramos Nise nesse ponto. Recém liberta, é reincorporada ao serviço público em 1944. A bela interpretação de Glória Pires nos mostra uma personalidade austera, destemida, decidida a deixar a militância política de lado para se dedicar à sua missão de vida: a psiquiatria. Trocou o livro vermelho de Marx pelo de Carl Gustav Jung. A cara feia dos colegas médicos não lhe mete medo.
Decidida a combater os métodos violentos de tratamento mental amplamente estimulados na época, como a lobotomia e o eletrochoque, seus métodos humanísticos libertam expressões do inconsciente de seus pacientes (a quem prefere chamar de "clientes"), restabelecendo de forma mais eficaz o elo destes com a realidade através da simbologia. Os resultados são surpreendentes, e até hoje são tidos como referenciais.
Aliás, suas descobertas nessa área a levaram a estabelecer contato com seu mestre Jung - algo retratado en passant na tela, mas de reflexos profundos em nosso país. Nise foi a responsável por introduzir e divulgar no Brasil os estudos da psicologia junguiana. Foi pioneira também nesse aspecto.
O filme não são só flores. Escorado numa mise-en-scène essencialmente novelesca, com uma ou outra atuação beirando à canastrice e uma trilha sonora bem modesta, a sensação que fica é que a história de Nise merecia um pouco mais. Mas contando com um roteiro que utiliza fórmulas já consagradas em "Patch Adams - o amor é contagioso", "Uma lição de amor" e "Tempo de despertar", e com excelentes atuações de Augusto Madeira, Claudio Jaborandy, Júlio Adrião e Fabrício Boliveira, não é de se estranhar que a obra tenha batido a marca de 23 mil ingressos vendidos em sua estreia, mesmo com exibição em apenas 56 salas em todo o país. Algo louvável para um filme nacional parcamente divulgado.
Berliner não se propõe a fazer uma cinebiografia completa, propriamente dita. Escolhe apenas uma janela para abrir, retratando o período em que a médica desenvolveu seus trabalhos no Engenho de Dentro. Mas uma janela significativa, que mostra ao mesmo a revolução iniciada por Nise na área da psiquiatria, o impacto de seus estudos na introdução da obra junguiana no Brasil, e seus esforços individuais na tentativa de superar pensamentos retrógrados arraigados na cultura médica e sanitarista do país - dentro e fora das academias.
É fundamental, entretanto, que se tenha um pouco mais de curiosidade para ultrapassar o excerto representado na obra de Berliner e descobrir mais sobre essa figura ímpar da medicina, da psiquiatria, da psicologia e, porque não, das artes plásticas no Brasil e no mundo.
Apenas para começar, fica a sugestão para assistir o documentário “Imagens do Inconsciente”, de 1986, dirigido Leon Hirszman e com roteiro da própria Nise, recentemente lançado em DVD no país.
Em 1967, a recém fundada MPB - Música Popular Brasileira, tida ainda como um movimento artístico bem mais do que como um gênero musical, saiu às ruas numa manifestação explícita bradando, dentre outras coisas, contra a guitarra elétrica. Artistas como Elis Regina, Jair Rodrigues, Geraldo Vandré, Edu Lobo e até Gilberto Gil levantavam a bandeira do "Defender o que é nosso", transformando a guitarra em um símbolo da invasão estrangeira na cultura nacional.
Em que pese o idealismo de valorizar o patrimônio artístico e cultural brasileiro, Tom Zé nunca teve a pretensão de achar que sabe o que é a essência da música nacional e o que é estrangeira. O que é instrumento gringo e o que é instrumento tupiniquim. Pelo contrário, sempre acreditou que o valor não deve ser dado aos meios, mas sim ao conteúdo que reflui - esse sim, portador da identidade cultural. O artista não deve colocar seu ego (e muito menos um instrumento musical) à frente de sua obra. Essa e outras opiniões estão semeadas pelo filme "Fabricando Tom Zé", obra de Décio Matos Jr.,que acompanha momentos interessantíssimos com o artista - ora camuflado em sua equipe, no decorrer de uma turnê europeia que passa, dentre outros lugares, por Veneza, Turim e Paris; ora explicitamente, com entrevistas bem humoradas e reveladoras.
Não há possibilidade de se fabricar um Tom Zé. Porque "fabricar" - um processo industrial e dependente de planejamentos, projetos, moldes e intenções objetivamente elaborados - pressupõe a replicabilidade. E Tom Zé é único. Daí a ironia do título da obra de Décio que, a pretexto de tentar explicar o artista, faz uma desconstrução de seu modo de vida e, principalmente de criação musical na tentativa bem sucedida de valorizar sua vida e sua obra.
Nesse contexto, Tom explica a uma câmera sempre presente, mas muito mais voyeurista do que instigante (ao contrário dos filmes de Eduardo Coutinho, por exemplo), que as suas deficiências enquanto artista padrão o levaram a desenvolver outras formas de expressão musical. Sua deficiência enquanto instrumentista ou cantor o forçaram a procurar novos instrumentos e novas vozes capazes de expressar de forma fiel sua ânsia em ser escutado. Em suas palavras, se existiam tocadores de guitarra e de enceradeira, e se já havia muitos bons guitarristas, seria ele o primeiro tocador de enceradeira. Às favas a guitarra elétrica. Ou o piano, ou o trombone, ou qualquer forma de limitação do artista em si.
Como um dos expoentes do movimento Tropicalista na década de 60 e 70, Tom Zé acabou esbarrando no ostracismo com a ditadura e o fim do movimento. "Nunca tive problemas com a ditadura. Mas que ela me fodeu, fodeu", declara a certo ponto, contando sobre seus embates com a censura. Desvalorizado por seus próprios pares, Tom Zé nunca esteve no centro das atenções. Até hoje, seu nome é muito mais exaltado no exterior do que dentro do próprio país. Entrevistas com o artista em sua terra natal, que lhe traz, até o hoje, os bons ares e a calma da vida interiorana, se contrastam na tela com grandes públicos em festivais europeus. Mas isso nunca foi problema para ele.
Uma sequência em especial - uma das melhores do filme - retrata uma briga entre ele, sua banda e um técnico de som do Montreux Jazz Festival, colocando para fora todo o inconformismo de Tom com a arrogância dos países desenvolvidos em relação à cultura brasileira. Afinal, talvez sua própria vida e obra reflitam, de maneira direta, os empecilhos que o estereótipo do subdesenvolvido carrega nas costas para se afirmar no exterior e no próprio país. Mas não é preciso atear fogo às guitarras elétricas. "Eles só não podem nos tratar de forma vil", declara, inconformado.
Com variações entre arrogância ("o rock nacional é um rock traduzido, essa é a verdade") e humildade, principalmente nos relacionamentos pessoais ("eu to tentando, na minha vida, ter a felicidade de trabalhar sem arrebentar meu estômago, nem tratar a Neusa [sua esposa] mal"), Décio mostra que Tom Zé é um ser humano comum, mas um artista único, com uma obra vasta e ainda bastante inexplorada.
Não é possível fabricar Tom Zé. Ironicamente, no final da década de 80, David Byrne, um produtor norte-americano, sem saber que era exceção, conseguiu dimensionar para o próprio Brasil o artista que não depende de instrumento algum para criar música, e que já existia como gênio, "made in brazil", em países que sabem valorizá-lo. O cara que veio explicar para confundir.
"Quem é você, Chiron?". A pergunta que aparece no trecho final de "Moonlight: sob a luz do luar", se arrasta pelas entrelinhas de todo o novo filme de Barry Jenkins, desde o começo.
Mas as cenas iniciais não são sobre o protagonista Chiron. Juan, vivido por Mahershala Ali, é um traficante de bairro que evita conflitos e não se orgulha do que faz. Na rotina de um dia qualquer é interrompido pela correria de crianças - o menor, fugindo do bullying, tenta evitar ataque dos maiores que o perseguem. Assim somos apresentados a Chiron: acuado, arisco, desconfiado. Apelido, "Little".
O filme acompanha três fases da vida do pequeno "Little". A infância, período em que se afiniza à figura masculina de Juan e luta contra a violência viciada de sua mãe, que finge que educa e tem ciúmes de quem quer que se aproxime durante sua constante ausência; a adolescência, em que firma sua independência em relação à vida caótica da genitora, mas ainda não se posiciona firmemente perante a vida social na escola e na vizinhança; e a fase adulta, na qual ganha mais autonomia, toma posse de sua masculinidade e se escora no corpo forte e avantajado para se impor como traficante, mas que ainda não tem muita certeza sobre nada.
O filme aborda de forma genérica questões raciais, sexuais, sobre drogas e também abandono familiar. Mas não se esgota só nisso.
Depois de muitos protestos Hollywood afora - inclusive na noite do 88° Oscar, no ano passado, em que Chris Rock vestiu a roupa de camaleão e subiu no muro para tentar desempenhar a diplomática missão de, ao mesmo tempo que receber e valorizar as críticas à falta de reconhecimento a artistas negros no mercado cinematográfico, promover uma reconciliação destes com a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas - "Moonlight" é uma verdadeira pedrada na vidraça. Indicado a 8 categorias da maior premiação do cinema americano, mas injustificadamente não tão ouriçado quanto "La La Land", de Damien Chazelle, o filme conta com um elenco principal só de artistas negros. Além de Trevante Rhodes, estão no casting a cantora Janelle Monaé, Naomie Harris ("Mandela: O caminho para a liberdade"), Mahershala Ali ("Um Estado de Liberdade"), André Holland ("Selma") e Edson Jean ("Cães de Guerra"). Barry Jenkins conduz a locomotiva (dirigindo e roteirizando) demonstrando, de uma vez por todas, que a Academia não pode - e nem se quisesse, conseguiria - deixar passar batido o poder da cultura negra.
Aliás, aqui cabe uma observação importantíssima sobre o papel do filme em toda essa discussão sobre o reconhecimento do trabalho de artistas negros.
Se você pegar os principais filmes americanos protagonizados por negros nos últimos anos, ou com um envolvimento mais direto dessa classe de artistas, dá para chegar facilmente à constatação de que a temática acaba se esgotando na luta pela igualdade, na denúncia ao preconceito e na retrospectiva histórica das conquistas negras (esse ano mesmo, temos em destaque "Estrelas além do tempo", "Loving", "Eu não sou seu negro" e "Um limite entre nós"). Não que devamos dar pouca importância a isso - de maneira alguma! É indispensável que a humanidade nunca se esqueça das atrocidades já cometidas em nome da supremacia branca, e que continue avançando na eliminação das desigualdades. Principalmente no já surrado território americano.
Mas há que se convir que a produção cinematográfica (e cultural, de maneira geral) não pode ficar restrita a essa temática - aliás, a temática alguma! A igualdade se alcança, também, na liberdade de explorar temáticas universais que estão lá, sempre existiram, mas que ainda perdem em urgência para temas mais profundos como a luta pela igualdade racial.
Assim é que Barry Jenkins consegue deixar um pouco de lado as mazelas advindas do preconceito racial e de gênero (ainda que não os abandone completamente - nem poderia, já que Chiron é um negro americano da década de 80, em plena descoberta de sua sexualidade) para permitir-se tratar de um tema universal: o "conhece-te a ti mesmo". O interessante é que, de forma inteligente, nas entrelinhas, ainda assim Barry nos joga essa verdade crua da busca pela igualdade: O Templo de Delfos também aconselha negros e homossexuais. Como não? Filmes "de negros" também podem falar sobre temáticas intimistas e universais de forma belíssima, sem desprezar todas as lutas coletivas.
Nesse contexto um pouco mais intimista, a beleza de "Moonlight" se revela em cada detalhe. Na trilha sonora meticulosamente inserida - delicada, melancólica, introspectiva. Na fotografia de cores frias, por vezes revelando a dureza do mundo contra o qual Chiron luta, e no qual quer se inserir. Nos olhares e diálogos curtos, mas significativos, instigando a busca permanente pela essência do que é "viver" e "ser".
No fundo, Chiron só quer se descobrir e ser aceito. Percebemos isso quando ele estranha o calor com o qual é recebido, inicialmente, por Juan e sua esposa Tereza. Se surpreende com a compreensão que depois vira beijo, oferecidos pelo melhor amigo. E por fim, busca sofregamente por um colo, alguém que lhe compreenda sem julgamentos e lhe ofereça perspectivas, carinho, ligação. A rejeição está nos meandros da rotina comum.
"Sob a luz do luar, garotos negros ficam azuis", diz um dos diálogos. Azul de uma melancolia profunda e individual. Azul de ainda inexplorado, misterioso, quase lacônico. E azul de uma sensualidade latente. Assim se descobre Chiron. Assim se revela ao mundo, ansiando que alguém o descubra - e o acolha. Azul é a cor mais profunda.
Milan Kundera, em seu livro "A imortalidade", declara a certa altura que o homem pode pôr fim à sua vida, mas não pode fazê-lo com sua imortalidade. Escapa dos homens o controle do tempo - tanto o biológico, quanto ainda mais o psicológico. E se a fugacidade da vida biológica é a única certeza que carregamos, por outro lado a idade mental permanece relativamente estável no decorrer do tempo. Distraído, todo ser humano é um sem-idade - constatação também de Kundera.
Quando encontramos o velho e imortal Wolverine, nesse novo longa de James Mangold (que também dirigiu o controverso "Wolverine: Imortal"), ele trabalha como chofer de limousine em algum lugar na fronteira dos Estados Unidos com o México. Abatido, dá evidentes mostras de cansaço. As inúmeras lutas e perdas da vida o consomem. De maneira paradoxal, é como se a imortalidade o matasse lentamente, dia após dia. Mas é o velho Logan que os fãs gostariam de ter visto nas telas desde o início.
Wolverine é um personagem concebido em 1974 por Len Wein e John Romita, Sr. como membro do grupo de mutantes "X-Men", da Marvel Comics. Eventualmente também participou de outras equipes de super-herói, como a Tropa Alfa ou os Novos Vingadores. Um sucesso tão grande que terminou por alçar vôo solo, ganhando uma revista própria. A imortalidade do mal humorado James Howllet (nome "civil" do herói) é garantida por um poder de cura (conhecido nos quadrinhos como "fator de cura") e por um esqueleto revestido artificialmente de Adamantium, uma liga metálica fictícia indestrutível. É tudo o que você precisa saber para assistir a esse novo filme da Marvel Entertainment.
Inserido no mesmo universo dos filmes anteriores dos X-Men e dos filmes solo de Wolverine (sempre interpretado por Hugh Jackman), a obra de Mangold consegue se sustentar sozinha. Aliás, Woverine é um personagem tão complexo - e exatamente por isso, tão rico - que pode ser considerado com o único sobrevivente de todos os 09 filmes já produzidos para os mutantes (botando na lista também "Deadpool", de Tim Miller, com todas as tiradas hilárias sobre o velho Wolvie e seu alter ego da vida real, Jackman). Dentre obras promissoras como "X-Men - Primeira Classe" (2011, Matthew Vaughn) a fiascos como "X2" (2003, Bryan Singer), a franquia tem se renovado paulatinamente, mantendo-se essa constante por 17 anos: Logan.
Nos quadrinhos, Wolverine é um cara extremamente violento, anti social e beberrão. Até último filme lançado, muito pouco desse lado havia sido convincentemente apresentado ao público. Mas essa história mudou. A obra recebeu classificação indicativa "Rated R" nos Estados Unidos - o que equivale a algo como "indicado para maiores de 18 anos". No Brasil, pegou "16 anos", o que tem levantado as orelhas dos fãs.
Além da questão da classificação indicativa, a obra usa como propaganda o fato de contar, provavelmente, com a última atuação de Hugh Jackman como Wolverine.
Mas vamos logo ao cerne da questão: "Logan" é um filme de ação que cumpre muito bem seu papel. Acostumados que estamos com o visual excessivamente claro e didático de "Vingadores", talvez esse Wolvie desagrade alguns. Ostenta uma fotografia melancólica e árida, imiscuída à paisagem desértica do interior do sul americano, traduzindo o estado de espírito do velho Logan (o que orna, também, com a despedida de Jackman). Em termos de adaptação, talvez esteja tão bom quanto aos filmes de "Sin City", ao Batman de Nolan, à saga "Kick-Ass" ou ao último "Justiceiro". Sem dúvida alguma é um filme mais sombrio, com uma carga dramática pouco comum a filmes baseados em HQs. Depois da exibição, fica até mais fácil colocar o personagem na mesma estante de Max Rockatansky (de Mad Max), ou do Han Solo de Harrison Ford - figuras controversas, solitárias, com sua própria lógica de vida, mas sem dúvida alguma, heróis. Prepare-se, porque tem muita pinga, sangue e boca suja (As cenas de ação são fantásticas).
A jornada de Logan é completamente sem sentido, inicialmente. Porque assim tem sido a sua vida, afinal de contas. A imortalidade é uma maldição. Wolverine não sabe mais o que esperar do mundo, e se limita a cuidar devotadamente do nonagenário professor Charles Xavier - o sempre ótimo Patrick Stewart, numa interpretação bem mais livre e descomprometida do que nos últimos filmes. Logan vive num mundo em que seus conhecidos já se foram. Poucos ainda restam. Aparentemente pelo isolamento reprodutivo, os mutantes deixaram de se espalhar pelo mundo. Não há notícias de novos mutunas há muito tempo, o que limita as perspectivas dos vivos. Envenena, envelhece quem ainda tenta se sustentar sobre as pernas. E é essa falta de perspectiva o grande vilão da trama. O tempo como algoz, essa borracha implacável.
As coisas começam a mudar de tom quando bate à porta de Logan a pequena Laura (a atriz espanhola Dafne Keen), uma garota extremamente violenta (lembra da Hit-Girl, de Kick-Ass? Uma versão mexicana arisca dela - se cuida, Trump!) e que anda aos tapas com uma poderosa corporação que tem interesse em desvendar - e, muito provavelmente, exterminar - seu DNA.
No romance “Rimas de vida e de morte”, Amós Oz, proclamando uma sentença de morte muito mais óbvia e cruel do que a que estamos acostumados, diz que estaremos no mundo só até o dia em que morrer a última pessoa a se lembrar de nós. A lembrança é o que perpetua nossa existência enquanto agentes no mundo. É contra isso que o nosso velho Logan luta. E é nisso que, agora com Laura, talvez encontre também sua redenção.
Quando for assistir a “Até o Último Homem” (2016, Mel Gibson), tente não se desconcentrar quando Vince Vaughn aparecer na tela, em seu primeiro papel dito “sério”. Porque, assim como na tentativa de David Schwimmer (o eterno “Ross”, de Friends) de se desvincular da pecha de ator de sitcom fazendo uma ponta na série “Band of Brothers”, produzida por Spielberg e Tom Hanks em 2001, a empreitada de Vaughn também é bastante válida, mas seu personagem ainda soa caricato e deslocado do clima do filme.
O deslocado que merece toda a atenção na película, entretanto, é o protagonista, Desmond Doss — interpretado solidamente por Andrew Garfield. Doss é um jovem americano que resolve rapidamente um dilema moral típico do final da década de 1930: se alistar ou não no exército americano, a fim de combater na 2ª Guerra Mundial. Encontra o amor dentro de um hospital — a bela enfermeira Dorothy, vivida por Teresa Palmer — e, com o amor, sua vontade de estudar medicina, uma vontade que Doss não explica de início, mas que depois descobrimos ser a forma que ele encontrou para participar de uma guerra sem pegar em armas: sendo médico socorrista.
Desmond Thomas Doss existiu de verdade. Foi o primeiro e único objetor de consciência (expressão criada para designar aquele que apresenta princípios morais, religiosos ou éticos como objeção para servir ao exército ou obedecer a seus superiores hierárquicos militares) a ser condecorado com a Medalha de Honra, por seus feitos na 2ª Guerra Mundial. Durante a sangrenta Batalha de Okinawa, que ocorreu no Japão entre abril e junho de 1945, o soldado Doss conseguiu resgatar do campo de batalha 75 combatentes feridos, no período de 5 horas, obrigando o reconhecimento, homenagem e o pedido de desculpas por parte do governo americano — o livro “Soldado Desarmado”, escrito por sua segunda esposa, Frances M. Doss, e lançado no ano passado pela Casa Publicadora Brasileira, conta outras interessantes passagens de sua vida.
Após assumir a frente de elogiadas obras como “Coração Valente” (1995), “A Paixão de Cristo” (2002) e “Apocalypto” (2006), Mel Gibson volta à cadeira de diretor de forma estridente. Elogiado pelos métodos arrojados e pela violência metodicamente excessiva (beirando, por vezes, a um olhar sádico), Gibson passou os últimos anos longe das telonas, aos sopapos com acusações de antissemitismo, racismo, violência doméstica e abuso de álcool. Após algumas participações em filmes pseudo-alternativos caça-níquel como “Machete Kills” (2013, Robert Rodriguez) e “Mercenários 3” (2014, Patrick Hughes), comprou a ideia de passar a vida do discreto soldado Doss para as telas.
Segundo diversas entrevistas, Gibson classificou o filme não como um “filme de guerra”, mas um filme “sobre homens na guerra”. E, assim sendo, se imiscui pela vida pessoal de Desmond desde a infância, com os pequenos traumas e a relação tumultuada com o pai, um veterano da 1ª Guerra Mundial vivido por Hugo Weaving — este sim, numa atuação profunda e competente, consegue se desvincular da imagem de Agente Smith, Elrond e Vendetta — até o enfrentamento final de seus fantasmas. O pai de Doss, inclusive, personifica um futuro que Doss rejeita: bêbado, violento e atormentado pelo passado violento.
O cerne da questão esmiuçada no filme é uma velha premissa que Gibson gosta de usar: o herói improvável que, deslocado de seu tempo ou de seu espaço típico, encontra na violência um caminho para a redenção. Em “Até o último homem”, em especial, essa violência se coloca quase como um personagem autônomo. Ela testa Doss, se esgueira em cantos escuros de dormitório, ou à luz do dia nos treinamentos, provoca, irrita, insiste. Doss não se rende, é pacifista, adventista do sétimo dia. Recusa-se a pegar em armas, mas também a ficar em casa sentado, com a boca escancarada cheia de dentes esperando seus amigos e parentes morrerem na guerra. Doss sente o dever moral de combater — mas não para matar. E a batalha contra a violência evolui aos poucos (desde quando quase mata o irmão, na infância, até os tiros e bombas ao final). O conflito constante é contra si mesmo e contra o sistema ao qual está disposto a pertencer.
Muitos compararam as cenas de confronto entre americanos e japoneses, em Okinawa, no último terço do filme, às cenas iniciais de “O Resgate do Soldado Ryan” (1998, Spielberg), sobre o Dia D. Soa até injusto porque, apesar da inabalável convicção de Doss, é exatamente na violência que Gibson se perde. No terceiro terço da obra, as câmeras deixam o protagonista temporariamente de lado com o objetivo de se construir a brutalidade imagética da guerra. A violência sem máscaras. Cenas explícitas de membros decepados e cabeças estouradas dividem a atenção com a estratégia pobre e improvisada adotada pela 96ª Divisão para tomar o cume do morro Hacksaw (na vida real, a “Operação Downfall” foi uma das maiores operações marítimo-terrestres da 2ª Guerra Mundial, e a tomada do Morro Hacksaw compôs os ataques ao sul do arquipélago japonês).
Porém, enquanto Spielberg conseguiu transmitir toda a grandiosidade épica e trágica do confronto no desembarque da Normandia, Gibson dá toda a atenção aos soldados que já cruzaram o caminho de Doss, e agora sobem medrosos por uma escada de cordas, num canto completamente desprotegido do despenhadeiro. O cenário dá a sensação de uma pista de paintball hardcore — restrito, repetitivo, quase como um pequeno set. Spielberg ampliou o conceito de filme de guerra e Gibson retomou os antigos clássicos bélicos da década de 1950, apesar de rejeitar o modelo em entrevistas.
Por outro lado, as críticas ao patriotismo (e até xenofobismo) americano já exaustivamente lançadas a “Sniper Americano” (2014, Clint Eastwood) também podem ser parcialmente aplicadas aqui, já que japoneses são retratados de longe, friamente, como um inimigo invisível a ser destruído. Essa visão unilateral (em que pese necessária a qualquer filme de guerra clássico) só é quebrada por Doss, que retoma o protagonismo do filme após a construção da diegese bélica, e insiste em praticar seu pacifismo, mesmo contra o inimigo.
O filme é bom, nada mais que isso. Resta patente a vontade que o diretor teve de fazer uma obra moralmente elevada, tentando não ser piegas. Falha por mais de uma vez (as cenas de amor, os discursos cristãos e a trilha sonora “heroica” acabam contrariando as expectativas, recheando o longa de clichês por demasiado açucarados). Mas o que fica é que, além dos 75 feridos em combate, o soldado Doss também salva o filme e a reputação de Mel Gibson. “O herói improvável”, apesar de humilde e tímido, merece que sua história seja conhecida no mundo inteiro. Os depoimentos de Doss, do Capitão Glover e as imagens de arquivo da vida real, nos créditos finais, foram metodicamente colocados para reforçar em nós um sentimento que o filme em si, talvez, não teria conseguido sozinho: sim, essa história existiu. Pode acreditar.
É fácil perder a paciência com atendentes de telemarketing, com o trânsito ou com filas de supermercado. Mas quando você perde a cabeça com alguém que lhe é gentil ou lhe pede desculpas, é sinal de que algo anda muito mal.
É o caso de Lee Chandler, protagonista de "Manchester à beira mar", o mais recente filme escrito e dirigido por Kenneth Lonergan. Kenneth já havia entregado "Conta Comigo", bastante elogiado em 2000, mas passou ligeiramente despercebido uma década depois quando lançou "Margareth", em 2011. Agora, retorna aos holofotes abordando um assunto comum em sua curta filmografia: a morte e suas implicações a quem permanece do lado de cá.
O mal-humorado Lee Chandler, interpretado de forma magistral por Casey Affleck, é uma espécie de faz-tudo que trabalha numa administradora de condomínios em Boston, nos Estados Unidos. As cenas iniciais do filme nos apresenta a seus clientes costumeiros, um mais chato do que o outro, interrompidos de forma proposital até pelo diretor. O corte abrupto nas transições de cena nos traz certo alívio. Nos conduzindo um pouco mais à fundo na rotina de Chandler, entretanto, chama a atenção a mistura de apatia com amargura que o zelador carrega nas costas. Tudo bem que a clientela e a rotina não ajudam, mas uma briga de bar deixa mostrar muito mais do que uma mera troca de socos e pontapés. O rosto ainda jovem de Lee revela-se uma carapaça protegendo - ou escondendo - o que de verdade habita no lado obscuro de sua alma.
Uma notícia pesada ameaça romper esse lacre. A morte de seu irmão, Joe Chandler (interpretado por Kyle Chandler), o leva a abandonar tudo temporariamente para cuidar das burocracias inerentes à fatalidade. Mesmo tendo que lidar com médicos, funerária e com aspectos legais, entretanto, Lee mantém seu acreditado autocontrole para tocar a vida.
Lee acha que está no controle de tudo. Sempre teve essa falsa impressão. Mas o que vemos através das nuances que Lonergan paulatinamente disseca diante de nossos olhos - inclusive com flashbacks milimetricamente calculados - é o oposto disso. Chandler não consegue lidar nem consigo mesmo. Está o tempo todo prestes a explodir - mas esse "não explodir" o consome. O seu "foda-se" soa sempre muito mais sincero que o seu "muito obrigado". E nas suas brigas diárias tentando organizar um turbilhão de sentimentos engasgados, a vida lhe empurra muito mais do que consegue suportar. É assim que descobre, por exemplo, que o irmão lhe empurrou a missão de ser o tutor do sobrinho, Patrick (feito por Lucas Hedges), de quem era muito próximo na infância, mas que por circunstâncias da vida acabou se afastando. Em meio a risadas e sobrancelhas franzidas, Patrick se incumbe de ajudar o diretor na missão de desvendar a esfinge Chandler a nós, espectadores.
A Manchester do título do filme não é a cidade inglesa, como alguns apressados poderiam concluir. Tampouco aquela vizinha de Boston, no centro de Nova Hampshire. Manchester-by-the-sea é uma comunidade de pouco mais de 5 mil habitantes, na cidade de Cape Ann, condado de Essex, em Massachusetts, cuja principal atividade econômica é a pesca e o turismo à beira mar. O nome da currutela também é uma metáfora para a vida do nosso protagonista. Não por acaso, a estória se passa numa cidade "de veraneio" mas durante o inverno. E se pegarmos o mar com seu significado universal e até esotérico, representa o equilíbrio e a constância de uma baía pesqueira, mas a turbulência e transitoriedade das ondas batendo na areia. A alegria e tranquilidade são efêmeras na vida de Lee, frequentemente associadas aos passeios de barco que costumava fazer com o irmão e o sobrinho. Os pontos mais leves do filme, inclusive, são no barco. Por outro lado, os planos longos e não tão fechados acentuam a carga dramática, contrapondo sempre as belas paisagens de Manchester-by-the-sea com a realidade pesada com que os personagens precisam lidar, .
O ápice dramático do filme, embalado por uma belíssima trilha sonora composta por Lesley Barber (que, justiça seja feita, esteve magistralmente presente por toda a obra), traz a revelação definitiva sobre a origem do peso que Lee carrega nas costas. E é pesado.
No rolar dos créditos, Kenneth Lonergan traz a difícil lição de que nem sempre é possível superar. Por mais que tenhamos esperanças, nem sempre sobram as forças necessárias, e é preciso reconhecer que as escolhas foram erradas, o caminho não deu resultado. O pescador nem sempre vence a luta contra o peixe - principalmente quando lhe falta experiência. Já dizia Renato Russo, a irracionalidade toma conta "quando querem transformar esperança em maldição". Esperar e lutar por dias melhores é instinto do ser humano. Mas na busca impensada por superar um trauma, muitas vezes perdemos oportunidades únicas de sermos felizes, de tocar o barco e seguir em frente de forma verdadeira. É quando o abismo deixa de ser observado e passa a olhar para dentro de quem o observa.
"Manchester à beira mar" é, definitivamente, um filme de Oscar. Atuações vibrantes (além de Affleck e Hedges, ainda podemos conferir Michelle Williams em mais uma participação simples, mas decisiva), trilha sonora belíssima, fotografia do mesmo modo. E em que pese tratar-se de um bom roteiro, mas com temática amplamente já explorada em outras obras, surpreende que Kenneth Lonergan tenha se apropriado sabiamente do clichê: A única certeza que temos - cada um de nós, independentemente do drama que nos acomete - é uma lápide fria de mármore no fim do caminho.
Capitão Fantástico (2016, Matt Ross) é um filme interessante. De cara, dá pra dizer que é um filme de (e para) pais e filhos. Os pais choram ao final, revendo o tipo de educação que impuseram aos filhos até aqui, mas recordando também quanto amor esteve envolvido. E os filhos, embevecidos com o tipo de criação libertária que conhecem na tela, aspiram as habilidades quase super-humanas dos seis pequenos coadjuvantes.
Ben (que, ironicamente, lega a seus filhos o sobrenome “Cash”) carrega consigo fortes convicções ideológicas anti-estabilishment. Os valores familiares que propaga são “Power to the people! Stick it to the man!”, lemas populares de grupos socialistas, pacifistas, anarquistas e minorias em luta pelo reconhecimento de seus direitos, nos anos 50 e 60. Seu profeta, Noam Chomsky (Jesus seria apenas um elfo mágico, fruto de mentes doentias). Carregando essas convicções ideológicas, com a cumplicidade da esposa (que aparece apenas como memória do protagonista ou como cadáver - calma que eu chego lá), dispensa aos filhos uma educação extremamente rígida, vivendo na selva, longe da civilização e das mazelas do mundo contemporâneo.
Mas enxergar o segundo longa de Matt Ross - antes, um pouco prolífico ator de Hollywood, mas agora, depois de faturar o prêmio de melhor direção na mostra “Un Certain Regard” em Cannes, diretor em ascensão - apenas como uma comédia romântica sobre educação infantil é pouco. O Capitão se propõe a discutir os caminhos do poder e seus custos individuais.
Quando William Golding escolheu crianças para protagonizar o seu “Senhor das Moscas”, em 1954, muito provavelmente queria utilizá-los como metáfora ao conceito de “estado de natureza”, aquele estado do indivíduo selvagem, ainda sem o compromisso de viver em sociedade. Os adultos do livro, todos mortos, simbolizariam as leis, o Sistema. E nesse contexto em que não existem regras pré-estabelecidas, sobreviver é o mote principal para qualquer decisão. Nessa condição natural, todos os homens são potencialmente iguais, e suas características diferenciadoras compensam-se. Na obra de Golding, o carisma de Ralph ou a inteligência de Porquinho eventualmente compensariam a força bruta e a austeridade de Jack. Como cada um utilizaria essas características para se manter vivo - o que inclui dominar a maioria e estabelecer um “reinado”- já é outra história.
O sangue e o ímpeto selvagem das imagens iniciais do filme nos levam equivocadamente a crer que a família de Ben vive a liberdade plena. O perfeito “estado de natureza”. Só que, ao contrário do que ocorre no “Senhor das Moscas”, existe um adulto ali infiltrado. Alguém que reina absoluto e impõe suas regras àquele pequeno grupo de pseudo-selvagens - regras como treinos de condicionamento físico pesados todos os dias, horário para leitura de clássicos, prática musical, agricultura de subsistência, defesa pessoal e até proibição de ficar nu perto de pessoas que estão comendo dão forma àquela micro sociedade. Não são selvagens. São membros de uma comunidade alternativa que renega o sistema, com todas as suas Cocas-colas venenosas, celulares e videogames alienantes e cumprimentos simpaticamente hipócritas. “Stick it to The Man”.
Mas a grande questão do filme está escondida nessas entrelinhas aí: o cara que governa essa comunidade não tem um Contrato Social prévio. “The Man”. O presidente nunca foi aclamado. E, como diria Rousseau, se a lei não é auto-imposta, a liberdade vira escravidão.
É bom perceber como Ross - que também escreveu o roteiro da obra - apresenta seu plano maligno. Primeiro, constrói a ideia de sistema perfeito. Depois, o desconstrói aos poucos, mostrando suas imperfeições e nos incutindo a desconfiança, inclusive expondo-o num embate com o sistema capitalista que todo mundo conhece. Essa desconfiança também contagia os filhos de Ben, “os súditos”. Surge o questionamento, seguido da indignação - nossa e dos moleques. Já dizia John Locke, o liberal, que quando o Estado quebra o pacto com os seus cidadãos, há motivo mais do que suficiente para a ruptura.
No decorrer das cenas, somos inevitavelmente levados a questões como “até que ponto a ordem é mais importante que a liberdade?” “Qual o custo individual para se manter a ordem coletiva?” “Os sacrifícios valem à pena?” Se levarmos em consideração o tumultuado momento político pelo qual passamos, em que a legitimidade de um Presidente da República é questionada pela forma como ascendeu ao poder (no Brasil), ou o impacto que bandeiras polêmicas levantadas podem causar na coesão social (nos Estados Unidos), o filme toma uma profundidade ainda maior. E o protagonista sintetiza toda a angústia que surge no momento em que os anseios de um grupo se dissociam das convicções de quem o lidera - legítima ou ilegitimamente. Aliás, o que determina essa legitimidade? Em que momento surge, ou deixa de fazer efeito?
Capitão Fantástico, sem dúvidas, tece uma crítica irônica à sociedade de consumo e à forma como criamos nossas crianças nos dias de hoje. Mas seu grande mérito está em colocar à prova como cada um, individualmente, enfrentará os desafios de pertencer (ou não se sentir como parte) a uma sociedade cada vez mais heterogênea, onde cada um é obrigado a encontrar a melhor forma de sobreviver sem tentar, a todo custo, aniquilar “o outro”.
Pensando melhor, “interessante” é uma qualificação proibida para esse filme.
Um belo filme, que conta muito mais do que quer mostrar. Grandes atuações de João Miguel, Peter Ketnath, Hermilia Guedes e um ainda desconhecido Irandhir Santos, que nem abriu a boca direito (figurante total).
Projeto Flórida
4.1 1,0KO Sean Baker é aquele cara que fez um filme inteiro usando um iPhone 5s e uma engenhoca como adaptador de lentes, em 2015. Saiu "Tangerine" (2015), que faturou uma porção de prêmios no circuito independente (o Independent Spirit e o Gotham Independent Film Awards são os de maior destaque, mas também chamou a atenção em Sundance). Essa, aliás, é a veia do diretor: a produção independente de baixo orçamento, com qualidade inversamente proporcional.
Em "Projeto Flórida", apesar de tecnicamente mais bem elaborado, Baker mantém seu espírito. Depois de algum tempo de pesquisa entre trabalhadores e moradores dos arredores dos grandes parques da Disney, em Orlando, saiu com essa análise profunda da vida barata que circunda aquele universo mágico capitalista.
Rodado em 35 milímetros, o filme se aproxima de Moonee, uma garotinha (interpretada magistralmente pela Brooklyn Price) que mora com a mãe num hotel barato no entorno da Disneylândia. O hotel, ironicamente, se chama "Magic Castle Inn", gerenciado pelo Bobby (papel que rendeu a Willem Dafoe uma indicação ao Oscar na categoria de melhor ator coadjuvante.)
Moonee e seus coleguinhas atazanam a vida dos vizinhos com suas molecagens. Criança é cruel até quando brinca, todo mundo sabe disso. A falta de malícia existe para bem e para mal, o bom senso é quase zero. E se por um lado acompanhamos a garotinha inescrupulosamente cuspindo no carro da vizinha que mora no hotel ao lado (que se chama "Futureland". Barato e irônico), com a mesma facilidade ela é capaz de fazer amizade com a filha da vítima. Essa facilidade em relevar o contexto e seguir vivendo - visto de modo mais claro nessas pequenas aventuras do dia a dia infantil - abre a porta para que enxerguemos a verdadeira matéria do filme: a condição precária em que vivem aquelas pessoas, sem instrução, grana contada, sem sustentação emocional e afetiva, e a força que a criançada encontra para crescer e se desenvolver à parte do caos.
De frente para a tela, estamos acostumados a uma visão mais extremada da aridez nas relações sociais. A pobreza é aquela sintetizada como ausência total de recursos básicos como comida, moradia, roupa. Aqui, o incômodo vem principalmente pelo caos emocional. Porque os recursos materiais são poucos, mas não falta comida ou roupas. A grana é curta, mas nada que um trambique bem executado não resolva. O teto pode sumir a qualquer momento, mas a amizade (ainda que turbulenta) com o gerente garante uns dias a mais de aconchego e privacidade. Mas do lado emocional, puxa-se a coberta para cobrir a cabeça, destampa-se os pés.
Se por um lado Moonee tem o carinho que julga necessário e suficiente de sua mãe, socialmente isso pode não parecer o mais adequado. Nossos olhos, inclusive, fazem o papel de inevitável assistente social, a vasculhar cada falta de zelo de Halley (a mãe), a bagunça do quarto, a falta de vigilância e educação das crianças. E não é que Halley não seja carinhosa: ela é. Mas não do jeito que esperamos. Apenas da forma como é possível ser.
Não vou comentar o final do filme. Mas é tocante. Contrasta com o ritmo parcialmente monótono que Baker insiste em impor durante certa parte da obra, conforme vamos nos acostumando às pequenas aventuras das crianças.
Vivamos em que mundo for, no final das contas, a realidade bate à porta. Injusta ou não, a conta vem. E quando isso acontece, cada um foge para o castelo que lhe estiver ao alcance.
Ps.: Vamos concordar numa coisa: Que cartaz sensacional o desse filme, hein?
Eu, Tonya
4.1 1,4K Assista AgoraOs altos e baixos de Tonya Harding
Fica bem mais interessante assistir aos Jogos Olímpicos de Inverno depois de conhecer a história de Tonya Harding, patinadora da equipe olímpica americana de 1994. A saga da brasileira Isadora Williams esse ano em PyeongChang, por exemplo, toma contornos épicos! Para quem sempre foi entusiasta da patinação no gelo então, o filme é um prato cheio.
“Eu, Tonya” (2017) é o mais novo filme do diretor Craig Gillespie, e adota o tom de docudrama para recontar a polêmica história da atleta americana. Gillespie ficou conhecido pelo filme “Garota Ideal”, de 2007. Na verdade, não tão conhecido assim, o que o torna uma agradável surpresa dentre os lançamentos deste ano.
No início da década de 1990, Tonya (interpretada de forma muito competente por Margot Robbie) teve uma rápida ascensão à fama depois de se destacar nas competições nacionais de patinação do gelo, tornando-se quase uma popstar. Foi a primeira mulher americana a realizar o salto triplo axel em competições.
Adotando um visual um pouco mais rude do que as outras competidoras e optando por trilhas musicais bem menos clássicas, Harding conquistou a simpatia do público mas deixou os narizes dos juízes torcidos por distanciar-se da imagem ideal de “patinadora princesa”. Uma espécie de André Agassi do gelo (exceto pelo fato de que, no tênis, os resultados não dependem de um julgamento tão subjetivo dos árbitros).
Ares de tribunal
A coisa começa a tomar tons mais pessoais e dramáticos quando caminha para “o incidente”. Como todo mundo acompanhou pela imprensa na época (portanto, tecnicamente não estou dando nenhum spoiler), Tonya foi acusada de, junto com seu marido, Jeff Gillooly (encarnado pelo Sebastian Stan, o irreconhecível “Soldado Invernal” da Marvel), perpetrar ataques físicos contra sua principal concorrente, Nancy Kerrigan.
No julgamento popular e midiático, Tonya sempre soube e teve participação ativa no ataque a Kerrigan. O filme, entretanto, tenta trazer uma nova visão ao incidente.
É interessante notar que, apesar de se chamar “Eu, Tonya”, o filme não se reveste da visão individual da personagem Tonya Harding. Pelo contrário, toma ares de tribunal, jogando o depoimento de testemunhas na tela para patrocinar a “versão Tonya” dos fatos. Durante vários momentos, entretanto, temos a nítida impressão de que a própria Harding não tem o domínio completo da realidade que lhe seria favorável e, eventualmente, lhe absolveria das acusações sérias impostas pela imprensa.
Assim, a obra transita de forma bastante interessante entre os depoimentos da mãe de Tonya (magnífica, Allison Janney é favoritíssima ao Oscar), o segurança pessoal Shawn Eckhart (também em atuação muito boa), o repórter e produtor Martin Maddox (Bobby Cannavale mostrando o lado da mídia na parada) e uma das treinadoras de Tonya, Diane Rawling (interpretada por Julianne Nicholson, conhecida mais no mundo das séries).
Em certo ponto, entretanto, causa certo incômodo a tentativa do diretor de retirar qualquer autoria do discurso do filme. Sim, sabemos que a versão construída na tela não pertence a ninguém especificamente, isso foi informado logo nos créditos iniciais com os cortes no estilo entrevista. Mas não bastasse isso, os próprios personagens, no decorrer da história, assumem um tom onisciente e quebram a quarta parede, dirigindo-se diretamente ao espectador para transmitir suas impressões.
Esse efeito utilizado mais de uma, duas ou três vezes descamba para a propaganda publicitária, tirando um pouco da credibilidade da narrativa e afastando o espectador do universo do filme. A experiência perde um pouco da imersão absoluta.
White trash
Um lado muito importante e pouco discutido que o filme traz também diz respeito ao racismo e à pobreza nos Estados Unidos – assunto de fundamental importância na Era Trump. Tonya era branca, pobre, violentada diuturnamente pelo namorado e desprezada pela mãe. A perfeita encarnação do conceito de “white trash”, construído desde o século 19, e que pode ser definido como as letras miúdas no contrato que dá acesso ao “sonho americano”.
Desde a época das comunidades pobres de imigrantes europeus, segregadas pelos “verdadeiros americanos” antes da guerra civil americana em nome da pureza hereditária (a chamada “one-drop rule” ou regra da gota de sangue única, em que americanos legítimos não podiam se casar com imigrantes europeus), existe um nicho de pessoas brancas, operárias, pobres e sem instrução que enfrenta muito mais dificuldade em ascender socialmente na terra das oportunidades.
A América não é tão grandiosa para essas pessoas. E esse discurso é brutalmente escancarado para Tonya (e para nós, inocentes espectadores) quando da fala de um dos árbitros, ao justificar uma nota baixa a uma performance da atleta: Harding não é a imagem que as pessoas querem como representante dos Estados Unidos da América. Meritocracia não é a única moeda de troca.
“Eu, Tonya” está entre os indicados à 90ª edição do Oscar. Margot Robbie concorre na categoria de Melhor Atriz, Allison Janney na de Melhor Atriz Coadjuvante e Tatiana S. Riegel é a responsável pela indicação na categoria de Melhor Edição/Montagem. O prêmio será merecidíssimo, caso venha para qualquer uma delas.
Com uma trilha sonora vibrante – parte do universo de Tonya da vida real – as duas horas de projeção passam voando, alternando entre momentos de euforia, melancolia e até perplexidade (essa última, quase sempre, de responsabilidade dos personagens de Stan e de Janney).
Tonya Harding foi – e permanece – como um ponto fora da curva na história da patinação do gelo. Mas sua vida na tela nos faz lembrar que, na carreira de qualquer atleta, por mais que pareçam duros, os tombos da pista de patinação são apenas a ponta de um iceberg muito mais profundo.
PS: Não deixe de assistir no YouTube o vídeo completo da performance real de Tonya Harding em Lillehammer, nos Jogos Olímpicos de Inverno de 1994. Emocionante.
Okja
4.0 1,3K Assista AgoraFábula indigesta
O novo filme do diretor sul-coreano Bong Joon-ho, “Okja”, começou a gerar alardes antes mesmo de estrear. E as polêmicas que carrega têm a ver, basicamente, com uma expressão, utilizada em dois contextos diferentes: “distribuição em massa”.
A primeira questão surgiu no Festival de Cannes desse ano, no qual a obra concorria à Palma de Ouro. “Okja” é uma produção da rede de streaming Netflix, uma plataforma virtual que distribui suas produções de forma direta. Até o ano passado, era impossível encontrar uma produção original Netflix num cinema perto de você. Os críticos em geral e, posteriormente, a própria organização do evento passaram a questionar se um filme que não tem distribuição regular estaria apto a concorrer. Afinal, como premiar uma obra que não foi exibida em nenhum cinema?
Dessa vez, passou batido. Quando a logo da Netflix apareceu, pela primeira vez na história, na tela de exibição do Grande Teatro Lumière do Palácio de Festivais, a plateia vaiou. Mas o filme de Bong Joon-ho foi exibido mesmo assim, e aplaudido ao final. Concorreu, mas não levou nada.
De todo modo, levantar essa questão quanto à forma de distribuição de uma obra audiovisual serviu para questionar a própria essência dos filmes e a sua função social. Afinal, se uma obra não é amplamente distribuída e de acesso fácil a qualquer pessoa do mundo, qual a sua serventia? Para quê produzir, se não se vai exibir? A quem é conveniente elitizar o acesso à produção cinematográfica? Enfim, acertados ou não, questionamentos pipocaram para todos os lados.
Esse tipo de polêmica não estava nos planos do diretor Joon-ho. Mas, sem dúvida nenhuma, foi um excelente marketing para outro tipo de questionamento – esse sim, pensado cuidadosamente por ele na trama do filme. A segunda polêmica envolvendo “distribuição em massa”.
“Okja” é o nome de um superporco. “Superporco” é um animal geneticamente modificado, com a forma aproximada de um hipopótamo. Sua carne é comestível, mas com sabor ainda desconhecido (um dos personagens brinca, a certo ponto: “vamos torcer para que seja gostoso”.) E é a principal esperança de grana fácil para a “Mirando Corporation”, uma espécie de Friboi mundial.
O filme começa com uma propaganda didática da Mirando, na qual a CEO Nancy Mirando (interpretada pela sempre competente Tilda Swinton) explica para seus investidores, jornalistas e a nós, espectadores, a premissa básica do produto – e do filme. O mundo passa por uma crise na produção de alimentos. O futuro é incerto. Com base nisso, a espécie humana precisa se virar para continuar sobrevivendo. A esperança surge quando a Mirando, uma empresa ambientalmente comprometida (ra-ram) encontra por acaso (ra-raaaam) uma espécie nova na natureza: os superporcos. Nancy então assume seu lado Silvio Santos e esclarece que a Mirando conseguiu reproduzir em cativeiro a nova espécie, resultando em 26 novos filhotes. Tais espécimes foram distribuídas a fazendeiros ambientalmente comprometidos do mundo inteiro. A partir daí, como uma espécie de Presidente Alma Coin, de Jogos Vorazes, Nancy declara aberta a competição na busca do melhor superporco do mundo. O resultado seria conhecido depois de 10 anos.
“Okja” é o nome que recebeu o superporco distribuído à Coreia do Sul, ao pai de Mija (interpretada pela ótima Ahn Seo-Hyun). Dez anos depois, quando a Mirando retorna para buscar o animal, Mija e Okja não querem mais desgrudar uma da outra. E a garota vai ter que lutar para não se separar da sua melhor amiga.
A estória é contada em forma de fábula. O que pode, num primeiro instante, desagradar aos que buscam um filme mais sério, de questionamento social profundo. Mas não se apresse: Okja não é um filme para crianças.
Tudo bem que o roteiro, no geral, lembre um típico filme da Sessão da Tarde, com saídas meio óbvias de roteiro e um ritmo bastante previsível. A jornada do herói, descrita por Joseph Campbell em “O herói de mil faces”, está ali o tempo todo, cumprindo requisitos básicos que Syd Field impõe em seu manual de roteiro. Temos a protagonista destemida, a vilã caricata (só faltou ter um bordão), os camaleões, os pícaros, mentores. Jake Gyllenhaal surge num exagerado papel secundário, Steve Yeun parece reprisar seu papel de Glenn em “The Walking Dead”, Paul Dano aparece sóbrio, consistente, interpretando o que pediram para ele interpretar. Giancarlo Esposito tira os óculos, mas ainda não teve oportunidade de mostrar mais do que o já conhecido Gus Fring, de “Breaking Bad”. Está tudo lá, mais ou menos repetido. A ponto de antevermos o que vai acontecer no final.
O formato de fábula, entretanto, adiciona um elemento interessante. Remonta aos filmes de Hayao Miyazaki e outros mestres da animação japonesa. Não por acaso, “Okja” lembra bastante Totoro, o mascote dos Estúdios Ghibli e símbolo da obra de Miyazaki (Tilda Swinton e Bong são fãs confessos). A trupe que acompanha Mija em sua jornada também lembra bastante equipes como a de Cowboy Bebop, Gantz, Yu Yu Hakusho, ou até mesmo a atuação desastrada da “Rocket Team” de Pokémon. Esse clima de anime permeia toda a obra, em momentos de tensão e de reflexão. E reveste o questionamento mais profundo da obra: o sistema de produção e distribuição de alimentos no mundo. Não à toa, Otto Von Bismarck teria dito que ninguém dormiria à noite se soubesse como são feitas as leis e as salsichas.
O diretor Bong declarou que escolheu um porco como animal protagonista da trama porque achou que seria o mais comumente associado a comida. Pessoas comuns vêem bichinhos apenas de duas formas: estimação ou alimentação. E o porco seria o campeão em alimentação, com todo o seu bacon, pernil, presunto, salsichas, linguiças e tudo mais.
Toda a saga de Mija por tentar salvar sua doce Okja da eliminação redunda na negação completa do cruel sistema de produção. E da impotência em enfrentá-lo. O sistema é triste, é indigno, frio, cruel. E necessário, ao mesmo tempo. A luta contra ele deve ser racional, equilibrada. A crítica bem-humorada à militância radical e desequilibrada, inclusive, é mostrada em vários trechos.
Mas a realidade é pesada. Por mais lúdica e simples que seja a história, nos mostra a cruel verdade que está aí para todos verem, mas à qual muitos viram a cabeça. Os campos de produção agropecuários talvez sejam o mais próximo de campos de concentração que jamais conheceremos – as referências também são claras na tela. O próprio Bong Joon-ho virou pescetariano (alimenta-se só de vegetais e peixes) após a conclusão da obra.
Não há final feliz. Não há como passar incólume por todos esses tipos de questionamento. E ainda que a saída oferecida pelo roteiro pareça ser a melhor para todo mundo, os próprios personagens não parecem aceitá-la muito bem. O que sobra é um melancólico sorriso de Mona Lisa.
Uma pequena dica: não perca a cena pós-créditos. O recado que fica é que a militância não está morta, a luta não pode acabar. Pensemos, todos nós, no tipo de alimento que queremos em nossas mesas, e na forma como ele chega lá. Equilíbrio e racionalidade são a chave de tudo.
Como Nossos Pais
3.8 444Novo filme de Laís Bodanzky debate o papel social da mulher
Esta semana, saiu em home vídeo pelas plataformas de streaming o mais novo filme de Laís Bodansky, “Como Nossos Pais” (2017). Diretora de obras como “Bicho de Sete Cabeças” (2001), “Chega de Saudade” (2008) e “As Melhores Coisas do Mundo” (2010), nesse novo trabalho, Laís – que também assina o roteiro em conjunto com Luiz Bolognesi – coloca como pano de fundo as relações familiares para explorar um tema difícil (porque delicado), mas importantíssimo: o papel social da mulher.
Não dá para afirmar assim, de cara, que o objetivo do filme é levantar a bandeira do feminismo – ainda que Bodanzky, vencedora de seis Kikitos no Festival de Gramado deste ano, seja inequivocamente uma grande feminista. Mas ao se deter sobre os bônus e ônus que sua protagonista Rosa joga na balança, ao tentar ser boa filha, dedicada esposa e carinhosa mãe, fica mais do que claro que a análise das dinâmicas familiares brasileiras está visceralmente ligada à crítica quanto ao papel social da mulher. Uma família perfeita precisa de uma mulher dedicada. Quem nunca ouviu?
A tonalidade do filme é estabelecida logo nas primeiras cenas: a aparente alegria que paira sobre um almoço familiar é abruptamente rasgada por discussões comezinhas, daquelas típicas de relacionamentos desgastados pelos anos de convivência. Mãe briga com filha, que briga com marido, que joga na cara de cunhada, que cutuca genro… todo mundo sabe como é. E isso termina numa grande tempestade – literal e figurativamente.
Rosa (magistralmente interpretada por Maria Ribeiro), que como qualquer pessoa normal quer, conscientemente ou não, corresponder a todos os papéis comumente atribuídos a ela, se vê cada vez mais acossada frente à sua implacável falibilidade. Não dá para ser perfeita, cumprir com todas as missões de forma impecável, quase onisciente. E no meio de uma discussão com sua mãe, Clarice (Clarisse Abujamra, numa interpretação inicialmente caricata, mas que logo brilha), descobre de forma absolutamente inesperada uma reviravolta em seu passado. Não bastasse isso, dias depois, toma ciência de uma guinada também em seu futuro.
Mesma balança
Balizada por esses dois fatos pesados envolvendo nascimento e morte de planos, sonhos e lembranças, Rosa – que é pressionada a assumir a posição de supermãe pelas gerações anteriores e posteriores – inicia uma jornada de profunda autocrítica. Sua rotina a sufoca, a impele à irritação, frequentemente lidando com a pressão de ser perfeita, até que o copo transborda. A perfeição não existe, e as pequenas mentiras cotidianamente contadas precisam ser enfrentadas nesse processo de transformação.
A trama perde um pouco da profundidade ao colocar os personagens masculinos todos na mesma balança, de forma plana. Inicialmente, a intenção talvez tenha sido a de cravar que a mulher é a única responsável por assumir o papel que quiser, da forma que quiser, independentemente do machismo que a rodeia, ainda que para isso seja necessária uma boa dose de sacrifício – o que é uma conclusão lógica do filme. Mas, em que pese a ausência de personagens francamente machistas no enredo – o que afasta a obra das discussões rasas a respeito de desigualdade de gênero -, todos os homens retratados são patéticos.
Pegos em contradições flagrantes, donjuanismos canastrões, descontrole orçamentário, desleixo com a rotina, submissão, defeitos óbvios e deslizes infantis, nenhum dos homens se salva. Pedro (Felipe Rocha), em especial, é erguido ao mais alto patamar, protagonizando uma cena de arrancar suspiros na plateia, para em seguida figurar numa das mais patéticas cenas de derrocada moral.
Contraponto americano
Nesse ponto, é interessante um intertexto que se pode fazer com “Big Little Lies”, uma série recentemente lançada pela HBO que conta com Reese Whiterspoon, Nicole Kidman e Laura Dern no elenco. O drama americano narra a história de mulheres envoltas em seus conflitos sociais numa pequena cidade da Califórnia. A trama bem elaborada com o tom “girl power” evidencia a força e superação femininas – individualmente e em conjunto – fazendo coro ao pedido de Chimamanda Ngozi Adichie: sejamos todos feministas; homens, inclusive. (Na série gringa, entretanto, as personagens masculinos são tratados de forma mais profunda e digna.)
Mas, conforme já dito, “Como Nossos Pais” não é um filme de bandeira. É muito mais profundo e urgente do que isso. O diálogo final entre Rosa e seu patético marido Dado (que, me desculpe a Clarice, não é tão legal assim), vivido por um Paulo Vilhena que interpreta a si mesmo – como quase sempre -, é de arrepiar.
Pela verdade, pela sobriedade, pela sinceridade. É preciso abandonar as pequenas mentiras do dia a dia se quisermos descobrir a nós mesmos. Jogar a roupa suja fora. E, mais especificamente quanto às mulheres, pressionadas por papéis sociais impostos geração após geração, é preciso reconhecer que a força feminina vem justamente de se saber falha, com honestidade e sinceridade para consigo mesma, mas compreender-se sem limites para buscar a própria felicidade.
Extraordinário
4.3 2,1K Assista AgoraLágrimas no escuro - o drama pungente de "Extraordinário"
Preparem os lenços. Foi o comentário anônimo que ouvi após o trailer de “Extraordinário” (2017), no escuro de uma dessas sessões de cinema. E o marketing que acompanhou todo o período de divulgação do filme se confirmou na semana passada, com a estreia em circuito nacional: muita gente fungando na penumbra.
A proposta do diretor e roteirista Stephen Chbosky – de “As Vantagens de Ser Invisível” (2012) – foi tratar do bullying, um problema cada vez mais frequente nas escolas americanas (e do mundo todo). Ao escolher como protagonista o pequeno Auggie Pullman (encarnado por Jacob Tremblay e alguns quilos de maquiagem), elevou a questão ao máximo, já que o garoto apresenta o rosto deformado por complicações no nascimento. Se crianças comuns já sofrem nas mãos dos valentões, imagine um pequeno pintado com a cara do Corcunda de Notre Dame.
Aliás, talvez o grande problema do longa esteja justamente nesse aspecto. Ao aproximar a sistemática da história da de uma fábula infantil, inclusive com a narração de Auggie em primeira pessoa, a produção infantiliza a visão de mundo da obra, tornando o enfrentamento da questão superficial. Se por um lado estimula o uso do lenço durante a sessão, por outro, afasta o espectador do questionamento maduro.
Auggie mora com os pais – o simpático Nate (Owen Wilson) e a vibrante Isabel (Julia Roberts) – e com a irmã Via (Isabela Vidovic), que o seguraram na redoma doméstica o quanto puderam. Até que a mãe achou por bem mandá-lo à escola comum, quando a educação informal do lar começou a dar mostras de insuficiência. E é aí que o coração de todos os pais e mães da plateia começa a apertar (que eu tenha notado, não houve crianças chorando nesse filme).
Armas
Existem reminiscências não intencionais de “ET – o Extraterrestre” (1982) e da saga “Harry Potter” em diversas passagens do longa. A temática se aproxima bastante, já que no mundo de “Extraordinário” o sonho de Auggie é ser astronauta. Em sua pequena cabecinha, é a única maneira de conciliar o fato de não ser parte do meio, mas não ser rejeitado.
Tal qual um bruxo vivendo entre mortais, ou um extraterrestre, o garoto passa a vida dentro de fantasias (literais e sociais) esperando a hora em que alguém lhe enxergará verdadeiramente, em sua essência (o filme também tem seus ‘Elliots’, ‘Ronis’, ‘Hermiones’ e até um ‘Dumbledore’ chamado ‘Mr. Tushman’, traduzido como ‘Sr. Buzanfa’).
Um grande trunfo da obra é ramificar a narrativa em determinado ponto. Quando achamos ser um filme sobre o pequeno Auggie, Chbosky mostra as cartas de outros personagens, ampliando o espectro de análise – inclusive com a mudança de narrador. Passamos a notar que, por maior que seja a piedade em relação ao garotinho protagonista, outros astros orbitam em sua volta e são diretamente afetados por ele.
Lenços e lentes
Cada um tem sua necessidade de ser reconhecido, aceito e valorizado autonomamente. Ao ressaltar o problema físico de Auggie quase ao ponto de justificar o bullying, Chbosky faz o contraste com seus parceiros e reforça a inutilidade dos rótulos sociais: quem é normal, afinal de contas? Não somos todos anormais, em algum ponto? Não usamos, todos, máscaras?
Não fosse extremamente didático e, por vezes, pateticamente explícito (a cena do valentão levando sermão na sala do diretor beira ao ridículo), com soluções fáceis, personagens planos (todo mundo é bonzinho, exceto os maus) e uma trama característica dos mais agradáveis filmes da sessão da tarde, “Extraordinário” poderia se juntar ao time de “Precisamos Falar sobre Kevin” (2011), “Carrie – a Estranha” (1976), “Elefante” (2003) ou mesmo “Super Dark Times” (2017) como arautos de uma nova forma de pensar o bullying escolar. Afinal, é mesmo necessário colocar o problema em perspectiva – quem é que não tem aquele tio conservador, ou aquele amigo macho-man que ainda vaticina “Ah, os moleques vão crescer frescos desse jeito! No meu tempo, não tinha esse tipo de frescura”?
Independentemente do que mais possa se falar sobre o filme, não deixe de levar os lenços quando for ao cinema.
Viva: A Vida é Uma Festa
4.5 2,5K Assista AgoraNo mundo dos mortos, a Pixar celebra a vida em um de seus melhores filmes
Os Estúdios Pixar parecem nunca errar. Filme após filme, se firmam cada vez mais como um modelo técnico e sentimental a ser seguido, sabendo explorar temas delicados de forma inteligente e divertida. O resultado é o respeito extremo com seu público-alvo – as crianças -, sem excluir aqueles responsáveis por levá-las às salas de cinema: os adultos.
Com “Viva – a Vida É uma Festa!”, que acaba de ganhar o Globo de Ouro 2018 de Melhor Animação, a companhia se superou uma vez mais. Dirigido por Lee Unkrich (o nome por trás do emocionante “Toy Story 3”, de 2010, e Adrian Molina, o filme conta a história de Miguel Rivera, um garoto aspirante a músico que precisa enfrentar os dogmas familiares para ir atrás de seu sonho.
Mas os Rivera rejeitam a música em todas as suas expressões, impondo ao garoto obediência à continuidade do sugestivo ofício de sapateiro, passado de geração a geração. Sapatos para quem precisa manter os pés no chão – ou para quem não consegue alçar vôo, pregaria o teólogo da Libertação Leonardo Boff.
Trata-se de uma animação, não nos esqueçamos disso. Existem personagens caricatos, momentos pastelões e até o toque musical característico das produções Disney/Pixar, tudo em busca de fisgar o público infantil. Mas tudo feito com muito capricho, num esmero técnico inédito até para as produções da empresa. As texturas, cenários, iluminação e a ação em geral estão melhores do que nunca! A personagem de Inez (no original, ela chama-se “Coco”, diminutivo de “Socorro”), bisavó de Miguel, por exemplo, é de uma perfeição estética fascinante.
Experiência renovadora
Como toda produção Pixar, a temática é profunda. Miguel é um garoto absolutamente comum, com uma avó superprotetora (hoje em dia, dir-se-ia “helicóptero”) e a impotência diante da imposição superior.
E, como já é comum em roteiros da Pixar ou da Disney, o ponto de virada para o segundo ato vem com a revolta do protagonista – foi assim também em “Toy Story” (1995), “Procurando Nemo” (2003), “Valente” (2012), “Divertida Mente” (2015), “Moana” (2016). Aquela chutada de balde que rompe com o status quo e permite a experiência renovadora. A rebeldia necessária que impulsiona o sujeito para o mundo e dá aquela provocada em seu superego.
Aliás, interessante perceber essa intenção camuflada que a Pixar utiliza ao trazer temas universais para universos tão peculiares: a paternidade discutida em “Procurando Nemo” e “Monstros S/A”, a formação da identidade coletiva e individual em “Toy Story” e “Os Incríveis” (2004), a família e a memória em “Up – Altas Aventuras” (2009) e agora nesse belíssimo “Viva – a Vida É uma Festa!”.
Tudo isso sem nunca subestimar a inteligência de seu espectador (aliás, em um certo diálogo, o personagem Hector, de “Viva”, chega a dizer que está tomando cuidado com o que fala, pois existe criança ouvindo, em uma piada de duplo sentido perceptível apenas para os adultos da sala).
Memória e respeito
O fato é que “Viva” consegue ser um dos filmes mais emocionantes já produzidos pela Pixar, ao utilizar-se da morte como veículo para discutir a memória e a família. Tudo contextualizado com o “Dia de los muertos”, uma data significativa para os mexicanos. Aliás, é bom dizer que foram necessários mais de três anos de pesquisas para o roteiro ficar pronto, numa demonstração singular de respeito às tradições e culturas do México – algo pouco comum a Hollywood, acostumada, em geral, com humilhações ou exageros ao retratar países estrangeiros. O respeito na tela é tocante.
A parte musical do filme também impressiona, com canções belíssimas. Aliás, o filme também concorreu ao Globo de Ouro como Melhor Canção original com a música “Remember Me” (“Lembre de Mim”), que perdeu para o tema do filme “O Rei do Show” (“This Is Me”).
Em todo caso, pode-se dizer que “Remember Me” é a canção-tema mais marcante desde “Let it Go”, e deverá faturar alguns prêmios. As adaptações das canções no filme são muito bem feitas ao português (aliás, outro aspecto que a Disney e a Pixar sempre priorizaram em seus filmes). Impossível não sair do cinema cantando.
“Viva – a Vida É uma Festa!” é daqueles raros filmes que, de uma forma muito natural, te carregam no colo durante todo o tempo de exibição, deixando-te com certo aconchego no coração ao voltar pra casa. Não há quem não se lembre, emocionado, de um ente querido que já se foi, ou de uma criança que acaba de chegar à família.
O escritor Amós Oz, certa feita, disse que estaremos no mundo só até o dia em que morrer a última pessoa a se lembrar de nós. Carregando essa premissa, “Viva” deixa essa missão a todos os que se importam: estar vivo é também manter viva a memória dos que você ama, dos que compõem sua identidade.
Três Anúncios Para um Crime
4.2 2,0K Assista AgoraO lado de cá dos outdoors
Poucos títulos definiram de forma tão eficaz a trama de uma obra como “Three Billboards Outside Ebbing, Missouri” – que se fosse traduzido ao pé da letra, daria em algo como “Três outdoors à beira de Ebbing, Missouri”. Aqui no Brasil, o filme mais recente de Martin McDonagh ganhou o rótulo de “Três Anúncios para um Crime” (2017), retirando completamente a essência de estudo de personagens que é essa obra.
Logo de cara, “Três Anúncios” caiu nas graças da crítica especializada e do público dos principais festivais pelos quais passou. Estreando no Festival de Toronto sob uma avalanche de aplausos depois de levar o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza, atravessou o tapete vermelho do Globo de Ouro em grande estilo, faturando quatro das seis indicações que recebeu (Melhor Filme de Drama, Melhor Atriz em Filme de Drama, Melhor Ator Coadjuvante e Melhor Roteiro). Na categoria de Melhor Diretor, McDonagh perdeu para Guillermo Del Toro, de “A Forma da Água”, e em Melhor Trilha Sonora, Alexandre Desplat, também de “A Forma da Água” levou o caneco.
O título original funciona bem melhor do que qualquer outro que poderiam inventar porque, a despeito do que possam falar, a trama é bastante simplista: numa modorrenta cidade do Missouri, uma mulher perde a filha em um crime brutal, e após sofrer com a incompetência da polícia local em esclarecer o crime, resolve alugar três outdoors para protestar. O primeiro ato já coloca isso no colo do espectador, porque o que importa é como as coisas vão se transformar a partir da fixação dessas placas.
Vivos e mortos
Existe muita influência das grandes obras policiais de humor negro no filme de McDonagh. A pergunta “Quem Matou Laura Palmer?”, por exemplo, que tangencia a trama de “Twin Peaks”, aclamada série de David Lynch, se aplicaria perfeitamente aqui, não só por utilizarem a morte de uma adolescente como ponto de partida.
Em ambos, o crime em si não interessa. Não é reconstituído, não está no centro das atenções dos personagens e não serve de gancho para fisgar o telespectador. Os mortos já estão mortos e permanecem apenas como pano de fundo. O que interessa é como os vivos vão se virar – o que, frequentemente, desencadeia situações absurdas, patéticas, cômicas, comoventes e mais um mar sem fim de sensações.
Por outro lado, o padrinho maior de “Três Anúncios para um Crime” parece mesmo ser “Fargo”, um clássico de 1996 dirigido pelos irmãos Joel e Ethan Coen, e que se reforça no trabalho espetacular de atuação de Frances McDormand (que, aliás, é casada com Joel Coen). Neste filme de McDonagh, o tom peculiar dos personagens, a forma de expô-los em todas as suas contradições, nos incidentes e no poder do imprevisível, tudo remete à escrita dos Coen. Parece difícil escolher outra atriz para protagonizá-lo, senão a própria Frances.
Por outro lado, a direção do longa não é nada mais do que competente. Plana em significados, esmera-se em passar a mensagem do roteiro de forma direta, sem muita malandragem. Não há o que se comparar com o requinte de Lynch ou a urgência disfarçada dos Coen – ambos inspirações com uma marca autoral mais profunda. Obviamente que a direção não se restringe a aspectos de fotografia, mas fica a sensação de que o roteiro é muito mais forte do que a direção em si.
Aliás, um olhar mais detido sobre o tão elogiado roteiro revela inúmeros furos, contradições, diálogos desnecessários e saídas fáceis, evidenciando que a sua intenção não foi especificamente o modo de contar a estória, mas sim a profundidade dos personagens.
(E aqui, alguns spoilers que comprovam esse argumento – se você ainda não assistiu ao filme, recomendo que pule para o próximo parágrafo: Os outdoors alugados por Mildred Hayes, além de servirem de pressão em cima do xerife, estão no local onde Angela Hayes foi morta, numa estrada de pouco movimento. No decorrer do filme, entretanto, a estrada apresenta um movimento imensamente maior, com trânsito constante, repórteres, funcionários e a própria polícia, o que esvazia um pouco o significado das placas. [2] Em que pese não terem relação direta entre si, o círculo de personagens parece muito restrito. Vítimas e agressores se topam o tempo todo, tudo o que acontece na cidade está ligado a Mildred, ao xerife Willoughby ou ao policial Dixon. Ebbing, Missouri, é na verdade quatro ou cinco pessoas. [3] As variações no tom do roteiro o fazem perder o foco. O xerife Willoughby, por exemplo, sai de uma figura suspeita e cínica, no início do filme, a um mestre sábio onisciente, quando passa a enviar cartas a seus pupilos. James, o anão, vira uma figura patética simplesmente por ser anão. Charles, o ex-marido, passa de uma interessante e incômoda verruga no mundo sentimental de Mildred para um alívio cômico de sessão da tarde. [4] A cena do suco de laranja, no hospital, é um carrossel de emoções baratas, ridículas e desnecessárias. Enfim. Ao final, todos esses aspectos viram uma tentativa meio frustrada de emular o clima dos filmes dos irmãos Coen, tirando a energia que o roteiro poderia conseguir por si só).
Favorita ao Oscar
O forte do filme, sem dúvida nenhuma, são os personagens. Estruturados em diversas camadas, apresentam uma profundidade interessantíssima responsável por carregar o filme nas costas. Frances, que faz a protagonista Mildred Hayes, é favoritíssima ao Oscar (vale lembrar que a Academia, até a presente data, nem divulgou ainda seus indicados!), com toda a justiça do mundo.
Woody Harrelson também passa a credibilidade de sempre com seu xerife condenado (pelo destino, por Mildred e pelo espectador). E Sam Rockwell fecha a tríade com o famigerado policial Jason Dixon, um verdadeiro pacote de defeitos humanos mimado pela mãe, mas que ainda assim consegue nos despertar certa compaixão no fechar da conta. Créditos ao McDonagh roteirista.
Há ainda espaço para personagens secundários muito bons, como o ex-marido Charlie (John Hawkes), o carente James (Peter Dinklage, de Game of Thrones) e o tótem moral Abercrombie (Clarke Peters) – todos com suas aparições menores, mas fundamentais.
No frigir dos ovos, o filme é sobre raiva, e até onde ela pode mover alguém respaldado por objetivos fortes. Ou sobre a raiva como autoflagelação por uma culpa insuportavelmente grande. Ou sobre raiva como sintoma de uma impotência, diante da autoestima baixa. Não interessa. Porque os outdoors – muito mais sintomas do que causas – continuarão gritando do lado de fora de Ebbing, Missouri.
O Filme da Minha Vida
3.6 500 Assista Agora"Seguindo em frente, sem esquecer o passado"
Quando Selton Mello veio a Goiânia, no último dia 23/07, para a avant-première de seu mais novo filme, "O filme da minha vida", disse que gostaria muito que os goianos recebessem a obra como um presente. Uma flor, um bálsamo para os olhos. Porque, mais do que nunca, em tempos como os em que vivemos, precisamos de coisas assim: simples, sensíveis, bonitas e que toquem fundo o coração. E não há definição mais exata para a obra.
Baseado no livro chileno "Um pai de cinema", de Antonio Skármeta (também autor de "O carteiro e o poeta" e fazendo uma ponta na tela), esse é o terceiro filme dirigido por Selton, adaptado por ele e por seu parceiro nos longas anteriores, Marcelo Vindicato. Considerando que o responsável pela fotografia é Walter Carvalho (responsável também por "Febre do Rato", "Baixio das Bestas", "O céu de Suely", "Central do Brasil", "Terra Estrangeira", "Carandiru", "Amarelo Manga" e, talvez seu trabalho mais primoroso, "Lavoura Arcaica"), já temos nessa pequena ficha técnica o indicativo de mais uma grande obra do cinema nacional.
Tony Terranova, o protagonista vivido de forma competente por Johnny Massaro, deixa sua família na Serra Gaúcha para ir cursar a faculdade na cidade grande. Quando retorna, alguns anos depois, dá de cara com a ausência de seu pai, o francês Nicolas (o francês mais brasileiro do mundo, Vincent Cassel), que abandonou a esposa brasileira, Sofia (Ondina Clais Castilho), e voltou para a França. Simplesmente desapareceu, sem deixar motivo algum.
Como é de se esperar, Tony entra numa espiral melancólica tremenda, dividindo seu crescimento pessoal com a vontade de descobrir o que é feito do pai, atolado em memórias de infância. Paco, um antigo amigo da família vivido pelo próprio Selton Mello, preenche de forma troncha o papel paterno, dando conselhos ou servindo como escape emocional vez ou outra. Aliás, é ele o símbolo da contradição humana: o conselheiro que recomenda perseguir o futuro, mas que ainda briga contra a evolução tecnológica. O homem que se julga superior ao porco, mas que carrega em si a dúvida quanto a qual classe mamífera pertence. Que veste a capa de heroi, mas esconde dentro de si o chiqueiro.
O primeiro ato do filme reforça o tempo todo a prisão emocional que estagna a vida de Tony, dividido entre a idealização do pai e o inconformismo com seu abandono. Isso cria o clima perfeito para as reviravoltas que o filme dá, já que os relances da busca pela maturidade frequentemente trazem surpresas.
Um papel discreto mas bastante importante foi reservado a Rolando Boldrin: o maquinista Giuseppe que, nas suas próprias palavras, "tem uma das funções mais nobres de todas: levar as pessoas para resolverem coisas". Boldrin cuida da linha de trem que une as cidades de Recanto, onde vive Tony e a mãe, e Fronteira, um povoado um pouco maior onde a vida flui mais - seja pela existência do único cinema das redondezas, seja pela movimentada "casa da luz vermelha" – dois palcos fundamentais para a estória. O maquinista, tal qual Caronte, da mitologia grega, será fundamental na jornada de Tony para resolver coisas entre dois mundos.
No fim das contas, "O filme da minha vida" compõe de forma digna mais esse tijolo na já consistente obra de Selton por trás das câmeras. Uma ou outra falha de roteiro, ou mesmo a solução rasa para o final da estória passam despercebidos por trás de sua delicadeza e sensibilidade técnicas. A fotografia toda forjada em tons de sépia, como num álbum de fotos antigo, e a trilha sonora recheada de músicas nostálgicas remetem à melancolia de tempos em que o afeto e a ligação entre as pessoas era a coisa mais importante do mundo. O amor salva tudo.
Quando for ao cinema para assistir ao filme, no dia 03/08, lembre-se das palavras de Selton na pré-estreia e aproveite o presente. Porque na ferrovia da vida, o início e o fim são importantes, mas é o meio que faz da viagem inesquecível.
Paterson
3.9 353 Assista Agora"O essencial é poesia aos olhos"
O diretor e escritor Jim Jarmusch meio que se autodenomina um obcecado por padrões. Em inglês, "padrões" pode ser traduzido como "patterns", mormente aqueles inseridos no mundo da estética. Seu mais recente filme, "Paterson", pode até gerar uma brincadeira fonética com "Pattern son". Filho de padrões. Um obcecado.
Mas não é apenas essa leitura apressada (e forçada, reconheço), que ressalta sua habilidade em brincar com padrões. "Paterson" é também o nome do protagonista da obra. E da cidade na qual se passa a estória. Paterson, vivido por Adam Driver, é um motorista de ônibus que vive em Paterson, Nova Jersey. Driver, no português, significa motorista.
Paterson, que mora em Paterson, Nova Jersey, é um cara pacato, que tem uma vida simples ao lado da esposa Laura (interpretada por Golshifteh Farahani) e se dedica fiel e resignadamente a cumprir com sua rotina diária. Acorda pouco depois das 6h da manhã, dá um beijo na esposa, toma o café e sai à pé para o trabalho. Conversa brevemente com o chefe, pega e deixa passageiros - e se deixa levar anonimamente por suas conversas casuais - volta para casa. Janta, passeia com o cachorro, toma uma cerveja no bar da vizinhança e volta para a cama.
Para muitos, a vida mais entediante do mundo. Mas o nosso Paterson se encarrega de preencher esse emaranhado de padrões com poesia. Sempre que tem um tempo livre, tira do bolso seu caderninho de notas (o caderno secreto) e joga ali versos despretensiosos. O motorista não se define como poeta. Ou se define, mas não gosta de sair falando aos quatro ventos sobre isso - talvez se reconheça assim apenas lá no fundo.
O curioso é que Jim Jamusch nos leva para a sala de cinema com uma proposta dessas - assistir a monótona vida de um cara comum - contrariando à própria lógica escapista da experiência cinematográfica, para mostrar que sempre existe um outro lado a se observar nas coisas comuns. Vamos ao cinema para fugir de nossas rotinas. Para viver aventuras, dramas, experiências diferentes. Mas lá está Jamusch com seu Paterson para provar o contrário, mostrar o outro lado.
Essa dualidade permeia o filme todo. A esposa do conformado Paterson, por exemplo, representa o imprevisível. O lado inquieto das coisas, com sonhos inusitados (como ser uma cantora country, ou ser a Rainha do Cupcake da cidade) e propostas ousadas de mudança de vida (seja enriquecendo-se, seja tornando-se famosa, seja estimulando o marido a tornar-se). É obcecada por preto e branco, e espalha pelas paredes, cortinas, tapetes e forros esses padrões geométricos monocromáticos (em inglês, "patterns on". Põe na conta do Jimmy, de novo). Os padrões do imprevisível - como se isso fosse possível - saltam no colo, na lancheira, no lençol da cama de Paterson. Mas, ao contrário do que possamos imaginar, para ele está tudo bem. Não há pessimismo. Uma espécie de Bukowski às avessas.
Paterson, o poeta, soa meio bobo às vezes. Esperamos mais de suas reações (as fotos em sua cabeceira indicam que já serviu à Marinha americana - como, aliás, o próprio Driver também o fez), ficamos apreensivos com suas caminhadas noturnas, nos irritamos com sua esposa. Mas nada o atinge. O que, pouco a pouco, evidencia o quão longe estamos daquele universo psicológico. Paterson está em paz. Quer continuar assim. Não usa celular, não é ansioso como nós, do lado de cá da tela. E simplesmente introjeta a tristeza e a melancolia, quando qualquer um de nós chutaria o balde para bem longe, quando algo sai do controle. Exceto pelos seus poemas (escritos, originalmente, por Ron Padgett) sobrepostos à imagem (com sua caligrafia) e som (com sua voz), não temos absolutamente nenhum acesso ao que ele pensa, o que espera ou o que teme na vida. Paterson - sujeito e cidade - simplesmente é.
Existe toda uma infinidade de referências culturais que o filme explora. Seja ao mencionar filhos famosos da cidade de Paterson, como Lou Costello e William Carlos Williams (poeta cujo nome parece perfeito para figurar num filme que brinca com padrões), seja a autores americanos reclusos, como Emily Dickinson e Ernest Hemingway, ou mesmo a uma paralela que a crítica traçou entre os estilos de Jamusch e Wes Anderson, quando uma dupla de personagens de "Moonrise Kingdom" conversa sobre anarquismo (os fãs adoram).
O filme é pura poesia. Seja na interpretação bastante elogiada de Adam Driver, seja na fotografia bem planejada (que, aliás, chega a lembrar Wes Anderson em algumas passagens), seja na direção de arte ou na trilha sonora, tudo é bonito e lírico - ainda que não necessariamente explícito.
Pode até soar monótono, mas certamente vai levar o espectador a gastar horas e horas tentando desvendá-lo. Se insere em toda uma gama de filmes - como "A cidade onde envelheço" e "Na natureza selvagem", por exemplo - que questionam a forma de viver do ser humano, suas experiências, a influência e a relatividade de suas escolhas, e à marca que cada um quer deixar no mundo.
É uma obra simples e profunda. Honesta e divertida. Para ser revisitada sempre e desvendada aos poucos. Como a rotina. E como a poesia de Paterson.
De Canção Em Canção
2.9 373Música para os olhos
Assistir ao novo filme de Terrence Malick, "De canção em canção", é como ouvir um disco novo de uma banda indie, de cabo a rabo, sem interrupção. Você vai se divertir num momento ou outro, mas na maior parte do tempo se sentirá entediado, melancólico e, por vezes, confuso.
Malick, aclamado por filmes como "Além da linha vermelha" (1998) e "A árvore da vida" (2011), é famoso por seu entusiasmo com a linguagem cinematográfica em si, muito mais do que com qualquer outro aspecto do filme. Suas obras trazem imagens exuberantes, muito bem trabalhadas, e com uma forte puxada filosófica.
Dessa vez, o diretor e roteirista reuniu um elenco pesado para brincar com a câmera, e escolheu imprimir um lirismo maior do que em sua filmografia passada. A sinopse oficial diz tratar-se de uma olhada geral na vida de dois casais em Austin, Texas, fortemente ligados pela cena musical da região, e que perseguem o sucesso através da sedução, traição e do rock'n'roll. Mas não chega a ser tão divertido quanto parece.
Na linha de frente, um Ryan Gosling pré-La La Land (já que as filmagens dessa obra aqui começaram em setembro de 2012) e Rooney Mara surgem como BV e Faye, o casal mente aberta bonzinho que tenta encaminhar uma vida estável juntos. Michael Fassbender é Cook, um empresário musical arrojado e bem sucedido, que enganará várias ninfetas, inclusive Faye e a inocente garçonete Rhonda, composta pela sempre linda Natalie Portman.
Para a experiência, Malick preferiu abandonar as decupagens de roteiro tradicionais e os storyboards, instruiu os atores superficialmente, os colocou em cena e levou a câmera para a mão na maior parte do tempo. Com poucos takes, o objetivo era captar a ação de forma mais natural e crua possível. O efeito é bastante convincente quando se vê Fassbender rolando no chão com Anthony Kiedis, Flea e Chad Smith, do Red Hot Chilli Peppers, ou aguentando uma conversa enjoada de Iggy Pop. De outro lado, Mara adota Patti Smith como mentora e chega a subir ao palco com o sumido (mas muito bem-vindo de volta) Val Kilmer. As cenas de shows foram, em sua maioria, gravadas no Austin City Limits Music Festival e no SXSW 2016.
O filme começa morno, lembrando bastante comercial de cemitério ou de empresa de seguros, mas tem lá seus picos de emoção. Aos poucos, a identificação com os personagens aumenta, e a curiosidade por saber onde tudo vai parar ajuda a esperar pelo final das pouco mais de duas horas de exibição.
O problema é que o roteiro é fraco. Em que pese a beleza da narrativa visual e sonora, ainda que tremulantes, a história dos casais principais é apresentada de forma bastante superficial, e não fosse pelos artifícios do diretor - inclusive em apresentar o enredo de forma não-cronológica - o roteirista Malick seria facilmente confundido com o de um filme qualquer da sessão da tarde. Até mesmo os pontos de virada, com um bom potencial dramático envolvendo a aparição de Cate Blanchet (por um lado) e a saída de cena de Portman (em outro momento, com belos planos de câmera fixa - especialidade inclusive filosófica do diretor), são bastante discretos, evidenciando que não era a intenção de Terrence explorar uma grande trama em primeiro plano.
O filme, que conta ainda com Holly Hunter e Bérénice Marlohe no elenco (Christian Bale e Benício Del Toro chegaram a gravar cenas, mas foram cortados de última hora), estreou nos Estados Unidos no último dia 10 de março, na programação do Festival SXSW 2017 (South By Southwest Festival). Chega às telas brasileiras em circuito reduzido, agendado para o dia 20 de julho. A expectativa é bastante alta de quem ainda não assistiu, mas as opiniões dos críticos se dividem. Recomenda-se parcimônia na audição.
A Cidade Onde Envelheço
3.6 130 Assista AgoraChegadas e Partidas
Teresa (Elizabete Francisca Santos) vem de algum lugar, por algum motivo, e chega em Belo Horizonte com o objetivo de dar um novo rumo para a vida. Francisca (Francisca Manuel) já está na capital mineira há cerca de um ano, mas não parece muito satisfeita com o que sua vida se tornou, e parece procurar novos rumos, ainda que de forma tímida.
A motivação do longa de Marília Rocha, "A cidade onde envelheço" está aí. De onde viemos? Para onde vamos? O que queremos? O que nos leva a querer algo mais, ou achar que não queremos mais nada? E pinçando apenas uma janela de existência, somos convidados a observar esse retrato do encontro entre quem está chegando e quem já quer ir embora.
O filme foi considerado o melhor longa-metragem do 49° Festival de Cinema de Brasília, no ano passado. Lançado na rede de cinemas nacionalmente no início do ano, e apenas recentemente liberado em home vídeo e plataformas de streaming, a produção é uma importante parceria Brasil-Portugal que se passa em Minas Gerais, mas que aborda de forma sensível e universal a discussão sobre o lugar de cada um no mundo.
Como imigrante portuguesa recém-chegada em terras brasileiras, Teresa não sabe bem o que vai encontrar por aqui. Seu único elo é com Francisca, uma amiga de infância que já vive como brasileira há um tempo. A cena inicial de Francisca liberando espaço em sua própria casa é significativa, porque ao mesmo tempo que simboliza o pequeno incômodo trazido pela chegada de Teresa, também é a novidade que traz cor à rotina da dona da casa.
É difícil se adaptar a mudanças. Todo mundo sabe que enfrentar uma nova escola, uma nova faculdade, uma nova família, uma nova cidade ou qualquer outro caminho que destoa da rota traçada inicialmente traz dor de cabeça. A busca por Teresa em estabelecer-se e criar vínculos soa um pouco desesperada no início, em diálogos com estranhos no aeroporto ou enquanto toma um lanche num bar seboso qualquer da cidade. Todos somos assim. Existe certo desespero inicial em fugir do estranho, em ser reconhecido, querido, pertencido. Porque só quando não temos mais preocupação em ser aceitos é que podemos, de forma livre, simplesmente ser. Ou não?
Francisca traz o outro lado da moeda. Não lhe resta muito vigor em inserir-se num país diferente do seu, com costumes exóticos ou um jeito de ser pretensamente preguiçoso. Quando não existe mais nada a ser explorado e a rotina bate forte, resta a saudade de quando não éramos. O desejo de retornar às raízes, ao frescor da busca, a adrenalina da inexperiência. Dos vínculos mais fortes com o passado e com a família.
Narciso acha feio o que não é espelho. E a ausência de reflexo, numa via de mão dupla, pode ocorrer quando não há espelho, ou quando este já está gasto e empoeirado. Assim se enfrentam Teresa e Francisca.
A obra tem um clima leve e sensível, recheado de situações cotidianas engraçadas, expressos em diálogos gostosos. Grandes questões universais são jogadas sobre a mesa como guardanapos e copos de cerveja, quase que convidando-nos a dar opinião também. A atuação de Elizabete Francisca Santos e Francisca Manuel se destaca, e sem dúvida nenhuma é um dos pontos fortes do filme, junto com a trilha sonora que traz Jards Macalé, Dead Combo e Jonnata Doll e os Garotos Solventes (estes últimos com performances divertidíssimas ao vivo. Jonnata chamou a atenção do Brasil recentemente, como um dos convidados na turnê do show de comemoração de 30 anos do lançamento do disco "Legião Urbana", com Dado e Bonfá).
Enfim, Tereza e Francisca nos mostram que viver não consiste apenas em achar seu lugar no mundo. Consiste em estar bem consigo mesmo, onde quer que se esteja. Encontrar seu lugar dentro de si próprio. E tendo isso como norte, o título do filme, carregado de ambiguidade, também explicita a dualidade expressa pelas nossas complexas personagens: Quem não quer ter uma cidade para se envelhecer? Por outro lado, quem é que quer envelhecer?
Joaquim
3.6 71 Assista AgoraNão gostei.
Por que Tiradentes entrou para a história? Não está no filme. Em nenhum momento. Em nada.
E se a História não se preocupou em registrar determinados aspectos da vida do alferes, decerto que é porque não acrescentam absolutamente nada.
O filme é belo, tecnicamente falando. Bem executado, bem intencionado. Mas o roteiro se configura numa curiosidade voyeurista de saber algo que ninguém sabe. Uma parte da vida de Tiradentes que não interessa a absolutamente ninguém. Chato, tedioso, maçante.
A melhor cena do filme é a última, que traz uma metáfora do que será a parte interessante da vida do colono. Parte essa que não aparece no filme.
Suntan
3.3 16Caramba! Filme divertido e denso ao mesmo tempo!
A lição que fica: é preciso ter cabeça para retornar ao estado natural do ser humano. Despir-se de roupas e entregar-se ao prazer, ao natural, ao afastamento da civilização requer certo equilíbrio emocional. Do contrário, pode ser uma viagem sem volta.
Enfim, é preciso saber brincar com fogo. Como o próprio cartaz diz, uns se bronzeiam. Outros, queimam.
Personal Shopper
3.1 384 Assista Agora"Em que pele tu habitas?"
Numa primeira vista, Personal Shopper (2016), o filme mais recente de Olivier Assayas, parece um exercício burocrático de uma aula de roteiro da faculdade. "Faça um roteiro envolvendo o mundo da moda, com fantasmas e colocando uma pitada de drama e thriller psicológico". Mas o roteirista e diretor francês famoso por nos apresentar "Acima das Nuvens" com Juliette Binoche, em 2014, consegue sair do convencional, entregando uma estória envolvente até o ponto em que consegue ligar esses elementos aparentemente desconexos.
Como o próprio título entrega, o filme é inteiramente escorado em Maureen Cartwright (vivida por Kristen Stewart), contratada por uma celebridade francesa local para cuidar de seu guarda-roupas. A única missão de Maureen é percorrer as lojas mais famosas de Paris (aliás, chega a dar um pulo em Londres também) comprando roupas, sapatos e jóias para compor o visual de sua patroa. Sem limites no cartão de crédito.
O que pode parecer divertido para muitos, entretanto, é uma tarefa extremamente enfadonha para a garota. Aliás, nesse ponto convém ressaltar a boa atuação de Kristen. Na sua carreira, em geral criticada pela inexpressividade e falta de adensamento psicológico na interpretação de seus personagens, a atriz agora convence no papel de uma jovem inexpressiva e corroída por uma vida vazia (há quem diga que Stewart continua a interpretar a si mesma, algo que demandaria uma análise mais detalhista. O fato é que, aqui, ela funciona até bem).
Maureen, entretanto, busca algo mais em sua vida. Gostaria de ser outra pessoa, mas não tem certeza de quem. Coloca um olho comprido para cima dos glamourosos vestidos que compra para sua patroa, mas não se sente bem usando-os. Aliás, os veste escondida, puramente pelo prazer da adrenalina. Comprar um colar Cartier lhe é tão vazio quanto bater o cartão de ponto no final do expediente.
Esse algo que falta na vida de Maureen provavelmente tem ligação com a morte de seu irmão Lewis, poucos meses antes, em decorrência de um mal súbito no coração. E aí surge uma dimensão diferente dada por Assayas ao longa - algo que incomodou os mais altos críticos de Cannes, onde o filme foi exibido pela primeira vez, no ano passado.
Maureen e seu irmão Lewis possuem o dom sobrenatural de manter contato com espíritos. São médiuns. E combinaram, enquanto vivos, que o primeiro que se fosse enviaria um sinal ao que ficasse. O irmão se foi, e 95 dias depois do passamento, a irmã ainda não havia obtido nenhum sinal do além.
O roteirista Olivier escolhe flertar com David Lynch e Stephen King, mas o diretor Olivier talvez tenha preferido tirar suas influências de Kubrick e Shyamalan. O resultado é um filme que, sem dúvidas, dá uma série de calafrios ao espectador, mas que acrescenta certa reflexão ao suspense. A constante utilização de uma fotografia mais densa, aliada à câmera na mão, traz a sensação de susto eminente. Mas isso não afasta o aprofundamento à crítica social do materialismo e da ostentação como formas de preenchimento existencial.
"No fundo, todo mundo acredita em fantasmas, mas damos a eles nomes muito diferentes", declarou Assayas em Cannes, no ano passado. E o que ele quer dizer, basicamente, é que o meio imaterial - o que quer que isso seja - sempre prevalece ao material - qualquer que ele seja. O segundo é mero instrumento do primeiro. A busca de Maureen ao tentar se livrar do que ela é talvez se resolveria com a confirmação de que o irmão está bem, num mundo além. Confirmando essa busca pelo imaterial, aliás, a cena em que Kristen veste-se com as roupas da patroa e deita em sua cama traz um significado especial: a tentativa de despir-se de sua realidade e experimentar outra pele. O que culmina no prazer orgásmico.
Aliás, algo interessante que Assayas incorpora em seu filme é a presença da tecnologia. Num contexto em que sua protagonista está se afogando num mar de itens de luxo, com um pé numa vida de ostentação mas com o resto do corpo perdido num apartamento escuro de subúrbio, a desmaterialização é mostrada também em videoconferências pela internet, pequenos filmes explicativos de YouTube e numa troca de mensagens de celular. A certo ponto, chegamos a acompanhar minutos a fio de um diálogo tenso, sem piscar, vidrados na tela do smartphone de Maureen. O intertexto de mídias acena para a evolução do próprio cinema (é engraçado pensar que, na cena dos vídeos de YouTube, todos os espectadores do filme - inclusive os críticos de Cannes - assistiram a uma micro-projeção diretamente do iPhone 6 de Maureen).
De certa forma, todo mundo busca salvação no invisível. Damos um jeito de atribuir ao oculto a origem e a solução de tudo o que não entendemos. E nesse processo, surge a impressão nítida de que a matéria nos prende, limita nossas impressões sobre a realidade. Sendo algo limitador, até quando exerce também interferência? "Quando os monstros da sua cabeça estão muito perto, sua sanidade pode entrar em colapso", declarou a própria Kristen sobre o filme, em Cannes.
Apesar de vaiado pelos críticos na competitiva pela Palma de Ouro, foi ovacionado por mais de 4 minutos pelo público, após a premiére. E se o público e a crítica de Cannes não conseguiram chegar a um consenso sobre a obra, talvez seja esse o melhor conselho sobre o que esperar do filme: não espere nada. Mantenha a mente aberta e deixe-se surpreender.
A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell
3.2 1,0K Assista AgoraDe Olhos Bem Puxados
Nas últimas semanas, pregou-se muito que a atuação Scarlett Johansson como protagonista de "A vigilante do amanhã" (2017), que estreou essa semana nos cinemas brasileiros, diminuiria a força do filme. Não diminuiu, pelo contrário. Mas é preciso analisar com cuidado o cerne das discussões para entender que a mais nova obra de Rupert Sanders tem a sua dose de polêmica.
No início da década de 80, William Gibson, um contista américo-canadense que vinha se destacando em publicações de baixa tiragem lançou seu primeiro romance. Com ele, embalado pelo clima noir-futurista de "Blade Runner" (1982), desenhou praticamente todo um universo que seria, a partir de então, exaustivamente explorado em obras de ficção científica. "Neuromancer", o primeiro da "série Sprawl", trouxe ideias como "hackear", "surfar na rede", "pirataria digital", cunhou oficialmente o termo "cyberspace", e originou o movimento cyberpunk (uma mistura de noir, com ação e tecnologia). Tudo isso muito antes do surgimento da internet como a conhecemos.
Mas foram os japoneses que abusaram desse universo, criando uma série de obras seminais, principalmente através dos quadrinhos (mangás) e animações (animes). Podem ser citados "Akira" (1982), "Battle Angel Alita" (1990), "Cowboy Bebop" (1998) e "Gantz" (2013), por exemplo. Os japas são aficcionados por esse tema.
"Ghost in the shell", o mangá que embasou o filme estrelado por Johansson, está nesse mesmo baralho. Publicado no Japão entre 1989 e 1991, de autoria de Masamune Shirow, conta a história de um grupo secreto de elite da polícia japonesa, que tem na Major Motoko Kusanagi sua principal agente. Ela é uma ciborgue (cérebro humano num corpo robótico) que luta contra o ciberterrorismo, o tráfico de informações e a espionagem industrial no ano de 2029. O mangá virou animação e foi para as telonas em 1995, pelas mãos de Mamoru Oshii, e se tornou referência mundial. Basta dizer que as irmãs Wachowski jogaram "Ghost" e "Neuromancer" num liquidificador e apareceram com "Matrix", em 1999, para entender a importância dessas obras todas (para explorar mais dessa relação simbiótica entre "Matrix" e os animes, é imperdível assistir à série "Animatrix", de 2003).
Sempre foi sonho dos fãs que fosse feita uma adaptação em live-action (filme com atores reais) para a obra de Masamune. Mas um leve estranhamento começou quando anunciaram que Scarlett estava confirmada no papel da Major Motoko. Afinal, Hollywood sempre bebeu na fonte criativa nipônica, mas isso quase sempre significou a desfiguração completa da obra original. E trocar a protagonista japonesa por uma americana loira indicava, num primeiro instante, uma intenção perigosa da produção. Por algum tempo pairou essa dúvida: adaptação fiel, ou versão americanizada? O pessoal da Paramount chegou a admitir que foram feitos testes de maquiagem e computação gráfica para alterar os traços de Johansson, tornando suas feições um pouco mais "asiáticas". Terrível.
Então, espera aí: se o filme seria fiel aos quadrinhos, ambientado no Japão do futuro, com personagens japoneses, porque escalar uma atriz loira americana para o papel principal? Ainda que o casting também conte com Juliette Binoche, Pilou Asbaek e Michael Pitt interpretando personagens não-japoneses, mas a protagonista Motoko Kusanagi é visivelmente asiática na obra original. Choveram críticas e acusações de "apropriação cultural" e o chamado "whitewashing", um termo cunhado para designar especificamente essa adaptação de elementos de outras etnias para o padrão branco de ser. (A título de curiosidade, a Netflix também vem sendo criticada de forma semelhante pela produção do filme "Death Note", adaptação do consagrado mangá japonês).
De qualquer forma, o filme é muito bom para os admiradores do gênero - só não será unanimidade porque envolve um nicho de interesse bem específico. As principais cenas e motivações de roteiro foram mantidas intactas, e é interessantíssimo ver cenas sincronizadas da animação de 95 com o filme recém-lançado - algo que uma consulta rápida no YouTube pode propiciar. A direção e a fotografia são bastante competentes e conseguem resgatar o clima dos quadrinhos em cada plano rodado. Parecem pinturas. As cenas de ação, visivelmente influenciadas pelas correrias de Neo, Morpheus e Trinity dentro da Matrix, são de encher os olhos. Tudo embalado por uma trilha psicodélica-eletrônica que lembra bastante a onda techno oitentista, copiada recentemente pelo seriado "Stranger Things", da Netflix. Enfim, supera bastante as expectativas de quem estivesse com medo de encontrar pela frente um "Aeon Flux" (2005) ou um "Riddick" (2000, 2004 e 2013 - todos fiascos).
O filme é forte. O "senão" fica apenas na escalação da protagonista, algo que incomoda durante a projeção, e que muito provavelmente resulta de uma escolha puramente comercial. Talvez pudesse mesmo ter havido um pouco mais de consideração com Shirow, Oshii e a cultura japonesa em geral, que aparece como tema implícito na película, mas cujos elementos são tomados apenas como coadjuvantes. Ao contrário do que alguns possam argumentar, não se trata aqui de uma versão americana da estória contada pelos japas. A intenção foi uma adaptação fiel. E como tal, ainda que deslumbrante, Scarlett Johansson está no lugar errado. Lembra-se de Madonna interpretando a Evita em inglês, lá em 1996? Pega mal. É o tipo de cuidado que os ingleses fazem questão, como por exemplo na escalação de atores e carros da franquia de James Bond (dizem que quando a rainha viu Pierce Brosnan dirigindo uma alemã BMW, caiu da cadeira), ou no pudor que J.K. Rowling sempre manteve quando levou Harry e seus amigos para passearem nas telas.
Fragmentado
3.9 3,0K Assista AgoraA volta de Shyamalan
"Você pode ser o que você quiser", declara um dos personagens de "Fragmentado" (2017) a si mesmo, olhando para o espelho. M. Night Shyamalan, o diretor, esperneou durante um tempo até descobrir que não, depois de se atingir um certo nível de qualidade no cinema, não dá para ser qualquer coisa. É preciso, no mínimo, atender às expectativas.
Depois de se engalfinhar com Will e Jaden Smith no fiasco de "Depois da Terra" (2013), já vindo de uma derrota vergonhosa com "A Dama da Água" (2006), choveram críticas e diagnósticos de que M. Night já era (aliás, merece um estudo o fato de os franceses, ao contrário dos americanos, tenham continuado a dar suporte à suas obras de forma mais incisiva mesmo durante esse período conturbado). Dai agora ele lança esse petardo que é "Fragmentado", contrariando a torcida adversária.
A ideia inicial do filme é bem simples. Inclusive, já a encontramos distribuída por algumas outras obras como "O silêncio dos inocentes" (1991), "A cela" (2000) e "O quarto de Jack"(2015), por exemplo. Um cara vigia três garotas por alguns dias, as sequestra e encarcera em algum lugar isolado, sem contato com o resto da civilização. A missão do telespectador é tentar descobrir o que está acontecendo, e acompanhar as tentativas (frustradas ou não) de fuga das reféns. Um pouco de síndrome de estocolmo ali, traumas de infância acolá, enfim.
A coisa começa a ficar realmente interessante quando descobrimos, junto com as sequestradas, que o captor é portador de um Transtorno Dissociativo de Identidade (popularmente conhecido como Transtorno de Personalidade Múltipla). O que abre as cortinas para um show de interpretação de James McAvoy. Kevin, o criminoso interpretado por McAvoy, tem nada menos que 23 personalidades (a do moleque de 9 anos, Hedwig, é simplesmente sensacional). Na tela, desfilam um pouco menos, mas encontramos referências a todas elas espalhadas pelo filme. E assim que se dá conta disso, Casey, uma das reclusas, interpretada também de forma magistral por Anya Taylor-Joy (revelada no thriller "A bruxa", de 2015), começa a ousar em um truque psicológico ou outro na tentativa de penetrar na mente do sequestrador. Vale ressaltar, aliás, a excelente cenografia, que transforma todo o ambiente do cativeiro em uma excelente metáfora para essa mente doentia de Kevin.
É interessante que, desde o início, percebemos um certo tirocínio em Casey. Algo mexe com ela de forma diferente em tudo aquilo (perceba a forma como ela rapidamente aconselha sua amiga Márcia a escapar da primeira investida de Kevin, agora assumido na personalidade "Dennis" - não se preocupe, não vou revelar mais do que isso). Infelizmente, por mais que Casey e sua trupe tentem, tudo leva a crer que nunca será possível saber tudo sobre Kevin/Dennis/Hedwig/Patrícia e todas as outras personalidades. Inclusive, a personagem de Betty Bluckey, Dra. Karen Fletcher, de força dramática um pouco menor, até tenta nos auxiliar nessa dissecação das personalidades. Mas existe sempre uma porta a mais a ser aberta. E de soslaio, indícios de que algo mais brutal está brotando daquela moçoroca de personalidades - como o pôster já avisa, muito possivelmente uma 24a personalidade.
Shyamalan, como sempre, entrega uma direção instigante. O uso constante de câmeras subjetivas (as mais hitchcockianas, como os olhares através de buracos de fechadura, frestas de portas e de armários, são sempre as mais prazerosas), ou em planos móveis (os famosos "travellings") conduzem sempre o fio da atenção em meio a diálogos reveladores - em que pese num ritmo um pouco mais lento dessa vez.
Mas o grande responsável por jogar o diretor de volta aos holofotes após os desastres de público e crítica que se tornaram as últimas duas ou três de suas grandes produções é o roteiro. Shyamalan levou algo em torno de 10 anos para escrevê-lo, instigado pelos estudos em psicologia que sua esposa vinha levando desde então. Aliás, sabendo disso, torna-se ainda mais interessante que o filme tenha repercutido no público de hoje, uma década depois.
Existem algumas falhas básicas, como por exemplo ter escalado três garotas como vítimas, mas fazer um bom uso narrativo de apenas uma - nossa protagonista. As outras duas são estereotipadas, sem uma base de construção (não sabemos absolutamente nada sobre elas - exceto que são perfeitinhas demais), e mal sabemos seus nomes - algo que sempre indica um futuro não muito promissor na trama. Mas, situando o filme dentro do gênero a que se propõe, nada que não possa ser perdoado.
Muita gente ficou perdida com o final do filme. Não é para menos. Existe ali uma referência surpresa a uma de suas outras obras - algo que o diretor fez questão de comentar em sua mais recente visita ao Brasil. Aliás, acostumados que estamos a grandes viradas de enredo ("plot twists"), que se tornaram a marca registrada de Shyamalan (as mais famosas, em "Sexto Sentido" e "A Vila", realmente são de cair da cadeira), o fim desse filme perde um pouco a força ao se escorar apenas nessa "surpresa". Pessoalmente, saí arrepiado. Mas, vá lá, assista e julgue por si.
A mensagem que fica é que M. Night Shyamalan está de volta na cena. "Os que sofrem são os mais evoluídos", diz uma das facetas de Kevin. Agradando a público e crítica (leia-se, faturando alto sem perder a qualidade), quando as luzes da sala de projeção se acendem, temos uma certeza: vem mais coisa boa por aí.
Nise: O Coração da Loucura
4.3 656 Assista AgoraQUEM VÊ LOUCURA, NÃO VÊ CORAÇÃO
A primeira cena de "Nise: O coração da loucura" (2015), de Roberto Berliner, incomoda pela sutileza. Um plano aberto, chapado em um grande muro cinza, revela um pequeno portão que, em minutos, recebe pancadas de uma mulher querendo entrar. A câmera deveria estar fixa, mas não está. A técnica de câmera na mão, utilizada em um momento totalmente inapropriado, transmite, nas entrelinhas, o incômodo e a falta de adequação que testemunharemos na próxima hora e meia, assim que aquela personagem entrar para além do muro. A moça querendo entrar é Nise da Silveira, e o muro cerca o Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II - no Engenho de Dentro, Rio de Janeiro - e a mente de centenas de internos.
Nise está entre as primeiras mulheres no Brasil a se formar em Medicina, em 1931. Isso o filme não mostra. Aliás, um dos aspectos instigantes da obra está justamente no fato de ser um recorte rígido de um período específico da vida de Nise, deixando-nos todos curiosos a respeito do antes e do depois de sua passagem pela História. Isso obviamente tem um motivo de ser.
O que se vê na tela inicialmente é a sua reintegração enquanto funcionária da saúde pública, adentrando um meio claustrofóbico física e socialmente. Médicos empertigados no machismo de seus jalecos brancos dividem suas teorias mal comprovadas com o sofrimento escatológico de pacientes à margem da sanidade. Um purgatório na Terra, esquecido por Dante e pelo resto da humanidade. Não há espaço para a luz, para a esperança, ou para qualquer expressão individual criativa - consciente ou inconscientemente.
A chegada da médica, entretanto, causa um rebuliço na rotina do sanatório. Ao aplicar técnicas pioneiras como o uso das artes plásticas e do contato com animais como forma de humanização - fruto muito mais de sua capacidade de observação e intuição do que de quilos de literatura médica - Nise revoluciona a psiquiatria. Os reflexos podem ser apontados até hoje por qualquer profissional da área.
O que o filme deixa de lado, talvez numa preocupação excessiva em evitar qualquer tipo de propaganda ideológica, é que Nise da Silveira era militante comunista na juventude. Há tímidas referências em um ou outro diálogo. Nascida em Maceió, mudou-se para o Rio de Janeiro em 1927, já casada com o sanitarista Mário Magalhães da Silveira, onde começou a engajar-se nos meios artístico e literário, principalmente com aplicação na área médica. Chegou a militar pelo Partido Comunista Brasileiro. Em meados da década de 30, entretanto, durante a Intentona Comunista, foi denunciada por uma enfermeira enquanto carregava livros de doutrina marxista, o que a levou à prisão em 1936. No presídio Frei Caneca, permaneceu por mais de um ano, onde fez amizade com Graciliano Ramos, recluso também naquele estabelecimento. Fato curioso é que Nise é mencionada no livro "Memórias do Cárcere", do alagoano.
Encontramos Nise nesse ponto. Recém liberta, é reincorporada ao serviço público em 1944. A bela interpretação de Glória Pires nos mostra uma personalidade austera, destemida, decidida a deixar a militância política de lado para se dedicar à sua missão de vida: a psiquiatria. Trocou o livro vermelho de Marx pelo de Carl Gustav Jung. A cara feia dos colegas médicos não lhe mete medo.
Decidida a combater os métodos violentos de tratamento mental amplamente estimulados na época, como a lobotomia e o eletrochoque, seus métodos humanísticos libertam expressões do inconsciente de seus pacientes (a quem prefere chamar de "clientes"), restabelecendo de forma mais eficaz o elo destes com a realidade através da simbologia. Os resultados são surpreendentes, e até hoje são tidos como referenciais.
Aliás, suas descobertas nessa área a levaram a estabelecer contato com seu mestre Jung - algo retratado en passant na tela, mas de reflexos profundos em nosso país. Nise foi a responsável por introduzir e divulgar no Brasil os estudos da psicologia junguiana. Foi pioneira também nesse aspecto.
O filme não são só flores. Escorado numa mise-en-scène essencialmente novelesca, com uma ou outra atuação beirando à canastrice e uma trilha sonora bem modesta, a sensação que fica é que a história de Nise merecia um pouco mais. Mas contando com um roteiro que utiliza fórmulas já consagradas em "Patch Adams - o amor é contagioso", "Uma lição de amor" e "Tempo de despertar", e com excelentes atuações de Augusto Madeira, Claudio Jaborandy, Júlio Adrião e Fabrício Boliveira, não é de se estranhar que a obra tenha batido a marca de 23 mil ingressos vendidos em sua estreia, mesmo com exibição em apenas 56 salas em todo o país. Algo louvável para um filme nacional parcamente divulgado.
Berliner não se propõe a fazer uma cinebiografia completa, propriamente dita. Escolhe apenas uma janela para abrir, retratando o período em que a médica desenvolveu seus trabalhos no Engenho de Dentro. Mas uma janela significativa, que mostra ao mesmo a revolução iniciada por Nise na área da psiquiatria, o impacto de seus estudos na introdução da obra junguiana no Brasil, e seus esforços individuais na tentativa de superar pensamentos retrógrados arraigados na cultura médica e sanitarista do país - dentro e fora das academias.
É fundamental, entretanto, que se tenha um pouco mais de curiosidade para ultrapassar o excerto representado na obra de Berliner e descobrir mais sobre essa figura ímpar da medicina, da psiquiatria, da psicologia e, porque não, das artes plásticas no Brasil e no mundo.
Apenas para começar, fica a sugestão para assistir o documentário “Imagens do Inconsciente”, de 1986, dirigido Leon Hirszman e com roteiro da própria Nise, recentemente lançado em DVD no país.
Fabricando Tom Zé
4.3 77Em 1967, a recém fundada MPB - Música Popular Brasileira, tida ainda como um movimento artístico bem mais do que como um gênero musical, saiu às ruas numa manifestação explícita bradando, dentre outras coisas, contra a guitarra elétrica. Artistas como Elis Regina, Jair Rodrigues, Geraldo Vandré, Edu Lobo e até Gilberto Gil levantavam a bandeira do "Defender o que é nosso", transformando a guitarra em um símbolo da invasão estrangeira na cultura nacional.
Em que pese o idealismo de valorizar o patrimônio artístico e cultural brasileiro, Tom Zé nunca teve a pretensão de achar que sabe o que é a essência da música nacional e o que é estrangeira. O que é instrumento gringo e o que é instrumento tupiniquim. Pelo contrário, sempre acreditou que o valor não deve ser dado aos meios, mas sim ao conteúdo que reflui - esse sim, portador da identidade cultural. O artista não deve colocar seu ego (e muito menos um instrumento musical) à frente de sua obra. Essa e outras opiniões estão semeadas pelo filme "Fabricando Tom Zé", obra de Décio Matos Jr.,que acompanha momentos interessantíssimos com o artista - ora camuflado em sua equipe, no decorrer de uma turnê europeia que passa, dentre outros lugares, por Veneza, Turim e Paris; ora explicitamente, com entrevistas bem humoradas e reveladoras.
Não há possibilidade de se fabricar um Tom Zé. Porque "fabricar" - um processo industrial e dependente de planejamentos, projetos, moldes e intenções objetivamente elaborados - pressupõe a replicabilidade. E Tom Zé é único. Daí a ironia do título da obra de Décio que, a pretexto de tentar explicar o artista, faz uma desconstrução de seu modo de vida e, principalmente de criação musical na tentativa bem sucedida de valorizar sua vida e sua obra.
Nesse contexto, Tom explica a uma câmera sempre presente, mas muito mais voyeurista do que instigante (ao contrário dos filmes de Eduardo Coutinho, por exemplo), que as suas deficiências enquanto artista padrão o levaram a desenvolver outras formas de expressão musical. Sua deficiência enquanto instrumentista ou cantor o forçaram a procurar novos instrumentos e novas vozes capazes de expressar de forma fiel sua ânsia em ser escutado. Em suas palavras, se existiam tocadores de guitarra e de enceradeira, e se já havia muitos bons guitarristas, seria ele o primeiro tocador de enceradeira. Às favas a guitarra elétrica. Ou o piano, ou o trombone, ou qualquer forma de limitação do artista em si.
Como um dos expoentes do movimento Tropicalista na década de 60 e 70, Tom Zé acabou esbarrando no ostracismo com a ditadura e o fim do movimento. "Nunca tive problemas com a ditadura. Mas que ela me fodeu, fodeu", declara a certo ponto, contando sobre seus embates com a censura. Desvalorizado por seus próprios pares, Tom Zé nunca esteve no centro das atenções. Até hoje, seu nome é muito mais exaltado no exterior do que dentro do próprio país. Entrevistas com o artista em sua terra natal, que lhe traz, até o hoje, os bons ares e a calma da vida interiorana, se contrastam na tela com grandes públicos em festivais europeus. Mas isso nunca foi problema para ele.
Uma sequência em especial - uma das melhores do filme - retrata uma briga entre ele, sua banda e um técnico de som do Montreux Jazz Festival, colocando para fora todo o inconformismo de Tom com a arrogância dos países desenvolvidos em relação à cultura brasileira. Afinal, talvez sua própria vida e obra reflitam, de maneira direta, os empecilhos que o estereótipo do subdesenvolvido carrega nas costas para se afirmar no exterior e no próprio país. Mas não é preciso atear fogo às guitarras elétricas. "Eles só não podem nos tratar de forma vil", declara, inconformado.
Com variações entre arrogância ("o rock nacional é um rock traduzido, essa é a verdade") e humildade, principalmente nos relacionamentos pessoais ("eu to tentando, na minha vida, ter a felicidade de trabalhar sem arrebentar meu estômago, nem tratar a Neusa [sua esposa] mal"), Décio mostra que Tom Zé é um ser humano comum, mas um artista único, com uma obra vasta e ainda bastante inexplorada.
Não é possível fabricar Tom Zé. Ironicamente, no final da década de 80, David Byrne, um produtor norte-americano, sem saber que era exceção, conseguiu dimensionar para o próprio Brasil o artista que não depende de instrumento algum para criar música, e que já existia como gênio, "made in brazil", em países que sabem valorizá-lo. O cara que veio explicar para confundir.
Moonlight: Sob a Luz do Luar
4.1 2,4K Assista Agora"Quem é você, Chiron?". A pergunta que aparece no trecho final de "Moonlight: sob a luz do luar", se arrasta pelas entrelinhas de todo o novo filme de Barry Jenkins, desde o começo.
Mas as cenas iniciais não são sobre o protagonista Chiron. Juan, vivido por Mahershala Ali, é um traficante de bairro que evita conflitos e não se orgulha do que faz. Na rotina de um dia qualquer é interrompido pela correria de crianças - o menor, fugindo do bullying, tenta evitar ataque dos maiores que o perseguem. Assim somos apresentados a Chiron: acuado, arisco, desconfiado. Apelido, "Little".
O filme acompanha três fases da vida do pequeno "Little". A infância, período em que se afiniza à figura masculina de Juan e luta contra a violência viciada de sua mãe, que finge que educa e tem ciúmes de quem quer que se aproxime durante sua constante ausência; a adolescência, em que firma sua independência em relação à vida caótica da genitora, mas ainda não se posiciona firmemente perante a vida social na escola e na vizinhança; e a fase adulta, na qual ganha mais autonomia, toma posse de sua masculinidade e se escora no corpo forte e avantajado para se impor como traficante, mas que ainda não tem muita certeza sobre nada.
O filme aborda de forma genérica questões raciais, sexuais, sobre drogas e também abandono familiar. Mas não se esgota só nisso.
Depois de muitos protestos Hollywood afora - inclusive na noite do 88° Oscar, no ano passado, em que Chris Rock vestiu a roupa de camaleão e subiu no muro para tentar desempenhar a diplomática missão de, ao mesmo tempo que receber e valorizar as críticas à falta de reconhecimento a artistas negros no mercado cinematográfico, promover uma reconciliação destes com a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas - "Moonlight" é uma verdadeira pedrada na vidraça. Indicado a 8 categorias da maior premiação do cinema americano, mas injustificadamente não tão ouriçado quanto "La La Land", de Damien Chazelle, o filme conta com um elenco principal só de artistas negros. Além de Trevante Rhodes, estão no casting a cantora Janelle Monaé, Naomie Harris ("Mandela: O caminho para a liberdade"), Mahershala Ali ("Um Estado de Liberdade"), André Holland ("Selma") e Edson Jean ("Cães de Guerra"). Barry Jenkins conduz a locomotiva (dirigindo e roteirizando) demonstrando, de uma vez por todas, que a Academia não pode - e nem se quisesse, conseguiria - deixar passar batido o poder da cultura negra.
Aliás, aqui cabe uma observação importantíssima sobre o papel do filme em toda essa discussão sobre o reconhecimento do trabalho de artistas negros.
Se você pegar os principais filmes americanos protagonizados por negros nos últimos anos, ou com um envolvimento mais direto dessa classe de artistas, dá para chegar facilmente à constatação de que a temática acaba se esgotando na luta pela igualdade, na denúncia ao preconceito e na retrospectiva histórica das conquistas negras (esse ano mesmo, temos em destaque "Estrelas além do tempo", "Loving", "Eu não sou seu negro" e "Um limite entre nós"). Não que devamos dar pouca importância a isso - de maneira alguma! É indispensável que a humanidade nunca se esqueça das atrocidades já cometidas em nome da supremacia branca, e que continue avançando na eliminação das desigualdades. Principalmente no já surrado território americano.
Mas há que se convir que a produção cinematográfica (e cultural, de maneira geral) não pode ficar restrita a essa temática - aliás, a temática alguma! A igualdade se alcança, também, na liberdade de explorar temáticas universais que estão lá, sempre existiram, mas que ainda perdem em urgência para temas mais profundos como a luta pela igualdade racial.
Assim é que Barry Jenkins consegue deixar um pouco de lado as mazelas advindas do preconceito racial e de gênero (ainda que não os abandone completamente - nem poderia, já que Chiron é um negro americano da década de 80, em plena descoberta de sua sexualidade) para permitir-se tratar de um tema universal: o "conhece-te a ti mesmo". O interessante é que, de forma inteligente, nas entrelinhas, ainda assim Barry nos joga essa verdade crua da busca pela igualdade: O Templo de Delfos também aconselha negros e homossexuais. Como não? Filmes "de negros" também podem falar sobre temáticas intimistas e universais de forma belíssima, sem desprezar todas as lutas coletivas.
Nesse contexto um pouco mais intimista, a beleza de "Moonlight" se revela em cada detalhe. Na trilha sonora meticulosamente inserida - delicada, melancólica, introspectiva. Na fotografia de cores frias, por vezes revelando a dureza do mundo contra o qual Chiron luta, e no qual quer se inserir. Nos olhares e diálogos curtos, mas significativos, instigando a busca permanente pela essência do que é "viver" e "ser".
No fundo, Chiron só quer se descobrir e ser aceito. Percebemos isso quando ele estranha o calor com o qual é recebido, inicialmente, por Juan e sua esposa Tereza. Se surpreende com a compreensão que depois vira beijo, oferecidos pelo melhor amigo. E por fim, busca sofregamente por um colo, alguém que lhe compreenda sem julgamentos e lhe ofereça perspectivas, carinho, ligação. A rejeição está nos meandros da rotina comum.
"Sob a luz do luar, garotos negros ficam azuis", diz um dos diálogos. Azul de uma melancolia profunda e individual. Azul de ainda inexplorado, misterioso, quase lacônico. E azul de uma sensualidade latente. Assim se descobre Chiron. Assim se revela ao mundo, ansiando que alguém o descubra - e o acolha. Azul é a cor mais profunda.
Logan
4.3 2,6K Assista AgoraA INSUSTENTÁVEL IMORTALIDADE DO SER
Milan Kundera, em seu livro "A imortalidade", declara a certa altura que o homem pode pôr fim à sua vida, mas não pode fazê-lo com sua imortalidade. Escapa dos homens o controle do tempo - tanto o biológico, quanto ainda mais o psicológico. E se a fugacidade da vida biológica é a única certeza que carregamos, por outro lado a idade mental permanece relativamente estável no decorrer do tempo. Distraído, todo ser humano é um sem-idade - constatação também de Kundera.
Quando encontramos o velho e imortal Wolverine, nesse novo longa de James Mangold (que também dirigiu o controverso "Wolverine: Imortal"), ele trabalha como chofer de limousine em algum lugar na fronteira dos Estados Unidos com o México. Abatido, dá evidentes mostras de cansaço. As inúmeras lutas e perdas da vida o consomem. De maneira paradoxal, é como se a imortalidade o matasse lentamente, dia após dia. Mas é o velho Logan que os fãs gostariam de ter visto nas telas desde o início.
Wolverine é um personagem concebido em 1974 por Len Wein e John Romita, Sr. como membro do grupo de mutantes "X-Men", da Marvel Comics. Eventualmente também participou de outras equipes de super-herói, como a Tropa Alfa ou os Novos Vingadores. Um sucesso tão grande que terminou por alçar vôo solo, ganhando uma revista própria. A imortalidade do mal humorado James Howllet (nome "civil" do herói) é garantida por um poder de cura (conhecido nos quadrinhos como "fator de cura") e por um esqueleto revestido artificialmente de Adamantium, uma liga metálica fictícia indestrutível. É tudo o que você precisa saber para assistir a esse novo filme da Marvel Entertainment.
Inserido no mesmo universo dos filmes anteriores dos X-Men e dos filmes solo de Wolverine (sempre interpretado por Hugh Jackman), a obra de Mangold consegue se sustentar sozinha. Aliás, Woverine é um personagem tão complexo - e exatamente por isso, tão rico - que pode ser considerado com o único sobrevivente de todos os 09 filmes já produzidos para os mutantes (botando na lista também "Deadpool", de Tim Miller, com todas as tiradas hilárias sobre o velho Wolvie e seu alter ego da vida real, Jackman). Dentre obras promissoras como "X-Men - Primeira Classe" (2011, Matthew Vaughn) a fiascos como "X2" (2003, Bryan Singer), a franquia tem se renovado paulatinamente, mantendo-se essa constante por 17 anos: Logan.
Nos quadrinhos, Wolverine é um cara extremamente violento, anti social e beberrão. Até último filme lançado, muito pouco desse lado havia sido convincentemente apresentado ao público. Mas essa história mudou. A obra recebeu classificação indicativa "Rated R" nos Estados Unidos - o que equivale a algo como "indicado para maiores de 18 anos". No Brasil, pegou "16 anos", o que tem levantado as orelhas dos fãs.
Além da questão da classificação indicativa, a obra usa como propaganda o fato de contar, provavelmente, com a última atuação de Hugh Jackman como Wolverine.
Mas vamos logo ao cerne da questão: "Logan" é um filme de ação que cumpre muito bem seu papel. Acostumados que estamos com o visual excessivamente claro e didático de "Vingadores", talvez esse Wolvie desagrade alguns. Ostenta uma fotografia melancólica e árida, imiscuída à paisagem desértica do interior do sul americano, traduzindo o estado de espírito do velho Logan (o que orna, também, com a despedida de Jackman). Em termos de adaptação, talvez esteja tão bom quanto aos filmes de "Sin City", ao Batman de Nolan, à saga "Kick-Ass" ou ao último "Justiceiro". Sem dúvida alguma é um filme mais sombrio, com uma carga dramática pouco comum a filmes baseados em HQs. Depois da exibição, fica até mais fácil colocar o personagem na mesma estante de Max Rockatansky (de Mad Max), ou do Han Solo de Harrison Ford - figuras controversas, solitárias, com sua própria lógica de vida, mas sem dúvida alguma, heróis. Prepare-se, porque tem muita pinga, sangue e boca suja (As cenas de ação são fantásticas).
A jornada de Logan é completamente sem sentido, inicialmente. Porque assim tem sido a sua vida, afinal de contas. A imortalidade é uma maldição. Wolverine não sabe mais o que esperar do mundo, e se limita a cuidar devotadamente do nonagenário professor Charles Xavier - o sempre ótimo Patrick Stewart, numa interpretação bem mais livre e descomprometida do que nos últimos filmes. Logan vive num mundo em que seus conhecidos já se foram. Poucos ainda restam. Aparentemente pelo isolamento reprodutivo, os mutantes deixaram de se espalhar pelo mundo. Não há notícias de novos mutunas há muito tempo, o que limita as perspectivas dos vivos. Envenena, envelhece quem ainda tenta se sustentar sobre as pernas. E é essa falta de perspectiva o grande vilão da trama. O tempo como algoz, essa borracha implacável.
As coisas começam a mudar de tom quando bate à porta de Logan a pequena Laura (a atriz espanhola Dafne Keen), uma garota extremamente violenta (lembra da Hit-Girl, de Kick-Ass? Uma versão mexicana arisca dela - se cuida, Trump!) e que anda aos tapas com uma poderosa corporação que tem interesse em desvendar - e, muito provavelmente, exterminar - seu DNA.
No romance “Rimas de vida e de morte”, Amós Oz, proclamando uma sentença de morte muito mais óbvia e cruel do que a que estamos acostumados, diz que estaremos no mundo só até o dia em que morrer a última pessoa a se lembrar de nós. A lembrança é o que perpetua nossa existência enquanto agentes no mundo. É contra isso que o nosso velho Logan luta. E é nisso que, agora com Laura, talvez encontre também sua redenção.
Até o Último Homem
4.2 2,0K Assista AgoraQuando for assistir a “Até o Último Homem” (2016, Mel Gibson), tente não se desconcentrar quando Vince Vaughn aparecer na tela, em seu primeiro papel dito “sério”. Porque, assim como na tentativa de David Schwimmer (o eterno “Ross”, de Friends) de se desvincular da pecha de ator de sitcom fazendo uma ponta na série “Band of Brothers”, produzida por Spielberg e Tom Hanks em 2001, a empreitada de Vaughn também é bastante válida, mas seu personagem ainda soa caricato e deslocado do clima do filme.
O deslocado que merece toda a atenção na película, entretanto, é o protagonista, Desmond Doss — interpretado solidamente por Andrew Garfield. Doss é um jovem americano que resolve rapidamente um dilema moral típico do final da década de 1930: se alistar ou não no exército americano, a fim de combater na 2ª Guerra Mundial. Encontra o amor dentro de um hospital — a bela enfermeira Dorothy, vivida por Teresa Palmer — e, com o amor, sua vontade de estudar medicina, uma vontade que Doss não explica de início, mas que depois descobrimos ser a forma que ele encontrou para participar de uma guerra sem pegar em armas: sendo médico socorrista.
Desmond Thomas Doss existiu de verdade. Foi o primeiro e único objetor de consciência (expressão criada para designar aquele que apresenta princípios morais, religiosos ou éticos como objeção para servir ao exército ou obedecer a seus superiores hierárquicos militares) a ser condecorado com a Medalha de Honra, por seus feitos na 2ª Guerra Mundial. Durante a sangrenta Batalha de Okinawa, que ocorreu no Japão entre abril e junho de 1945, o soldado Doss conseguiu resgatar do campo de batalha 75 combatentes feridos, no período de 5 horas, obrigando o reconhecimento, homenagem e o pedido de desculpas por parte do governo americano — o livro “Soldado Desarmado”, escrito por sua segunda esposa, Frances M. Doss, e lançado no ano passado pela Casa Publicadora Brasileira, conta outras interessantes passagens de sua vida.
Após assumir a frente de elogiadas obras como “Coração Valente” (1995), “A Paixão de Cristo” (2002) e “Apocalypto” (2006), Mel Gibson volta à cadeira de diretor de forma estridente. Elogiado pelos métodos arrojados e pela violência metodicamente excessiva (beirando, por vezes, a um olhar sádico), Gibson passou os últimos anos longe das telonas, aos sopapos com acusações de antissemitismo, racismo, violência doméstica e abuso de álcool. Após algumas participações em filmes pseudo-alternativos caça-níquel como “Machete Kills” (2013, Robert Rodriguez) e “Mercenários 3” (2014, Patrick Hughes), comprou a ideia de passar a vida do discreto soldado Doss para as telas.
Segundo diversas entrevistas, Gibson classificou o filme não como um “filme de guerra”, mas um filme “sobre homens na guerra”. E, assim sendo, se imiscui pela vida pessoal de Desmond desde a infância, com os pequenos traumas e a relação tumultuada com o pai, um veterano da 1ª Guerra Mundial vivido por Hugo Weaving — este sim, numa atuação profunda e competente, consegue se desvincular da imagem de Agente Smith, Elrond e Vendetta — até o enfrentamento final de seus fantasmas. O pai de Doss, inclusive, personifica um futuro que Doss rejeita: bêbado, violento e atormentado pelo passado violento.
O cerne da questão esmiuçada no filme é uma velha premissa que Gibson gosta de usar: o herói improvável que, deslocado de seu tempo ou de seu espaço típico, encontra na violência um caminho para a redenção. Em “Até o último homem”, em especial, essa violência se coloca quase como um personagem autônomo. Ela testa Doss, se esgueira em cantos escuros de dormitório, ou à luz do dia nos treinamentos, provoca, irrita, insiste. Doss não se rende, é pacifista, adventista do sétimo dia. Recusa-se a pegar em armas, mas também a ficar em casa sentado, com a boca escancarada cheia de dentes esperando seus amigos e parentes morrerem na guerra. Doss sente o dever moral de combater — mas não para matar. E a batalha contra a violência evolui aos poucos (desde quando quase mata o irmão, na infância, até os tiros e bombas ao final). O conflito constante é contra si mesmo e contra o sistema ao qual está disposto a pertencer.
Muitos compararam as cenas de confronto entre americanos e japoneses, em Okinawa, no último terço do filme, às cenas iniciais de “O Resgate do Soldado Ryan” (1998, Spielberg), sobre o Dia D. Soa até injusto porque, apesar da inabalável convicção de Doss, é exatamente na violência que Gibson se perde. No terceiro terço da obra, as câmeras deixam o protagonista temporariamente de lado com o objetivo de se construir a brutalidade imagética da guerra. A violência sem máscaras. Cenas explícitas de membros decepados e cabeças estouradas dividem a atenção com a estratégia pobre e improvisada adotada pela 96ª Divisão para tomar o cume do morro Hacksaw (na vida real, a “Operação Downfall” foi uma das maiores operações marítimo-terrestres da 2ª Guerra Mundial, e a tomada do Morro Hacksaw compôs os ataques ao sul do arquipélago japonês).
Porém, enquanto Spielberg conseguiu transmitir toda a grandiosidade épica e trágica do confronto no desembarque da Normandia, Gibson dá toda a atenção aos soldados que já cruzaram o caminho de Doss, e agora sobem medrosos por uma escada de cordas, num canto completamente desprotegido do despenhadeiro. O cenário dá a sensação de uma pista de paintball hardcore — restrito, repetitivo, quase como um pequeno set. Spielberg ampliou o conceito de filme de guerra e Gibson retomou os antigos clássicos bélicos da década de 1950, apesar de rejeitar o modelo em entrevistas.
Por outro lado, as críticas ao patriotismo (e até xenofobismo) americano já exaustivamente lançadas a “Sniper Americano” (2014, Clint Eastwood) também podem ser parcialmente aplicadas aqui, já que japoneses são retratados de longe, friamente, como um inimigo invisível a ser destruído. Essa visão unilateral (em que pese necessária a qualquer filme de guerra clássico) só é quebrada por Doss, que retoma o protagonismo do filme após a construção da diegese bélica, e insiste em praticar seu pacifismo, mesmo contra o inimigo.
O filme é bom, nada mais que isso. Resta patente a vontade que o diretor teve de fazer uma obra moralmente elevada, tentando não ser piegas. Falha por mais de uma vez (as cenas de amor, os discursos cristãos e a trilha sonora “heroica” acabam contrariando as expectativas, recheando o longa de clichês por demasiado açucarados). Mas o que fica é que, além dos 75 feridos em combate, o soldado Doss também salva o filme e a reputação de Mel Gibson. “O herói improvável”, apesar de humilde e tímido, merece que sua história seja conhecida no mundo inteiro. Os depoimentos de Doss, do Capitão Glover e as imagens de arquivo da vida real, nos créditos finais, foram metodicamente colocados para reforçar em nós um sentimento que o filme em si, talvez, não teria conseguido sozinho: sim, essa história existiu. Pode acreditar.
Manchester à Beira-Mar
3.8 1,4K Assista AgoraO jovem e o mar
É fácil perder a paciência com atendentes de telemarketing, com o trânsito ou com filas de supermercado. Mas quando você perde a cabeça com alguém que lhe é gentil ou lhe pede desculpas, é sinal de que algo anda muito mal.
É o caso de Lee Chandler, protagonista de "Manchester à beira mar", o mais recente filme escrito e dirigido por Kenneth Lonergan. Kenneth já havia entregado "Conta Comigo", bastante elogiado em 2000, mas passou ligeiramente despercebido uma década depois quando lançou "Margareth", em 2011. Agora, retorna aos holofotes abordando um assunto comum em sua curta filmografia: a morte e suas implicações a quem permanece do lado de cá.
O mal-humorado Lee Chandler, interpretado de forma magistral por Casey Affleck, é uma espécie de faz-tudo que trabalha numa administradora de condomínios em Boston, nos Estados Unidos. As cenas iniciais do filme nos apresenta a seus clientes costumeiros, um mais chato do que o outro, interrompidos de forma proposital até pelo diretor. O corte abrupto nas transições de cena nos traz certo alívio. Nos conduzindo um pouco mais à fundo na rotina de Chandler, entretanto, chama a atenção a mistura de apatia com amargura que o zelador carrega nas costas. Tudo bem que a clientela e a rotina não ajudam, mas uma briga de bar deixa mostrar muito mais do que uma mera troca de socos e pontapés. O rosto ainda jovem de Lee revela-se uma carapaça protegendo - ou escondendo - o que de verdade habita no lado obscuro de sua alma.
Uma notícia pesada ameaça romper esse lacre. A morte de seu irmão, Joe Chandler (interpretado por Kyle Chandler), o leva a abandonar tudo temporariamente para cuidar das burocracias inerentes à fatalidade. Mesmo tendo que lidar com médicos, funerária e com aspectos legais, entretanto, Lee mantém seu acreditado autocontrole para tocar a vida.
Lee acha que está no controle de tudo. Sempre teve essa falsa impressão. Mas o que vemos através das nuances que Lonergan paulatinamente disseca diante de nossos olhos - inclusive com flashbacks milimetricamente calculados - é o oposto disso. Chandler não consegue lidar nem consigo mesmo. Está o tempo todo prestes a explodir - mas esse "não explodir" o consome. O seu "foda-se" soa sempre muito mais sincero que o seu "muito obrigado". E nas suas brigas diárias tentando organizar um turbilhão de sentimentos engasgados, a vida lhe empurra muito mais do que consegue suportar. É assim que descobre, por exemplo, que o irmão lhe empurrou a missão de ser o tutor do sobrinho, Patrick (feito por Lucas Hedges), de quem era muito próximo na infância, mas que por circunstâncias da vida acabou se afastando. Em meio a risadas e sobrancelhas franzidas, Patrick se incumbe de ajudar o diretor na missão de desvendar a esfinge Chandler a nós, espectadores.
A Manchester do título do filme não é a cidade inglesa, como alguns apressados poderiam concluir. Tampouco aquela vizinha de Boston, no centro de Nova Hampshire. Manchester-by-the-sea é uma comunidade de pouco mais de 5 mil habitantes, na cidade de Cape Ann, condado de Essex, em Massachusetts, cuja principal atividade econômica é a pesca e o turismo à beira mar. O nome da currutela também é uma metáfora para a vida do nosso protagonista. Não por acaso, a estória se passa numa cidade "de veraneio" mas durante o inverno. E se pegarmos o mar com seu significado universal e até esotérico, representa o equilíbrio e a constância de uma baía pesqueira, mas a turbulência e transitoriedade das ondas batendo na areia. A alegria e tranquilidade são efêmeras na vida de Lee, frequentemente associadas aos passeios de barco que costumava fazer com o irmão e o sobrinho. Os pontos mais leves do filme, inclusive, são no barco. Por outro lado, os planos longos e não tão fechados acentuam a carga dramática, contrapondo sempre as belas paisagens de Manchester-by-the-sea com a realidade pesada com que os personagens precisam lidar, .
O ápice dramático do filme, embalado por uma belíssima trilha sonora composta por Lesley Barber (que, justiça seja feita, esteve magistralmente presente por toda a obra), traz a revelação definitiva sobre a origem do peso que Lee carrega nas costas. E é pesado.
No rolar dos créditos, Kenneth Lonergan traz a difícil lição de que nem sempre é possível superar. Por mais que tenhamos esperanças, nem sempre sobram as forças necessárias, e é preciso reconhecer que as escolhas foram erradas, o caminho não deu resultado. O pescador nem sempre vence a luta contra o peixe - principalmente quando lhe falta experiência. Já dizia Renato Russo, a irracionalidade toma conta "quando querem transformar esperança em maldição". Esperar e lutar por dias melhores é instinto do ser humano. Mas na busca impensada por superar um trauma, muitas vezes perdemos oportunidades únicas de sermos felizes, de tocar o barco e seguir em frente de forma verdadeira. É quando o abismo deixa de ser observado e passa a olhar para dentro de quem o observa.
"Manchester à beira mar" é, definitivamente, um filme de Oscar. Atuações vibrantes (além de Affleck e Hedges, ainda podemos conferir Michelle Williams em mais uma participação simples, mas decisiva), trilha sonora belíssima, fotografia do mesmo modo. E em que pese tratar-se de um bom roteiro, mas com temática amplamente já explorada em outras obras, surpreende que Kenneth Lonergan tenha se apropriado sabiamente do clichê: A única certeza que temos - cada um de nós, independentemente do drama que nos acomete - é uma lápide fria de mármore no fim do caminho.
Capitão Fantástico
4.4 2,7K Assista AgoraQuanto custa a ordem?
Capitão Fantástico (2016, Matt Ross) é um filme interessante. De cara, dá pra dizer que é um filme de (e para) pais e filhos. Os pais choram ao final, revendo o tipo de educação que impuseram aos filhos até aqui, mas recordando também quanto amor esteve envolvido. E os filhos, embevecidos com o tipo de criação libertária que conhecem na tela, aspiram as habilidades quase super-humanas dos seis pequenos coadjuvantes.
Ben (que, ironicamente, lega a seus filhos o sobrenome “Cash”) carrega consigo fortes convicções ideológicas anti-estabilishment. Os valores familiares que propaga são “Power to the people! Stick it to the man!”, lemas populares de grupos socialistas, pacifistas, anarquistas e minorias em luta pelo reconhecimento de seus direitos, nos anos 50 e 60. Seu profeta, Noam Chomsky (Jesus seria apenas um elfo mágico, fruto de mentes doentias). Carregando essas convicções ideológicas, com a cumplicidade da esposa (que aparece apenas como memória do protagonista ou como cadáver - calma que eu chego lá), dispensa aos filhos uma educação extremamente rígida, vivendo na selva, longe da civilização e das mazelas do mundo contemporâneo.
Mas enxergar o segundo longa de Matt Ross - antes, um pouco prolífico ator de Hollywood, mas agora, depois de faturar o prêmio de melhor direção na mostra “Un Certain Regard” em Cannes, diretor em ascensão - apenas como uma comédia romântica sobre educação infantil é pouco. O Capitão se propõe a discutir os caminhos do poder e seus custos individuais.
Quando William Golding escolheu crianças para protagonizar o seu “Senhor das Moscas”, em 1954, muito provavelmente queria utilizá-los como metáfora ao conceito de “estado de natureza”, aquele estado do indivíduo selvagem, ainda sem o compromisso de viver em sociedade. Os adultos do livro, todos mortos, simbolizariam as leis, o Sistema. E nesse contexto em que não existem regras pré-estabelecidas, sobreviver é o mote principal para qualquer decisão. Nessa condição natural, todos os homens são potencialmente iguais, e suas características diferenciadoras compensam-se. Na obra de Golding, o carisma de Ralph ou a inteligência de Porquinho eventualmente compensariam a força bruta e a austeridade de Jack. Como cada um utilizaria essas características para se manter vivo - o que inclui dominar a maioria e estabelecer um “reinado”- já é outra história.
O sangue e o ímpeto selvagem das imagens iniciais do filme nos levam equivocadamente a crer que a família de Ben vive a liberdade plena. O perfeito “estado de natureza”. Só que, ao contrário do que ocorre no “Senhor das Moscas”, existe um adulto ali infiltrado. Alguém que reina absoluto e impõe suas regras àquele pequeno grupo de pseudo-selvagens - regras como treinos de condicionamento físico pesados todos os dias, horário para leitura de clássicos, prática musical, agricultura de subsistência, defesa pessoal e até proibição de ficar nu perto de pessoas que estão comendo dão forma àquela micro sociedade. Não são selvagens. São membros de uma comunidade alternativa que renega o sistema, com todas as suas Cocas-colas venenosas, celulares e videogames alienantes e cumprimentos simpaticamente hipócritas. “Stick it to The Man”.
Mas a grande questão do filme está escondida nessas entrelinhas aí: o cara que governa essa comunidade não tem um Contrato Social prévio. “The Man”. O presidente nunca foi aclamado. E, como diria Rousseau, se a lei não é auto-imposta, a liberdade vira escravidão.
É bom perceber como Ross - que também escreveu o roteiro da obra - apresenta seu plano maligno. Primeiro, constrói a ideia de sistema perfeito. Depois, o desconstrói aos poucos, mostrando suas imperfeições e nos incutindo a desconfiança, inclusive expondo-o num embate com o sistema capitalista que todo mundo conhece. Essa desconfiança também contagia os filhos de Ben, “os súditos”. Surge o questionamento, seguido da indignação - nossa e dos moleques. Já dizia John Locke, o liberal, que quando o Estado quebra o pacto com os seus cidadãos, há motivo mais do que suficiente para a ruptura.
No decorrer das cenas, somos inevitavelmente levados a questões como “até que ponto a ordem é mais importante que a liberdade?” “Qual o custo individual para se manter a ordem coletiva?” “Os sacrifícios valem à pena?” Se levarmos em consideração o tumultuado momento político pelo qual passamos, em que a legitimidade de um Presidente da República é questionada pela forma como ascendeu ao poder (no Brasil), ou o impacto que bandeiras polêmicas levantadas podem causar na coesão social (nos Estados Unidos), o filme toma uma profundidade ainda maior. E o protagonista sintetiza toda a angústia que surge no momento em que os anseios de um grupo se dissociam das convicções de quem o lidera - legítima ou ilegitimamente. Aliás, o que determina essa legitimidade? Em que momento surge, ou deixa de fazer efeito?
Capitão Fantástico, sem dúvidas, tece uma crítica irônica à sociedade de consumo e à forma como criamos nossas crianças nos dias de hoje. Mas seu grande mérito está em colocar à prova como cada um, individualmente, enfrentará os desafios de pertencer (ou não se sentir como parte) a uma sociedade cada vez mais heterogênea, onde cada um é obrigado a encontrar a melhor forma de sobreviver sem tentar, a todo custo, aniquilar “o outro”.
Pensando melhor, “interessante” é uma qualificação proibida para esse filme.
Cinema, Aspirinas e Urubus
3.9 364 Assista AgoraUm belo filme, que conta muito mais do que quer mostrar.
Grandes atuações de João Miguel, Peter Ketnath, Hermilia Guedes e um ainda desconhecido Irandhir Santos, que nem abriu a boca direito (figurante total).