o tempo revolto num círculo já houve há trinta anos o futuro dos teus filhos e a teus passos só resta a escolha invisível de cada dia ou aquela de girar no tempo em círculo
sirvo-te chá sirvo-te as chaves da casa sirvo-te bolo sirvo-te sopa sirvo-te amor lambes a sopa moras no bolo sirvo-te pão sirvo-te vinho sirvo-te afeto sirvo-te os doces cílios pulsando comes a coxa afogas no vinho teus beiços sedentos sirvo-te arroz sirvo-te bife sirvo meu corpo rasgas os bifes pedes por mais sirvo-te amora sirvo-te carne sirvo-te, droga sonhos perdidos groselhas diárias distribuídas
Daqueles filmes em que me perco e não me acho depois. Terminei triste, sem saber bem por quê, desconfortável. A relação dos personagens com seus corpos fizeram eu me sentir estranha, em muitos momentos senti uma repugnância que não sei explicar, que diz mais sobre mim que sobre o filme. Olhavam para o corpo, seu e do outro, assim como olhavam para a vida, tão radicalmente estranhos, como se fosse tudo um jogo, com consequências, mas aquelas consequências que se esperam de um jogo e não da vida. Matar e morrer eram conceitos leves, sem peso, como perder a vida nos muitos jogos que jogam ao longo do filme.
Nada possui um significado para além do próprio ato, as regras são gratuitas, mas são sempre respeitadas. Não as regras da sociedade, ou da vida (?), mas de um jogo interno e específico, de cuja regra só podemos captar relances. O sentido de tudo parece relegado ao acaso e à brincadeira, e não há uma motivação orgânica para agir, tudo parece seguir essa regra escondida, talvez só clara na cumplicidade silenciosa das 3 mulheres. Só elas vivem, não por um motivo a mais do que o fato de que é esse o jogo que jogam.
Há aquela estrutura rígida dos contos de fadas, que talvez também tenham um mesmo princípio lúdico, e de certa forma cruel no modo como precisa seguir aquele molde, passando por cima das individualidades dos personagens. Não há uma individualidade nesse filme, não importa no fundo a subjetividade e as escolhas de cada personagem, o que importa é essa precisão matemática que é maior do que eles. Os números estão por tudo, contam a história em sua contagem obsessiva. A racionalidade e objetividade que vemos em um número, em uma contagem, se deixam perverter nessa aleatoriedade com que aparecem, nessa regra oculta para que apareçam – e talvez não sejam pervertidos, mas seja isso que eles são no fundo, o caos em sua suposta ordem, a arbitrariedade levada ao extremo.
No início, a menina pula cordas contando as estrelas, até cem. Por que até cem se são muito mais estrelas? Porque é o suficiente, ela diz. Assim como cem números são o suficiente para guiar essa história. E talvez o desconforto esteja na mistura entre o caos dos corpos e dos cenários e das ações (o afogamento) – ordenados por um jogo interno – e a ordem dos números – revelada em seu caos pela sua arbitrariedade, pela obsessão que os circunda. Tudo isso em imagens que o tempo todo remetem a pinturas (me lembram o barroco, Caravaggio, há algo meio italiano nesse filme?), exuberantes em sua decadência.
No meio de tudo que se destrói e reconstrói continuamente, tenso e oscilante, aqueles detalhes que a atenção captura: um rolo de papel higiênico, uma tomada na parede. A incerteza não é vagueza. O devaneio não é frouxo. Como em sonhos, há uma riqueza súbita em meio ao incerto.
Mas o filme não é sobre isso, é só por onde começo a agarrar, aquilo que me interessa mais intimamente. Tudo é sempre tateante, as imagens moventes, transitórias, nada permanece o mesmo, mesmo que esses dias isolados pudessem ser todos iguais. Um momento não se iguala ao outro, o próprio eu se constrói e se destrói a cada interação com o entorno, está esfacelado, desconjuntado. Mas às vezes se faz inteiro na relação afetiva com o que imagina, nessa vida criada para fugir ao trauma.
Essa pequena vida brotada na claustrofobia é a única possibilidade de respiração, mas não é uma solução. O trauma invade a casa, como o lobo, o passado está dentro, e resistir desgasta. A felicidade da narração do lobo é a tragédia final, porque aqui ele vence, e como não venceria considerando o contexto histórico a que alude? Não há solução para esse tipo de trauma coletivo, ou talvez a solução seja esse ato de encarar, posterior à fuga.
Me interessa o modo subjetivo e simbólico de lidar com o trauma histórico, que pode ser visto sem que se conheça o contexto, mas que, quando se conhece, tudo se torna mais potente. E as imagens são a criação de uma atmosfera sombria, mas sem sustos. É um filme que fica preso na retina, um mundo completo e ameaçador que passa a fazer parte inalienável do olhar.
O desejo de se encontrar a partir da viagem – não esse movimento ocorrendo por acaso, mas desejado, procurado. Há quase uma obsessão. No rosto do outro, procura-se aquilo que é próprio, esse amor perdido, o que interessa é o que se conjugue com essa solidão e essa distância. O olhar para as outras pessoas não é aproximativo, talvez por não se colocar junto, não revelar o próprio rosto, apenas o próprio olhar voltado para fora. É triste, mesmo sendo um processo de cura e de retorno, porque não se dá pela comunhão com outras pessoas, a observação vem de um lugar de distância e solidão; o único interlocutor é aquela pessoa que está fora. Todos os contatos com as outras pessoas não são interlocuções, são dirigidos a esse interlocutor ausente. Para além do vazio da estrada, há, ironicamente, muito pouca movência. As imagens são fotos ou beiram ao estático, cenas onde o narrador não se coloca, apenas exerce seu olhar. Os poucos momentos em que ele interage soam estranhos, parecem inquisitivos, como se ele quisesse desesperadamente arrancar dessas pessoas apenas uma confissão dos sentimentos dele próprio, pela boca de outros. Não consigo acreditar plenamente nesse processo de retorno, talvez por ser, no fundo, muito objetivo e planejado, como o planejamento que guia sua profissão. Acho que falta entrega. A volta está prevista desde o primeiro momento: ir, para que se possa voltar, e não simplesmente ir para experimentar a ida.
A última cena é a mais bonita, com seus saltos livres, a beleza dos corpos em queda livre. E parecem simbólicos desse retorno à vida, apesar do risco que ela invariavelmente comporta – continuar depois das rupturas é dar um salto.
Mas a pergunta que me fica é: esse narrador em algum momento se coloca de fato em queda livre?
O que gostei no Happy-go-lucky, além da ótima Sally Hawkins <3, é que, ao contrário do que o título em português “simplesmente feliz” sugere, não se trata de algo simplista em nenhum momento, Não é daqueles filmes que são um elogio oco ao otimismo, que parece que tentam impelir o público àquela visão de mundo mostrando o personagem de forma idealizada e dizendo: viu, é isso que acontece quando se olha com alegria para a vida.
A personagem é imperfeita e em muitos momentos até um pouco irritante, e não torna o mundo das outras pessoas necessariamente mais feliz, mesmo que tente. Ela não é a versão idealizada de como todo mundo deveria olhar para o mundo (que, parando pra pensar, em uma frente totalmente diferente, talvez seja o problema com O pequeno príncipe), ela é simplesmente (e talvez o título em português não esteja tão mal) alguém que vive e olha para as coisas de uma determinada forma, e que assume essa forma sem medo.
Ela não tenta ser um personagem, ser uma manie pixie dream girl. Não tem aquela idealização da própria esquisitice. Ela é meio esquisita de uma forma meio desconfortável até, e ela vai em show, fica bêbada, tem vida sexual, não é como se fosse uma criança em corpo de adulta. O que eu acho mais bonito que o próprio jeito alegre da personagem é o modo como ela se assume, e não tem medo do jeito como ela construiu a vida assim como não tem medo da própria complexidade; tem uma liberdade que é mais inspiradora que o otimismo em si, e que permite até sair um pouco de si mesma e olhar para o outro e tentar entendê-lo, mesmo que em muitos momentos essa relação com o outro seja frustrante.
Acho que me inspira, no fim das contas, não o quanto ela é feliz, mas o quanto é destemida. E gosto muito dos diálogos dela com as amigas e, principalmente, com outras professoras, percebo ali pessoas de verdade conversando.
Os olhos graúdos de Apu, tão curiosos em algum momento e tão melancólicos noutro. A vivacidade da Durga, mas também a incompreensão e excessiva severidade do mundo dos adultos com ela. A severidade triste da mãe. Aquela cena em que ela fala dos sonhos que possuía e tenta convencer o marido a se mudar. Os vizinhos invadindo a vida uns dos outros, opinam e criticam decisões. As pessoas sempre julgando, e a importância que isso tem no andamento da narrativa. A comida mostrada excessivamente justo porque tão escassa. O marido com olhos sonhadores, mas com uma ironia no final, uma desilusão por trás dos olhos. A cena da tempestade na casa junto à febre de Durga. A cena em que o pai chega de viagem com os presentes. Família de rostos cansados rumo a uma outra coisa, qualquer coisa. A necessidade de deixar a casa ancestral e buscar algo novo, mesmo que os outros desaprovem.
Um pouco decepcionante. O início é interessante, e leva a esperar mais da história e da personagem. Mas não tem um bom andamento. Na verdade, parece não ter andamento algum. A personagem não passa por alguma mudança significativa a não ser talvez nos minutos finais. As atitudes dela no fim do primeiro relacionamento são muito parecidas com as atitudes junto ao Daniel no final, o que faz tudo parecer meio vazio e em vão. Preferia que o filme tivesse sido mais claramente uma jornada rumo à independência a partir da escrita. Mas ele parece que se desenvolve para muitos lados e no fim acaba indo a lugar nenhum.
om ela finalmente se dedicando à escrita, falando em terceira pessoa (vendo-se à distância, que é uma maneira de se compreender) e dando a entender que será sozinha e vai se focar, possivelmente já estando em outro momento da vida escrevendo sobre sua fase pior, mas acho que o enredo não leva muito bem para isso. O aparecimento do Daniel em especial me parece muito fora do tempo.
Aquela hora em que ela escreve nua no computador era interessante porque trazia essa simbologia de um nascimento, da escrita e de si mesma, com uma sensação de "agora vai!". Mas aí, mais sexo, mais romance, mais andância em círculos. Não funciona bem. Algumas cenas são boas, gosto do andamento lento nas cenas de maior solidão dela, especialmente quando sozinha no apartamento do amigo, e gosto dos momentos de escrita, em que as palavras aparecem pela casa ou no computador. Mas o todo não funciona…
Creio que a ideia seja mostrar essas diversas cicatrizes que ela vai adquirindo, e acho muito possível que eu esteja querendo do filme uma coisa que ele nunca se propôs a ser mesmo. Mas acho uma pena, porque parece uma sucessão repetitiva de casos inconclusivos e sem sentido.
Monika é puro ar, é uma ventania que passa na vida do protagonista e transforma tudo, nunca permitindo ser esquecida. O verão com ela é um tempo idílico, em que os dois se afastam de tudo que se assemelha ao mundo real e buscam bastar um ao outro. Todas as decisões no filme é Monika quem toma, ela é o motor que gira as engrenagens. Na verdade é mais do que ela: os desejos dela são o motor, tudo aquilo com que sonha, o norte para o qual seu leme aponta em cada momento é o que guia mesmo as ações dos outros. Ela decide ir, ela decide voltar.
O verão é quando o personagem melhor pode aproveitar essa força motora dela. Longe de tudo, ela basta a ele: tudo transpira vida. A Monika já é o mundo. Mas ele não basta a ela, que não consegue nunca se fixar, e que parece pouco adequada para a vida prática. Muito nela é desejo, e quase nada é ambição. Ela é puro desejo pessoal, é um sol que não tem preocupação com qualquer outra coisa que fuja à sua vontade, inclusive os sentimentos dos outros. Por isso é tão egoísta, e ao mesmo tempo tão triste, porque um desejo que não se ancora em nada, que logo pode se transformar em outra coisa, nunca permite que ela pare, tornando-a para sempre uma nômade da vida.
O verão afastados do mundo era uma ilusão, não há como se pôr numa redoma, a vida interfere. Aquele é o momento definidor, ao menos para a vida dele, já que para ela é mais possível evaporar no ar, mas
a gravidez que se segue a todo o interlúdio romântico é justamente o que torna tão pesado o momento em que se sai dessa lógica. A vida real parece muito pouco com o verão e com os sonhos, a vida se passa no interior de cômodos e as cores são muito mais fechadas. A relação se torna insuportável. Em terra firme, não dá pé. Tudo se fecha com Monika em uma nova fuga, de um lugar onde novamente se sente presa, com um homem que recorre novamente à violência - lembrando os traumas que ela possuía relativamente ao pai.
E ele com a vida transformada, com um bebê, olhando para aquele espelho que fecha um ciclo: o espelho para onde Monika se olhou logo antes de entrar no café, o espelho que reflete a porta do café, onde tudo começou. Ali ele lembra o verão que nunca lhe abandona, que lhe deixa o fruto, e uma paixão que não vai conseguir esquecer, mesmo com a vida seguindo em frente ao espelho.
Poético, especialmente em relação aos diálogos. E, ao mesmo tempo, os diálogos conseguem ser bastante crus quando precisam ser, principalmente na interação dos personagens principais com outros personagens. É quando os dois estão um com o outro que a poesia acontece, que as imagens ficam mais belas e os diálogos carregam mais significado. Gosto daquele diálogo deles sobre a solidão, e o fato de que é preciso uma certa força para estar sozinho no mundo. Toda aquela cena na praia é uma delícia de assistir, e gosto da naturalidade como acaba acontecendo, mesmo que um deles resista num primeiro momento. O final do filme dá um gosto de tragédia grega, como se tudo ali estivesse predestinado para acontecer: o reconhecimento de que falava Aristóteles. Mas é só assim, pensando em termos de tragédia grega, que se pode ignorar a quantidade de coincidências e encontros convenientes de que o filme está repleto.
Continua com aquilo que tornava o primeiro tão interessante, que é essa união do prosaico com o maravilhoso. Não se trata simplesmente de heróis com alguma vaga história própria tentando salvar o mundo, também não se trata simplesmente do cotidiano de uma família. É a mistura das duas coisas que interessa. Eles precisam se preocupar com seus super vilões, mas também com problemas familiares complexos, e ambas as esferas muitas vezes se complementam: as questões familiares interferindo no combate aos vilões, e os atos de heróis interferindo nas questões familiares.
No primeiro filme, a complexidade da situação era maior porque a instabilidade familiar era pior, eles não entendiam direito uns aos outros e o casamento dos personagens estava em crise. Os conflitos são muito mais complexos e sutis do que meras lutas com vilões. Já neste filme, a complexidade da situação familiar é menor, não há mais um casamento ruindo e, por mais que haja conflitos, os personagens estão aos poucos caminhando para uma maior compreensão uns dos outros.
Isso não diminui o filme, e sim parece agir como a sequência lógica do primeiro, uma continuação da evolução de cada um dos personagens, que conseguem se aperfeiçoar e ainda assim continuar com a mesma essência que os caracteriza. Além disso, o modo como a vida em família e a vida “de ação” se complementam fica bem mais explícito nesse segundo momento.
Dos personagens novos não há nenhum tão icônico e interessante quanto o Síndrome. Mas é bom ver uma heroína mulher lutando contra uma vilã mulher. Todas as partes do Zezé são maravilhosas de acompanhar e ao mesmo tempo simbolizam a imprevisiblidade e aleatoriedade de todo bebê.
O senhor Incrível parece um pouco mais chato e egoísta, mas acho bem interessante como ele é construído como um personagem cheio de falhas apesar de seu heroísmo e da hipérbole que já é o seu nome (e ele já era assim no primeiro filme, só que como todas as oportunidades apresentadas colocavam ele no centro da ação, seu lado pior não aparecia). E é interessante notar o quanto a Mulher-Elástica é muito mais flexível que ele, tanto para estar no centro da ação quanto estar em sua periferia.
“Não precisamos de outros mundos, precisamos de espelhos”. Sequer conseguimos entender a nós mesmos. Sequer sabemos o que fazer com nosso próprio mundo, nossa própria mente, nossas fantasias, nossos mortos. Não é um filme de ficção científica apesar do cenário (e o cenário ainda foi uma concessão de Tarkovski, que não queria de fato um sci-fi), é um filme sobre o que há de mais íntimo e mais próprio no ser humano. É sobre o processo de luto, sobre o modo como funciona nossa memória, sobre o que vale reviver e o que é saudável deixar morrer, sobre o fato de que sequer sabemos o que fazer com nós mesmos, sobre esse desconhecimento de si e do outro que nos constitui.
Não sei. Foi o que tirei desse primeiro contato com o filme. Mas sei que é só um pedacinho do que pode ser visto nessa espécie de espelho nebuloso para nossa humanidade confusa e nossos vários tempos emaranhados.
“(Não ser feliz tudo explica.) [...] os gestos acumulados de efusão fraterna, atados (não convém lembrar agora), as fína-e-meigas palavras que ditas naquele tempo, teriam mudado a vida (não convém mudar agora), vem tudo à mesa e se espalha” (A mesa - Carlos Drummond de Andrade)
Depois de assistir Mal Viver, estava lendo uns poemas do Drummond à noite e algo pareceu dialogar. Talvez na secura, na dificuldade de comunicação, nos gestos atados, naquelas palavras que talvez todas esperassem, palavras “finas e meigas” que um dia podiam ter mudado tudo, mas que não conseguem nunca ser ditas, quase que num orgulho silencioso e transmitido como herança, de esconder até o fim o afeto.
Não sei o que dizer do filme, achei tocante e cortante. Tinha um clima sufocante na relação daquela família, uma aridez de superfície escondendo uma profundidade triste que habita cada personagem e que fica mais profunda e mais triste na medida da incomunicabilidade. Quando uma está se colocando como vulnerável, a outra permanece pétrea, fria. Há uma dificuldade em admitir os sentimentos - que depois, em outro momento, transbordam. Elas se dizem muita coisa, muitas vezes extremamente cruéis, palavras que parecem feitas para ferir do mesmo modo como elas mesmas estão feridas.
Mas ao mesmo tempo é um filme cheio de silêncios, de não-ditos, e, talvez principalmente, da dificuldade de dizer. O tempo todo ouvimos vozes - das personagens principais ou dos hóspedes do hotel - mas nunca parece haver diálogo. Não há comunicação. É como se estivessem falando todos embaixo d’água.
Mal viver não é o mesmo que viver mal (e esse filme ainda não vi). Mal viver está na ordem da escassez, é uma vida pouco vivida, a sensação de uma falta, como o oco nas palavras e na própria expressão sempre triste de Piedade. Não é a devastação, mas a pura falta. Não o incêndio, mas um afogar-se aos poucos. Não o ódio absoluto, mas o ressentimento diário.
É essa procura da alma, essa tentativa de mantê-la, que acaba sendo só uma tentativa fraca, débil, porque nunca são encarados de fato os conflitos que vão deixando cada uma infeliz. Nunca são ditas as palavras que poderiam mudar as coisas. As conversas sempre acabam indo pela tangente. Quando parece que algo de real vai ser enfrentado, há quase que uma mudança de assunto, mesmo que dê para ver que há muito sentimento por trás de cada banalidade. Não é o suficiente. Não dá para fugir para sempre dos diálogos difíceis. O que ocorre é um transbordamento, que vem na forma de violência – nas palavras e nos gestos; contra o outro e contra si mesmo.
Quando se vive nessa economia de efusões, o amor é de fato uma coisa cruel, dolorida, difícil. E uma das coisas que gosto no filme é do retrato psicológico que ele vai construindo dessas personagens, um retrato muito complexo e complicado de suas psiques e de suas relações. É como se cada cena tornasse tudo um pouquinho mais complicado do que na cena anterior. Quando achávamos que tinha entendido o que está envolvido nessas relações familiares, surge um outro elemento, uma fala, um gesto, um olhar, uma outra forma de não reciprocar, e que vai dando a dimensão do emaranhado confuso de dores que faz parte de uma família, especialmente uma que não consegue se comunicar.
O que esse filme tem de mágico é que ele parodia um determinado tipo de história ao mesmo tempo em que nos envolve e nos faz torcer para essa mesma história. Quando um filme é simplesmente uma paródia pela paródia (como muitos filmes estadunidenses que vivem saindo por aí), ele pode até ser engraçado, mas muitas vezes mesmo os poucos engraçados são muito insípidos, não geram empatia pelos personagens nem um real interesse nos acontecimentos.
Nesse caso, ele parodia aquelas histórias de romance e aventura no estilo de cavalaria, mas ele faz isso justamente ao nos transportar e nos fazer nos importar com o destino dos personagens daquela narrativa. E é interessante que mesmo tendo certeza de que haverá um final feliz para os personagens, quem vê o filme se pega torcendo por ele, se deixando encantar pela narrativa não só pelo que faz de humor - embora o humor seja um elemento importantíssimo e que faz o filme ser o que é.
Dá para entender por que virou um clássico: é essa mistura do familiar da história com o inusitado do humor, além de personagens icônicos e falas memoráveis. O pano de fundo com o avô lendo para um neto de início hesitante e depois completamente inebriado é ótimo por trazer uma moldura metalinguistica e ao mesmo tempo representar o próprio público que assiste o filme sem saber o que esperar.
É sobre se inebriar uma outra vez, mesmo por trás de todo nosso ceticismo, com a magia das histórias.
Belo e triste. Mais belo do que eu esperava e mais triste do que eu esperava.
A língua falada e o cenário de paisagens rurais de Yorkshire são mais do que uma ambientação para a história, sendo partes fundamentais de sua narração. A ave simboliza a liberdade que falta ao menino. Vendo-a voar, é como se ele visse a liberdade em si, que mesmo assim não vai embora e todas as vezes volta a posar no menino.
A relação com o pássaro é a única coisa que ele encontra de sentido em sua vida, é a única coisa que possui de seu. Mas incomoda aos outros justamente isso: ter algo de significado, um motivo pelo qual lutar. É algo que desestabiliza o mundo de regras e de burocracia dos adultos.
O personagem está perdido e não cabe nesse mundo. O que ele quer, voa. Está simbolizado naquele pássaro.
E isso torna mais triste ainda o final. Tem todo o peso de uma tragédia. A parte falha da vida do menino, o mundo de regras e cobranças que ele não consegue suprir por querer algo de uma outra ordem é aquilo que acaba por levar o pássaro a ser assassinado, aquele lado que era o que havia de sensível, e que era o que havia de motivo na vida do menino.
Por isso é tão triste, e o fato de que não sabemos o que acontece a partir dali desestabiliza mais ainda. Como fica aquele personagem perdido em um mundo que quer mais dele do que ele está disposto a dar, que quer consumir um pouco de sua alma? Será que ele consegue levar sua sensibilidade além, descobrir outras formas de liberdade?
Há um caráter de fábula, com os personagens representando mais tipos do que pessoas individuais de fato. Na forma crua como tudo acontece cria-se paradoxalmente uma atmosfera quase mágica, como se tudo estivesse envolvido pela aura do inevitável - um reflexo da visão de mundo dos próprios personagens.
A cena do reconhecimento a partir do vestido é memorável. O final também é interessante, pois mexe com a ideia de religiosidade que permeia a vida dos personagens. A própria morte da menina é impulsionada por sua virtude, em primeiro lugar por estar indo à igreja, e em segundo lugar pelo princípio de solidariedade com os homens que encontra na estrada.
O personagem chega a questionar esse deus que lhe tira a filha. Porém, logo eles voltam a uma espécie de zona de conforto, prometendo a construção de uma igreja ali. Voltar-se para a religião ainda é uma maneira de fazer sentido daquela tragédia, de acreditar que aquela morte não foi em vão, que foi deus quem por algum motivo reivindicou mais um de seus inocentes.
O milagre do final, com a fonte de água pura, é uma maneira de crer que há um significado mesmo para a pior tragédia, porque às vezes é mais fácil acreditar nisso do que se deparar com o vazio da perda para a violência.
Coloca-se em evidência a voz de Suzanne, nos cantos, para tornar mais contrastante o fato de que ela não consegue ter sua voz ouvida.
Há um clima austero e claustrofóbico. O uso do branco e a ausência de trilha sonora causam isso.
Tanto em um convento quanto noutro, ela se depara com a hipocrisia da igreja, com o autoritarismo das superioras (seja sádica ou amorosamento), a dificuldade de ter sua voz ouvida, a completa impossibilidade de decidir por si mesma.
É a escrita que a salva, a voz que consegue ter, mesmo que a partir de artimanhas e de resistência.
As atuações estão impecáveis, desde a protagonista, passando pela primeira superiora (muito assustadora em seu sorriso plácido) e a ótima Isabelle Huppert como a segunda superiora, transbordante de histeria amorosa e desejo de posse.
Morte e vida. O filme mostra como várias pessoas, em especial a Sol, lidam com esse momento de uma morte próxima, iminente. Mas também mostra como há muita vida nesse processo, no olhar curioso de Sol, naquilo que seu pai lhe ensinou, na criatividade ativa de vários dos personagens.
A festa é uma espécie de monumento erguido a muitas mãos, uma forma de demonstrar afeto, mas também fazer uma catarse dessa futura perda, que seja mais celebratória da vida do que lamentosa.
Sol e sua mãe se erguem como um tótem, e esse momento de apresentação, entre o ludismo circense e a ternura, fala sobre essa relação bonita que construíram, sobre arte, sobre amor, sobre graça e leveza.
Ao mesmo tempo, não é uma vivacidade que recai num otimismo histérico, numa tentativa de positividade. Há uma melancolia por todo o filme, um caos doméstico em que os sentimentos de todos estão em ebulição, mas ninguém tem muito tempo de falar sobre isso, enquanto constroem esse momento, que creem que seja o que têm para oferecer. Sol anda por aquele espaço tentando fazer sentido do que acontece a sua volta, desses sentimentos tão complexos e até então desconhecidos, desse futuro que se pronuncia quase em silêncio.
Não é especialmente feliz nem é devastador. É - assim como os caramujos que, séria, ela põe sobre as pinturas, e assim como as falas sinceras na festa e fora dela - vivo, com suas várias cargas.
Esse filme só demonstra como ficcionalizações da realidade que são pensadas e discutidas como tal acabam sendo muito mais verdadeiras que a suposta verdade (que é sempre uma ficção) dos documentários mais tradicionais. Acho ingenuidade pensar no formato desse documentário como um mascaramento desnecessário, um "inventar moda" diante da realidade de Olfa e suas filhas. A melhor forma de chegar perto da enorme complexidade da relação entre elas e da personalidade de cada uma é essa mistura de narração reencenando (nas palavras e na atuação) o vivido e reflexão e problematização desse vivido, que se torna possível a partir dos diálogos entre as participantes do filme, tanto aquelas que passaram pela história quanto as atrizes que buscam entendê-las. Nada disso diz respeito só ao passado. O filme é um processo em que elas não estão estáticas, moldadas num personagem delas mesmas (o que provavelmente aconteceria numa estrutura mais tradicional de documentário), mas elas se movimentam, se contradizem, se contrapõem e questionam umas às outras, reavaliam juntas, brincam com certas situações e em seguida as tratam com o peso que tiveram, ressignificam o próprio olhar para o que passou ao mesmo tempo em que, enquanto espectadores, vamos entendendo um pouco mais dessa história. A linguagem permite essa fluidez de não serem mostradas como pessoas estanques, e o passado como uma coisa única e com sentidos definidos. A escolha de não revelar tão cedo o destino das personagens funciona muito bem porque evita que o filme se reduza apenas a uma dissecação dos motivos que levaram as jovens para esse caminho. Ele ganha muito em complexidade ao não simular ser uma tentativa de resposta a uma pergunta que já se colocasse de forma inicial, e que contaminasse o olhar do público, que passasse a enxergar Ghofrane e Rahma
e não como pessoas, com todas suas dimensões, não como alguém que pudesse fazer parte da nossa familia, conviver conosco. Ter a história delas contada dessa outra forma, em que a radicalização religiosa e a entrada numa organização terrorista não está colocada desde o início de forma central, não tem nada, nada a ver com criar suspense. É para que se evite o conforto bem-resolvido e perigoso de colocar todas elas, não só Ghofrane e Rahma, como o radicalmente outro. Essa forma de contar acaba seguindo uma lógica um tanto mais próxima à vida, que deixa mais difícil colocar aquela velha distância moral que diz: "nem eu nem ninguém que conheço passaríamos por isso". Na vida, vamos agindo e percebendo como podemos as ações de pessoas a nossa volta, até que algo inesperado acontece, um choque, uma quebra violenta - e é aí que começamos a perceber que aquele acontecimento não foi isolado, inevitável e incompreensível, mas que foi se desenhando aos poucos, a partir de vários momentos que é só pela memória que vão ganhando significado. O filme, ao evitar ser forçosamente um olhar retrospectivo sobre a partida das duas irmãs. faz com que o espectador construa um pouco desse olhar retrospectivo por si mesmo, reavaliando tudo que viu antes, principalmente no que diz respeito a um dos principais temas do filme: a transmissão intergeracional, muitas vezes inconsciente, de uma herança de violência, que não é óbvia, não é simples e clara, pois geralmente vem misturada a uma herança de afeto - e a possibilidade de ganhar compreensão sobre isso e tentar quebrar essa lógica.
A Chegada
4.2 3,4K Assista Agorao tempo revolto num círculo
já houve há trinta anos o futuro dos teus filhos
e a teus passos só resta a escolha
invisível de cada dia
ou aquela
de girar no tempo em círculo
Cidade dos Sonhos
4.2 1,7K Assista Agorano hay banda! enquanto o corpo da cantora
tomba, a sua voz que não era sua segue
e o sonho lembra de ser sonho
e a canção, canção apenas
O Espelho
4.3 264 Assista Agorao fogo consome a casa
sob o xale preto, a mulher empoleirada
que, nos teus sonhos, flutua às vezes
entre objetos, selvagem
Corpo e Alma
3.6 222 Assista Agoranoite, lelekrol
na outra corça uma se reconhece
a grama se estende debaixo dos cascos
balança na árvore um guizo de sonho
tornar-se as patas: ser
noutro universo
olham com a umidade
que há nas coisas sinceras
(não voltar)
mesmo que sustentem de manhã
a testa vincada
(não sair)
o dia chega aos corpos (não)
tocam-se focinhos sobre o lago
respiram de árvore
e são dois
sãos
no bosque
O Assassinato do Sr. Diabo
3.7 2 Assista Agorasirvo-te chá
sirvo-te as chaves da casa
sirvo-te bolo
sirvo-te sopa
sirvo-te amor
lambes a sopa
moras no bolo
sirvo-te pão
sirvo-te vinho
sirvo-te afeto
sirvo-te os doces
cílios pulsando
comes a coxa
afogas no vinho
teus beiços sedentos
sirvo-te arroz
sirvo-te bife
sirvo meu corpo
rasgas os bifes
pedes por mais
sirvo-te amora
sirvo-te carne
sirvo-te, droga
sonhos perdidos
groselhas diárias
distribuídas
Afogando em Números
3.8 28Daqueles filmes em que me perco e não me acho depois. Terminei triste, sem saber bem por quê, desconfortável. A relação dos personagens com seus corpos fizeram eu me sentir estranha, em muitos momentos senti uma repugnância que não sei explicar, que diz mais sobre mim que sobre o filme. Olhavam para o corpo, seu e do outro, assim como olhavam para a vida, tão radicalmente estranhos, como se fosse tudo um jogo, com consequências, mas aquelas consequências que se esperam de um jogo e não da vida. Matar e morrer eram conceitos leves, sem peso, como perder a vida nos muitos jogos que jogam ao longo do filme.
Nada possui um significado para além do próprio ato, as regras são gratuitas, mas são sempre respeitadas. Não as regras da sociedade, ou da vida (?), mas de um jogo interno e específico, de cuja regra só podemos captar relances. O sentido de tudo parece relegado ao acaso e à brincadeira, e não há uma motivação orgânica para agir, tudo parece seguir essa regra escondida, talvez só clara na cumplicidade silenciosa das 3 mulheres. Só elas vivem, não por um motivo a mais do que o fato de que é esse o jogo que jogam.
Há aquela estrutura rígida dos contos de fadas, que talvez também tenham um mesmo princípio lúdico, e de certa forma cruel no modo como precisa seguir aquele molde, passando por cima das individualidades dos personagens. Não há uma individualidade nesse filme, não importa no fundo a subjetividade e as escolhas de cada personagem, o que importa é essa precisão matemática que é maior do que eles. Os números estão por tudo, contam a história em sua contagem obsessiva. A racionalidade e objetividade que vemos em um número, em uma contagem, se deixam perverter nessa aleatoriedade com que aparecem, nessa regra oculta para que apareçam – e talvez não sejam pervertidos, mas seja isso que eles são no fundo, o caos em sua suposta ordem, a arbitrariedade levada ao extremo.
No início, a menina pula cordas contando as estrelas, até cem. Por que até cem se são muito mais estrelas? Porque é o suficiente, ela diz. Assim como cem números são o suficiente para guiar essa história. E talvez o desconforto esteja na mistura entre o caos dos corpos e dos cenários e das ações (o afogamento) – ordenados por um jogo interno – e a ordem dos números – revelada em seu caos pela sua arbitrariedade, pela obsessão que os circunda. Tudo isso em imagens que o tempo todo remetem a pinturas (me lembram o barroco, Caravaggio, há algo meio italiano nesse filme?), exuberantes em sua decadência.
A Casa Lobo
4.1 47No meio de tudo que se destrói e reconstrói continuamente, tenso e oscilante, aqueles detalhes que a atenção captura: um rolo de papel higiênico, uma tomada na parede. A incerteza não é vagueza. O devaneio não é frouxo. Como em sonhos, há uma riqueza súbita em meio ao incerto.
Mas o filme não é sobre isso, é só por onde começo a agarrar, aquilo que me interessa mais intimamente. Tudo é sempre tateante, as imagens moventes, transitórias, nada permanece o mesmo, mesmo que esses dias isolados pudessem ser todos iguais. Um momento não se iguala ao outro, o próprio eu se constrói e se destrói a cada interação com o entorno, está esfacelado, desconjuntado. Mas às vezes se faz inteiro na relação afetiva com o que imagina, nessa vida criada para fugir ao trauma.
Essa pequena vida brotada na claustrofobia é a única possibilidade de respiração, mas não é uma solução. O trauma invade a casa, como o lobo, o passado está dentro, e resistir desgasta. A felicidade da narração do lobo é a tragédia final, porque aqui ele vence, e como não venceria considerando o contexto histórico a que alude? Não há solução para esse tipo de trauma coletivo, ou talvez a solução seja esse ato de encarar, posterior à fuga.
Me interessa o modo subjetivo e simbólico de lidar com o trauma histórico, que pode ser visto sem que se conheça o contexto, mas que, quando se conhece, tudo se torna mais potente. E as imagens são a criação de uma atmosfera sombria, mas sem sustos. É um filme que fica preso na retina, um mundo completo e ameaçador que passa a fazer parte inalienável do olhar.
Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo
3.9 502 Assista AgoraO desejo de se encontrar a partir da viagem – não esse movimento ocorrendo por acaso, mas desejado, procurado. Há quase uma obsessão. No rosto do outro, procura-se aquilo que é próprio, esse amor perdido, o que interessa é o que se conjugue com essa solidão e essa distância.
O olhar para as outras pessoas não é aproximativo, talvez por não se colocar junto, não revelar o próprio rosto, apenas o próprio olhar voltado para fora.
É triste, mesmo sendo um processo de cura e de retorno, porque não se dá pela comunhão com outras pessoas, a observação vem de um lugar de distância e solidão; o único interlocutor é aquela pessoa que está fora. Todos os contatos com as outras pessoas não são interlocuções, são dirigidos a esse interlocutor ausente.
Para além do vazio da estrada, há, ironicamente, muito pouca movência. As imagens são fotos ou beiram ao estático, cenas onde o narrador não se coloca, apenas exerce seu olhar. Os poucos momentos em que ele interage soam estranhos, parecem inquisitivos, como se ele quisesse desesperadamente arrancar dessas pessoas apenas uma confissão dos sentimentos dele próprio, pela boca de outros.
Não consigo acreditar plenamente nesse processo de retorno, talvez por ser, no fundo, muito objetivo e planejado, como o planejamento que guia sua profissão. Acho que falta entrega. A volta está prevista desde o primeiro momento: ir, para que se possa voltar, e não simplesmente ir para experimentar a ida.
A última cena é a mais bonita, com seus saltos livres, a beleza dos corpos em queda livre. E parecem simbólicos desse retorno à vida, apesar do risco que ela invariavelmente comporta – continuar depois das rupturas é dar um salto.
Mas a pergunta que me fica é: esse narrador em algum momento se coloca de fato em queda livre?
Simplesmente Feliz
3.4 254O que gostei no Happy-go-lucky, além da ótima Sally Hawkins <3, é que, ao contrário do que o título em português “simplesmente feliz” sugere, não se trata de algo simplista em nenhum momento, Não é daqueles filmes que são um elogio oco ao otimismo, que parece que tentam impelir o público àquela visão de mundo mostrando o personagem de forma idealizada e dizendo: viu, é isso que acontece quando se olha com alegria para a vida.
A personagem é imperfeita e em muitos momentos até um pouco irritante, e não torna o mundo das outras pessoas necessariamente mais feliz, mesmo que tente. Ela não é a versão idealizada de como todo mundo deveria olhar para o mundo (que, parando pra pensar, em uma frente totalmente diferente, talvez seja o problema com O pequeno príncipe), ela é simplesmente (e talvez o título em português não esteja tão mal) alguém que vive e olha para as coisas de uma determinada forma, e que assume essa forma sem medo.
Ela não tenta ser um personagem, ser uma manie pixie dream girl. Não tem aquela idealização da própria esquisitice. Ela é meio esquisita de uma forma meio desconfortável até, e ela vai em show, fica bêbada, tem vida sexual, não é como se fosse uma criança em corpo de adulta. O que eu acho mais bonito que o próprio jeito alegre da personagem é o modo como ela se assume, e não tem medo do jeito como ela construiu a vida assim como não tem medo da própria complexidade; tem uma liberdade que é mais inspiradora que o otimismo em si, e que permite até sair um pouco de si mesma e olhar para o outro e tentar entendê-lo, mesmo que em muitos momentos essa relação com o outro seja frustrante.
Acho que me inspira, no fim das contas, não o quanto ela é feliz, mas o quanto é destemida. E gosto muito dos diálogos dela com as amigas e, principalmente, com outras professoras, percebo ali pessoas de verdade conversando.
A Canção da Estrada
4.4 71 Assista AgoraCoisas que quero guardar:
Os olhos graúdos de Apu, tão curiosos em algum momento e tão melancólicos noutro.
A vivacidade da Durga, mas também a incompreensão e excessiva severidade do mundo dos adultos com ela.
A severidade triste da mãe.
Aquela cena em que ela fala dos sonhos que possuía e tenta convencer o marido a se mudar.
Os vizinhos invadindo a vida uns dos outros, opinam e criticam decisões.
As pessoas sempre julgando, e a importância que isso tem no andamento da narrativa.
A comida mostrada excessivamente justo porque tão escassa.
O marido com olhos sonhadores, mas com uma ironia no final, uma desilusão por trás dos olhos.
A cena da tempestade na casa junto à febre de Durga.
A cena em que o pai chega de viagem com os presentes.
Família de rostos cansados rumo a uma outra coisa, qualquer coisa.
A necessidade de deixar a casa ancestral e buscar algo novo, mesmo que os outros desaprovem.
Nome Próprio
3.3 294 Assista AgoraUm pouco decepcionante. O início é interessante, e leva a esperar mais da história e da personagem. Mas não tem um bom andamento. Na verdade, parece não ter andamento algum. A personagem não passa por alguma mudança significativa a não ser talvez nos minutos finais. As atitudes dela no fim do primeiro relacionamento são muito parecidas com as atitudes junto ao Daniel no final, o que faz tudo parecer meio vazio e em vão.
Preferia que o filme tivesse sido mais claramente uma jornada rumo à independência a partir da escrita. Mas ele parece que se desenvolve para muitos lados e no fim acaba indo a lugar nenhum.
Eu gosto do final, c
om ela finalmente se dedicando à escrita, falando em terceira pessoa (vendo-se à distância, que é uma maneira de se compreender) e dando a entender que será sozinha e vai se focar, possivelmente já estando em outro momento da vida escrevendo sobre sua fase pior, mas acho que o enredo não leva muito bem para isso.
O aparecimento do Daniel em especial me parece muito fora do tempo.
Aquela hora em que ela escreve nua no computador era interessante porque trazia essa simbologia de um nascimento, da escrita e de si mesma, com uma sensação de "agora vai!". Mas aí, mais sexo, mais romance, mais andância em círculos. Não funciona bem.
Algumas cenas são boas, gosto do andamento lento nas cenas de maior solidão dela, especialmente quando sozinha no apartamento do amigo, e gosto dos momentos de escrita, em que as palavras aparecem pela casa ou no computador. Mas o todo não funciona…
Creio que a ideia seja mostrar essas diversas cicatrizes que ela vai adquirindo, e acho muito possível que eu esteja querendo do filme uma coisa que ele nunca se propôs a ser mesmo. Mas acho uma pena, porque parece uma sucessão repetitiva de casos inconclusivos e sem sentido.
Monika e o Desejo
4.0 120 Assista AgoraMonika é puro ar, é uma ventania que passa na vida do protagonista e transforma tudo, nunca permitindo ser esquecida. O verão com ela é um tempo idílico, em que os dois se afastam de tudo que se assemelha ao mundo real e buscam bastar um ao outro.
Todas as decisões no filme é Monika quem toma, ela é o motor que gira as engrenagens. Na verdade é mais do que ela: os desejos dela são o motor, tudo aquilo com que sonha, o norte para o qual seu leme aponta em cada momento é o que guia mesmo as ações dos outros. Ela decide ir, ela decide voltar.
O verão é quando o personagem melhor pode aproveitar essa força motora dela. Longe de tudo, ela basta a ele: tudo transpira vida. A Monika já é o mundo. Mas ele não basta a ela, que não consegue nunca se fixar, e que parece pouco adequada para a vida prática.
Muito nela é desejo, e quase nada é ambição. Ela é puro desejo pessoal, é um sol que não tem preocupação com qualquer outra coisa que fuja à sua vontade, inclusive os sentimentos dos outros. Por isso é tão egoísta, e ao mesmo tempo tão triste, porque um desejo que não se ancora em nada, que logo pode se transformar em outra coisa, nunca permite que ela pare, tornando-a para sempre uma nômade da vida.
O verão afastados do mundo era uma ilusão, não há como se pôr numa redoma, a vida interfere. Aquele é o momento definidor, ao menos para a vida dele, já que para ela é mais possível evaporar no ar, mas
a gravidez que se segue a todo o interlúdio romântico é justamente o que torna tão pesado o momento em que se sai dessa lógica.
A vida real parece muito pouco com o verão e com os sonhos, a vida se passa no interior de cômodos e as cores são muito mais fechadas. A relação se torna insuportável. Em terra firme, não dá pé. Tudo se fecha com Monika em uma nova fuga, de um lugar onde novamente se sente presa, com um homem que recorre novamente à violência - lembrando os traumas que ela possuía relativamente ao pai.
E ele com a vida transformada, com um bebê, olhando para aquele espelho que fecha um ciclo: o espelho para onde Monika se olhou logo antes de entrar no café, o espelho que reflete a porta do café, onde tudo começou. Ali ele lembra o verão que nunca lhe abandona, que lhe deixa o fruto, e uma paixão que não vai conseguir esquecer, mesmo com a vida seguindo em frente ao espelho.
Teus Olhos Meus
4.0 577Poético, especialmente em relação aos diálogos. E, ao mesmo tempo, os diálogos conseguem ser bastante crus quando precisam ser, principalmente na interação dos personagens principais com outros personagens.
É quando os dois estão um com o outro que a poesia acontece, que as imagens ficam mais belas e os diálogos carregam mais significado. Gosto daquele diálogo deles sobre a solidão, e o fato de que é preciso uma certa força para estar sozinho no mundo.
Toda aquela cena na praia é uma delícia de assistir, e gosto da naturalidade como acaba acontecendo, mesmo que um deles resista num primeiro momento.
O final do filme dá um gosto de tragédia grega, como se tudo ali estivesse predestinado para acontecer: o reconhecimento de que falava Aristóteles.
Mas é só assim, pensando em termos de tragédia grega, que se pode ignorar a quantidade de coincidências e encontros convenientes de que o filme está repleto.
Os Incríveis 2
4.1 1,4K Assista AgoraContinua com aquilo que tornava o primeiro tão interessante, que é essa união do prosaico com o maravilhoso. Não se trata simplesmente de heróis com alguma vaga história própria tentando salvar o mundo, também não se trata simplesmente do cotidiano de uma família. É a mistura das duas coisas que interessa. Eles precisam se preocupar com seus super vilões, mas também com problemas familiares complexos, e ambas as esferas muitas vezes se complementam: as questões familiares interferindo no combate aos vilões, e os atos de heróis interferindo nas questões familiares.
No primeiro filme, a complexidade da situação era maior porque a instabilidade familiar era pior, eles não entendiam direito uns aos outros e o casamento dos personagens estava em crise. Os conflitos são muito mais complexos e sutis do que meras lutas com vilões.
Já neste filme, a complexidade da situação familiar é menor, não há mais um casamento ruindo e, por mais que haja conflitos, os personagens estão aos poucos caminhando para uma maior compreensão uns dos outros.
Isso não diminui o filme, e sim parece agir como a sequência lógica do primeiro, uma continuação da evolução de cada um dos personagens, que conseguem se aperfeiçoar e ainda assim continuar com a mesma essência que os caracteriza. Além disso, o modo como a vida em família e a vida “de ação” se complementam fica bem mais explícito nesse segundo momento.
Dos personagens novos não há nenhum tão icônico e interessante quanto o Síndrome.
Mas é bom ver uma heroína mulher lutando contra uma vilã mulher. Todas as partes do Zezé são maravilhosas de acompanhar e ao mesmo tempo simbolizam a imprevisiblidade e aleatoriedade de todo bebê.
O senhor Incrível parece um pouco mais chato e egoísta, mas acho bem interessante como ele é construído como um personagem cheio de falhas apesar de seu heroísmo e da hipérbole que já é o seu nome (e ele já era assim no primeiro filme, só que como todas as oportunidades apresentadas colocavam ele no centro da ação, seu lado pior não aparecia). E é interessante notar o quanto a Mulher-Elástica é muito mais flexível que ele, tanto para estar no centro da ação quanto estar em sua periferia.
Solaris
4.2 368 Assista Agora“Não precisamos de outros mundos, precisamos de espelhos”.
Sequer conseguimos entender a nós mesmos. Sequer sabemos o que fazer com nosso próprio mundo, nossa própria mente, nossas fantasias, nossos mortos.
Não é um filme de ficção científica apesar do cenário (e o cenário ainda foi uma concessão de Tarkovski, que não queria de fato um sci-fi), é um filme sobre o que há de mais íntimo e mais próprio no ser humano. É sobre o processo de luto, sobre o modo como funciona nossa memória, sobre o que vale reviver e o que é saudável deixar morrer, sobre o fato de que sequer sabemos o que fazer com nós mesmos, sobre esse desconhecimento de si e do outro que nos constitui.
Não sei. Foi o que tirei desse primeiro contato com o filme. Mas sei que é só um pedacinho do que pode ser visto nessa espécie de espelho nebuloso para nossa humanidade confusa e nossos vários tempos emaranhados.
Mal Viver
3.6 5“(Não ser feliz tudo explica.)
[...]
os gestos acumulados
de efusão fraterna, atados
(não convém lembrar agora),
as fína-e-meigas palavras
que ditas naquele tempo,
teriam mudado a vida
(não convém mudar agora),
vem tudo à mesa e se espalha”
(A mesa - Carlos Drummond de Andrade)
Depois de assistir Mal Viver, estava lendo uns poemas do Drummond à noite e algo pareceu dialogar. Talvez na secura, na dificuldade de comunicação, nos gestos atados, naquelas palavras que talvez todas esperassem, palavras “finas e meigas” que um dia podiam ter mudado tudo, mas que não conseguem nunca ser ditas, quase que num orgulho silencioso e transmitido como herança, de esconder até o fim o afeto.
Não sei o que dizer do filme, achei tocante e cortante. Tinha um clima sufocante na relação daquela família, uma aridez de superfície escondendo uma profundidade triste que habita cada personagem e que fica mais profunda e mais triste na medida da incomunicabilidade. Quando uma está se colocando como vulnerável, a outra permanece pétrea, fria. Há uma dificuldade em admitir os sentimentos - que depois, em outro momento, transbordam. Elas se dizem muita coisa, muitas vezes extremamente cruéis, palavras que parecem feitas para ferir do mesmo modo como elas mesmas estão feridas.
Mas ao mesmo tempo é um filme cheio de silêncios, de não-ditos, e, talvez principalmente, da dificuldade de dizer. O tempo todo ouvimos vozes - das personagens principais ou dos hóspedes do hotel - mas nunca parece haver diálogo. Não há comunicação. É como se estivessem falando todos embaixo d’água.
Mal viver não é o mesmo que viver mal (e esse filme ainda não vi). Mal viver está na ordem da escassez, é uma vida pouco vivida, a sensação de uma falta, como o oco nas palavras e na própria expressão sempre triste de Piedade. Não é a devastação, mas a pura falta. Não o incêndio, mas um afogar-se aos poucos. Não o ódio absoluto, mas o ressentimento diário.
É essa procura da alma, essa tentativa de mantê-la, que acaba sendo só uma tentativa fraca, débil, porque nunca são encarados de fato os conflitos que vão deixando cada uma infeliz. Nunca são ditas as palavras que poderiam mudar as coisas. As conversas sempre acabam indo pela tangente. Quando parece que algo de real vai ser enfrentado, há quase que uma mudança de assunto, mesmo que dê para ver que há muito sentimento por trás de cada banalidade. Não é o suficiente. Não dá para fugir para sempre dos diálogos difíceis. O que ocorre é um transbordamento, que vem na forma de violência – nas palavras e nos gestos; contra o outro e contra si mesmo.
Quando se vive nessa economia de efusões, o amor é de fato uma coisa cruel, dolorida, difícil. E uma das coisas que gosto no filme é do retrato psicológico que ele vai construindo dessas personagens, um retrato muito complexo e complicado de suas psiques e de suas relações. É como se cada cena tornasse tudo um pouquinho mais complicado do que na cena anterior. Quando achávamos que tinha entendido o que está envolvido nessas relações familiares, surge um outro elemento, uma fala, um gesto, um olhar, uma outra forma de não reciprocar, e que vai dando a dimensão do emaranhado confuso de dores que faz parte de uma família, especialmente uma que não consegue se comunicar.
A Princesa Prometida
3.7 327 Assista AgoraO que esse filme tem de mágico é que ele parodia um determinado tipo de história ao mesmo tempo em que nos envolve e nos faz torcer para essa mesma história.
Quando um filme é simplesmente uma paródia pela paródia (como muitos filmes estadunidenses que vivem saindo por aí), ele pode até ser engraçado, mas muitas vezes mesmo os poucos engraçados são muito insípidos, não geram empatia pelos personagens nem um real interesse nos acontecimentos.
Nesse caso, ele parodia aquelas histórias de romance e aventura no estilo de cavalaria, mas ele faz isso justamente ao nos transportar e nos fazer nos importar com o destino dos personagens daquela narrativa. E é interessante que mesmo tendo certeza de que haverá um final feliz para os personagens, quem vê o filme se pega torcendo por ele, se deixando encantar pela narrativa não só pelo que faz de humor - embora o humor seja um elemento importantíssimo e que faz o filme ser o que é.
Dá para entender por que virou um clássico: é essa mistura do familiar da história com o inusitado do humor, além de personagens icônicos e falas memoráveis. O pano de fundo com o avô lendo para um neto de início hesitante e depois completamente inebriado é ótimo por trazer uma moldura metalinguistica e ao mesmo tempo representar o próprio público que assiste o filme sem saber o que esperar.
É sobre se inebriar uma outra vez, mesmo por trás de todo nosso ceticismo, com a magia das histórias.
Mea Culpa
2.1 51 Assista AgoraE quando ela encontra do nada a suposta assassinada na República Dominicana??
Parece novela da Gloria Perez.
E aquela família de psicopatas tentando dar uma vibe Corra no final, mas sem sentido nenhum de nada??
Dito isso, acho divertidíssimo ver esses filmes ruins com meu pai e depois ir dormir pensando: "mas como pode isso, minha gente?"
Kes
4.2 142Belo e triste.
Mais belo do que eu esperava e mais triste do que eu esperava.
A língua falada e o cenário de paisagens rurais de Yorkshire são mais do que uma ambientação para a história, sendo partes fundamentais de sua narração.
A ave simboliza a liberdade que falta ao menino. Vendo-a voar, é como se ele visse a liberdade em si, que mesmo assim não vai embora e todas as vezes volta a posar no menino.
A relação com o pássaro é a única coisa que ele encontra de sentido em sua vida, é a única coisa que possui de seu.
Mas incomoda aos outros justamente isso: ter algo de significado, um motivo pelo qual lutar. É algo que desestabiliza o mundo de regras e de burocracia dos adultos.
O personagem está perdido e não cabe nesse mundo. O que ele quer, voa. Está simbolizado naquele pássaro.
E isso torna mais triste ainda o final. Tem todo o peso de uma tragédia.
A parte falha da vida do menino, o mundo de regras e cobranças que ele não consegue suprir por querer algo de uma outra ordem é aquilo que acaba por levar o pássaro a ser assassinado, aquele lado que era o que havia de sensível, e que era o que havia de motivo na vida do menino.
Por isso é tão triste, e o fato de que não sabemos o que acontece a partir dali desestabiliza mais ainda.
Como fica aquele personagem perdido em um mundo que quer mais dele do que ele está disposto a dar, que quer consumir um pouco de sua alma? Será que ele consegue levar sua sensibilidade além, descobrir outras formas de liberdade?
A Fonte da Donzela
4.3 219 Assista AgoraHá um caráter de fábula, com os personagens representando mais tipos do que pessoas individuais de fato. Na forma crua como tudo acontece cria-se paradoxalmente uma atmosfera quase mágica, como se tudo estivesse envolvido pela aura do inevitável - um reflexo da visão de mundo dos próprios personagens.
A cena do reconhecimento a partir do vestido é memorável. O final também é interessante, pois mexe com a ideia de religiosidade que permeia a vida dos personagens.
A própria morte da menina é impulsionada por sua virtude, em primeiro lugar por estar indo à igreja, e em segundo lugar pelo princípio de solidariedade com os homens que encontra na estrada.
O personagem chega a questionar esse deus que lhe tira a filha. Porém, logo eles voltam a uma espécie de zona de conforto, prometendo a construção de uma igreja ali. Voltar-se para a religião ainda é uma maneira de fazer sentido daquela tragédia, de acreditar que aquela morte não foi em vão, que foi deus quem por algum motivo reivindicou mais um de seus inocentes.
O milagre do final, com a fonte de água pura, é uma maneira de crer que há um significado mesmo para a pior tragédia, porque às vezes é mais fácil acreditar nisso do que se deparar com o vazio da perda para a violência.
A Religiosa
3.6 69Coloca-se em evidência a voz de Suzanne, nos cantos, para tornar mais contrastante o fato de que ela não consegue ter sua voz ouvida.
Há um clima austero e claustrofóbico. O uso do branco e a ausência de trilha sonora causam isso.
Tanto em um convento quanto noutro, ela se depara com a hipocrisia da igreja, com o autoritarismo das superioras (seja sádica ou amorosamento), a dificuldade de ter sua voz ouvida, a completa impossibilidade de decidir por si mesma.
É a escrita que a salva, a voz que consegue ter, mesmo que a partir de artimanhas e de resistência.
As atuações estão impecáveis, desde a protagonista, passando pela primeira superiora (muito assustadora em seu sorriso plácido) e a ótima Isabelle Huppert como a segunda superiora, transbordante de histeria amorosa e desejo de posse.
Tótem
3.2 8 Assista AgoraMorte e vida. O filme mostra como várias pessoas, em especial a Sol, lidam com esse momento de uma morte próxima, iminente. Mas também mostra como há muita vida nesse processo, no olhar curioso de Sol, naquilo que seu pai lhe ensinou, na criatividade ativa de vários dos personagens.
A festa é uma espécie de monumento erguido a muitas mãos, uma forma de demonstrar afeto, mas também fazer uma catarse dessa futura perda, que seja mais celebratória da vida do que lamentosa.
Sol e sua mãe se erguem como um tótem, e esse momento de apresentação, entre o ludismo circense e a ternura, fala sobre essa relação bonita que construíram, sobre arte, sobre amor, sobre graça e leveza.
Ao mesmo tempo, não é uma vivacidade que recai num otimismo histérico, numa tentativa de positividade. Há uma melancolia por todo o filme, um caos doméstico em que os sentimentos de todos estão em ebulição, mas ninguém tem muito tempo de falar sobre isso, enquanto constroem esse momento, que creem que seja o que têm para oferecer.
Sol anda por aquele espaço tentando fazer sentido do que acontece a sua volta, desses sentimentos tão complexos e até então desconhecidos, desse futuro que se pronuncia quase em silêncio.
Não é especialmente feliz nem é devastador. É - assim como os caramujos que, séria, ela põe sobre as pinturas, e assim como as falas sinceras na festa e fora dela - vivo, com suas várias cargas.
As 4 Filhas de Olfa
3.7 33 Assista AgoraEsse filme só demonstra como ficcionalizações da realidade que são pensadas e discutidas como tal acabam sendo muito mais verdadeiras que a suposta verdade (que é sempre uma ficção) dos documentários mais tradicionais. Acho ingenuidade pensar no formato desse documentário como um mascaramento desnecessário, um "inventar moda" diante da realidade de Olfa e suas filhas.
A melhor forma de chegar perto da enorme complexidade da relação entre elas e da personalidade de cada uma é essa mistura de narração reencenando (nas palavras e na atuação) o vivido e reflexão e problematização desse vivido, que se torna possível a partir dos diálogos entre as participantes do filme, tanto aquelas que passaram pela história quanto as atrizes que buscam entendê-las.
Nada disso diz respeito só ao passado. O filme é um processo em que elas não estão estáticas, moldadas num personagem delas mesmas (o que provavelmente aconteceria numa estrutura mais tradicional de documentário), mas elas se movimentam, se contradizem, se contrapõem e questionam umas às outras, reavaliam juntas, brincam com certas situações e em seguida as tratam com o peso que tiveram, ressignificam o próprio olhar para o que passou ao mesmo tempo em que, enquanto espectadores, vamos entendendo um pouco mais dessa história. A linguagem permite essa fluidez de não serem mostradas como pessoas estanques, e o passado como uma coisa única e com sentidos definidos.
A escolha de não revelar tão cedo o destino das personagens funciona muito bem porque evita que o filme se reduza apenas a uma dissecação dos motivos que levaram as jovens para esse caminho. Ele ganha muito em complexidade ao não simular ser uma tentativa de resposta a uma pergunta que já se colocasse de forma inicial, e que contaminasse o olhar do público, que passasse a enxergar Ghofrane e Rahma
somente como terroristas
Essa forma de contar acaba seguindo uma lógica um tanto mais próxima à vida, que deixa mais difícil colocar aquela velha distância moral que diz: "nem eu nem ninguém que conheço passaríamos por isso". Na vida, vamos agindo e percebendo como podemos as ações de pessoas a nossa volta, até que algo inesperado acontece, um choque, uma quebra violenta - e é aí que começamos a perceber que aquele acontecimento não foi isolado, inevitável e incompreensível, mas que foi se desenhando aos poucos, a partir de vários momentos que é só pela memória que vão ganhando significado.
O filme, ao evitar ser forçosamente um olhar retrospectivo sobre a partida das duas irmãs. faz com que o espectador construa um pouco desse olhar retrospectivo por si mesmo, reavaliando tudo que viu antes, principalmente no que diz respeito a um dos principais temas do filme: a transmissão intergeracional, muitas vezes inconsciente, de uma herança de violência, que não é óbvia, não é simples e clara, pois geralmente vem misturada a uma herança de afeto - e a possibilidade de ganhar compreensão sobre isso e tentar quebrar essa lógica.