Onde ‘O Criador’ fez a luz estourar na lente, um criador fez sua câmera ser ação incandescente:
“Esta violência revela uma grande necessidade de mudança social, política e histórica. Portanto, tenho que agir antes de pensar. O meu cinema é antes de tudo uma obra de “agitação”. [Glauber Rocha]
São poucas pessoas, entre aquelas que realmente sentem o cinema correr em travelling nos trilhos das suas veias, as que conseguem manter-se alheias à poderosa expressão cinematográfica que ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ é e seguirá sendo.
Todos estes renderam-se: Fritz Lang ("É uma das mais fortes manifestações da arte cinematográfica que já vi"), Buñuel ("É a coisa mais bela que vi nos últimos dez anos, cheia de uma poesia selvagem"), Renoir, Bertolucci, Pasolini, Bong Joon-ho ("filme que jamais saiu de minha cabeça. É impressionante, ainda hoje fico de boca aberta ao rever aquela maravilha"). Impactando desde aquele que foi o grande vulto do Expressionismo alemão nos anos 20, até este sul-coreano de linguagem Pop, frisson entre os cinéfilos em 2020, Glauber Rocha (com precoces 24 anos de idade) intuiu, em 1964, que havia ficado chato ser moderno e decidiu ser eterno.
Mesmo porque, mais do que dar um pinote e desmontar do lombo do velho cinema que o carregou até aquele então, o cineasta fez de sua arte desgovernada um vento bravo desembestando crinas.
Deus disse (sobre o mundo que recém criou) “haja luz”, Rocha disse (sobre a câmera em que, de novo e de novo, recriou o mundo) “haja ação”:
Para nos apontar o horror contido naquele pacto selado entre a igreja e o coronelismo — em nome duma futura chacina, a que vai pôr fim aos beatos em Monte Santo — um dolly in, antecedido por um corte abrupto, se lança na direção do homem que será seu executor. E é este movimento que confere magnitude simbólica à arma examinada pelo pistoleiro 'Antônio das Mortes', sob uma sombra pesando em seu semblante, ele se familiariza com ela apontando-a e fazendo mira em direção ao crucifixo na parede.
Mais tarde, um outro dolly avança até sustar em close num destes beatos: 'Manuel'; seu rosto perfilado encontra-se encoberto por trevas como se trouxesse uma máscara posta sobre ele. De novo, a câmera nos carrega para dentro do turbilhão que a cena contém — dessa vez, para afundarmos na dúvida do beato horrorizado diante da missão de sacrificar um bebê para purificar sua mulher (ritual que 'Sebastião' propôs e 'Manuel' topou para selar sua fé no messianismo dele).
Uma pan vertical escala a montanha física que é 'Antonio', até finalmente alcançar a topografia do rosto do matador de cangaceiros e, por ter partido da horizontalidade do cano de sua arma, faz dela um apêndice dele. Assim também acontece, em plano detalhe, com a pan horizontal que desliza até o braço armado do cangaceiro 'Corisco' e faz parecer que o fuzil, por ele ostentado, é uma extensão sua; como se o seu corpo fosse, em si, um artefato de guerra.
É também através de um plano de detalhes que uma pan percorre a perna pendente de 'Dadá' — um bordado, visto em sua meia, faz-se súbito sinal de feminilidade — e eis que este plano vai se abrindo e flagra-a ferida por um tiro sendo arrastada pelo marido, 'Capitão Corisco'; assim foi com a sua própria trajetória de vida, levada à reboque pelo risco da guerra por ele travada. E bem antes deste, há um outro idêntico: o plano que detalha a linha do barbante arrastando-se para engrenar o moedor de mandioca, até que a câmera sobe nos fazendo enxergar o esforço contido no balé braçal produzido por 'Rosa' (quem, para obter a farinha, gira a roda da engenhoca).
Essas duas cenas em contextos aparentemente distintos, uma alocada no final e a outra no início do filme, se complementam ao versar sobre a sina da mulher do agreste: não viver, apenas aguentar-se, em meio aos vendavais constantes naquela que é uma natureza masculina.
E, claro, há ainda travellings. O auge enérgico! Aquele lateral, que nos introduz ao cenário do cangaço, desce reto toda vida e põe em ação os cactos fincados no chão do sertão (até eles se moviam para Glauber!). Ou o mais consagrado de todos eles, em torno do beijo entre 'Rosa' e 'Corisco': correndo sobre o trilho armado no solo irregular de Cocorobó, este travelling circular que, justamente por trepidar no cenário acidentado, consegue nos transmitir a exata sensação de atrito da barba dele contra a pele dela — se amando como dois animais, em big close, quase rompem o limite da tela ou do "destinozinho de chão".
E quando não é esta câmera em rotação fazendo os corpos deslocarem-se por sua causa, é a própria rotação dos corpos diante dela: assim o giro de um beato, zonzo, anuncia sua extinção na chacina em Monte Santo; ou os rodopios de 'Corisco' — também em vias de ser extinto — fazem dele fogos de artifício até o apagar da sua velha chama revolucionária.
Todas essas são imagens inesquecíveis no relicário de um cineasta, lírico, que amou reger movimentos exuberantes — inventando, com a sua câmera, a ação na imobilidade social.
Este seu olhar, quando encontra o nosso, faz até mesmo a imagem estatelada na tela ser uma promessa de vida rebentando nas palavras do cangaceiro (seu rosto em close — bela, áspera paisagem — ocupa toda a nossa vista): “Homem nesta terra só tem validade quando pega nas armas para mudar o destino”. Glauber fez do seu cinema justamente a arma potente que ele soube, como ninguém, manusear para mudar a nossa sina Terceiro-Mundista.
A terra em trânsito. De como Glauber era o “astronauta da saudade”, capaz de atravessar a atmosfera inevitável dos fatos e gravitar num vazio cheio de si
"Tudo é inacabado e aspira ao vazio da rua em que nas- cestes: sibilino, arbóreo, transparente e lúcido sopro na colina". (Rodrigo de Haro)
Num cenário não casualmente em branca nuvens que, pelo uso da grande profundidade de campo, nos causam a impressão de estarem se desmilinguindo na linha da areia igualmente alva, o poeta 'Paulo Martins' morre sem sangue aparente e de rifle em riste — a maior parte do tempo, ele o sustenta pro alto; como, afinal, é a sina do artista: manter-se vertical diante da realidade horizontal.
Vemos o poeta num plano fixo e, pela distância focal, ele faz-se diminuído pelo excesso de cenário a compor o plano ao seu redor.
Tudo, nesta composição cinematográfica, traduz uma atmosfera de expectativa inclusive a melodia que, embora ameace um arremesso ao subir o tom, não se ilumina e expressa suspensão. A música mistura-se ao som de rajadas de tiros sobrepostos a estrepitosas sirenes e estes ruídos, interferências, quase a tornam inaudível. De modo que a própria melodia parece travar uma batalha entre o lirismo interior e a fatalidade exterior — como a nos lembrar que, naquele momento, a janela para a arte foi arrombada pela realidade e a beleza desvirginada por ela.
Era 1967, três anos após o golpe militar implantado e a pleno vigor, o avesso do ideal de uma revolução acalentada que não vingou — o próprio sonho, de toda uma classe média intelectualizada, ele mesmo passou em brancas nuvens. A paisagem esvaziada é a circunstância e, nela, o intelectual parece apequenado.
Mesmo expulso do enquadramento-momento, 'Paulo' ainda se desloca; ele é um lento caracol sob a concha de seu ideal, a prolongar sua linha existencial. Escanteado, à direita no quadro, forceja por alcançar o centro do palco imaginário. Por outro lado, quando o alcança, segue agonizando; mas, entre a impotência e a contorção diante dela, não largou jamais o gatilho de sua arma simbólica (sua voz ativa).
A morte filosófica e a persistência diante disso, a utopia e a derrota de um projeto de país — os paradoxos que ditaram aquele tempo, aqui, são como camadas de tinta compondo a natureza de um morto-vivo. É a alegoria definitiva sobre o espírito animal de um intelectual e de como era o zeitgeist naquele momento pós-golpe militar.
'Paulo Martins' é o corpo de um baile pela resistência armada; agarrado ao fuzil, o objeto fruto do desejo abortado, agoniza sua coreografia letárgica frente à ideia de não tê-la consumado.
Aliás — com várias silhuetas de mãos dadas, lideradas por aquela armada de foice — Bergman compôs, sob a fotografia de um céu cor de chumbo, aquela sua tal coreografia da morte em 'Sétimo Selo'; Rocha no entanto reduziu a um homem só com um fuzil, sob um céu branco saturado, o balé em que sepulta os ideais marxistas nos 'Anos de Chumbo'.
Este poeta — que idealizou culpado — se um dia repudiou a covardia do recuo de 'Vieira', ante a possibilidade de uma guerrilha, também não atirou no fascista ‘Díaz’. A verdade é que sua vocação para subjetividade não suportaria o fardo (ou a farda) da violência literal. A morte ele a toma como antídoto contra a paralisia política (dele e dos outros); sai da vida batendo a porta, com desobediente determinação, como um suicida o faz.
Este poeta (que se oferece para um auto sacrifício) é o próprio criador da 'Terra em Transe' — ousando pensar a controversa realidade, extravasando suas mais profundas angústias, o cineasta serviu-se em bandeja de prática autocrítica. Seu cinema foi exatamente a maneira que encontrou de atirar “nonada”.
A ‘inútil paisagem’ (“Mas pra quê?/ Pra que tanto céu?”), vista neste último longo plano sequência, ainda se manterá até quase nos perder da sua vista. E, antes que os créditos tomem conta da tela, não há um desfecho para o protagonista sobrando nela — 'Paulo' não tomba e nem tampouco se reergue:
Glauber empurra o clima de tensão, da realidade, para fora da diegese de seu filme. Em pleno voo sobre os destroços de um país sonhado, eis que ele ejeta os espectadores no abismo dos fatos. Os seus contemporâneos que lutassem; nós, os herdeiros, que lidemos com o golpe que 'Terra em Transe' ainda nos fulmina!
Mais de meio século depois, porque nos decifrou ainda nos devora. Mas de repente, não mais que de repente, um só fragmento deste seu delírio barroco é capaz de abarcar toda a experimentação cinematográfica. E é este aqui descrito: a derradeira cena numa montagem elíptica; sem diálogos, sem acessórios cenográficos. O vazio cheio de si. Darcy Ribeiro, em 1981, discursando no enterro desta Rocha que voou, lhe prometeu: “vai ser, há de ser, Glauber!”.
Michelangelo Antonioni: o arquiteto do vazio nos espaços interiores Em 'La Notte', seu filme de 1961, o cineasta italiano desvenda o interior de personagens tristes por meio da euforia exterior no concreto que sobe em retas imparáveis
"É a dor da Força desaproveitada, – O cantochão dos dínamos profundos. Que, podendo mover milhões de mundos, Jazem ainda na estática do Nada!" (Augusto dos Anjos)
'La Notte', de Michelangelo Antonioni, é o seu filme auge na chamada: Trilogia da Incomunicabilidade (ou Trilogia da Alienação). O segundo integrante, precisamente um elo de ligação entre 'L'Avventura' (1960) e 'L'Eclisse' (1962), forma o tríptico de um tipo de cinema existencialista até a medula – refundando as possibilidades do olhar de quem filma, resultando no que Pier Paolo Pasolini denominou: cinema-poesia.
Um tipo de cinematografia que quebra o princípio número um da filmagem: a presença da câmera jamais deverá ser sentida pelo espectador. Em Antonioni, ao contrário, a câmera assume a função de escritor com eu-lírico ativo e é, pela caligrafia dela, que o cineasta descreve cenários inanimados que, sob sua ótica, se tornam sugestivos e, por sua vez, estes cenários (e as coisas que os compõem) convertem-se em espelhos das emoções trancafiadas no interior de personagens monossilábicos.
O filme é aberto por uma longa ‘pan vertical’ descrevendo, externamente, a descida de um elevador – e é mesmo interminável este 'tilt' enquanto os créditos do filme transcorrem na tela. Na trilha sonora, o ruído mecânico se mistura a uma melodia atonal. Assim, logo de cara, o diretor nos lança ao sabor de sensações que atravessam todo o seu filme e que atravessam as próprias cidades a se reinventar sob o signo do progresso – um progresso ilustrado por estruturas arquitetônicas que desdenham, em debate vertical, o limite dado pelo céu.
Deste modo, a própria subida do elevador carrega consigo pontos que baseiam a crise existencial do homem moderno: o imediatismo contido nos típicos atos maquinais X a imensidão de tempo perdido pela vida (que deveria ser tanta, lá fora); a angústia que coloca o homem moderno entre a imobilidade e o dinamismo, a mecanização e a autonomia.
Mas o elevador sobe, indiferente à carga humana que carrega e saberemos, em breve, o próprio casal protagonista entrará num elevador que pertence a uma clínica:
'Giovanni Pontano' (Marcello Mastroianni) e 'Lidia' (Jeanne Moreau), marido e mulher, estão indo visitar um amigo querido, paciente terminal: 'Tommaso Garani' (Bernhard Wicki). O mais intrigante neste encontro é o fato de, no amigo, fagulhar uma ânsia de vida que, nota-se, inexiste no casal. Há pouco, antes deles entrarem no quarto, o moribundo suava e havia uma espécie de animalidade a guinchar e se debater ferozmente em seu corpo em extinção; em suas pupilas, duas esferas lúcidas, vê-se a morte chispar e ser como que contida por uma cúpula.
A própria impotência, diante da doença, é quem escava em 'Tommaso' os vestígios de resistência — quer seja no corpo encharcado, a receber mais uma dose de morfina, no assombro dos halos nos olhos ou, quem sabe, no artífice borbulhante do champanhe que beberica em sua cama. Mesmo ao contrário, pelo viés da morte, a vida late no doente. Em 'Lidia' e 'Giovanni' é que ela parece ter atracado e eles percorrem pela mesma rota desambicionada.
Michelangelo filma estranhos espantalhos da civilização: tudo em seus personagens ou, por causa deles, parece enviar uma mensagem de afugentamento ao menor sinal de aproximação do outro. Isto fica perceptível, por exemplo, no episódio da paciente ninfomaníaca que, nesta mesma visita à clínica, agarrou Giovani para, ao fim, à proximidade do sexo se projetando sobre ele, a paciente ser contida pela enfermeira que entrou pela porta abruptamente; 'Giovanni' foge – sai ileso da hipótese de prazer; esta foi a primeira vez, no entanto, não será a última em que isso lhe ocorrerá durante o filme.
Defrontados, sentados à mesa, o casal de protagonistas é que não pode fugir um do outro. Não. Ainda assim, desgarram-se nas entrelinhas. É noite e a noite sugere expectativas – no mínimo, a de amanhecer. Assim, antes de irem a uma festa da elite, a qual foram convidados, buscam descontração num show performático em uma casa charmosa. À mesa, envoltos pela seda de uma música deslizante, eles assistem um casal negro se contorcer em seus corpos atléticos:
Mantendo uma espécie de DR muda, 'Lidia' se alivia através do toque em objetos simbólicos (na clutch que compõe seu look, posta sobre a mesa, ela encaixa o dedo na gota do adereço metálico no fecho e trisca, experimentando o botão do punho da manga, na irrepreensível camisa do marido). Em ambos os contatos, ínfimos, é confessada a sua necessidade de se sentir reinserida e correspondida.
Mas, longe de correspondê-la, é nos gestos de sua mulher, ambíguos e inacessíveis, que se manifesta diante de 'Giovanni' a dessintonia entre ambos. E enquanto isso acontece no microcosmo dos dois, o número artístico do casal negro propõe uma interação oposta: excitante e sincrônica — excitação e sincronia é tudo que está extinto na desgastada relação matrimonial.
Em plena ruína, se eles a sentem é menos um no outro do que nos espaços do núcleo urbano em que vivem; nele, tudo parece feito para soterrar o homem em si mesmo:
Aquela ferrugem crocante, que carcome o portão, onde provavelmente foi uma fábrica, 'Lídia' a descasca irresistivelmente. Não consegue, no entanto, eficaz decupagem nas crostas acumulando-se sobre seus próprios projetos de vida. O que foi um relógio de ponto está pifado no chão, os ponteiros perderam-se no tempo, seu visor nos aponta para um passado de força investida com rigor; mas, agora, só resta a imobilidade-hora diante da energia que não poderá ser outra vez empregada.
'Lidia' deambula, peregrina; a cidade lhe convida para coisa nenhuma. Mas ela se move, mesmo assim, como um dínamo que jaz na estática do nada. Abaixo da sacada do prédio, em contra-plongée, a vemos encostada num poste; uma estrutura parece apoiá-la e a outra acossá-la – assim vive, abrigada e limitada pela sombra do intelecto do marido (o renomado escritor em crise criativa).
Quando ela tarda numa destas caminhadas, 'Giovanni', depois de um breve cochilo, sente sua ausência no apartamento confortável em que vivem. Assim, naquele assombro do sono interrompido, atende ao ímpeto de ir buscar uma explicação com a vizinha; entre eles, uma desagradável grade delimita o breve diálogo travado entre ambos.
Se o escritor não consegue lê-la em sua presença, se sua mulher lhe parece um enredo indecifrável, ele também não suporta a ideia de fechar o livro. E estar assim sem ela, naquela casa silenciosa, pôs nele o súbito assombro do fim; prefere-o lento, adiado.
Mas Antonioni, o pai do cinema moderno, não filmou apenas a fissura no teto de uma relação a dois, afinal, as grades separatistas estão lá entre os vizinhos. Eis que nós assistimos ao desmonte das conexões sociais; o tédio ao descobrir o próximo.
Justamente ele, o tédio, é quem estende o tempo de vida do casal terminal. O homem desafia o espaço com a imensidão de projetos concretados para, depois, assistir suas projeções pessoais se encolhendo sob o abrigo deles.
A festa esfriou, o povo sumiu, a noite passou. Amanhece e eles precisam ir. 'Lidia' lê para 'Giovanni' uma carta que ele lhe escreveu, talvez, no começo do relacionamento. Ele se assombra, algo o agulha como uma ameaça — deduz um amante, novo amor? Ela o lembra: é ele mesmo o autor.
A adiada onda do fim se alteia sobre os dois, mas 'Giovanni' se lança sobre sua mulher e a sufoca num beijo, seus braços são uma tentativa tentacular; com o maciço de seu corpo, ele a comprime impedindo que ela lhe escape. É de sufoco exatamente o que isto se trata e, até por isso, poderíamos chamar o gesto de: abraço do afogado. Um arrasta o outro para o vácuo da morte por dentro. Mas como viver no vazio da cidade, sem alguém para preenchê-lo? Tudo os desune e, no entanto, nada os separa.
‘Bye Bye Brasil’: tem saudade de um futuro, que nunca chegou de fato; saudade do Brasil
Progresso e miséria, arte e tragédia social — tecnologia e improviso, Fellini e Cinema Novo — convivem em desarmonia iluminante numa mesma tela-país
“Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado, (…) Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil. Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?” (C. Drummond)
Conta-se que Federico Fellini teria deixado, junto à câmera em que filmava 'Otto e Mezzo', o seguinte recado endereçado a si mesmo: “Lembrete: este filme é uma comédia”. Penso quantas vezes Cacá Diegues teve de lembrar a si próprio, ora viajando junto ao seu elenco por rincões remotos dessa terra brasilis, estradão afora, que ‘Bye Bye Brasil’ também era uma comédia — dessas que sabem mimetizar o drama na máscara do riso.
E o cineasta já se apropria desta dualidade tragicômica desde o título americanizado, que debocha e impõe uma despedida da ingenuidade duma certa identidade nacionalista; enquanto também nos acena e faz lembrar que vivemos para sempre, sempre por um fio, tentando entender que nação somos de fato e o que pode e deveria ser nosso — entre o partir e ficar, entre o Norte e o Sul: sobrevivendo.
Ser nômades em sua própria casa, essa é a eterna marca de um povo colonizado; um povo que foi expulso de sua natureza. Daí convivermos, “à merencória luz da lua”, com a sensação de saudade dum futuro (que insiste em não chegar nunca) olhando para a paisagem de um passado que não se resolve.
De um lado um mundaréu de realidade (Cinemanovista) a perder de vista, do outro: assumir o piloto deste que é o filme de espírito mais felliniano que Cacá já dirigiu. Voando, além do limite improvável, o cineasta fez um trabalho duplamente custoso — tanto financeiramente, quanto intelectualmente já que, à época, sofreu com as acusações de seus pares (das quais se defendeu cunhando a expressão: ‘patrulha ideológica’).
Ao fim e ao cabo (de guerra), sagrou aqui seu doce rompimento com os sisudos mandamentos do cinema politizado (Digamos melhor: um corte na linha longitudinal daquele dito cinema de teor mais obviamente panfletário, já que aqui jamais abandona sua consciência social).
‘Road movie’, sim, pero antes e sempre uma trupe mambembe percorrendo as funduras de um Brasil esquecido pelo chamado progresso (para a felicidade dos artistas dessa trupe, indo parar em recantos até literalmente ‘desantenados’).
Cacá e seus personagens circenses, seus ícones na mitologia afetiva de um povo ‘Neo-Realista’ por demais, ‘navegam’ um país em estado de redescobrimento:
‘A moça do sonho’ (‘Salomé’), que arrebata “o chão no tablado solto no sem-fim”, tem de se prostituir; o mágico (‘Lorde Cigano’) não pode evitar a realidade, que urge nele o dom de iludir; ‘O Rei dos Músculos’ (‘Andorinha’) é um ‘Zampanò’ tupi e conhece bem os seus limites ao ter ‘a força’ diante dum cenário abatedor. O sanfoneiro sertanejo (‘Ciço’), incorporado ao grupo, sente de perto a miséria-retirante fungando no seu cangote e quer voar para além dos destroços da ‘Asa Branca’.
Todos eles, no entanto, apenas aterrissam de uma caravela-alucinação; prontos para inventar uma vida, diariamente nova, à custa de sobreviver.
Pela estrada afora, avanços tecnológicos chegam (à passos de formiga). Nas cidades aportadas: um povo é arremessado para voos sociais através do trapézio de um subcapitalismo que os devolve, sempre, de volta ao insignificante lugar de onde partiram. A miséria conduz sua caravana de impotência pelos mesmos cenários ermos.
E a própria miséria conduziu Diegues a desafiar o projeto Cinema Novista; como um 'Ícaro' inventando asas para voar, além documental. A bela cena em que o ‘Lorde Cigano’ (José Wilker) faz nevar no sertão, ela em especial, é Fellini na veia. Mais visualmente, aquele dos truques cinematográficos — em que a ilusão é propositalmente mantida aparente, até denunciada, onde só somos parte do pacto justamente porque nos permitimos ser iludidos — o de ‘Intervista’ ou aquele da cena do navio rememorado (no mar plastificado, propositalmente cenográfico) de ‘Amarcord’.
*(No entanto, uma diferença se desgarra entre as semelhanças: o que para Fellini era apenas metalinguagem, para Diegues é nosso também dom de improvisar o milagre do fascínio cinematográfico sobre a escassez de recursos tecnológicos).
Mais familiarmente, o Fellini de ‘La Strada’; aquele nos enredando com uma mesma miséria famélica, que se fantasia de artista mambembe — ‘Gelsomina’, naquela Itália destroçada do pós-guerra, foi vendida a ‘Zampanò’ pelo trocado suficiente para alimentar brevemente o restante da família dela. Cruzamos “o olhar mendigo/ da poesia” nos olhos de um e de outro cineasta.
Ou mesmo (menos obviamente), e mais particularmente, o de ‘Ginger e Fred’: onde Cacá e Federico carregam uma visão em comum, fatalmente nostálgica, diante do que a TV vinha fazendo ao desinflamar a chama do Cinema — na ótica do diretor italiano — e aí no filme do brasileiro a chama da arte mambembe nas cidadezinhas interioranas.
Em ambos os contextos culturais, no Brasil ou na Itália, a telinha deslumbrando os telespectadores com seu apelo ao entretenimento fácil e os dois cineastas fazendo filmes para não deixar a mágica da telona morrer.
Por outro lado, não falo de uma simples imitação. Diegues absolve aquele olhar lúdico de Fellini, mas o transpõe para a nossa árida paisagem brasileira.
A cena citada tem, por exemplo, uma ironia tragicômica (que sendo toda nossa, creio, até o ‘Guido’, de ‘8 e 1/2’, endossaria): a magia da arte pode não mudar diretamente nossa realidade ('fartura ou progresso', como sugere o prefeito espectador de 'Lorde Cigano'), sendo mais luz do que a ação propriamente dita. Porém, justamente pelo superpoder de voar acima dos fatos, pode nos ensinar a querer mais que os limites que nos são impostos. Nesse sentido: fazer nevar num país tropical, de ingênuo truque de um malandro mandrake, torna-se também um ato político de transpor o Brasil tal como é.
Como diria Glauber Rocha, no seu manifesto ‘Eztetyka do Sonho’, “arte revolucionária deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não suporte mais viver nesta realidade absurda”.
‘Bye Bye Brasil’ foi lançado no primeiro ano da década que marcaria a reabertura política (quando os generais nos devolveram, não o Brasil entregue de bandeja, mas num cinzeiro, um país feito em guimba tragado e esgotado). Nasce alguns anos após ‘Eztetyka do Sonho’, quando Glauber já havia incorporado aos personagens miseráveis, aqueles do cru Realismo que deu a tônica da maioria dos filmes da primeira fase do Cinema Novo, o justo direito ao transe — e este funcionando como trânsito, ponte legítima entre a tomada de consciência e o jorro libertador de nosso imaginário; um imaginário carnavalesco que o próprio Rocha traduziu em imagens que se fixaram para sempre no nosso subconsciente.
Inventar sob o peso da realidade justamente para suportar carregá-la adiante. A imaginação fértil dá substância a minguada carne do ser brasileiro.
E por falar em dar substância: Zé Wilker… Um imã cênico, soube reter para si nossa energia vital confinada. Nos hipnotizando com seu vozeirão que caiu como uma luva nesse gitano de araque, malandro de cartola, a encarnação do criativo instinto de sobrevivência que é (ainda hoje) a marca registrada do brasileiro médio.
Diegues faz de seu filme um sonho, espalhafatoso, balançando no para-brisa do veículo rústico reinventado pela 'Caravana Rolidei' (ou melhor, o título já retificado: 'RolideY', com ipsilone no final — "porra, como a gente era ignorante").
Quer seja no amostrado neon hi-tech do novo caminhão, ao som de 'Aquarela do Brasil' em inglês, ou no tímido Sol poente que o 'Lorde' mantém aceso ao comando de sua frase cabalística em portunhol, 'Bye Bye Brasil' diz "haja luz" sobre este país ofuscado pelo progresso e a improvisa no desencapado fiozinho de esperança que conecta nosso povo.
Longo Caminho da morte: o obituário fetichista de Júlio Calasso; as pulsões, mórbidas e eróticas, em seu Cinema
A decadência de uma tradicional família rural, o falecimento de seu último herdeiro e a morte como estímulo criador:
“Bem conscientes do nosso ar lúgubre Tão contrastado pelo sentimento de felicidade (…) Que nos penetrava Como a espada de fogo que apunhalava as santas [extáticas”. (Manuel Bandeira)
Por duas vezes, pelo menos, a morte foi objeto de estudo de personagem ou estímulo revolucionário nas telas do Cinema Novo: em ‘A Falecida’, Leon Hirszman — o mais metódico dos Cinemanovistas — desidrata as tintas histéricas de ‘Zulmira’, a protagonista da peça de Nelson Rodrigues, obcecada pelo seu próprio funeral, ao fazê-la moradora dum subúrbio cinza e sem horizonte. O cenário desolador passa, então, a ser um fator na equação dessa morta-viva.
Em 'Terra e Transe', de Glauber Rocha, sob a regência do mais Dionisíaco dos diretores brasileiros, a morte é um ato de insubordinação; era subverter a realidade política — paralisante, tal como era. Aliás, o filme tem o ritmo do delírio de seu protagonista, o poeta 'Paulo Martins', que agoniza em vida ao não consumar a sua vocação (em essência) revolucionária.
Júlio Calasso, um legítimo filiado à corrente do Cinema Underground/ Marginal, é filho ainda que bastardo da geração Cinema Novo (Glauber pariu o Underground ao filmar, em 1968, seu curta 'Câncer'; embora rejeitasse a prole, chamando-os — debochadamente — de "udigrundi"). Assumidos ou não, aos herdeiros restou a difícil missão, ainda mais suicida que a de 'Corisco' "desarrumando o arrumado", de revolucionar o já revolucionado.
E se é fato que na linguagem ‘Marginal’ não cabe falar em missão dada, afinal, sua única base é o transbordamento do recipiente que limita; é também um fato que a liberdade excessiva pode significar um sufocamento por intoxicação em si mesmo. Mas, felizmente, não é o caso aqui.
A variedade e a personalidade da caligrafia visual de Calasso, a montagem irreverente, os planos e movimentos de câmera… tudo isso rouba o ar abafado a que nos acostumamos. Júlio nos captura, sim, mas também sabe nos alforriar da escravidão na Arte cartesiana.
‘Longo Caminho da Morte’ é o caso de um filme em que não nos vale, para nada, nos prevenirmos dele lendo sua sinopse; ou mesmo, saber que seu protagonista é o ‘Coronel Orestes’ (Othon Bastos) — o fazendeiro falido, derradeiro herdeiro de um império cafeeiro.
Toda a real ação do filme não se dá no plano do discurso ou na desordem de sua narrativa. O enredo desabrocha de suas próprias imagens disruptivas, no som e na fúria criativa que elas não permitem ficar detidas dentro de si mesmas.
Logo na primeira sequência, no segundo cenário que compõe sua introdução: a câmera, numa pan horizontal, passeia por participantes do velório, com seus rostos protocolarmente apáticos, para encontrar — em plano fechado — um vibrante caixão florido com o protagonista dentro; um caixão ‘Primavera’, de Vivaldi, num comercial de ‘Vinólia’ (R).
Nelson Cavaquinho o diria: “Quando eu passo/ perto das flores/ Quase que elas dizem assim:/ Vai, que amanhã enfeitaremos o seu fim”. Glauber, ao fazer do enterro (de Di Cavalcanti) um filme organismo-vivo, confirmaria Calasso e Cavaquinho.
Há, a propósito, flores espocando por toda cenografia nos cômodos da fazenda de 'Orestes' (cada vez menos proprietário, enterrado em empréstimos bancários e promessas vãs de subsídios agrícolas). Um cheiro de morbidez, empestado no ar, a entontecer todos os personagens — meros vultos do que foram em seus dias de glória.
E a impressão fantasmagórica é tão nítida que, amiúde, o diretor opta por os filmar de longe e de cima nestes ambientes internos da casa, como se fosse um espírito a ainda observar a pseudo-vida familiar.
Júlio também soube ser provocador, como Glauber foi. Mas, e isso é inacreditável, fez um filme que é a interseção entre a irreverência de Sganzerla e a disciplina de Leon Hirszman. 'Orestes' é o 'Paulo Honório' dos undergrounds, numa 'Fazenda São Bernardo' alucinação; e sua casa, imoral católica, é aquela mesma 'Assassinada' por Lúcio Cardoso e Paulo César Saraceni. Aliás, este aqui precede (em 1 ano) ao incensado filme de Leon: São Bernardo (1972).
Cumprindo sua sina marginal, 'Longo Caminho da Morte' é um dos filmes mais inventivos já feitos no Brasil; mas praticamente nunca é citado com destaque na filmografia de Othon Bastos, inclusive pelo próprio. Ele, o eterno 'Capitão Corisco', aqui é uma presença máscula intoxicante. E sabendo que seu rosto é a própria foto da carteira de identidade do Cinema Novo, o ator teve, pela lente de Calasso, a direção que mais soube utilizar seu físico:
Embora não seja grande, seu corpo seminu tinha o espontâneo tônus muscular do homem trabalhador braçal; um biotipo que se coube bem no protagonista rude que traz em suas rédeas um império rural.
Sobre uma mesa, estirado, é esse corpo de Bastos que impressiona ao ser moldado, sob uma luz que o torna amadeirado, com o aspecto Barroco do Cristo crucificado — uma visão do subconsciente da amante de 'Orestes', mortificada por culpa cristã. E a câmera o explora sob a exata dualidade barroca: um ícone religioso e a carne humana em apelo ao prazer sensorial.
Também iconográfico é a repetição de tomadas da morte deste coronel: sua queda (sem corte) refaz o corte seco na montagem, em 'Deus e o Diabo', que tornava 'Corisco' finalmente um mito agrário tombado; o cinema de Glauber se mimetiza no de Calasso!
Numa outra alternância de tomadas, refeitas com pontuais variações, a figura materna, a mulher e a amante de 'Orestes' revezam-se em sua cama de casal; num pacto, uma espera e até reivindica a presença da outra. Nuas, ele chicoteia as costas das parceiras — enquanto delira um discurso de poderoso em xeque. Eis que este delírio tem a temperatura surrealista de 'La Belle de Jour', de Buñuel — um acorde do filme do espanhol.
Sob a lente, aumentativa, de Calasso: a nudez feminina é esta espécie de tela em branco para o coronel decadente descarregar as tintas berrantes, típicas do moralismo de um patriarcado que se reprime em público para se exceder no privado. Já Buñuel, com a “pura ou degradada” nudez de ‘Séverine Serizy’ (C. Deneuve), a esposa infiel nas horas vagas, alforriou a mulher do tédio matrimonial — fê-la desgarrar-se em fetiches.
Digamos que Calasso filma o lado de lá das costas oferecidas por 'Séverine', o da projeção masculina: que submete e condena.
Ao fim da sequência surrealista, usando o 'raccord' como subtexto: Júlio sai da submissão da amante chicoteada, para a imagem de bois confinados pro abate e, no frame seguinte, é ela própria quem observa o açougueiro partir uma ensanguentada carcaça bovina. É que em 'Longo Caminho da Morte', os arquétipos de Eros e Tânatos regem este que é um filme sinfonia sensorial — são eles os maestros das contradições e aproximações entre vida e morte (sexo X submissão, apatia X poder) que vimos nessa sequência e veremos em tantas outras.
Nesse sentido, o prólogo nos soará claro em suas intenções: na montagem das cenas do caixão, Júlio inseriu um frame do rosto de ‘Orestes’ chegando ao fim de um orgasmo (o momento também chamado de ‘la petite mort’).
A mesma colcha vermelha na cama vazia, formando uma tenda no alto duma porta, sobre o corpo nu da mulher… Objetos se repetem, de formas variadas, na composição do tabuleiro cenográfico de Calasso; expressam a passagem do tempo pelos cômodos incômodos e a imobilidade de seus moradores mobílias.
Fixas no espaço? Só as longas raízes da vetusta árvore (fincada no chão da Fazenda) ou as pilastras da casa, ambas imagens que sustentam um império na arquitetura do Tempo — ambas filmadas em planos-detalhes análogos.
Seguindo a definição do próprio cineasta, ‘Longo Caminho da Morte’ é “um xadrez”. “Meninos, eu vi!” Nem só de caos se nutriu um cineasta ‘Udingrundi’.
Há um crítico que diz que alguns filmes brasileiros carecem de um tratado sociológico para serem entendidos. Olavo Bilac, em seu soneto, disse (sobre poder ouvir as estrelas): “amai para entendê-las”. Eu fico com a pureza da resposta do poeta.
Inclusive, “Seja marginal/ seja herói”. Vendo essa que foi a estreia de Júlio como diretor, é inevitável sentir pesar por nosso cinema de apelo televisivo, onde tudo deve ser explícito ou mastigado em diálogos — sob “a força da grana que faz e destrói coisas belas”.
Estou farta daquele lirismo bem-comportado, funcionário do público atendendo a demanda do freguês. Pouco importa as intenções por trás do criador, quando uma arte pulsante se diz em tudo melhor do que no plano do discurso.
Numa carta, um outro poeta, André Breton, dizia aos críticos: “o importante não é o que o poeta queria, mas o que ele disse”.
Tal qual ‘Brás Cubas’ (que também usou a figuração de seu falecimento como estímulo criativo), nem seu protagonista e nem o próprio Calasso deixaram herdeiros nesse e desse filme. O próprio cineasta não teve mais para onde ir depois disso aqui. Que ironia fina!
Uma Palma de Ouro incomoda muita gente; uma obra de Arte anêmica é o que incomoda, incomoda muito mais
“O Brasil é o país que desmoraliza o absurdo, porque o absurdo acontece. Aceito a tarja que me pregam na testa: subversivo. Minha única dúvida é se realmente mereci, se de fato incomodei o bastante”. Dias Gomes
É sintomático que, quase invariavelmente, como um inseto em volta da lâmpada, as resenhas de 'O Pagador de Promessas', o clássico filme de Anselmo Duarte, uma adaptação da peça teatral homônima do dramaturgo Dias Gomes, deem mil voltas para exaltar sempre e inequivocamente a mesma coisa — ou seja: sua trama de onde se originou o roteiro e a realização fílmica.
Aliás, o público médio — e foi lendo os comentários dos sites de review que cheguei a esta seguinte conclusão — geralmente confunde sua empolgação pela narrativa, com a sua opinião quanto a forma como esta foi narrada (e por forma subentenda-se: a ótica do narrador, sua linguagem, a execução do roteiro).
Uma boa história não quer dizer necessariamente um bom filme — antes, fosse fácil assim “a vida da bailarina” (e quem descerrar a cortina de um cineasta verá, com horror, que todo sonho autoral realizado é uma série de outros desfeitos pelo caminho até o projetor). Mas essa é uma discussão infinita, eu aceito, já que Arte nunca foi e nem será método exato e toda obra artística é polissêmica.
‘O Auto da Compadecida’, a comédia dramática de Guel Arraes, por exemplo — que é como este drama aqui também uma obra adaptada do Teatro e que idem versa sobre a demagogia das nossas instituições religiosas — sequer é Cinema literalmente; já que trata-se dum recorte da série televisiva, transmitida pela Rede Globo, que foi devidamente aparado e compilado pro tempo das telonas. O que não o impede de ser uma adaptação primorosa, não faz dele um cinema primoroso — pelo menos, fora da apreciação subjetiva de qualquer espectador, do ponto de vista estrito da linguagem, não creio que seria classificada como uma obra prima.
Ao fim e ao cabo: a obra de Guel vence qualquer pretensão cinéfila e é uma trama que contagia até o mais sisudo dos críticos. Mas o ‘O Auto da Compadecida’ fica com a devida parte que lhe cabe no latifúndio cinematográfico, um pedaço de carisma fixo na memória afetiva do espectador, ele jamais sonharia concorrer a Cannes — e, eis aqui, o que será o ponto chave de minha crítica em relação ao filme de Anselmo (e, por dedução, supõe-se o porquê um tal dente do ciúme mordia o cangote dos cineastas Cinema Novistas, que nunca engoliram o latifúndio de prêmio concedido a Duarte).
Ocorre que com ‘O Pagador de Promessas’: também é ela — a história — quem de fato faz o carreto transportando as maiores qualidades do filme; ao sabor da mente de um crítico voraz pelas nossas contradições brasileiras. Dias, sim, (autodeclarado subversivo) soube usar as nossas contradições também na forma — extrapolando o conteúdo abordado, encarnando nossa expressão em seus diálogos, trejeitos de personagens e alegorias teatrais.
Diferentemente, Anselmo Duarte, nada mais faz do que valer-se de um grande enredo sobre nossa brasilidade sem jamais personificar nossa cara em sua linguagem cinematográfica.
Merecer ou não merecer? Eis a questão. E o terreno da Arte é mesmo salpicado de paradoxos, o que foi um prêmio histórico torna-se o carma de uma obra. Não pensem que ele fica intacto na estante, um troféu de Cinema caminha assim como caminha a humanidade. É que, mais do que em qualquer outra linguagem artística, um filme é uma obra eternamente sujeita às ações do Tempo (até as literais que marcam e prejudicam a celuloide duma película).
Assim sendo: diante da aura inevitavelmente mítica, que a Palma de Ouro única conferiu a Anselmo, é preciso um esforço para localizar extraordinárias qualidades autorais nessa sua realização.
Evidentemente há boa técnica: planos acurados. O plano detalhe na Santa, quando o 'Zé do Burro' (Leonardo Villar) contempla a face da Virgem mirando-a com um ar inocentemente fetichista, é um momento de inegável grife autoral; onde o diretor deixa escapar, pelas frestas da imagem picotada, que um culto religioso não deixa de ser uma fantasia de projeção — a fé é como um solo tocado sobre o tema principal.
Duarte fez uma película costurada por um capricho formal, até certo ponto inquestionável; mas que igualmente padece daquela espécie de beleza estéril que a Vera Cruz inteira personificava — imitando as virtudes da técnica old Hollywood, da forma mais isenta possível.
Já a trama de Gomes assume-se frontal ao expor nossa multiplicidade, ela que existe para o bem e para o mal — multiplicidade representada no sincretismo da fé de nossa gente X o arcaico tradicionalismo das nossas instituições religiosas; no conservadorismo de um povo colonizado X a anarquia de uma gente que é bárbara por natureza. Com ‘Zé do Burro’, Dias transmuta a fé de seu estado essencialmente contemplativo, para a fé tomada como ideologia que ousa confrontar sua própria essência.
“Zé do Burro faz aquilo que eu desejaria fazer — morre para não conceder. Não se prostitui. E sua morte não é inútil, não é um gesto de afirmação individualista, porque dá consciência ao povo, que carrega seu corpo como bandeira”, afirmou o dramaturgo politizado até o tutano.
Mesmo concedendo ao cineasta o desconto de situá-lo no epicentro: na exata zona de transição, da inofensiva Vera Cruz para o nosso período mais efervescente (o do Cinema Novo), e por mais que imagens bem enquadradas se perdoem por se trair, no mínimo, é uma incompatibilidade de gênios o casamento da obra de um assumido subversivo com um adaptador passivo — mas, àquela época, ninguém em Cannes o saberia. Já o diretor paulista se soube ser um técnico aplicado no labor cinematográfico, não mereceu ser o inventor capaz de se fixar no inconsciente coletivo — mas isso eles só descobririam depois.
Com as devidas palmas, mas sem ‘a Palma’, seria possivelmente mais fácil acolher a criação de Anselmo no seu tempo espaço e, talvez, ele até não se devesse nada. Porém ela existiu e fica difícil assimilar que entre obras revolucionárias em linguagem, contraditórias como são as entranhas do nosso povo — a exemplo das que Glauber nos ofereceu, ou mesmo com a fascinante contenção formal de Leon — o único filme nacional que tenha merecido o prêmio máximo de Cannes seja justamente o mais neutro possível em relação a nossa alma criadora. Eis aí um incomodo feito de uma nota só.
O que resigna, parcialmente, é saber que uma simples revisão em materiais críticos de revistas especializadas, como a Cahiers e afins, nos denuncia como o prêmio à película caíra até mesmo no ridículo quando, meros dois anos depois, os parrudos diretores e críticos europeus tomaram conhecimento do potencial inventivo que recheava os átomos do Cinema Novo e sua linguagem que, se absorveu, também implodiu os cânones europeus.
Vale lembrar que, em 1964, ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’, o filme que convulsionou o festival daquele ano, impressionando Fritz Lang e Buñuel, perdera a Palma de Ouro por apenas um voto; uma mera contingência numérica diante de uma obra de Arte que é, ainda hoje, inesgotável em sua linguagem. Prêmios, antes e sempre, são exatamente isso: circunstanciais.
‘O Pagador de Promessas’ é a vitória do tempero deles na nossa farofa — a iguaria típica do país exótico ao Sul do Equador, servida antes do Cinema Novo e da Bossa Nova devorarem antropofagicamente a Cultura do Primeiro Mundo. É sarapatel com as vísceras mascaradas em ervas finas — um Brasil exposto, mas sem ferir suscetibilidades estrangeiras.
E não seria recalque dizer que foi esse polimento no estilo ditado por eles, essa postura vira-lata diante das criações Primeiro-Mundistas, exatamente os fatores que propiciaram sua vitória no festival francês — afinal, o Narciso colonizador acha feio o que não é espelho colonizado.
Aí mais abaixo, há uns 3 anos, eu escrevi uma crítica sobre esse filme e a fiz em tom sério e jornalístico. Porém, atualmente, eu estou numa fase de releitura de Machado de Assis — mais que um estudo, uma espécie de odisseia pessoal no universo do autor (tomando notas, pesquisando referências, lendo a excelente apreciação crítica do Roberto Schwarz: 'Um mestre na periferia do capitalismo'). E, bem... Ao rememorar esse filme justamente nessa fase, preciso abandonar o tal do tom jornalístico e que me acuda o meme da Paola Carosella: "HORRÍVEL, HORRÍVEL, HORRÍVEL. HORROROSO. UM ESPANTO. ME FAZ MAL".
A ""adaptação"" de Moacyr Góes está para obra Machadiana, o que a interpretação de Cláudia Ohana de 'Smells Like Spirit' — uma dica: "mulato na banho" haha — está pro Nirvana. Se o 'Bruxo do Cosme Velho' tivesse deixado vivo algum bisneto, tataraneto — ou, parafraseando o 'defunto-autor' 'Brás Cubas', se tivesse tido filhos e transmitido a alguma criatura o legado de nossa miséria — esse um processaria Góes por semelhante CRIME triplamente qualificado (motivo torpe, meio fútil e sem chance de defesa pra vítima rs).
O zoológico de vidro de Domingos de Oliveira ou “toda alma de artista quer partir”
“Palmas pro artista confundir Pernas pro artista tropeçar” (Edu Lobo & Chico Buarque, 'Na Carreira')
É possível que intuir a proximidade do fim acione no subconsciente de um criador a necessidade de reagrupar seus feitos, reunir muita gente (sua gente) ao mesmo tempo, enfim deixar um testamento de que cresceu e multiplicou-se.
Ou no caso específico do último trabalho de Domingos de Oliveira, ‘Os 8 Magníficos’, e por pairar sobre o ofício do ator, talvez tenha sido um velho fetiche irresistível para um diretor-domador: o desejo de observar bem de perto esta espécie estranha que teve de lidar por toda uma vida, feras esquizofrênicas, já suas queridas criaturas domésticas, aqui reunidas numa espécie de zoológico onde poderiam ser feitas de vidro — como os bichinhos de cristal colecionados por ‘Laura’, da peça de Tennessee Williams, ‘O Zoológico de Vidro’, que a faziam fugir de sua realidade. E um diretor não deixa de ser mesmo essa espécie de colecionador.
Sujeitos ao fascínio e ridicularização do olhar externo, num esconde esconde entre a vitrine que se vende e a verdade que os desorganiza, seus bibelôs camaradas estariam sempre a ponto de se partir e revelarem-se. A ideia, se não é ruim, peca pela ambição. Tivesse 'Os 8 Magníficos', título quase homônimo — um trocadilho com o Western 'The Magnificent Seven'— sido condensado em modestos 4 ou 5 e teríamos um material provavelmente mais fecundo em interação e resultado final.
Autor das séries de entrevistas ‘Todos os homens do mundo’ e ‘Todas as Mulheres do Mundo’, apesar de nelas não ter focado exatamente no ofício que guia esse documental, em ambas sim Domingos foi mais hábil em trazer à tona o que há de palpitante nos atores, impostores por natureza — e se era sempre Oliveira quem, fora do enquadramento, sacudia a capa na cara do entrevistado; nos depoimentos colhidos, ele soube também ser toureado. O material que obteve de Pedro Cardoso, por ex., é uma prova de como entrevistar ou documentar um ator não é abrir a portinhola e enfiá-lo na jaula direto para feira de exposição, trata-se de acender o halo com fogo e esperar que ele venha correndo em direção à luz.
'Os 8 Magníficos' não mantém o formato de 'Todos os homens do mundo', aquele tête-à-tête com a câmera ante perguntas quase que apenas sugeridas porém feitas por Priscilla Rozenbaum — que com seu tom, não asfixiante, exercia sobre o convidado efeito semelhante ao do 'Flautista de Hamelin' hipnotizando os ratos que o seguiam sem relutar.
Até se aproxima, mas não segue literalmente o modo "apascentador de ovelhas" do Fernando Faro, no seu 'Ensaio' — ou seja: guiando gentilmente o entrevistado, sussurradamente, a voz do entrevistador inteligível.
Filmados num único dia; numa sala confortável, amontoados e distribuídos no espaço do lar doce lar da participante e idealizadora do projeto, Maria Ribeiro, Oliveira tem a ilusão de ter permitido que seus peixinhos ornamentais se exponham — e o olhar fascinado de quem os imagina ver fluindo à vontade. Mas a proposta, como o aquário, é restrita ao espaço. E supor que seres, acostumados a nadar sob a arquitetura da inverdade, se desarmem só porque estão contidos num recipiente, nos diverte como ver um hamster numa roda.
E se o resultado foi bastante expositivo, é sobre nos revelar as escolhas felizes e infelizes do diretor.
Entre as infelizes decisões: pegando carona num ridículo inerente à arte de representar, o filme manteve cenas desnecessariamente constrangedoras — Sophie Charlotte, desajeitada contando a “piada”, é um exemplo disso; as atrizes cantando o tema dum musical que fizeram, com letra de acento erótico, apenas entediando o restante do grupo, é outro. Uns cortes na ilha de edição e o diretor teria poupado a elas e a nós desse, ehr, excesso de verossimilhança.
Recordo-me de numa entrevista, no programa ‘Tarja Preta’, ouvir o Marco Nanini se referir a uma espécie de “bolsão de realidade” — que o fazia, por instantes, furar a magia da bolha do intérprete e se sentir um homem insuportavelmente ridículo durante a representação dum personagem. Sophie e Carolina Dieckmann, falemos aqui sobre o movimento contrário: o de sentir-se uma estranha no ninho da realidade.
Naquele jogo espelhado entre o que é emoção de fato e o que é dramatização, mote que um dia Eduardo Coutinho imortalizou no seu também documental ‘Jogo de Cena’— aliás: o beijo de Alexandre Nero na Maria Ribeiro, ao se despedir dos ‘7 magníficos’, ‘é ou não é’? — aqui os reis estão ‘nus com a mão no bolso’. E aquilo que saboreamos como espontaneidade, montinho de gente amiga esmagando-se ao som de 'Puro Teatro’ (na voz overacting de La Lupe), não passa de pressão da atmosfera.
Mas se Coutinho, a pulso firme, soube navegar sobre essa fronteira entre verdade e mentira confundindo-nos e tirando proveito dos opostos que se atraem, Domingos se trai ao manter a mão do titereiro mal escondida acima dos seus ventríloquos. Um clima de performance, de espontaneidade induzida reina na maior parte do tempo. Embora, aparentemente, ele deixe o barco correr frouxo, '8 magníficos' está mais pra uma dinâmica de grupo de trabalho do que para uma quebra de quarta parede.
Falemos das escolhas felizes: a (oni)presença de Wagner Moura e Fernanda Torres. Eles se esparramam de tal forma, fazendo o restante do elenco parecer “frágil e inconsistente”, que fica difícil não deduzir que Domingos tenha lhes designado os papéis de protagonistas. Será o carisma arrasador de ambos? Que, naturalmente, se sobressairia em qualquer rodinha de amigos fora da moldura de uma tela. Ou ainda o jogo de cena? Efêmero, capturado por dois atores bem posicionados. “To be or not to be that is the question”.
Fernanda, com sua inteligência móvel que a mantém cômoda em qualquer espaço, sabe aterrissar suavemente na fração de segundo duma frase irresistível. Talvez por isso tenha feito sua colega, Maria Ribeiro, confessar sentir-se burra na presença dela (Um elogio incontrolável? Ou parte do nítido papel de alguém que é autossabotador? Papel que Maria, a anfitriã, tomou para si nesse documentário).
Já o completo domínio cênico de Wagner, por exemplo contando a história da dinâmica do jequitibá, com os braços exageradamente abertos espalhando suas ramas na sala de estar (fisicalidade aliás típica no povo baiano), não o impede de se desarmar durante a confissão do colega — Du Moscovis, num arroubo de temperatura controlada, confessa algo como um crush hétero por Wagner.
“Apaga-te, chama breve” dizia um tal de William Shakespeare ao dar um nó entre a natureza perecível da arte do ator sobre um palco e a própria finitude da natureza humana. Oliveira, neste que viria a ser seu próprio grand finale, se propôs a inflamar essas tais labaredas vaidosas no espírito dos artistas; mas o máximo que ele obteve deles foi um teatrinho de sombras sob a luz do fogo.
"Ir caçar os mitos nos seus currais – ninguém me escapa, Teseus ou Perseus, porque medusas e minotauros são barra leve para Antônio das Mortes". (Glauber Rocha)
Acho que era Truffaut quem dizia que a genialidade de um diretor é percebida no primeiro minuto de seu filme.
Glauber nos introduz ao seu 'Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro' — em segundos e usando com eficácia o campo-contracampo (além de explorar sagazmente a nossa expectativa em relação ao extracampo) — da seguinte forma: 'Antônio', surgindo pelo lado direito do vídeo, atira repetidamente. E, por um tempo, vemos sua ação desconexa do efeito no alvo que, fora do enquadramento, nos surge pela esquerda no quadro seguinte se arrastando baleado; seu alvo, descobrimos, era um cangaceiro qualquer. Não me recordo de síntese melhor pro enredo de um filme, numa única ação dum personagem, nesse caso resumindo como a prática maquinal do matador de cangaceiros já se desconectava da sua consciência reflexiva.
Uma comemoração apenas, a que passa sem maiores detalhes no inicio do filme, um desfile de 7 de setembro, e temos o exemplo ilustrativo de que, não só o uso do tempo ou do campo é eficaz, nada no cinema Glauberiano é gratuito! Ao escolher este dia específico, no que parece ser apenas uma casual citação à independência brasileira, o diretor sugeria uma nova independência pro nosso país (à época, esmagado pela pior fase da ditadura — pós AI5).
Entre o rito protocolar de uma data, com direito a marcha e pompas militares, e aquelas demais datas transformadoras sendo somente decoradas pelos alunos do Professor, havia e ainda há um outro Brasil a ser redescoberto por sua gente — de dentro pra fora da História, livre de decorebas ou meros feriados burocráticos. E é apenas conhecendo-nos profundamente que poderemos interferir no passado para reescrever o futuro.
Já eles, os ritos de dança, que acontecem ao longo de todo o filme, não são comemorações literais. São veículos pra Glauber utilizar o *transe para a tomada de consciência; unindo forma e conteúdo. Nosso comportamento, de um povo naturalmente inclinado à ritualizações (a exemplo do carnaval e incontáveis festividades religiosas ou folclóricas), funcionava pro diretor como algo que, se compreendido como parte de nossa identidade brasileira, sendo de fato um terreno fértil pra nos aflorar ao trazer coisas obscuras à tona, poderia potencializar nossa consciência.
Logo: assim como o estado de transe, para Rocha, é uma espécie de zona de trânsito, uma ponte entre a tomada de consciência e a ação propriamente dita, esse filme aborda exatamente um momento de zona de transição entre o sertão ruralista e uma nova fase urbana. Com seus próprios mitos a cair por terra (um resto delirante de cangaceiro e o coronel caricato) percebemos um sertão com posto de gasolina Shell, estrada e caminhões cargueiros — ao invés da onipresença de roçados, chão de terra batida e cavalos. Aliás, o próprio 'Antônio' aterrissa na cidade, de carona, a bordo de uma 'Rural Willys'.
Percebemos também que os personagens principais (papéis representados por Mauricio do Valle e Othon) estão justamente tomando consciência das mudanças que acontecem em torno deles, ou seja: estão saindo do estágio de transe, que procede a conscientização, para a ação. Todos os demais personagens com falas (estes em extinção na nova configuração daquele espaço-tempo) não são poupados nas tintas carregadas de ridículo, operístico ou teatral; só 'Antônio das Mortes' e, ao final, o 'Professor' são poupados.
É necessário fazer um parêntese pra destacar que o olhar de Glauber sobre o misticismo de nossa gente se torna aqui mais doce e, finalmente, reconciliado. Entendendo que, anteriormente, seu cinema pintava religião e crenças místicas ou como alienação (em 'Barravento' e 'Deus e o Diabo na Terra do Sol') ou como braço legítimo do fascismo em 'Terra em Transe'.
E não sendo mais um olhar crítico nem ridicularizante, mas sim bastante teatral, o diretor mistura referências católicas e do Candomblé em figuras de santos humanizados a ponto de sofrerem na própria carne as mesmas perdas e dores que os humanos; põe eles, inclusive, imóveis (literalmente amarrados) incapazes de evitar uma tragédia.
Glauber vai além! Pois sai das mãos dos santos as armas que personificarão a revolução feita por gente de carne e osso: 'Santa Bárbara' devolve a arma de 'Antônio', quando este finalmente se conscientiza da necessidade de se revoltar contra o coronelismo a quem ele, antes, servia sendo um pistoleiro; já o negro Antão, seguindo a tradição das revoluções negras (por exemplo, a dos Malês), abandona sua condição de escravidão e medo e corporifica a figura do São Jorge guerreiro enfiando uma lança no peito do Coronel Horácio.
E entendendo que eram novas as bases, pra se discutir o velho dilema sertanejo da desigualdade social e da fome, surgirá (no clamor do discurso do filme) a pauta da reforma agrária. É por tudo isso de renovação, até no próprio olhar Glauberiano, que 'Antônio das Mortes', como um personagem matador de cangaceiro, se esgotará e completará seu ciclo nesse meio rural se modificando na marra (jagunços e pipocos ainda zunindo). Mas não sem antes tomar consciência de seu erros aos servir o interesse dos poderosos e não sem antes ajudar o 'Professor' a assumir o seu papel de agente transformador desse sertão sempre cheio de injustiças.
E porque a arte imita a vida, mais do que a vida à arte: aquela "multidão, boiada caminhando a esmo", permanecerá vagando num limbo (em transe com seus cânticos folclóricos) até serem mortos a mando do coronel visivelmente decadente porém ainda dono do pedaço (como, até hoje, ainda são donos de tudo outros e os mesmos figurões patriarcais). O massacre, protagonizado pelo jagunço 'Mata-Vacas', simboliza nossos mesmos reais (como aquele de Eldorado dos Carajás) sempre a mando dos latifundiários ou do próprio Estado.
Mas, no filme, se não coube àquele povo indefeso o papel de revolucionários do sertão, essa responsabilidade (da conscientização e da transformação social) ficou de fato com o intelectual: o Professor — ele representava a classe média intelectualizada, à época, saindo da teoria pra prática da revolução (no caso: pegando em armas pra tirar o poder das mãos do velho latifundiário cego).
Um misto irrepetível de Ópera, Teatro, Cordel, Folclore, Candomblé, Faroeste; procissão, revolução, ritualismo e iconoclastia… É compreensível que Glauber tenha (finalmente!) ganho melhor direção em Cannes, sua mão autoral ou de regente se faz presente nos pequenos detalhes — desde o uso da cor como elemento dramático, até a capacidade de ridicularizar seus alvos com a histeria dos gestos e com a sutileza da linguagem subliminar. E são poucas as vezes que sentimos a rédea da mise en scène de fato nas mãos de seu condutor, como sentimos aqui.
Comparado, não raramente, com os Western Spaghetti italianos — nesta mania que o estrangeiro tem de nos medir por sua régua — antes e sempre, ‘Dragão’ é mais que isso sendo também aquilo. Um Western literal — inclusive, de propósito, recorrendo a caricatos planos americanos — é apenas no seu terço final quando ocorre o embate armado.
E por falar em caricaturar, em exagerar pra chamar a atenção aos detalhes que deveríamos ver, o diretor até cria a sua própria visão de uma diva old Hollywood: 'Laura' (Odete Lara) é uma mistura de 'teúda e manteúda' de coronel com uma loira fatal do cinema americano. É, meninos, eu vi! Onde queriam coqueiro (o exotismo de uma Carmen Miranda), Glauber era revolver (de deboche) na têmpora do Tio Sam.
Com a melhor de todas as cenografias e figurinos do cinema Glauberiano, é inesgotável o relicário de detalhes a se destacar:
O lenço de algodão rosa, no pescoço de um Antônio nunca antes tão delicado, tecido plano esticado à força num cabo de guerra dental com o cangaceiro. A figura de Coirana, nada ameaçadora, Quixotesca (porte esguio, ar fragilizado); um pássaro ferido no peito proa. A musseline roxa, tragi-teatral, do vestido de Laura (com suas pontas assimétricas que, esticadas por ela ao sabor vento, lhe dão um assustador aspecto de aparição flutuando).
A casa, perfeitamente Tropicalista, do 'Coronel': desde as flores (Camp) de crepom, passando pela a gaiola de madeira prendendo um assum preto (aquele que, segundo o velho Lua, furava-se o olho pra que ele cantasse com mais vigor preso em sua escuridão; o bicho de estimação do coronel cego literal e ideologicamente) — até as frutas verde e amarela, se impondo na fruteira (o nacionalismo vazio, mera evocação de símbolos, típico nos ditadores).
Na cena final, ambígua, 'Antônio' some na estrada — escoltado apenas pelo poético voo de urubus (num daqueles planos em que acaso e intencionalidade são indistinguíveis). De costas, visto cada vez mais distanciado pela câmera, como aqueles personagens solitários (do Western?), ele cumpriu sua sina e desaparece no vão do mundo. Menos 'Dragão da Maldade' do que já foi outrora, ainda um impossível santo, guerreiro, amou matar e matou amando a revolta dos extintos cangaceiros.
"O cinema novo ficou com a utopia brasileira. Se ela é feia, irregular, suja, confusa, caótica, é também bonita, desarmônica, iluminante, revolucionária.“ — Glauber Rocha
Cinema (de) novo. Uma colcha de retalhos de sonhos
Uma música, qualquer música, é um tipo de obra de arte que já existe, realizada, quando apenas composta numa partitura. É verdade que quem lhe emprestará sua alma será seu executante. É verdade também que, como está na partitura, ela existe apenas como substância engessada, fêmur que confere rígida estrutura mas que também permite a mobilidade que virá a ter na voz ou no instrumento de seus intérpretes.
Diferentemente, um filme não existe quando está idealizado no seu roteiro — por mais fechado que ele já esteja. E até quando sinalizado na sua sinopse, ele ainda não é inequivocamente o que nos sugestiona a ir vê-lo.
Cinema é, por natureza, a arte da execução e do movimento; mesmo quando nos lança mais perguntas do que respostas, um filme só existe com o ‘haja luz’ dado pelo seu diretor. Antes disso, tudo sobre ele e em volta dele é, como diria o poema de Augusto dos Anjos: “choro da energia desabandonada”, “transcendência que se não realiza”.
Claro que uma obra cinematográfica, até ser atravessada por um projetor, será antes filtrada em suas camadas: a montagem, a fotografia, em tudo isso periga-se nascer outro além da intenção do seu deus. Mas é do diretor o poder maior que se alevanta sobre a espantosa criatura. Por isso mesmo, e pela quantidade de domínios extra autorais que um filme exige, é a arte mais próxima da criação Divina — e rodar os frames equivaleria ao sopro nas narinas do ser inanimado.
Sabendo que não há uma pauta onde se possa transcrevê-lo fielmente, como se faz com a música, é possível deduzir quão difícil para um diretor manter o domínio diante da equação de caminhos que um filme pode tomar. E, em ‘Cinema Novo’, Eryk Rocha escolheu partir guiado pela rota da memória afetiva — sem temer ser tragado pelos vácuos existentes no inconsciente do nosso país sem memória. É uma experiência de embarque o que ele oferece; mas não no trem da história que passou, é na trama sensorial que trepida e se rejunta diante da gente.
O diretor faz um documento organismo vivo, que se conta enquanto ergue-se dos seus próprios fragmentos. A própria montagem sacode a poeira deste que foi o momento mais vital do nosso cinema brasileiro — o cinema que nos mostrou, esfregou-nos na nossa cara. As contradições de ser um país dum futuro que nunca chega, a fé e a faca amolada em nossas potências artísticas, tudo cheira a tinta fresca neste trabalho que ousa pular do trampolim discursivo. E que convida-nos a mergulhar com ele, sem oxigênio às costas, pra dentro do fenômeno da nossa Arte identitária.
Dum olhar, cheio d’água, boiam cenas, sons e depoimentos nunca reduzidos a uma investigação puramente escafandrista. Não é de procurar dar sentido a resíduos resgatados que este documentário se trata. Cinema Novo é um carrossel onde a magia da criação alheia gira, outra vez acionada, ansiosa por mais movimento.
Em plano detalhe, o vento é cortina viva no voil da cabeleira do cangaceiro — que, em tom brechtiano, invocava em si mesmo a voz de seu mentor morto: Lampião. Do sertão petrificado, que empareda 'Rosa' e 'Corisco', surge a Bachiana circular, Barroca, dois animais inflamáveis desafiam a imóvel realidade com as faíscas de um beijo. Era 1964 e o revolucionário Glauber redescobria o fogo, não esfregando uma em outra pedra de Cocorobó, mas esfregando dois corpos presos àquele “destinozinho de chão”.
O que mais há a fazer? Senão se encharcar destas imagens, bulindo vivinhas, com fôlego capaz de romper a barragem de conformismo do pacato cidadão brasileiro.
O movimento Cinema Novo lutou por ser autoral, quando era fácil vender-se aos apelos do industrial. Venceu o invencível; é inarredável a beleza erguida sobre nosso caos por natureza. Nós ainda sonhamos (mais um sonho impossível) e, no entanto, eles já realizaram aquele Brasil que, nas palavras de Darcy Ribeiro, no enterro de um(a) Rocha: “vai ser/ há de ser, Glauber!”.
“Teu corpo neste rio é um rompante/ É vazante/ rio macho rio andante” (Joyce e Cacaso)
Não é incomum ficarmos sabendo de sacrifícios físicos que determinado ator fez em nome de uma personagem, engordam ou emagrecem demais, machucam-se seriamente — num cabo de guerra entre o ser e o não ser, esticam seus próprios limites naturais. Há um tipo de generosidade, bem específica, no fato de você hospedar um ser inventado em seu ambiente mais vital.
Pro ator o corpo é uma haste que precisa sustentar uma estrutura delirante de cor, vida, impressões — é a arquitetura duma flor. Mas, no cinema de Karim Aïnouz, ele deixa de ser apenas essa espécie de sustento ou moldura para tornar-se a tela onde tramas são projetadas; mais que uma tela, o corpo torna-se uma língua viva capaz de contar vivências com pele, músculos e ossos. E em 'Praia do Futuro' essa linguagem é, a cada detalhe acessado, fascinante.
Na forma como Karim desidrata excessos ao falar de vazio existencial, seu universo sintoniza-se com o de Kieślowski. Como fez o cineasta polonês, mais especificamente em 'Bleu' (da 'Trilogia das Cores'), seu 'Praia do Futuro' consegue ser um tratado sobre o súbito rompimento com laços familiares, necessariamente doído, mas sem que o diretor fira qualquer camada de sutileza sensorial. E, em ambos os filmes, aborda-se esta confusa liberdade encapsulada nas perdas.
Já Antonioni é a linha mestra de Aïnouz. O italiano retratou a alienação de seus personagens na própria arquitetura moderna, sob a inacessibilidade dos altos prédios e dentro das estruturas isolantes dele. Em Karim é na arquitetura corporal que o dilema de 'Donato', seu protagonista, um salva-vidas, é erguido: em suas costas largas ele suportou o fardo dos afogados salvos e, do mesmo modo, impôs sobre si a carga das expectativas alheias.
Nada é desperdiçável quando Aïnouz (re)pousa seu olhar sobre a carne de seus atores, nada mesmo, até mesmo os rumos de Donato se anunciam ou se contam no corpo do intérprete: Wagner Moura. ‘Praia’ se acomoda em cada centímetro de nossa sensibilidade — visual, auditiva, até mesmo tátil quando sentimos que quase podemos tocar a musculatura plasmada na tela.
Vemos o protagonista preso em sua Fortaleza (e aqui vale o duplo sentido desta frase). O guarda-vida só é um herói completo sob o olhar fascinado de seu pequeno irmão caçula; quem agarra-se somente nele, até pelo seu Freudiano medo do mar (é esse mesmo medo, do incontrolável, que sentirá diante da perda da figura do herói).
Numa cena, em plano detalhe, há um ângulo onde o braço do nadador se contrai e o desenho ondulante que ele forma, onde mesmo tenso parece em movimento, corresponderia, de modo óbvio, às ondas do mar em que ele nada todos os dias; como também parece, sutilmente, denunciar o acomodamento e o desejo de se mover em sua falta de horizonte. ‘Donato’ torna-se parte daquilo que não lhe faz feliz; seus músculos braçais saltados, fruto de batalhas travadas com a água, nos contam de um herói forjado.
Já distante, fugido, na Alemanha: vemos 'Donato' em um nu traseiro, de beleza incontaminada; um bumbum alvo que parece conter, na sua forma rigorosamente firme, a própria dureza com que os homens tentam se manter diante de suas fraquezas. Mas que também parece nos escancarar como podem ser vulneráveis se assim expostos, um homem como uma lacuna em branco — existindo, arejado, através da fresta que há em si mesmo.
E é ainda dentro de seu novo espaço que espiamos acontecer na pele de Wagner a nova vida que a personagem vai construindo ali: vemo-lo nu, familiarizando-se à casa de 'Konrad' (Clemens Schick), se deliciar com uma fruta que descasca e, sentado displicentemente, umas dobras são insinuadas na barriga antes e sempre tonificada.
O que acontece com sua pele são expressões de um cotidiano que está sendo reorganizado em 'Donato' — como o seu corpo se adapta à cadeira, cedendo em dobras a dureza do músculo, a condição de herói infalível também vai se dobrando aos poucos até caber na moldura do homem falho que abandonou tudo pra fugir em busca de si mesmo.
Karim aborda o universo masculino nos oferecendo, em linguagem e ações literais, toda a fisicalidade que há nas expressões de sentimentos num ‘ser Y’. Porque eles, tipicamente, lidam melhor com o subjetivo se buscam sua equivalência numa manifestação concreta; assim expressam suas vedadas dores interiores em explosões físicas. Aqui desde o delicado ao mais violento gesto nos evidenciam isso: como na cena intimista em que o salva-vidas cheira o capacete de Konrad, talvez tragando-o para tentar retê-lo dentro de si; até a turbulenta cena em que seu irmão abandonado, 'Ayrton' (Jesuíta Barbosa), já adulto, retorna à sua vida e o confronta esmurrando-o até que aquilo se acomoda e se torna um tenso abraço de saudade.
Claro, sem contar todos os objetos tipicamente viris e a relação com eles na mise en scène: motos, capacetes, ferramentas e um avião a jato, varando o céu, discreto símbolo fálico. Tudo isso, enfim, que forma o inventário social do ser masculino e nos faz entender aquelas típicas pulsões de ação que os homens trazem consigo desde muito cedo.
Em via oposta a essas sugestões de ação rondando as personagens, lembro como o cinema de Aïnouz é um empilhamento de delicadezas que vão se desmoronando sobre a gente, pouco a pouco. Por duas vezes, com raios de Sol sobre o rosto de Wagner, e apenas isso, o diretor nos situa em que ponto do processo está o realojamento da personagem naquele espaço em que foi viver.
Na primeira vez, imediatamente depois de uma cena de sexo entre 'Konrad' e 'Donato', um corte, temos o brasileiro andando pela rua. O feixe de raios solares, vistos por ele ao olhar pra cima e vistos pela câmera através de uma contra-plongée, se acomodam nas maçãs do rosto corado de Moura. Num característico sorriso de lábios cerrados, em que projeta ainda mais suas maçãs salientes, seu rosto nos conta duma alegria que é saúde e, por isso, lhe ‘salta as faces e o faz corar’. Há frescor expresso no malar de Wagner — e afinal tudo naquela terra, em que a personagem recém acostuma-se, também parece prometer renovação.
Na segunda vez, numa passagem de tempo longa entre uma cena e outra: já de barba e cabelos crescidos, saindo de um mercado, o vemos olhar pra cima numa contração que forma um sorriso de canto de boca — no que parece ser apenas um reflexo àquela brecha de luz solar que se abre sobre ele. O brasileiro já não projeta mais sua satisfação pessoal na recompensa de um dia morninho, é agora um homem prático que inspira pra receber o máximo de calor que lhe é dado, eventualmente, numa terra fria.
Mas não importa se, empilhando delicadezas, a peça da vez são planos detalhes de duas tatuagens de 'Konrad' ou se é a pan que, antes do giro, está em close em 'Donato' e nos revela pintinhas meigas escalando sua nuca — e Karim gosta desse ângulo, tanto quanto Antonioni em sua trilogia— Aïnouz mantém desejos vivos em imagens que nos arrastam até afundarmos nelas. Sua tela é como um aquário onde sutilezas se debatem em inarredáveis correntes de paixão.
E num filme onde as expressões corporais são por si só explicações pra uma trama com poucos diálogos, não poderia faltar cenas de dança — já uma marca registrada no cinema do diretor:
A personagem do Moura e do Clemens dançam alucinadamente, em câmera lenta — “o corpo no espaço é pó”. E é inevitável pensar que como há uma contradição entre esse efeito lento que dá aos movimentos súbitos dos personagens apenas uma ilusão de permeância na tela, há em qualquer dança um também paradoxo; um paradoxo que é reconhecível na busca interior do próprio protagonista, ou seja: o momento onde o corpo se permite ser mais livre de pesos mundanos, dominando-se ao expressar seu próprio ritmo, é também o momento onde está mais renunciado a si porque sujeito apenas ao som que vem de fora dele. E na vida há mesmo que se conciliar a dureza dessa contradição: dar-se e perder-se do entorno.
Não é fácil coordenar dois extremos tão desastrados quanto se doar e devolver-se a si mesmo; mas o cinema de Karim pelo menos nos ajuda nesse exercício, lá onde razão e emoção, técnica e sensibilidade, saltam juntas pro mesmo e fatal abismo de beleza. Sua arte tem rigor na forma — cada plano, a disposição espacial dos seres e coisas — mas, ao mesmo tempo, sentimos ela reagir é em cada centímetro de nossa pele convocada. Aliás, sua Arte reage na pele de todos os envolvidos!
'Dora' é mais que a condensação desta gente brasileira, que ri quando deve chorar; ela é a corporificação dum Brasil que, ao se encouraçar diante de suas tragédias cotidianas, endurece e perde a ternura pelo outro. Esse país que, para se defender "malandramente" de seus próprios males, torna-se indiferente ao que nos atinge como um só povo que somos de fato.
Mas é embaixo dessa crosta, aparentemente insensível, que essa gente guarda exatamente uma pele fustigada de tanta humanidade. Nesse sentido: até as rugas, geográficas no rosto não maquiado de Fernanda, nos fazem percorrer aquela mesma paisagem de rostos devastados por essa floresta urbana.
Suas linhas de expressão, tão humanas, são exatamente a antítese das linhas desumanas por onde percorrem aqueles trens nos trilhos da Central do Brasil — trens que traçam com o seu dinamismo de máquina, forçosa e urgente, a mecanização dos homens.
Fernanda atua com a pele exposta. Seu corpo modifica de postura e é possível notarmos, até mesmo, o que seriam as lesões por esforço repetitivo herdadas da profissão de professora. Seus ombros são recolhidos e ensimesmados — como se ainda estivera debruçada sobre um interminável quadro negro — bem diferentes das saboneteiras (eretas e expostas) da personagem de Marília, também professora, com o porém de não ter se deixado encruar em suas insuficiências.
As mãos, hábeis ao escrever cartas, têm a mesma praticidade de quem por muito tempo escrevera a giz todo o conteúdo da aula. O modo pendente como seus óculos mal se assentam, no rosto ouvinte desinteressado, denunciam a incomunicabilidade adquirida. Em tudo, Fernanda materializa essa anti-heroína petrificada pela dureza da vida que levou.
No entanto, ao longo de sua trajetória (numa viagem em que se aprochega a si mesma e sai de seu individualismo), Dora nos faz perceber que é exatamente o contrário da anestesia — ela é a dor calcificada, os males no tutano aparentemente já descarnado. E é essa a trajetória do próprio filme: uma busca pelo tecido vivo na massa disforme. Mas é essa busca com tantas sutilezas nas redescobertas emocionais que, quando vemos 'Dora' escrever pra 'Josué', já não nos resta dúvida que ela se reencontrou com aquela erma menininha que o pai (o mesmo que a desconheceu adolescente) deixou dar o apito do trem.
Do alheamento ante a máquina mecânica da Central, com a qual se locomovia em seu cotidiano apático, ela retorna ao encantamento de quem pôde dar a partida pra uma nova viagem num mundo em que tudo interessava porque tudo era descoberta.
E se 'Dora' foi esse país que se negou a ver as mazelas dentro e fora de si, porque já experimentara desgosto suficiente na lida diária, Josué é a esperança desse Brasil se refazer no contato com a dor do outro. O menino oferece a senhora um perdão que ela nem seria capaz de pedir a si própria. Não é à toa que ele fique lá naquele ermo de casas se construindo, num Brasil de pó e suor que se reergue à força — se reinventando num limbo dos esquecidos.
Ela e o filme — porque ele era ela e ela era ele — são uma espécie de 'Encouraçado Potemkin', mas é num levante em nome da ternura sonegada; num ponto onde já se torna insuportável ser capitaneado pelo descaso. Em uma corajosa travessia, na qual a protagonista sai de sua zona de desconfortos próprios e assume a rota de inexatos caminhos, o filme decide transformar a crueza da frustração numa experiência de realização através da vitória do outro.
Depois desta viagem, atravessando o inchaço da megalópole, penetrando as vísceras dum Brasil profundo, nem ela nem nós poderíamos ou deveríamos sair os mesmos. E se 'Josué' de fato não reencontra seu pai, nós sim reencontramos nosso país — judiado e imperfeito como certamente estaria o pai do próprio garoto, mas que justamente por isso necessita do nosso abraço renovador de forças.
"O resto é saber se a Capitu da Praia da Glória já estava dentro da de Mata-cavalo". Ou, diferente da onipresente dúvida de Bentinho, a obra cinematográfica que com certeza não estava dentro daquela literária de Machado de Assis
"Amizade. Paixão. Ciúme": o texto e o apelo visual do cartaz, nos fazem supor o lançamento de mais um hit do sertanejo universitário — “bebi/ chorei largado” —, mas era pra ser Machado.
“Marcela amou-me por 15 meses e onze contos de réis”, assim Machado de Assis resumia, antipático cirúrgico, um affair de 'Brás Cubas' — o 'defunto-autor' de 'Memórias Póstumas'. O poder de síntese, seu tom de humor seco como vermute, a voz do autor inventado confundindo-se com o Realismo do narrador real… Não se espera que seja simples transpor um autor específico assim pra uma outra linguagem com suas próprias especificidades; mas também não se pode deixar de lamentar que alguém delete justamente tais peculiaridades de um escritor que sabia ser provocador sem, no entanto, recorrer a atalhos apelativos.
Livre adaptação? Reimaginação? Em qualquer uma das hipóteses, eleja-se a denominação que quiser, ‘Dom’ estica tanto os limites que termina se enforcando com a própria corda que se deu.
É necessário fazer um parêntese aqui na questão da linguagem literária X a cinematográfica. Oportunidade para concluir que um outro escritor brasileiro, mais proibitivo em se tratando da possibilidade de incorporar seu estilo fabuloso, conseguiu receber ao menos uma adaptação pras telonas digna da sua obra — me refiro a Guimarães Rosa, e ao filme de Roberto Santos: ‘A Hora e a Vez de Augusto Matraga’.
Enquanto isso, Machado, afiado cronista do seu tempo, universal ao flagrar os ruídos inconciliáveis nas relações humanas — com uma linguagem, em tese, menos difícil de ser convertida pro cinema — ainda se mantém carente de uma obra de cinema à altura das suas literárias.
Neste ponto é preciso cravar onde os diretores e roteiristas costumam pecar: tornando o autor palatável, reduzindo suas construções a personagens sem nenhuma irregularidade no relevo.
É certo que adaptar (sobretudo em se tratando de linguagens opostas) faz-nos deduzir perdas inevitáveis, isso já desde o significado do termo empregado para tal. Porém, adaptar também significa que algo se encaixe confortavelmente na moldura que se propõe entrar — e é nesse ponto que os adaptadores Machadianos tendem a falhar miseravelmente.
‘Dom’, ‘A Cartomante’ (2004) ou mesmo ‘Capitu’ (1968) — que não realizou de fato o roteiro provocador imaginado por Paulo Emílio Sales e Lygia Fagundes— todos esses estacionaram as suas releituras no drama central e por ele foram acuados; só lhes restando moer a densidade do 'Bruxo do Cosme Velho', até que essa se tornasse uma papinha feita de conflitos esgotados.
Resumindo, para esses diretores: descascar e apropriar-se da linguagem não é nada, espremer o suco apelativo é tudo… E o melhor exemplo — dessa diluição Machadiana — é Dom.
Aqui o roteiro pretende uma *reimaginação*, partindo dum personagem que é filho de admiradores da obra de Assis. O protagonista, ‘Dom’, é obcecado pelo romance 'Dom Casmurro' e deseja vivenciá-lo na realidade. Só nesse mote, mal nutrido, já há papinha mastigada o suficiente.
Moacyr Goés reencarna 'Bento' e 'Capitu' num casal contemporâneo, na tentativa de reacender o conflito amoroso da relação entre ambos. Para tal, confiou que a beleza de Maria Fernanda Cândido seria, por si só, atributo suficiente para nos convencer de sua afinidade com a “cigana oblíqua e dissimulada”.
No entanto, a 'Capitu' Machadiana é mais que uma beleza açoitando o ego masculino; ela é um arquétipo que reúne em si a incompreensão do olhar masculino sobre a instabilidade da natureza feminina — instabilidade até mesmo biológica, hormonal.
Em última análise, essa “mulher em milhares” espelha em si a típica insegurança que os homens, seres excessivamente lógicos, têm ao lidar com o subjetivo que é próprio do ser feminino. 'Bentinho' precisa de prova material que o interior e o exterior de sua amada não se desmentem; baseia seu relacionamento no exame de pistas que validam ou rebaixam seu ego, é incapaz de capturar sutilezas que são improváveis.
A grande sacada do escritor é que a dona dos “olhos de ressaca” só exista justamente se espiada pelas frestas de um personagem masculino torturado por seus próprios fantasmas — tudo o que percebemos dela é o que, antes e sempre, encontra-se inacessível ao protagonista do livro; vemos, ou julgamos ver, o que lhe escapa; uma fina construção!
Diante disso tudo: reduzir 'Capitolina' a uma femme fatale tem infinitamente menos camadas do que o escritor propôs, além de esgotar o enigma de uma esfinge que devora o inconsciente coletivo. E se 'Dom Casmurro' obriga a olharmos além de sua mágoa alienada, 'Dom' nos esfrega o apelo visual na cara.
Mas o esquartejamento de personagem não fica restrito ao ícone feminino:
O ‘Dom’ de Marcos Palmeira é risível. Menos que um ciumento patológico, ele parece ser só um moleque mimado querendo impedir a vista para sua paisagem feminina paradisíaca .
É como se, mal comparando, alguém convertesse aquela dor de cotovelo LupiCÍNICA ao sentimentalismo barato de Zezé de Camargo. Imagine alguém sair de: “Você há de rolar como as pedras/ Que rolam na estrada/ Sem ter nunca um cantinho de seu/ Pra poder descansar” e ir para: “Pois sempre que um outro te tocar/ Na hora você pode se entregar/ Mas não vai me esquecer nem mesmo assim”.
Moacyr Góes fez um cinema “fast food”, embalado pra consumo fácil. Por mais modernização que se queira emprestar a uma obra, a partir do ponto que ela se torna estilisticamente irreconhecível, não há mais uma adaptação e, sim, uma apropriação indébita.
O único momento digno de nota é o involuntário bordão de 'Miguel' (Bruno Garcia) durante o diálogo com uma amiga: “É por isso que essa porra deste país não vai pra frente. O cara escreve o maior romance da literatura brasileira e Daniela só se lembra disso?” Seria um ato falho acusando o golpe fílmico? Aliás, o próprio Bruno um esquecível 'Escobar' com jeitão de “ahhh leke, leke” carioca. Ator de composição de personagem, sensível aos detalhes, creio que suas grandes colaborações culturais seguem sendo respectivamente: a apaixonante Vilma de ‘Sexo Frágil’, Vicentão de o ‘Auto da Compadecida’ e a narração do ‘Tecendo o Saber’.
É necessário lembrar que, também na linguagem artística, “longe vá temor servil”…
Não raramente a Arte tem uma preferência pela idealização, até mesmo através da busca por formas algebricamente perfeitas, a proporção áurea não me deixa mentir. Uma escolha, é claro, incompatível com a realidade humana defeituosa tal como ela é.
Pedro Américo imortalizou uma bela duma farsa histórica no seu quadro ‘Independência ou Morte’: uma perfeita cena de batalha épica, com direito a regimento em uniforme de gala que, obviamente, nunca existiu assim. Nem o Otávio Mesquita, naquela sua matéria anual, nos deixa esquecer que a história real é, nada pomposa, ridícula (Dom Pedro I estava montado numa mula e sofria de diarreia na ocasião ‘heroica’).
‘Independência ou morte’, o filme, é outra farsa meramente iconográfica; uma versão romanceada que coleciona eufemismos em cima dos fatos. Tudo bem que fosse um cinema de nicho patriota, comemorativo do sesquicentenário da Independência do Brasil e em plena ditadura de Médici, ainda assim é puxa-saquismo demais para liberdade artística de menos.
No que diz respeito à linguagem cinematográfica, apesar de ser cuidadosamente enquadrado e fotografado, padece de uma cansativa sucessão de travellings frontais indo, mexicanamente, encontrar reações nos rostos admirados — o movimento também chamado de Dolly, mais do que nunca, se mostra uma tática apelativa de enfoque (usada amiúde). Seria um tédio subliminar do diretor? Ele próprio, se lembrando de nos manter atentos à trama edulcorada. Ou o filme acusando o golpe? Uma espécie de confissão subliminar nos demonstrando que, sob o efeito desta tática visual, o cineasta e a trama ressaltavam os personagens de modo afetado.
Verdades devem ser ditas, até a respeito das mentiras: plasticamente, é sim um deleite para as nossas retinas. O que a fita falha ao adocicar o enredo, acerta em ‘alegorias e adereços’. Impressiona o luxo da cenografia e dos cenários, os figurinos impecáveis, o plumário e os brocados, rendas, cetim, veludo; a paleta de cores intensas bem distribuídas (com prevalência do vermelho e dourado, indissociáveis da imagem da realeza).
É mesmo admirável a capacidade de reproduzir a opulência da corte real, sem jamé soar vagabundo — afinal, conhecemos os eternos problemas orçamentais do cinema nacional. Mas até o que seria sua qualidade técnica, carrega consigo uma nódoa ética:
‘Independência ou Morte’, o filme mais visto daquele ano, não apenas aparenta ser bem caro pros padrões da época, de fato a produção recebeu grandes investimentos do Estado que visava obter com ele um típico produto de imagem ufanista made in ditadura — nos moldes de “eu te amo, meu Brasil, eu te amo”.
Por falar em aparência… Nada supera, aqui, a beleza de Tarcísio Meira então no auge — suave e viril em acordes equilibrados. Noves fora zero, é o que de real se eternizou no filme:
Em plano aberto, D. Pedro faz um passeio desafetado — sem sua guarda, sorridente, ele interage próximo do seu povo. Esta óbvia imagem de humildade se desmente quando flagramos a linguagem cinematográfica: filmando-o em contra plongèe, o plano cinematográfico tipicamente usado para exaltação de poder, o diretor tratava de reforçar o ar de ‘estátua majestosa’— que mantém o mito imensamente maior que seus súditos ajoelhados.
Entretanto, num empuxo para fora da diegese, era o sorriso imantado do próprio Tarcísio quem desfazia a impressão inatingível e mantinha nós próprios, telespectadores, gravitando em volta da personagem. Eis aqui a tônica de toda a película.
Se Pedrão fosse irresistível, como é esse retratado na obra de Coimbra, não precisaria nem ter dado um grito pela Independência; bastaria ter pedido com jeitinho.
‘Independência ou Morte’ tem o dom de iludir e assim o faz com seu ator protagonista, escolhido a dedo, afinal Tarcisão foi (ou soube ser) um vulto feliz de masculinidade — quer seja determinando a composição típica do galã de TV, o arquétipo do machão na Pornochanchada ou mesmo (inacreditavelmente) sob a pele morena do conquistador português, um Cristo Militar, naquele que seria o último delírio de Glauber Rocha (‘Idade da Terra’, 1980).
Em contraponto, Glória Menezes não poderia compor uma Domitila mais equivocada : zero sexy appeal. Morre nesse filme a imagem vulgívaga da ‘Marquesa de Santos’, que fez da sua relação com o imperador uma das mais tórridas que a história já conheceu (a ‘Marquesa’ — seu título de nobreza foi conferido pelo próprio amante — dominava até a arte do pompoarismo!).
Não se pode culpar Glória por tudo; muito embora, a começar pelo seu physique du rôle, o papel de uma amante insaciável não lhe coubesse como uma luva. Dê-se então o justo desconto de que o roteiro fabricou uma romantização xarope, donde não é de espantar que se tenha apagado qualquer traço de sensualidade e vanguarda da Domitila real. Vale lembrar: trata-se de uma das raríssimas mulheres desquitadas àquela época, a esperta ‘teúda e manteúda’ de um príncipe.
Aqui o affair — mais escandaloso da corte — vira uma fábula à la Disney. Aliás, pra suavizar o que ainda restasse de “impudico, despudorado, Marlon Brando”, escolheram justamente dois atores casados na vida real; formando, assim, um nó moralista no inconsciente coletivo.
‘Independência ou morte’ é mais que uma obra de joelhos diante da monarquia que desejou nos recolonizar, os pioneiros na corrupção institucionalizada que nos arruína até hoje, beira a hagiografia de (São?) ‘Pedro I do Brasil’. Pura cosmética histórica, do tipo que torna ainda mais feio conhecê-la sem maquiagem.
Como, diante desse filme *mistificador (*para ficar numa citação ao Quércia), pensar naqueles portugueses? Devasso (D. Pedro I) ou glutão (D. João VI) — antes e depois do grito às margens do Ipiranga, mantenedores do poder das elites.
Já dizia Carlos Drummond: “Precisamos louvar o Brasil/ Não é só um país sem igual./ Nossas revoluções são bem maiores do que quaisquer outras; nossos erros também”.
Se você é desses que esperam da arte algum tipo de salvo-conduto, uma manifestação auto piedosa que nos dê (enquanto humanos falhos) qualquer fagulha de virtude que, na realidade, na relação terra a terra não podemos sustentar… Definitivamente, não manterá o oxigênio suficiente pra poder mergulhar fundo em Buñuel — ou melhor: se sufocará ao ser mergulhado, sondado por ele. Mas talvez seja ainda mais impactante a sua colisão frontal, chocando-se contra as inarredáveis pedras de nilismo ou humor negro.
O velho conseguiu angustiar até seu 'parça' de cinema: tem uma história deliciosa com o de Sicca (depois de ver justamente 'Viridiana'), ele saiu pra tomar umas com Buñuel e com a esposa deste: Jeanne. Não sei de que tal modo ele estava horrorizado que chegou a perguntar pra mulher do "Anjo Exterminador": se este era tão monstruoso que enquanto fazia amor com ela batia nela. rss.
É urgente grifar: Luis nunca nos choca gratuitamente; não é o tipo de iconoclasta redundante pervertendo só por perverter, um daqueles malucos vomitando em cima dos monumentos erguidos pela fé alheia. Pelo contrário, penso que o que nos perturba de fato seja que ele exponha o ser humano em situações desestabilizadoras do modo tão lúcido como fazia. E, veja bem, não era postando-se indiferente como faria um sociopata; era, antes e sempre, aprofundado.
Sim! Porque uma coisa é você ser um 'porra louca' degenerado, do tipo Bukowski, outra bem diferente é você ter a coragem de sentar e tomar um café com nossas sombras mais fantasmagóricas; acossado por elas, não acender a luz. Mas o 'Anjo Exterminador' ainda ousou ir além, afinal, projetou nossas sombras mesmo na aparente claridade de nossos gestos benevolentes.
Lembro da comparação que G. Rosa fez a respeito da alma humana, disse: (…) “amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e *escuros* como os sofrimentos dos homens”. Nas profundezas de nossa alma, sim, somos turvos até mesmo se contemplados por nós próprios… E é sem massagem que o lobo mau espanhol derruba a nossa remota casinha de ingenuidade.
Nada que o ser humano faça em função de uma virtude perfeccionista, purificadora da humanidade, por mais bem intencionada que seja, é suficiente para domar nosso primitivismo em essência. Nesse sentido: até a caridade cristã, se impondo como uma obcecada causa moral, está fadada ao fracasso. Isso a protagonista, Viridiana (Silvia Piñal), noviça recém saída de um convento, provará literalmente na própria carne.
Nossa barbárie, ou desejos sublimados, vem à tona sobretudo na esfera coletiva — de um jeito ou de outro, escapam dos nossos contêineres morais; de alcance incalculável, colidem com a cultivada nobreza dos outros. Aqui sobram cenas que ilustram isso (do sutil ao histérico): ‘Jorge’ (Francisco Rabal) lava a mão (gesto de isenção), a empregada ‘Ramona’ (que se amasiou a ele) subitamente morde-a cheia de desejo. De outra feita, tomado por insuspeita dignidade, ele tendo comprado fica satisfeito por salvar um cão exausto que corria amarrado a uma charrete — só pra no quadro seguinte, com um humor bizarro, o diretor nos mostrar a mesma cena se repetir com outro cão.
Na mais histérica das sequências dentre as de tom erótico: onde é sugerido um fetiche necrófilo por parte de Dom Jaime (o tio, interpretado por Fernando Rey), pra mim a prova nítida de que jamais Buñuel nos choca gratuitamente, a sobrinha virgem está somente desmaiada e o que permanece sempre é a projeção dos desejos reprimidos pelo viúvo, a sós, assombrado pela chance de poder dar vazão a sua sexualidade sufocada — a cena apenas nos dá a oportunidade de espiar o afloramento do lado mais adoecido da personagem, espectadores acidentalmente voyeurs, como faz a garotinha através da janela.
Até uma tola corda, que a mesma meninota brinca, é exatamente aquela que (com suas sugestivas pontas fálicas) se enforca o tio reprimido. Ou seja: nem os objetos escapam dos significados inocentes ou mórbidos que lhes podemos dar com nossas inadvertidas (re)ações, nossos extravasamentos.
Sob a direção do espanhol, nada é focado inutilmente nesse constante exercício de nos escancarar a nós mesmos… Assim não podemos desperdiçar a sequência em que Jorge elogia os lábios carnudos de Ramona e, em seguida, a beija; ela delira. Fica nítido que algo sacana vai se desenrolar — ele insinua: “anda, vamos sentarnos un momento” — no entanto, ambos permanecem fora do campo. Ao invés da câmera acompanhá-los, um travelling lateral vai em busca até finalmente enquadrar — e, em seguida, se afastar num Dolly back — um rato sendo caçado por um gato! A piada com a câmera, que ‘caça’ o rato e se afasta após o pulo do gato, nos entrega a malícia da cena que não poderia ser mais sugestiva, sem precisar um só vulto de sexo literal.
Pessimista, sem dúvida, tudo isso, medido e bem pesado, não deveria nos fazer supor que Luis fosse um típico misantropo — não, daqueles que lamentam os seres humanos indistintamente.
O que aguçava a sua rebelião, na verdade, eram justamente os mecanismos que tentam podar nossos instintos mal incubados — eram as repressões, moralismos; em suma: o virtuosismo cristão. Tinha um desprezo crônico pelos burgueses e sua forjada impressão de ordem, falsamente dignos em suas preciosas redomas. A esses últimos, o diretor guardava sua maior dose de escarnecimento; aqui o melhor exemplo disso é a explosiva sequência dos mendigos invadindo a mansão (ilustrada pela paródia a Santa Ceia). Ali, sua capacidade cinematográfica chega ao auge. Ah! Inegavelmente, ele se deliciava com a manada de homens sujos, animais ferozes, espatifando a delicada redoma de cristal…
Seu cinema é, de fato, uma exploração do que há de mais vulcânico no ser humano. Penso que até por causa disso o ritmo de filmes como 'Viridiana' dispensam prólogos de intenções - evitam cenas de antecipação, as reações explodem porque já estão à flor da pele sempre a ponto de se romper:
O icônico suicídio de 'Don Jaime', por exemplo, é precedido apenas por uma espécie de riso de satisfação mórbida, um papel em branco e uma caneta; não há qualquer coisa na mise en scène que sugira uma angústia irremediável. Tudo que o diretor nos deixa espiar, exatamente através do riso mórbido, é o impetuoso desejo do tio de deixar a sobrinha (que rejeitara seus apelos de casamento) sentindo-se culpada por sua morte.
Enfim, reconheçamos: não há como nos prevenir de nós mesmos, de nossas micro ou macro obsessões, o que dirá em relação às do outros… Mas, sejamos justos, Buñuel tentou nos avisar..
O filme de espírito mais felliniano que Cacá já fez! Seu doce rompimento com os severos mandamentos do cinema politizado (digamos melhor: um corte na linha de seu cinema mais obviamente panfletário, já que aqui jamais abandona sua consciência social).
Road movie, sim, pero antes e sempre uma trupe mambembe percorrendo as funduras de um Brasil esquecido pelo chamado progresso (para a felicidade dos artistas da trupe, indo parar em recantos até literalmente 'desantenados').
A bela cena em que o 'Lorde Cigano' (interpretado por Wilker) faz nevar no sertão, ela em especial, é puro Fellini — mais especificamente, o de 'Intervista' ou mesmo (menos obviamente) o de 'Ginger e Fred'. Inclua-se aí um olhar em comum, fatalmente nostálgico, diante do que a TV vinha fazendo ao desinflamar a chama do Cinema — na ótica do diretor italiano — e aí no filme de Cacá a chama da arte mambembe nas cidadezinhas interioranas. Em ambos os contextos culturais, o do brasileiro e do italiano, a telinha deslumbrando os telespectadores com seu apelo pro entretenimento fácil e os dois cineastas fazendo filmes pra não deixar a mágica da telona morrer.
Porém, por outro lado, não falo de uma simples imitação; Cacá absolve aquele olhar lúdico de Federico, mas o transpõe para a nossa árida realidade brasileira. A cena citada tem, por exemplo, uma ironia tragicômica (que sendo toda nossa, creio, até o 'Guido' de '8 e 1/2' endossaria): a magia da arte pode não mudar diretamente nossa dura realidade (fartura ou progresso, como sugere um dos espectadores de 'Lorde Cigano'), sendo mais luz do que a ação propriamente dita; porém, justamente pelo superpoder de voar acima dos fatos, pode nos ensinar a querer mais que os limites que nos são impostos. Nesse sentido: fazer nevar num país tropical, de ingênuo truque de um malandro mandrake, torna-se também um ato político de transpor o Brasil tal como é.
Como diria Glauber, no seu manifesto 'Eztetyka do Sonho': "arte revolucionária deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não suporte mais viver nesta realidade absurda".
Ah! E que imã cênico era o Zé Wilker! Atraindo pra si toda a nossa energia vital. Nos hipnotizando com seu vozeirão que cai como uma luva nesse mandrake safo, gitano de cartola, esse que tem o criativo instinto de sobrevivência que é a grande marca registrada do brasileiro médio.
É sintomático que, quase invariavelmente, as críticas deste filme deem mil voltas (como um inseto em volta da lâmpada) para exaltar sempre e inequivocamente a mesma coisa — ou seja: o seio da história que originou o roteiro e, enfim, sua correta execução.
Essa — a história — é de fato brilhante e saída da mente de um agudo crítico das nossas contradições brasileiras (claro que me refiro a Dias Gomes). Ele, sim, soube usar as nossas contradições também na forma — extrapolando o conteúdo abordado encarnando nossa expressão em seus diálogos, trejeitos de personagens e alegorias teatrais. Diferentemente de Anselmo Duarte, que nada mais faz do que contar uma ótima história sem jamais personificar nossa cara em sua linguagem cinematográfica.
Eu faço um esforço para localizar qualidades fílmicas extraordinárias nessa obra e, simplesmente, não consigo — como dizem os mexicanos: ‘ni modo’. Evidentemente há boa técnica: planos acurados (inclusive gosto muito daquele plano de detalhe quando o ‘Zé dos Burros’ contempla a face da santa mirando-a com um ar inocentemente fetichista). É uma película costurada por um capricho formal, até certo ponto inquestionável; mas, pra mim, padece sempre daquela beleza estéril, higiênica que a Vera Cruz inteira personificava — imitando as virtudes da técnica Hollywoodiana (ou europeia), da forma mais isenta e disciplinada possível.
Trocando em miúdos: é o tipo de obra que poderia ser assinada por qualquer diretor contemporâneo ao Anselmo, munido desse roteiro e de semelhante aparato técnico; não há um toque indelével de criador. Há ourivesaria, nunca aquele vento autoral soprando vida nas narinas da criatura. Pra mim, Duarte era um técnico aplicado no labor cinematográfico, nunca um inventor capaz de se fixar no inconsciente coletivo — jamé um sonhador nos reposicionando frente a nossa dura realidade.
A trama é cirúrgica ao expor o caleidoscópio de nossa multiplicidade, para o bem e para o mal — multiplicidade representada no sincretismo da fé de nossa gente X o arcaico tradicionalismo das nossas instituições religiosas; no conservadorismo de povo colonizado X a anarquia de um povo que é bárbaro por natureza. Pero não há absolutamente nada na “caligrafia” visual do Anselmo que caracterize essa identidade, o que dirá a multiplicidade dela (mesmo lhe dando o desconto de situá-lo no epicentro: na exata zona de transição, da inofensiva Vera Cruz para o nosso período mais inventivo (o do Cinema Novo).
"Não sou capaz de" assimilar rs que entre obras revolucionárias em linguagem, contraditórias como são as entranhas do nosso povo — a exemplo das que Glauber nos ofereceu, ou mesmo com a fascinante contenção formal de Leon — o único filme que tenha merecido o prêmio máximo de Cannes seja justamente o mais neutro possível em relação a nossa alma criadora.
O que me tranquiliza, parcialmente, é saber que uma simples revisão em materiais críticos de revistas especializadas, como a Cahiers e afins, nos denuncia como o filme de Anselmo caíra até mesmo no ridículo quando, meros dois anos depois, os parrudos diretores e críticos europeus tomaram conhecimento da nitroglicerina pura que foi o despontar de nosso Cinema Novo e sua linguagem que absorveu e implodiu os cânones europeus.
Vale lembrar que, em 1964, 'Deus e o Diabo na Terra do Sol', o filme que convulsionou o festival naquele ano, impressionando deuses como Fritz Lang e Buñuel, perdera a Palma de Ouro por apenas um voto; como vemos, uma mera contingência numérica diante de uma obra que é, ainda hoje, inesgotável em sua linguagem. Sim! Prêmios, antes e sempre, são circunstanciais; já o Tempo é o melhor dos revisores e nos mostra quais mitos se mantém de pé.
Ao fim e ao cabo, penso numa imagem ilustrativa que resume toda a minha impressão sobre 'O Pagador de Promessas': um ebó gourmet rs; um sarapatel com as vísceras mascaradas em ervas finas — um Brasil exposto, mas dum modo a não ferir suscetibilidades estrangeiras. Aliás tenho cá pra mim que foi esse polimento na riqueza do estilo já ditado por eles, essa postura vira-lata diante das criações do ‘Primeiro Mundo’, exatamente os fatores que propiciaram a tal vitória do ‘Pagador’ em Cannes — claro, diante do indisfarçável narcisismo dos cineastas Primeiro-Mundistas.
P.S: A propósito da Glória Menezes nesse filme: considero a personagem feminina mais intragável da história do cinema nacional — mais pesada que a cruz carregada pelo “ZÉ”. Uma fusão de tudo de pior no estereótipo da mulher (do) caipira: débil, ranheta, pateticamente ‘dessituada’ e, antes e sempre, sonsa; tudo isso piorado por uma interpretação pífia, que fica ainda menor diante do brilhantismo do Leonardo Villar (que viria ter a sua apoteose 3 anos depois vivendo ‘Augusto Matraga’ no indefectível filme de Roberto Santos).
Deus e o Diabo na Terra do Sol
4.1 426 Assista AgoraOnde ‘O Criador’ fez a luz estourar na lente, um criador fez sua câmera ser ação incandescente:
“Esta violência revela uma grande necessidade de mudança social, política e histórica. Portanto, tenho que agir antes de pensar. O meu cinema é antes de tudo uma obra de “agitação”.
[Glauber Rocha]
São poucas pessoas, entre aquelas que realmente sentem o cinema correr em travelling nos trilhos das suas veias, as que conseguem manter-se alheias à poderosa expressão cinematográfica que ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ é e seguirá sendo.
Todos estes renderam-se: Fritz Lang ("É uma das mais fortes manifestações da arte cinematográfica que já vi"), Buñuel ("É a coisa mais bela que vi nos últimos dez anos, cheia de uma poesia selvagem"), Renoir, Bertolucci, Pasolini, Bong Joon-ho ("filme que jamais saiu de minha cabeça. É impressionante, ainda hoje fico de boca aberta ao rever aquela maravilha"). Impactando desde aquele que foi o grande vulto do Expressionismo alemão nos anos 20, até este sul-coreano de linguagem Pop, frisson entre os cinéfilos em 2020, Glauber Rocha (com precoces 24 anos de idade) intuiu, em 1964, que havia ficado chato ser moderno e decidiu ser eterno.
Mesmo porque, mais do que dar um pinote e desmontar do lombo do velho cinema que o carregou até aquele então, o cineasta fez de sua arte desgovernada um vento bravo desembestando crinas.
Deus disse (sobre o mundo que recém criou) “haja luz”, Rocha disse (sobre a câmera em que, de novo e de novo, recriou o mundo) “haja ação”:
Para nos apontar o horror contido naquele pacto selado entre a igreja e o coronelismo — em nome duma futura chacina, a que vai pôr fim aos beatos em Monte Santo — um dolly in, antecedido por um corte abrupto, se lança na direção do homem que será seu executor. E é este movimento que confere magnitude simbólica à arma examinada pelo pistoleiro 'Antônio das Mortes', sob uma sombra pesando em seu semblante, ele se familiariza com ela apontando-a e fazendo mira em direção ao crucifixo na parede.
Mais tarde, um outro dolly avança até sustar em close num destes beatos: 'Manuel'; seu rosto perfilado encontra-se encoberto por trevas como se trouxesse uma máscara posta sobre ele. De novo, a câmera nos carrega para dentro do turbilhão que a cena contém — dessa vez, para afundarmos na dúvida do beato horrorizado diante da missão de sacrificar um bebê para purificar sua mulher (ritual que 'Sebastião' propôs e 'Manuel' topou para selar sua fé no messianismo dele).
Uma pan vertical escala a montanha física que é 'Antonio', até finalmente alcançar a topografia do rosto do matador de cangaceiros e, por ter partido da horizontalidade do cano de sua arma, faz dela um apêndice dele. Assim também acontece, em plano detalhe, com a pan horizontal que desliza até o braço armado do cangaceiro 'Corisco' e faz parecer que o fuzil, por ele ostentado, é uma extensão sua; como se o seu corpo fosse, em si, um artefato de guerra.
É também através de um plano de detalhes que uma pan percorre a perna pendente de 'Dadá' — um bordado, visto em sua meia, faz-se súbito sinal de feminilidade — e eis que este plano vai se abrindo e flagra-a ferida por um tiro sendo arrastada pelo marido, 'Capitão Corisco'; assim foi com a sua própria trajetória de vida, levada à reboque pelo risco da guerra por ele travada. E bem antes deste, há um outro idêntico: o plano que detalha a linha do barbante arrastando-se para engrenar o moedor de mandioca, até que a câmera sobe nos fazendo enxergar o esforço contido no balé braçal produzido por 'Rosa' (quem, para obter a farinha, gira a roda da engenhoca).
Essas duas cenas em contextos aparentemente distintos, uma alocada no final e a outra no início do filme, se complementam ao versar sobre a sina da mulher do agreste: não viver, apenas aguentar-se, em meio aos vendavais constantes naquela que é uma natureza masculina.
E, claro, há ainda travellings. O auge enérgico! Aquele lateral, que nos introduz ao cenário do cangaço, desce reto toda vida e põe em ação os cactos fincados no chão do sertão (até eles se moviam para Glauber!). Ou o mais consagrado de todos eles, em torno do beijo entre 'Rosa' e 'Corisco': correndo sobre o trilho armado no solo irregular de Cocorobó, este travelling circular que, justamente por trepidar no cenário acidentado, consegue nos transmitir a exata sensação de atrito da barba dele contra a pele dela — se amando como dois animais, em big close, quase rompem o limite da tela ou do "destinozinho de chão".
E quando não é esta câmera em rotação fazendo os corpos deslocarem-se por sua causa, é a própria rotação dos corpos diante dela: assim o giro de um beato, zonzo, anuncia sua extinção na chacina em Monte Santo; ou os rodopios de 'Corisco' — também em vias de ser extinto — fazem dele fogos de artifício até o apagar da sua velha chama revolucionária.
Todas essas são imagens inesquecíveis no relicário de um cineasta, lírico, que amou reger movimentos exuberantes — inventando, com a sua câmera, a ação na imobilidade social.
Este seu olhar, quando encontra o nosso, faz até mesmo a imagem estatelada na tela ser uma promessa de vida rebentando nas palavras do cangaceiro (seu rosto em close — bela, áspera paisagem — ocupa toda a nossa vista): “Homem nesta terra só tem validade quando pega nas armas para mudar o destino”. Glauber fez do seu cinema justamente a arma potente que ele soube, como ninguém, manusear para mudar a nossa sina Terceiro-Mundista.
Larissa Gouveia
Terra em Transe
4.1 286 Assista AgoraA terra em trânsito. De como Glauber era o “astronauta da saudade”, capaz de atravessar a atmosfera inevitável dos fatos e gravitar num vazio cheio de si
"Tudo
é inacabado e aspira
ao vazio da rua em que nas-
cestes: sibilino, arbóreo,
transparente e lúcido
sopro na colina".
(Rodrigo de Haro)
Num cenário não casualmente em branca nuvens que, pelo uso da grande profundidade de campo, nos causam a impressão de estarem se desmilinguindo na linha da areia igualmente alva, o poeta 'Paulo Martins' morre sem sangue aparente e de rifle em riste — a maior parte do tempo, ele o sustenta pro alto; como, afinal, é a sina do artista: manter-se vertical diante da realidade horizontal.
Vemos o poeta num plano fixo e, pela distância focal, ele faz-se diminuído pelo excesso de cenário a compor o plano ao seu redor.
Tudo, nesta composição cinematográfica, traduz uma atmosfera de expectativa inclusive a melodia que, embora ameace um arremesso ao subir o tom, não se ilumina e expressa suspensão. A música mistura-se ao som de rajadas de tiros sobrepostos a estrepitosas sirenes e estes ruídos, interferências, quase a tornam inaudível. De modo que a própria melodia parece travar uma batalha entre o lirismo interior e a fatalidade exterior — como a nos lembrar que, naquele momento, a janela para a arte foi arrombada pela realidade e a beleza desvirginada por ela.
Era 1967, três anos após o golpe militar implantado e a pleno vigor, o avesso do ideal de uma revolução acalentada que não vingou — o próprio sonho, de toda uma classe média intelectualizada, ele mesmo passou em brancas nuvens. A paisagem esvaziada é a circunstância e, nela, o intelectual parece apequenado.
Mesmo expulso do enquadramento-momento, 'Paulo' ainda se desloca; ele é um lento caracol sob a concha de seu ideal, a prolongar sua linha existencial. Escanteado, à direita no quadro, forceja por alcançar o centro do palco imaginário. Por outro lado, quando o alcança, segue agonizando; mas, entre a impotência e a contorção diante dela, não largou jamais o gatilho de sua arma simbólica (sua voz ativa).
A morte filosófica e a persistência diante disso, a utopia e a derrota de um projeto de país — os paradoxos que ditaram aquele tempo, aqui, são como camadas de tinta compondo a natureza de um morto-vivo. É a alegoria definitiva sobre o espírito animal de um intelectual e de como era o zeitgeist naquele momento pós-golpe militar.
'Paulo Martins' é o corpo de um baile pela resistência armada; agarrado ao fuzil, o objeto fruto do desejo abortado, agoniza sua coreografia letárgica frente à ideia de não tê-la consumado.
Aliás — com várias silhuetas de mãos dadas, lideradas por aquela armada de foice — Bergman compôs, sob a fotografia de um céu cor de chumbo, aquela sua tal coreografia da morte em 'Sétimo Selo'; Rocha no entanto reduziu a um homem só com um fuzil, sob um céu branco saturado, o balé em que sepulta os ideais marxistas nos 'Anos de Chumbo'.
Este poeta — que idealizou culpado — se um dia repudiou a covardia do recuo de 'Vieira', ante a possibilidade de uma guerrilha, também não atirou no fascista ‘Díaz’. A verdade é que sua vocação para subjetividade não suportaria o fardo (ou a farda) da violência literal. A morte ele a toma como antídoto contra a paralisia política (dele e dos outros); sai da vida batendo a porta, com desobediente determinação, como um suicida o faz.
Este poeta (que se oferece para um auto sacrifício) é o próprio criador da 'Terra em Transe' — ousando pensar a controversa realidade, extravasando suas mais profundas angústias, o cineasta serviu-se em bandeja de prática autocrítica. Seu cinema foi exatamente a maneira que encontrou de atirar “nonada”.
A ‘inútil paisagem’ (“Mas pra quê?/ Pra que tanto céu?”), vista neste último longo plano sequência, ainda se manterá até quase nos perder da sua vista. E, antes que os créditos tomem conta da tela, não há um desfecho para o protagonista sobrando nela — 'Paulo' não tomba e nem tampouco se reergue:
Glauber empurra o clima de tensão, da realidade, para fora da diegese de seu filme. Em pleno voo sobre os destroços de um país sonhado, eis que ele ejeta os espectadores no abismo dos fatos. Os seus contemporâneos que lutassem; nós, os herdeiros, que lidemos com o golpe que 'Terra em Transe' ainda nos fulmina!
Mais de meio século depois, porque nos decifrou ainda nos devora. Mas de repente, não mais que de repente, um só fragmento deste seu delírio barroco é capaz de abarcar toda a experimentação cinematográfica. E é este aqui descrito: a derradeira cena numa montagem elíptica; sem diálogos, sem acessórios cenográficos. O vazio cheio de si. Darcy Ribeiro, em 1981, discursando no enterro desta Rocha que voou, lhe prometeu: “vai ser, há de ser, Glauber!”.
Larissa Gouveia
A Noite
4.2 103Michelangelo Antonioni: o arquiteto do vazio nos espaços interiores
Em 'La Notte', seu filme de 1961, o cineasta italiano desvenda o interior de personagens tristes por meio da euforia exterior no concreto que sobe em retas imparáveis
"É a dor da Força desaproveitada,
– O cantochão dos dínamos profundos.
Que, podendo mover milhões de mundos,
Jazem ainda na estática do Nada!"
(Augusto dos Anjos)
'La Notte', de Michelangelo Antonioni, é o seu filme auge na chamada: Trilogia da Incomunicabilidade (ou Trilogia da Alienação). O segundo integrante, precisamente um elo de ligação entre 'L'Avventura' (1960) e 'L'Eclisse' (1962), forma o tríptico de um tipo de cinema existencialista até a medula – refundando as possibilidades do olhar de quem filma, resultando no que Pier Paolo Pasolini denominou: cinema-poesia.
Um tipo de cinematografia que quebra o princípio número um da filmagem: a presença da câmera jamais deverá ser sentida pelo espectador. Em Antonioni, ao contrário, a câmera assume a função de escritor com eu-lírico ativo e é, pela caligrafia dela, que o cineasta descreve cenários inanimados que, sob sua ótica, se tornam sugestivos e, por sua vez, estes cenários (e as coisas que os compõem) convertem-se em espelhos das emoções trancafiadas no interior de personagens monossilábicos.
O filme é aberto por uma longa ‘pan vertical’ descrevendo, externamente, a descida de um elevador – e é mesmo interminável este 'tilt' enquanto os créditos do filme transcorrem na tela. Na trilha sonora, o ruído mecânico se mistura a uma melodia atonal. Assim, logo de cara, o diretor nos lança ao sabor de sensações que atravessam todo o seu filme e que atravessam as próprias cidades a se reinventar sob o signo do progresso – um progresso ilustrado por estruturas arquitetônicas que desdenham, em debate vertical, o limite dado pelo céu.
Deste modo, a própria subida do elevador carrega consigo pontos que baseiam a crise existencial do homem moderno: o imediatismo contido nos típicos atos maquinais X a imensidão de tempo perdido pela vida (que deveria ser tanta, lá fora); a angústia que coloca o homem moderno entre a imobilidade e o dinamismo, a mecanização e a autonomia.
Mas o elevador sobe, indiferente à carga humana que carrega e saberemos, em breve, o próprio casal protagonista entrará num elevador que pertence a uma clínica:
'Giovanni Pontano' (Marcello Mastroianni) e 'Lidia' (Jeanne Moreau), marido e mulher, estão indo visitar um amigo querido, paciente terminal: 'Tommaso Garani' (Bernhard Wicki). O mais intrigante neste encontro é o fato de, no amigo, fagulhar uma ânsia de vida que, nota-se, inexiste no casal. Há pouco, antes deles entrarem no quarto, o moribundo suava e havia uma espécie de animalidade a guinchar e se debater ferozmente em seu corpo em extinção; em suas pupilas, duas esferas lúcidas, vê-se a morte chispar e ser como que contida por uma cúpula.
A própria impotência, diante da doença, é quem escava em 'Tommaso' os vestígios de resistência — quer seja no corpo encharcado, a receber mais uma dose de morfina, no assombro dos halos nos olhos ou, quem sabe, no artífice borbulhante do champanhe que beberica em sua cama. Mesmo ao contrário, pelo viés da morte, a vida late no doente. Em 'Lidia' e 'Giovanni' é que ela parece ter atracado e eles percorrem pela mesma rota desambicionada.
Michelangelo filma estranhos espantalhos da civilização: tudo em seus personagens ou, por causa deles, parece enviar uma mensagem de afugentamento ao menor sinal de aproximação do outro. Isto fica perceptível, por exemplo, no episódio da paciente ninfomaníaca que, nesta mesma visita à clínica, agarrou Giovani para, ao fim, à proximidade do sexo se projetando sobre ele, a paciente ser contida pela enfermeira que entrou pela porta abruptamente; 'Giovanni' foge – sai ileso da hipótese de prazer; esta foi a primeira vez, no entanto, não será a última em que isso lhe ocorrerá durante o filme.
Defrontados, sentados à mesa, o casal de protagonistas é que não pode fugir um do outro. Não. Ainda assim, desgarram-se nas entrelinhas. É noite e a noite sugere expectativas – no mínimo, a de amanhecer. Assim, antes de irem a uma festa da elite, a qual foram convidados, buscam descontração num show performático em uma casa charmosa. À mesa, envoltos pela seda de uma música deslizante, eles assistem um casal negro se contorcer em seus corpos atléticos:
Mantendo uma espécie de DR muda, 'Lidia' se alivia através do toque em objetos simbólicos (na clutch que compõe seu look, posta sobre a mesa, ela encaixa o dedo na gota do adereço metálico no fecho e trisca, experimentando o botão do punho da manga, na irrepreensível camisa do marido). Em ambos os contatos, ínfimos, é confessada a sua necessidade de se sentir reinserida e correspondida.
Mas, longe de correspondê-la, é nos gestos de sua mulher, ambíguos e inacessíveis, que se manifesta diante de 'Giovanni' a dessintonia entre ambos. E enquanto isso acontece no microcosmo dos dois, o número artístico do casal negro propõe uma interação oposta: excitante e sincrônica — excitação e sincronia é tudo que está extinto na desgastada relação matrimonial.
Em plena ruína, se eles a sentem é menos um no outro do que nos espaços do núcleo urbano em que vivem; nele, tudo parece feito para soterrar o homem em si mesmo:
Aquela ferrugem crocante, que carcome o portão, onde provavelmente foi uma fábrica, 'Lídia' a descasca irresistivelmente. Não consegue, no entanto, eficaz decupagem nas crostas acumulando-se sobre seus próprios projetos de vida. O que foi um relógio de ponto está pifado no chão, os ponteiros perderam-se no tempo, seu visor nos aponta para um passado de força investida com rigor; mas, agora, só resta a imobilidade-hora diante da energia que não poderá ser outra vez empregada.
'Lidia' deambula, peregrina; a cidade lhe convida para coisa nenhuma. Mas ela se move, mesmo assim, como um dínamo que jaz na estática do nada. Abaixo da sacada do prédio, em contra-plongée, a vemos encostada num poste; uma estrutura parece apoiá-la e a outra acossá-la – assim vive, abrigada e limitada pela sombra do intelecto do marido (o renomado escritor em crise criativa).
Quando ela tarda numa destas caminhadas, 'Giovanni', depois de um breve cochilo, sente sua ausência no apartamento confortável em que vivem. Assim, naquele assombro do sono interrompido, atende ao ímpeto de ir buscar uma explicação com a vizinha; entre eles, uma desagradável grade delimita o breve diálogo travado entre ambos.
Se o escritor não consegue lê-la em sua presença, se sua mulher lhe parece um enredo indecifrável, ele também não suporta a ideia de fechar o livro. E estar assim sem ela, naquela casa silenciosa, pôs nele o súbito assombro do fim; prefere-o lento, adiado.
Mas Antonioni, o pai do cinema moderno, não filmou apenas a fissura no teto de uma relação a dois, afinal, as grades separatistas estão lá entre os vizinhos. Eis que nós assistimos ao desmonte das conexões sociais; o tédio ao descobrir o próximo.
Justamente ele, o tédio, é quem estende o tempo de vida do casal terminal. O homem desafia o espaço com a imensidão de projetos concretados para, depois, assistir suas projeções pessoais se encolhendo sob o abrigo deles.
A festa esfriou, o povo sumiu, a noite passou. Amanhece e eles precisam ir. 'Lidia' lê para 'Giovanni' uma carta que ele lhe escreveu, talvez, no começo do relacionamento. Ele se assombra, algo o agulha como uma ameaça — deduz um amante, novo amor? Ela o lembra: é ele mesmo o autor.
A adiada onda do fim se alteia sobre os dois, mas 'Giovanni' se lança sobre sua mulher e a sufoca num beijo, seus braços são uma tentativa tentacular; com o maciço de seu corpo, ele a comprime impedindo que ela lhe escape. É de sufoco exatamente o que isto se trata e, até por isso, poderíamos chamar o gesto de: abraço do afogado. Um arrasta o outro para o vácuo da morte por dentro. Mas como viver no vazio da cidade, sem alguém para preenchê-lo? Tudo os desune e, no entanto, nada os separa.
Larissa Gouveia
Bye Bye Brasil
3.9 145 Assista Agora‘Bye Bye Brasil’: tem saudade de um futuro, que nunca chegou de fato; saudade do Brasil
Progresso e miséria, arte e tragédia social — tecnologia e improviso, Fellini e Cinema Novo — convivem em desarmonia iluminante numa mesma tela-país
“Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
(…) Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”
(C. Drummond)
Conta-se que Federico Fellini teria deixado, junto à câmera em que filmava 'Otto e Mezzo', o seguinte recado endereçado a si mesmo: “Lembrete: este filme é uma comédia”. Penso quantas vezes Cacá Diegues teve de lembrar a si próprio, ora viajando junto ao seu elenco por rincões remotos dessa terra brasilis, estradão afora, que ‘Bye Bye Brasil’ também era uma comédia — dessas que sabem mimetizar o drama na máscara do riso.
E o cineasta já se apropria desta dualidade tragicômica desde o título americanizado, que debocha e impõe uma despedida da ingenuidade duma certa identidade nacionalista; enquanto também nos acena e faz lembrar que vivemos para sempre, sempre por um fio, tentando entender que nação somos de fato e o que pode e deveria ser nosso — entre o partir e ficar, entre o Norte e o Sul: sobrevivendo.
Ser nômades em sua própria casa, essa é a eterna marca de um povo colonizado; um povo que foi expulso de sua natureza. Daí convivermos, “à merencória luz da lua”, com a sensação de saudade dum futuro (que insiste em não chegar nunca) olhando para a paisagem de um passado que não se resolve.
De um lado um mundaréu de realidade (Cinemanovista) a perder de vista, do outro: assumir o piloto deste que é o filme de espírito mais felliniano que Cacá já dirigiu. Voando, além do limite improvável, o cineasta fez um trabalho duplamente custoso — tanto financeiramente, quanto intelectualmente já que, à época, sofreu com as acusações de seus pares (das quais se defendeu cunhando a expressão: ‘patrulha ideológica’).
Ao fim e ao cabo (de guerra), sagrou aqui seu doce rompimento com os sisudos mandamentos do cinema politizado (Digamos melhor: um corte na linha longitudinal daquele dito cinema de teor mais obviamente panfletário, já que aqui jamais abandona sua consciência social).
‘Road movie’, sim, pero antes e sempre uma trupe mambembe percorrendo as funduras de um Brasil esquecido pelo chamado progresso (para a felicidade dos artistas dessa trupe, indo parar em recantos até literalmente ‘desantenados’).
Cacá e seus personagens circenses, seus ícones na mitologia afetiva de um povo ‘Neo-Realista’ por demais, ‘navegam’ um país em estado de redescobrimento:
‘A moça do sonho’ (‘Salomé’), que arrebata “o chão no tablado solto no sem-fim”, tem de se prostituir; o mágico (‘Lorde Cigano’) não pode evitar a realidade, que urge nele o dom de iludir; ‘O Rei dos Músculos’ (‘Andorinha’) é um ‘Zampanò’ tupi e conhece bem os seus limites ao ter ‘a força’ diante dum cenário abatedor. O sanfoneiro sertanejo (‘Ciço’), incorporado ao grupo, sente de perto a miséria-retirante fungando no seu cangote e quer voar para além dos destroços da ‘Asa Branca’.
Todos eles, no entanto, apenas aterrissam de uma caravela-alucinação; prontos para inventar uma vida, diariamente nova, à custa de sobreviver.
Pela estrada afora, avanços tecnológicos chegam (à passos de formiga). Nas cidades aportadas: um povo é arremessado para voos sociais através do trapézio de um subcapitalismo que os devolve, sempre, de volta ao insignificante lugar de onde partiram. A miséria conduz sua caravana de impotência pelos mesmos cenários ermos.
E a própria miséria conduziu Diegues a desafiar o projeto Cinema Novista; como um 'Ícaro' inventando asas para voar, além documental. A bela cena em que o ‘Lorde Cigano’ (José Wilker) faz nevar no sertão, ela em especial, é Fellini na veia. Mais visualmente, aquele dos truques cinematográficos — em que a ilusão é propositalmente mantida aparente, até denunciada, onde só somos parte do pacto justamente porque nos permitimos ser iludidos — o de ‘Intervista’ ou aquele da cena do navio rememorado (no mar plastificado, propositalmente cenográfico) de ‘Amarcord’.
*(No entanto, uma diferença se desgarra entre as semelhanças: o que para Fellini era apenas metalinguagem, para Diegues é nosso também dom de improvisar o milagre do fascínio cinematográfico sobre a escassez de recursos tecnológicos).
Mais familiarmente, o Fellini de ‘La Strada’; aquele nos enredando com uma mesma miséria famélica, que se fantasia de artista mambembe — ‘Gelsomina’, naquela Itália destroçada do pós-guerra, foi vendida a ‘Zampanò’ pelo trocado suficiente para alimentar brevemente o restante da família dela. Cruzamos “o olhar mendigo/ da poesia” nos olhos de um e de outro cineasta.
Ou mesmo (menos obviamente), e mais particularmente, o de ‘Ginger e Fred’: onde Cacá e Federico carregam uma visão em comum, fatalmente nostálgica, diante do que a TV vinha fazendo ao desinflamar a chama do Cinema — na ótica do diretor italiano — e aí no filme do brasileiro a chama da arte mambembe nas cidadezinhas interioranas.
Em ambos os contextos culturais, no Brasil ou na Itália, a telinha deslumbrando os telespectadores com seu apelo ao entretenimento fácil e os dois cineastas fazendo filmes para não deixar a mágica da telona morrer.
Por outro lado, não falo de uma simples imitação. Diegues absolve aquele olhar lúdico de Fellini, mas o transpõe para a nossa árida paisagem brasileira.
A cena citada tem, por exemplo, uma ironia tragicômica (que sendo toda nossa, creio, até o ‘Guido’, de ‘8 e 1/2’, endossaria): a magia da arte pode não mudar diretamente nossa realidade ('fartura ou progresso', como sugere o prefeito espectador de 'Lorde Cigano'), sendo mais luz do que a ação propriamente dita. Porém, justamente pelo superpoder de voar acima dos fatos, pode nos ensinar a querer mais que os limites que nos são impostos. Nesse sentido: fazer nevar num país tropical, de ingênuo truque de um malandro mandrake, torna-se também um ato político de transpor o Brasil tal como é.
Como diria Glauber Rocha, no seu manifesto ‘Eztetyka do Sonho’, “arte revolucionária deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não suporte mais viver nesta realidade absurda”.
‘Bye Bye Brasil’ foi lançado no primeiro ano da década que marcaria a reabertura política (quando os generais nos devolveram, não o Brasil entregue de bandeja, mas num cinzeiro, um país feito em guimba tragado e esgotado). Nasce alguns anos após ‘Eztetyka do Sonho’, quando Glauber já havia incorporado aos personagens miseráveis, aqueles do cru Realismo que deu a tônica da maioria dos filmes da primeira fase do Cinema Novo, o justo direito ao transe — e este funcionando como trânsito, ponte legítima entre a tomada de consciência e o jorro libertador de nosso imaginário; um imaginário carnavalesco que o próprio Rocha traduziu em imagens que se fixaram para sempre no nosso subconsciente.
Inventar sob o peso da realidade justamente para suportar carregá-la adiante. A imaginação fértil dá substância a minguada carne do ser brasileiro.
E por falar em dar substância: Zé Wilker… Um imã cênico, soube reter para si nossa energia vital confinada. Nos hipnotizando com seu vozeirão que caiu como uma luva nesse gitano de araque, malandro de cartola, a encarnação do criativo instinto de sobrevivência que é (ainda hoje) a marca registrada do brasileiro médio.
Diegues faz de seu filme um sonho, espalhafatoso, balançando no para-brisa do veículo rústico reinventado pela 'Caravana Rolidei' (ou melhor, o título já retificado: 'RolideY', com ipsilone no final — "porra, como a gente era ignorante").
Quer seja no amostrado neon hi-tech do novo caminhão, ao som de 'Aquarela do Brasil' em inglês, ou no tímido Sol poente que o 'Lorde' mantém aceso ao comando de sua frase cabalística em portunhol, 'Bye Bye Brasil' diz "haja luz" sobre este país ofuscado pelo progresso e a improvisa no desencapado fiozinho de esperança que conecta nosso povo.
Larissa Gouveia
Longo Caminho da Morte
3.6 3Longo Caminho da morte: o obituário fetichista de Júlio Calasso; as pulsões, mórbidas e eróticas, em seu Cinema
A decadência de uma tradicional família rural, o falecimento de seu último herdeiro e a morte como estímulo criador:
“Bem conscientes do nosso ar lúgubre
Tão contrastado pelo sentimento de felicidade
(…) Que nos penetrava
Como a espada de fogo que apunhalava as santas
[extáticas”.
(Manuel Bandeira)
Por duas vezes, pelo menos, a morte foi objeto de estudo de personagem ou estímulo revolucionário nas telas do Cinema Novo: em ‘A Falecida’, Leon Hirszman — o mais metódico dos Cinemanovistas — desidrata as tintas histéricas de ‘Zulmira’, a protagonista da peça de Nelson Rodrigues, obcecada pelo seu próprio funeral, ao fazê-la moradora dum subúrbio cinza e sem horizonte. O cenário desolador passa, então, a ser um fator na equação dessa morta-viva.
Em 'Terra e Transe', de Glauber Rocha, sob a regência do mais Dionisíaco dos diretores brasileiros, a morte é um ato de insubordinação; era subverter a realidade política — paralisante, tal como era. Aliás, o filme tem o ritmo do delírio de seu protagonista, o poeta 'Paulo Martins', que agoniza em vida ao não consumar a sua vocação (em essência) revolucionária.
Júlio Calasso, um legítimo filiado à corrente do Cinema Underground/ Marginal, é filho ainda que bastardo da geração Cinema Novo (Glauber pariu o Underground ao filmar, em 1968, seu curta 'Câncer'; embora rejeitasse a prole, chamando-os — debochadamente — de "udigrundi"). Assumidos ou não, aos herdeiros restou a difícil missão, ainda mais suicida que a de 'Corisco' "desarrumando o arrumado", de revolucionar o já revolucionado.
E se é fato que na linguagem ‘Marginal’ não cabe falar em missão dada, afinal, sua única base é o transbordamento do recipiente que limita; é também um fato que a liberdade excessiva pode significar um sufocamento por intoxicação em si mesmo. Mas, felizmente, não é o caso aqui.
A variedade e a personalidade da caligrafia visual de Calasso, a montagem irreverente, os planos e movimentos de câmera… tudo isso rouba o ar abafado a que nos acostumamos. Júlio nos captura, sim, mas também sabe nos alforriar da escravidão na Arte cartesiana.
‘Longo Caminho da Morte’ é o caso de um filme em que não nos vale, para nada, nos prevenirmos dele lendo sua sinopse; ou mesmo, saber que seu protagonista é o ‘Coronel Orestes’ (Othon Bastos) — o fazendeiro falido, derradeiro herdeiro de um império cafeeiro.
Toda a real ação do filme não se dá no plano do discurso ou na desordem de sua narrativa. O enredo desabrocha de suas próprias imagens disruptivas, no som e na fúria criativa que elas não permitem ficar detidas dentro de si mesmas.
Logo na primeira sequência, no segundo cenário que compõe sua introdução: a câmera, numa pan horizontal, passeia por participantes do velório, com seus rostos protocolarmente apáticos, para encontrar — em plano fechado — um vibrante caixão florido com o protagonista dentro; um caixão ‘Primavera’, de Vivaldi, num comercial de ‘Vinólia’ (R).
Nelson Cavaquinho o diria: “Quando eu passo/ perto das flores/ Quase que elas dizem assim:/ Vai, que amanhã enfeitaremos o seu fim”. Glauber, ao fazer do enterro (de Di Cavalcanti) um filme organismo-vivo, confirmaria Calasso e Cavaquinho.
Há, a propósito, flores espocando por toda cenografia nos cômodos da fazenda de 'Orestes' (cada vez menos proprietário, enterrado em empréstimos bancários e promessas vãs de subsídios agrícolas). Um cheiro de morbidez, empestado no ar, a entontecer todos os personagens — meros vultos do que foram em seus dias de glória.
E a impressão fantasmagórica é tão nítida que, amiúde, o diretor opta por os filmar de longe e de cima nestes ambientes internos da casa, como se fosse um espírito a ainda observar a pseudo-vida familiar.
Júlio também soube ser provocador, como Glauber foi. Mas, e isso é inacreditável, fez um filme que é a interseção entre a irreverência de Sganzerla e a disciplina de Leon Hirszman. 'Orestes' é o 'Paulo Honório' dos undergrounds, numa 'Fazenda São Bernardo' alucinação; e sua casa, imoral católica, é aquela mesma 'Assassinada' por Lúcio Cardoso e Paulo César Saraceni. Aliás, este aqui precede (em 1 ano) ao incensado filme de Leon: São Bernardo (1972).
Cumprindo sua sina marginal, 'Longo Caminho da Morte' é um dos filmes mais inventivos já feitos no Brasil; mas praticamente nunca é citado com destaque na filmografia de Othon Bastos, inclusive pelo próprio. Ele, o eterno 'Capitão Corisco', aqui é uma presença máscula intoxicante. E sabendo que seu rosto é a própria foto da carteira de identidade do Cinema Novo, o ator teve, pela lente de Calasso, a direção que mais soube utilizar seu físico:
Embora não seja grande, seu corpo seminu tinha o espontâneo tônus muscular do homem trabalhador braçal; um biotipo que se coube bem no protagonista rude que traz em suas rédeas um império rural.
Sobre uma mesa, estirado, é esse corpo de Bastos que impressiona ao ser moldado, sob uma luz que o torna amadeirado, com o aspecto Barroco do Cristo crucificado — uma visão do subconsciente da amante de 'Orestes', mortificada por culpa cristã. E a câmera o explora sob a exata dualidade barroca: um ícone religioso e a carne humana em apelo ao prazer sensorial.
Também iconográfico é a repetição de tomadas da morte deste coronel: sua queda (sem corte) refaz o corte seco na montagem, em 'Deus e o Diabo', que tornava 'Corisco' finalmente um mito agrário tombado; o cinema de Glauber se mimetiza no de Calasso!
Numa outra alternância de tomadas, refeitas com pontuais variações, a figura materna, a mulher e a amante de 'Orestes' revezam-se em sua cama de casal; num pacto, uma espera e até reivindica a presença da outra. Nuas, ele chicoteia as costas das parceiras — enquanto delira um discurso de poderoso em xeque. Eis que este delírio tem a temperatura surrealista de 'La Belle de Jour', de Buñuel — um acorde do filme do espanhol.
Sob a lente, aumentativa, de Calasso: a nudez feminina é esta espécie de tela em branco para o coronel decadente descarregar as tintas berrantes, típicas do moralismo de um patriarcado que se reprime em público para se exceder no privado. Já Buñuel, com a “pura ou degradada” nudez de ‘Séverine Serizy’ (C. Deneuve), a esposa infiel nas horas vagas, alforriou a mulher do tédio matrimonial — fê-la desgarrar-se em fetiches.
Digamos que Calasso filma o lado de lá das costas oferecidas por 'Séverine', o da projeção masculina: que submete e condena.
Ao fim da sequência surrealista, usando o 'raccord' como subtexto: Júlio sai da submissão da amante chicoteada, para a imagem de bois confinados pro abate e, no frame seguinte, é ela própria quem observa o açougueiro partir uma ensanguentada carcaça bovina. É que em 'Longo Caminho da Morte', os arquétipos de Eros e Tânatos regem este que é um filme sinfonia sensorial — são eles os maestros das contradições e aproximações entre vida e morte (sexo X submissão, apatia X poder) que vimos nessa sequência e veremos em tantas outras.
Nesse sentido, o prólogo nos soará claro em suas intenções: na montagem das cenas do caixão, Júlio inseriu um frame do rosto de ‘Orestes’ chegando ao fim de um orgasmo (o momento também chamado de ‘la petite mort’).
A mesma colcha vermelha na cama vazia, formando uma tenda no alto duma porta, sobre o corpo nu da mulher… Objetos se repetem, de formas variadas, na composição do tabuleiro cenográfico de Calasso; expressam a passagem do tempo pelos cômodos incômodos e a imobilidade de seus moradores mobílias.
Fixas no espaço? Só as longas raízes da vetusta árvore (fincada no chão da Fazenda) ou as pilastras da casa, ambas imagens que sustentam um império na arquitetura do Tempo — ambas filmadas em planos-detalhes análogos.
Seguindo a definição do próprio cineasta, ‘Longo Caminho da Morte’ é “um xadrez”. “Meninos, eu vi!” Nem só de caos se nutriu um cineasta ‘Udingrundi’.
Há um crítico que diz que alguns filmes brasileiros carecem de um tratado sociológico para serem entendidos. Olavo Bilac, em seu soneto, disse (sobre poder ouvir as estrelas): “amai para entendê-las”. Eu fico com a pureza da resposta do poeta.
Inclusive, “Seja marginal/ seja herói”. Vendo essa que foi a estreia de Júlio como diretor, é inevitável sentir pesar por nosso cinema de apelo televisivo, onde tudo deve ser explícito ou mastigado em diálogos — sob “a força da grana que faz e destrói coisas belas”.
Estou farta daquele lirismo bem-comportado, funcionário do público atendendo a demanda do freguês. Pouco importa as intenções por trás do criador, quando uma arte pulsante se diz em tudo melhor do que no plano do discurso.
Numa carta, um outro poeta, André Breton, dizia aos críticos: “o importante não é o que o poeta queria, mas o que ele disse”.
Tal qual ‘Brás Cubas’ (que também usou a figuração de seu falecimento como estímulo criativo), nem seu protagonista e nem o próprio Calasso deixaram herdeiros nesse e desse filme. O próprio cineasta não teve mais para onde ir depois disso aqui. Que ironia fina!
Larissa Gouveia
O Pagador de Promessas
4.3 363 Assista AgoraUma Palma de Ouro incomoda muita gente; uma obra de Arte anêmica é o que incomoda, incomoda muito mais
“O Brasil é o país que desmoraliza o absurdo, porque o absurdo acontece. Aceito a tarja que me pregam na testa: subversivo. Minha única dúvida é se realmente mereci, se de fato incomodei o bastante”. Dias Gomes
É sintomático que, quase invariavelmente, como um inseto em volta da lâmpada, as resenhas de 'O Pagador de Promessas', o clássico filme de Anselmo Duarte, uma adaptação da peça teatral homônima do dramaturgo Dias Gomes, deem mil voltas para exaltar sempre e inequivocamente a mesma coisa — ou seja: sua trama de onde se originou o roteiro e a realização fílmica.
Aliás, o público médio — e foi lendo os comentários dos sites de review que cheguei a esta seguinte conclusão — geralmente confunde sua empolgação pela narrativa, com a sua opinião quanto a forma como esta foi narrada (e por forma subentenda-se: a ótica do narrador, sua linguagem, a execução do roteiro).
Uma boa história não quer dizer necessariamente um bom filme — antes, fosse fácil assim “a vida da bailarina” (e quem descerrar a cortina de um cineasta verá, com horror, que todo sonho autoral realizado é uma série de outros desfeitos pelo caminho até o projetor). Mas essa é uma discussão infinita, eu aceito, já que Arte nunca foi e nem será método exato e toda obra artística é polissêmica.
‘O Auto da Compadecida’, a comédia dramática de Guel Arraes, por exemplo — que é como este drama aqui também uma obra adaptada do Teatro e que idem versa sobre a demagogia das nossas instituições religiosas — sequer é Cinema literalmente; já que trata-se dum recorte da série televisiva, transmitida pela Rede Globo, que foi devidamente aparado e compilado pro tempo das telonas. O que não o impede de ser uma adaptação primorosa, não faz dele um cinema primoroso — pelo menos, fora da apreciação subjetiva de qualquer espectador, do ponto de vista estrito da linguagem, não creio que seria classificada como uma obra prima.
Ao fim e ao cabo: a obra de Guel vence qualquer pretensão cinéfila e é uma trama que contagia até o mais sisudo dos críticos. Mas o ‘O Auto da Compadecida’ fica com a devida parte que lhe cabe no latifúndio cinematográfico, um pedaço de carisma fixo na memória afetiva do espectador, ele jamais sonharia concorrer a Cannes — e, eis aqui, o que será o ponto chave de minha crítica em relação ao filme de Anselmo (e, por dedução, supõe-se o porquê um tal dente do ciúme mordia o cangote dos cineastas Cinema Novistas, que nunca engoliram o latifúndio de prêmio concedido a Duarte).
Ocorre que com ‘O Pagador de Promessas’: também é ela — a história — quem de fato faz o carreto transportando as maiores qualidades do filme; ao sabor da mente de um crítico voraz pelas nossas contradições brasileiras. Dias, sim, (autodeclarado subversivo) soube usar as nossas contradições também na forma — extrapolando o conteúdo abordado, encarnando nossa expressão em seus diálogos, trejeitos de personagens e alegorias teatrais.
Diferentemente, Anselmo Duarte, nada mais faz do que valer-se de um grande enredo sobre nossa brasilidade sem jamais personificar nossa cara em sua linguagem cinematográfica.
Merecer ou não merecer? Eis a questão. E o terreno da Arte é mesmo salpicado de paradoxos, o que foi um prêmio histórico torna-se o carma de uma obra. Não pensem que ele fica intacto na estante, um troféu de Cinema caminha assim como caminha a humanidade. É que, mais do que em qualquer outra linguagem artística, um filme é uma obra eternamente sujeita às ações do Tempo (até as literais que marcam e prejudicam a celuloide duma película).
Assim sendo: diante da aura inevitavelmente mítica, que a Palma de Ouro única conferiu a Anselmo, é preciso um esforço para localizar extraordinárias qualidades autorais nessa sua realização.
Evidentemente há boa técnica: planos acurados. O plano detalhe na Santa, quando o 'Zé do Burro' (Leonardo Villar) contempla a face da Virgem mirando-a com um ar inocentemente fetichista, é um momento de inegável grife autoral; onde o diretor deixa escapar, pelas frestas da imagem picotada, que um culto religioso não deixa de ser uma fantasia de projeção — a fé é como um solo tocado sobre o tema principal.
Duarte fez uma película costurada por um capricho formal, até certo ponto inquestionável; mas que igualmente padece daquela espécie de beleza estéril que a Vera Cruz inteira personificava — imitando as virtudes da técnica old Hollywood, da forma mais isenta possível.
Já a trama de Gomes assume-se frontal ao expor nossa multiplicidade, ela que existe para o bem e para o mal — multiplicidade representada no sincretismo da fé de nossa gente X o arcaico tradicionalismo das nossas instituições religiosas; no conservadorismo de um povo colonizado X a anarquia de uma gente que é bárbara por natureza. Com ‘Zé do Burro’, Dias transmuta a fé de seu estado essencialmente contemplativo, para a fé tomada como ideologia que ousa confrontar sua própria essência.
“Zé do Burro faz aquilo que eu desejaria fazer — morre para não conceder. Não se prostitui. E sua morte não é inútil, não é um gesto de afirmação individualista, porque dá consciência ao povo, que carrega seu corpo como bandeira”, afirmou o dramaturgo politizado até o tutano.
Mesmo concedendo ao cineasta o desconto de situá-lo no epicentro: na exata zona de transição, da inofensiva Vera Cruz para o nosso período mais efervescente (o do Cinema Novo), e por mais que imagens bem enquadradas se perdoem por se trair, no mínimo, é uma incompatibilidade de gênios o casamento da obra de um assumido subversivo com um adaptador passivo — mas, àquela época, ninguém em Cannes o saberia. Já o diretor paulista se soube ser um técnico aplicado no labor cinematográfico, não mereceu ser o inventor capaz de se fixar no inconsciente coletivo — mas isso eles só descobririam depois.
Com as devidas palmas, mas sem ‘a Palma’, seria possivelmente mais fácil acolher a criação de Anselmo no seu tempo espaço e, talvez, ele até não se devesse nada. Porém ela existiu e fica difícil assimilar que entre obras revolucionárias em linguagem, contraditórias como são as entranhas do nosso povo — a exemplo das que Glauber nos ofereceu, ou mesmo com a fascinante contenção formal de Leon — o único filme nacional que tenha merecido o prêmio máximo de Cannes seja justamente o mais neutro possível em relação a nossa alma criadora. Eis aí um incomodo feito de uma nota só.
O que resigna, parcialmente, é saber que uma simples revisão em materiais críticos de revistas especializadas, como a Cahiers e afins, nos denuncia como o prêmio à película caíra até mesmo no ridículo quando, meros dois anos depois, os parrudos diretores e críticos europeus tomaram conhecimento do potencial inventivo que recheava os átomos do Cinema Novo e sua linguagem que, se absorveu, também implodiu os cânones europeus.
Vale lembrar que, em 1964, ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’, o filme que convulsionou o festival daquele ano, impressionando Fritz Lang e Buñuel, perdera a Palma de Ouro por apenas um voto; uma mera contingência numérica diante de uma obra de Arte que é, ainda hoje, inesgotável em sua linguagem. Prêmios, antes e sempre, são exatamente isso: circunstanciais.
‘O Pagador de Promessas’ é a vitória do tempero deles na nossa farofa — a iguaria típica do país exótico ao Sul do Equador, servida antes do Cinema Novo e da Bossa Nova devorarem antropofagicamente a Cultura do Primeiro Mundo. É sarapatel com as vísceras mascaradas em ervas finas — um Brasil exposto, mas sem ferir suscetibilidades estrangeiras.
E não seria recalque dizer que foi esse polimento no estilo ditado por eles, essa postura vira-lata diante das criações Primeiro-Mundistas, exatamente os fatores que propiciaram sua vitória no festival francês — afinal, o Narciso colonizador acha feio o que não é espelho colonizado.
Larissa Gouveia
Dom
2.5 167Aí mais abaixo, há uns 3 anos, eu escrevi uma crítica sobre esse filme e a fiz em tom sério e jornalístico. Porém, atualmente, eu estou numa fase de releitura de Machado de Assis — mais que um estudo, uma espécie de odisseia pessoal no universo do autor (tomando notas, pesquisando referências, lendo a excelente apreciação crítica do Roberto Schwarz: 'Um mestre na periferia do capitalismo'). E, bem... Ao rememorar esse filme justamente nessa fase, preciso abandonar o tal do tom jornalístico e que me acuda o meme da Paola Carosella: "HORRÍVEL, HORRÍVEL, HORRÍVEL. HORROROSO. UM ESPANTO. ME FAZ MAL".
A ""adaptação"" de Moacyr Góes está para obra Machadiana, o que a interpretação de Cláudia Ohana de 'Smells Like Spirit' — uma dica: "mulato na banho" haha — está pro Nirvana. Se o 'Bruxo do Cosme Velho' tivesse deixado vivo algum bisneto, tataraneto — ou, parafraseando o 'defunto-autor' 'Brás Cubas', se tivesse tido filhos e transmitido a alguma criatura o legado de nossa miséria — esse um processaria Góes por semelhante CRIME triplamente qualificado (motivo torpe, meio fútil e sem chance de defesa pra vítima rs).
Os 8 Magníficos
3.2 7O zoológico de vidro de Domingos de Oliveira ou “toda alma de artista quer partir”
“Palmas pro artista confundir
Pernas pro artista tropeçar”
(Edu Lobo & Chico Buarque, 'Na Carreira')
É possível que intuir a proximidade do fim acione no subconsciente de um criador a necessidade de reagrupar seus feitos, reunir muita gente (sua gente) ao mesmo tempo, enfim deixar um testamento de que cresceu e multiplicou-se.
Ou no caso específico do último trabalho de Domingos de Oliveira, ‘Os 8 Magníficos’, e por pairar sobre o ofício do ator, talvez tenha sido um velho fetiche irresistível para um diretor-domador: o desejo de observar bem de perto esta espécie estranha que teve de lidar por toda uma vida, feras esquizofrênicas, já suas queridas criaturas domésticas, aqui reunidas numa espécie de zoológico onde poderiam ser feitas de vidro — como os bichinhos de cristal colecionados por ‘Laura’, da peça de Tennessee Williams, ‘O Zoológico de Vidro’, que a faziam fugir de sua realidade. E um diretor não deixa de ser mesmo essa espécie de colecionador.
Sujeitos ao fascínio e ridicularização do olhar externo, num esconde esconde entre a vitrine que se vende e a verdade que os desorganiza, seus bibelôs camaradas estariam sempre a ponto de se partir e revelarem-se. A ideia, se não é ruim, peca pela ambição. Tivesse 'Os 8 Magníficos', título quase homônimo — um trocadilho com o Western 'The Magnificent Seven'— sido condensado em modestos 4 ou 5 e teríamos um material provavelmente mais fecundo em interação e resultado final.
Autor das séries de entrevistas ‘Todos os homens do mundo’ e ‘Todas as Mulheres do Mundo’, apesar de nelas não ter focado exatamente no ofício que guia esse documental, em ambas sim Domingos foi mais hábil em trazer à tona o que há de palpitante nos atores, impostores por natureza — e se era sempre Oliveira quem, fora do enquadramento, sacudia a capa na cara do entrevistado; nos depoimentos colhidos, ele soube também ser toureado. O material que obteve de Pedro Cardoso, por ex., é uma prova de como entrevistar ou documentar um ator não é abrir a portinhola e enfiá-lo na jaula direto para feira de exposição, trata-se de acender o halo com fogo e esperar que ele venha correndo em direção à luz.
'Os 8 Magníficos' não mantém o formato de 'Todos os homens do mundo', aquele tête-à-tête com a câmera ante perguntas quase que apenas sugeridas porém feitas por Priscilla Rozenbaum — que com seu tom, não asfixiante, exercia sobre o convidado efeito semelhante ao do 'Flautista de Hamelin' hipnotizando os ratos que o seguiam sem relutar.
Até se aproxima, mas não segue literalmente o modo "apascentador de ovelhas" do Fernando Faro, no seu 'Ensaio' — ou seja: guiando gentilmente o entrevistado, sussurradamente, a voz do entrevistador inteligível.
Filmados num único dia; numa sala confortável, amontoados e distribuídos no espaço do lar doce lar da participante e idealizadora do projeto, Maria Ribeiro, Oliveira tem a ilusão de ter permitido que seus peixinhos ornamentais se exponham — e o olhar fascinado de quem os imagina ver fluindo à vontade. Mas a proposta, como o aquário, é restrita ao espaço. E supor que seres, acostumados a nadar sob a arquitetura da inverdade, se desarmem só porque estão contidos num recipiente, nos diverte como ver um hamster numa roda.
E se o resultado foi bastante expositivo, é sobre nos revelar as escolhas felizes e infelizes do diretor.
Entre as infelizes decisões: pegando carona num ridículo inerente à arte de representar, o filme manteve cenas desnecessariamente constrangedoras — Sophie Charlotte, desajeitada contando a “piada”, é um exemplo disso; as atrizes cantando o tema dum musical que fizeram, com letra de acento erótico, apenas entediando o restante do grupo, é outro. Uns cortes na ilha de edição e o diretor teria poupado a elas e a nós desse, ehr, excesso de verossimilhança.
Recordo-me de numa entrevista, no programa ‘Tarja Preta’, ouvir o Marco Nanini se referir a uma espécie de “bolsão de realidade” — que o fazia, por instantes, furar a magia da bolha do intérprete e se sentir um homem insuportavelmente ridículo durante a representação dum personagem. Sophie e Carolina Dieckmann, falemos aqui sobre o movimento contrário: o de sentir-se uma estranha no ninho da realidade.
Naquele jogo espelhado entre o que é emoção de fato e o que é dramatização, mote que um dia Eduardo Coutinho imortalizou no seu também documental ‘Jogo de Cena’— aliás: o beijo de Alexandre Nero na Maria Ribeiro, ao se despedir dos ‘7 magníficos’, ‘é ou não é’? — aqui os reis estão ‘nus com a mão no bolso’. E aquilo que saboreamos como espontaneidade, montinho de gente amiga esmagando-se ao som de 'Puro Teatro’ (na voz overacting de La Lupe), não passa de pressão da atmosfera.
Mas se Coutinho, a pulso firme, soube navegar sobre essa fronteira entre verdade e mentira confundindo-nos e tirando proveito dos opostos que se atraem, Domingos se trai ao manter a mão do titereiro mal escondida acima dos seus ventríloquos. Um clima de performance, de espontaneidade induzida reina na maior parte do tempo. Embora, aparentemente, ele deixe o barco correr frouxo, '8 magníficos' está mais pra uma dinâmica de grupo de trabalho do que para uma quebra de quarta parede.
Falemos das escolhas felizes: a (oni)presença de Wagner Moura e Fernanda Torres. Eles se esparramam de tal forma, fazendo o restante do elenco parecer “frágil e inconsistente”, que fica difícil não deduzir que Domingos tenha lhes designado os papéis de protagonistas. Será o carisma arrasador de ambos? Que, naturalmente, se sobressairia em qualquer rodinha de amigos fora da moldura de uma tela. Ou ainda o jogo de cena? Efêmero, capturado por dois atores bem posicionados. “To be or not to be that is the question”.
Fernanda, com sua inteligência móvel que a mantém cômoda em qualquer espaço, sabe aterrissar suavemente na fração de segundo duma frase irresistível. Talvez por isso tenha feito sua colega, Maria Ribeiro, confessar sentir-se burra na presença dela (Um elogio incontrolável? Ou parte do nítido papel de alguém que é autossabotador? Papel que Maria, a anfitriã, tomou para si nesse documentário).
Já o completo domínio cênico de Wagner, por exemplo contando a história da dinâmica do jequitibá, com os braços exageradamente abertos espalhando suas ramas na sala de estar (fisicalidade aliás típica no povo baiano), não o impede de se desarmar durante a confissão do colega — Du Moscovis, num arroubo de temperatura controlada, confessa algo como um crush hétero por Wagner.
“Apaga-te, chama breve” dizia um tal de William Shakespeare ao dar um nó entre a natureza perecível da arte do ator sobre um palco e a própria finitude da natureza humana. Oliveira, neste que viria a ser seu próprio grand finale, se propôs a inflamar essas tais labaredas vaidosas no espírito dos artistas; mas o máximo que ele obteve deles foi um teatrinho de sombras sob a luz do fogo.
Larissa Gouveia
O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro
4.1 133 Assista Agora"Ir caçar os mitos nos seus currais – ninguém me escapa, Teseus ou Perseus, porque medusas e minotauros são barra leve para Antônio das Mortes". (Glauber Rocha)
Acho que era Truffaut quem dizia que a genialidade de um diretor é percebida no primeiro minuto de seu filme.
Glauber nos introduz ao seu 'Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro' — em segundos e usando com eficácia o campo-contracampo (além de explorar sagazmente a nossa expectativa em relação ao extracampo) — da seguinte forma: 'Antônio', surgindo pelo lado direito do vídeo, atira repetidamente. E, por um tempo, vemos sua ação desconexa do efeito no alvo que, fora do enquadramento, nos surge pela esquerda no quadro seguinte se arrastando baleado; seu alvo, descobrimos, era um cangaceiro qualquer. Não me recordo de síntese melhor pro enredo de um filme, numa única ação dum personagem, nesse caso resumindo como a prática maquinal do matador de cangaceiros já se desconectava da sua consciência reflexiva.
Uma comemoração apenas, a que passa sem maiores detalhes no inicio do filme, um desfile de 7 de setembro, e temos o exemplo ilustrativo de que, não só o uso do tempo ou do campo é eficaz, nada no cinema Glauberiano é gratuito! Ao escolher este dia específico, no que parece ser apenas uma casual citação à independência brasileira, o diretor sugeria uma nova independência pro nosso país (à época, esmagado pela pior fase da ditadura — pós AI5).
Entre o rito protocolar de uma data, com direito a marcha e pompas militares, e aquelas demais datas transformadoras sendo somente decoradas pelos alunos do Professor, havia e ainda há um outro Brasil a ser redescoberto por sua gente — de dentro pra fora da História, livre de decorebas ou meros feriados burocráticos. E é apenas conhecendo-nos profundamente que poderemos interferir no passado para reescrever o futuro.
Já eles, os ritos de dança, que acontecem ao longo de todo o filme, não são comemorações literais. São veículos pra Glauber utilizar o *transe para a tomada de consciência; unindo forma e conteúdo. Nosso comportamento, de um povo naturalmente inclinado à ritualizações (a exemplo do carnaval e incontáveis festividades religiosas ou folclóricas), funcionava pro diretor como algo que, se compreendido como parte de nossa identidade brasileira, sendo de fato um terreno fértil pra nos aflorar ao trazer coisas obscuras à tona, poderia potencializar nossa consciência.
Logo: assim como o estado de transe, para Rocha, é uma espécie de zona de trânsito, uma ponte entre a tomada de consciência e a ação propriamente dita, esse filme aborda exatamente um momento de zona de transição entre o sertão ruralista e uma nova fase urbana. Com seus próprios mitos a cair por terra (um resto delirante de cangaceiro e o coronel caricato) percebemos um sertão com posto de gasolina Shell, estrada e caminhões cargueiros — ao invés da onipresença de roçados, chão de terra batida e cavalos. Aliás, o próprio 'Antônio' aterrissa na cidade, de carona, a bordo de uma 'Rural Willys'.
Percebemos também que os personagens principais (papéis representados por Mauricio do Valle e Othon) estão justamente tomando consciência das mudanças que acontecem em torno deles, ou seja: estão saindo do estágio de transe, que procede a conscientização, para a ação. Todos os demais personagens com falas (estes em extinção na nova configuração daquele espaço-tempo) não são poupados nas tintas carregadas de ridículo, operístico ou teatral; só 'Antônio das Mortes' e, ao final, o 'Professor' são poupados.
É necessário fazer um parêntese pra destacar que o olhar de Glauber sobre o misticismo de nossa gente se torna aqui mais doce e, finalmente, reconciliado. Entendendo que, anteriormente, seu cinema pintava religião e crenças místicas ou como alienação (em 'Barravento' e 'Deus e o Diabo na Terra do Sol') ou como braço legítimo do fascismo em 'Terra em Transe'.
E não sendo mais um olhar crítico nem ridicularizante, mas sim bastante teatral, o diretor mistura referências católicas e do Candomblé em figuras de santos humanizados a ponto de sofrerem na própria carne as mesmas perdas e dores que os humanos; põe eles, inclusive, imóveis (literalmente amarrados) incapazes de evitar uma tragédia.
Glauber vai além! Pois sai das mãos dos santos as armas que personificarão a revolução feita por gente de carne e osso: 'Santa Bárbara' devolve a arma de 'Antônio', quando este finalmente se conscientiza da necessidade de se revoltar contra o coronelismo a quem ele, antes, servia sendo um pistoleiro; já o negro Antão, seguindo a tradição das revoluções negras (por exemplo, a dos Malês), abandona sua condição de escravidão e medo e corporifica a figura do São Jorge guerreiro enfiando uma lança no peito do Coronel Horácio.
E entendendo que eram novas as bases, pra se discutir o velho dilema sertanejo da desigualdade social e da fome, surgirá (no clamor do discurso do filme) a pauta da reforma agrária. É por tudo isso de renovação, até no próprio olhar Glauberiano, que 'Antônio das Mortes', como um personagem matador de cangaceiro, se esgotará e completará seu ciclo nesse meio rural se modificando na marra (jagunços e pipocos ainda zunindo). Mas não sem antes tomar consciência de seu erros aos servir o interesse dos poderosos e não sem antes ajudar o 'Professor' a assumir o seu papel de agente transformador desse sertão sempre cheio de injustiças.
E porque a arte imita a vida, mais do que a vida à arte: aquela "multidão, boiada caminhando a esmo", permanecerá vagando num limbo (em transe com seus cânticos folclóricos) até serem mortos a mando do coronel visivelmente decadente porém ainda dono do pedaço (como, até hoje, ainda são donos de tudo outros e os mesmos figurões patriarcais). O massacre, protagonizado pelo jagunço 'Mata-Vacas', simboliza nossos mesmos reais (como aquele de Eldorado dos Carajás) sempre a mando dos latifundiários ou do próprio Estado.
Mas, no filme, se não coube àquele povo indefeso o papel de revolucionários do sertão, essa responsabilidade (da conscientização e da transformação social) ficou de fato com o intelectual: o Professor — ele representava a classe média intelectualizada, à época, saindo da teoria pra prática da revolução (no caso: pegando em armas pra tirar o poder das mãos do velho latifundiário cego).
Um misto irrepetível de Ópera, Teatro, Cordel, Folclore, Candomblé, Faroeste; procissão, revolução, ritualismo e iconoclastia… É compreensível que Glauber tenha (finalmente!) ganho melhor direção em Cannes, sua mão autoral ou de regente se faz presente nos pequenos detalhes — desde o uso da cor como elemento dramático, até a capacidade de ridicularizar seus alvos com a histeria dos gestos e com a sutileza da linguagem subliminar. E são poucas as vezes que sentimos a rédea da mise en scène de fato nas mãos de seu condutor, como sentimos aqui.
Comparado, não raramente, com os Western Spaghetti italianos — nesta mania que o estrangeiro tem de nos medir por sua régua — antes e sempre, ‘Dragão’ é mais que isso sendo também aquilo. Um Western literal — inclusive, de propósito, recorrendo a caricatos planos americanos — é apenas no seu terço final quando ocorre o embate armado.
E por falar em caricaturar, em exagerar pra chamar a atenção aos detalhes que deveríamos ver, o diretor até cria a sua própria visão de uma diva old Hollywood: 'Laura' (Odete Lara) é uma mistura de 'teúda e manteúda' de coronel com uma loira fatal do cinema americano. É, meninos, eu vi! Onde queriam coqueiro (o exotismo de uma Carmen Miranda), Glauber era revolver (de deboche) na têmpora do Tio Sam.
Com a melhor de todas as cenografias e figurinos do cinema Glauberiano, é inesgotável o relicário de detalhes a se destacar:
O lenço de algodão rosa, no pescoço de um Antônio nunca antes tão delicado, tecido plano esticado à força num cabo de guerra dental com o cangaceiro. A figura de Coirana, nada ameaçadora, Quixotesca (porte esguio, ar fragilizado); um pássaro ferido no peito proa. A musseline roxa, tragi-teatral, do vestido de Laura (com suas pontas assimétricas que, esticadas por ela ao sabor vento, lhe dão um assustador aspecto de aparição flutuando).
A casa, perfeitamente Tropicalista, do 'Coronel': desde as flores (Camp) de crepom, passando pela a gaiola de madeira prendendo um assum preto (aquele que, segundo o velho Lua, furava-se o olho pra que ele cantasse com mais vigor preso em sua escuridão; o bicho de estimação do coronel cego literal e ideologicamente) — até as frutas verde e amarela, se impondo na fruteira (o nacionalismo vazio, mera evocação de símbolos, típico nos ditadores).
Na cena final, ambígua, 'Antônio' some na estrada — escoltado apenas pelo poético voo de urubus (num daqueles planos em que acaso e intencionalidade são indistinguíveis). De costas, visto cada vez mais distanciado pela câmera, como aqueles personagens solitários (do Western?), ele cumpriu sua sina e desaparece no vão do mundo. Menos 'Dragão da Maldade' do que já foi outrora, ainda um impossível santo, guerreiro, amou matar e matou amando a revolta dos extintos cangaceiros.
Larissa Gouveia
Cinema Novo
3.9 54"O cinema novo ficou com a utopia brasileira. Se ela é feia, irregular, suja, confusa, caótica, é também bonita, desarmônica, iluminante, revolucionária.“
— Glauber Rocha
Cinema (de) novo. Uma colcha de retalhos de sonhos
Uma música, qualquer música, é um tipo de obra de arte que já existe, realizada, quando apenas composta numa partitura. É verdade que quem lhe emprestará sua alma será seu executante. É verdade também que, como está na partitura, ela existe apenas como substância engessada, fêmur que confere rígida estrutura mas que também permite a mobilidade que virá a ter na voz ou no instrumento de seus intérpretes.
Diferentemente, um filme não existe quando está idealizado no seu roteiro — por mais fechado que ele já esteja. E até quando sinalizado na sua sinopse, ele ainda não é inequivocamente o que nos sugestiona a ir vê-lo.
Cinema é, por natureza, a arte da execução e do movimento; mesmo quando nos lança mais perguntas do que respostas, um filme só existe com o ‘haja luz’ dado pelo seu diretor. Antes disso, tudo sobre ele e em volta dele é, como diria o poema de Augusto dos Anjos: “choro da energia desabandonada”, “transcendência que se não realiza”.
Claro que uma obra cinematográfica, até ser atravessada por um projetor, será antes filtrada em suas camadas: a montagem, a fotografia, em tudo isso periga-se nascer outro além da intenção do seu deus. Mas é do diretor o poder maior que se alevanta sobre a espantosa criatura. Por isso mesmo, e pela quantidade de domínios extra autorais que um filme exige, é a arte mais próxima da criação Divina — e rodar os frames equivaleria ao sopro nas narinas do ser inanimado.
Sabendo que não há uma pauta onde se possa transcrevê-lo fielmente, como se faz com a música, é possível deduzir quão difícil para um diretor manter o domínio diante da equação de caminhos que um filme pode tomar. E, em ‘Cinema Novo’, Eryk Rocha escolheu partir guiado pela rota da memória afetiva — sem temer ser tragado pelos vácuos existentes no inconsciente do nosso país sem memória. É uma experiência de embarque o que ele oferece; mas não no trem da história que passou, é na trama sensorial que trepida e se rejunta diante da gente.
O diretor faz um documento organismo vivo, que se conta enquanto ergue-se dos seus próprios fragmentos. A própria montagem sacode a poeira deste que foi o momento mais vital do nosso cinema brasileiro — o cinema que nos mostrou, esfregou-nos na nossa cara. As contradições de ser um país dum futuro que nunca chega, a fé e a faca amolada em nossas potências artísticas, tudo cheira a tinta fresca neste trabalho que ousa pular do trampolim discursivo. E que convida-nos a mergulhar com ele, sem oxigênio às costas, pra dentro do fenômeno da nossa Arte identitária.
Dum olhar, cheio d’água, boiam cenas, sons e depoimentos nunca reduzidos a uma investigação puramente escafandrista. Não é de procurar dar sentido a resíduos resgatados que este documentário se trata. Cinema Novo é um carrossel onde a magia da criação alheia gira, outra vez acionada, ansiosa por mais movimento.
Em plano detalhe, o vento é cortina viva no voil da cabeleira do cangaceiro — que, em tom brechtiano, invocava em si mesmo a voz de seu mentor morto: Lampião. Do sertão petrificado, que empareda 'Rosa' e 'Corisco', surge a Bachiana circular, Barroca, dois animais inflamáveis desafiam a imóvel realidade com as faíscas de um beijo. Era 1964 e o revolucionário Glauber redescobria o fogo, não esfregando uma em outra pedra de Cocorobó, mas esfregando dois corpos presos àquele “destinozinho de chão”.
O que mais há a fazer? Senão se encharcar destas imagens, bulindo vivinhas, com fôlego capaz de romper a barragem de conformismo do pacato cidadão brasileiro.
O movimento Cinema Novo lutou por ser autoral, quando era fácil vender-se aos apelos do industrial. Venceu o invencível; é inarredável a beleza erguida sobre nosso caos por natureza. Nós ainda sonhamos (mais um sonho impossível) e, no entanto, eles já realizaram aquele Brasil que, nas palavras de Darcy Ribeiro, no enterro de um(a) Rocha: “vai ser/ há de ser, Glauber!”.
Larissa Gouveia
Praia do Futuro
3.4 934 Assista Agora“Teu corpo neste rio é um rompante/
É vazante/ rio macho rio andante”
(Joyce e Cacaso)
Não é incomum ficarmos sabendo de sacrifícios físicos que determinado ator fez em nome de uma personagem, engordam ou emagrecem demais, machucam-se seriamente — num cabo de guerra entre o ser e o não ser, esticam seus próprios limites naturais. Há um tipo de generosidade, bem específica, no fato de você hospedar um ser inventado em seu ambiente mais vital.
Pro ator o corpo é uma haste que precisa sustentar uma estrutura delirante de cor, vida, impressões — é a arquitetura duma flor. Mas, no cinema de Karim Aïnouz, ele deixa de ser apenas essa espécie de sustento ou moldura para tornar-se a tela onde tramas são projetadas; mais que uma tela, o corpo torna-se uma língua viva capaz de contar vivências com pele, músculos e ossos. E em 'Praia do Futuro' essa linguagem é, a cada detalhe acessado, fascinante.
Na forma como Karim desidrata excessos ao falar de vazio existencial, seu universo sintoniza-se com o de Kieślowski. Como fez o cineasta polonês, mais especificamente em 'Bleu' (da 'Trilogia das Cores'), seu 'Praia do Futuro' consegue ser um tratado sobre o súbito rompimento com laços familiares, necessariamente doído, mas sem que o diretor fira qualquer camada de sutileza sensorial. E, em ambos os filmes, aborda-se esta confusa liberdade encapsulada nas perdas.
Já Antonioni é a linha mestra de Aïnouz. O italiano retratou a alienação de seus personagens na própria arquitetura moderna, sob a inacessibilidade dos altos prédios e dentro das estruturas isolantes dele. Em Karim é na arquitetura corporal que o dilema de 'Donato', seu protagonista, um salva-vidas, é erguido: em suas costas largas ele suportou o fardo dos afogados salvos e, do mesmo modo, impôs sobre si a carga das expectativas alheias.
Nada é desperdiçável quando Aïnouz (re)pousa seu olhar sobre a carne de seus atores, nada mesmo, até mesmo os rumos de Donato se anunciam ou se contam no corpo do intérprete: Wagner Moura. ‘Praia’ se acomoda em cada centímetro de nossa sensibilidade — visual, auditiva, até mesmo tátil quando sentimos que quase podemos tocar a musculatura plasmada na tela.
Vemos o protagonista preso em sua Fortaleza (e aqui vale o duplo sentido desta frase). O guarda-vida só é um herói completo sob o olhar fascinado de seu pequeno irmão caçula; quem agarra-se somente nele, até pelo seu Freudiano medo do mar (é esse mesmo medo, do incontrolável, que sentirá diante da perda da figura do herói).
Numa cena, em plano detalhe, há um ângulo onde o braço do nadador se contrai e o desenho ondulante que ele forma, onde mesmo tenso parece em movimento, corresponderia, de modo óbvio, às ondas do mar em que ele nada todos os dias; como também parece, sutilmente, denunciar o acomodamento e o desejo de se mover em sua falta de horizonte. ‘Donato’ torna-se parte daquilo que não lhe faz feliz; seus músculos braçais saltados, fruto de batalhas travadas com a água, nos contam de um herói forjado.
Já distante, fugido, na Alemanha: vemos 'Donato' em um nu traseiro, de beleza incontaminada; um bumbum alvo que parece conter, na sua forma rigorosamente firme, a própria dureza com que os homens tentam se manter diante de suas fraquezas. Mas que também parece nos escancarar como podem ser vulneráveis se assim expostos, um homem como uma lacuna em branco — existindo, arejado, através da fresta que há em si mesmo.
E é ainda dentro de seu novo espaço que espiamos acontecer na pele de Wagner a nova vida que a personagem vai construindo ali: vemo-lo nu, familiarizando-se à casa de 'Konrad' (Clemens Schick), se deliciar com uma fruta que descasca e, sentado displicentemente, umas dobras são insinuadas na barriga antes e sempre tonificada.
O que acontece com sua pele são expressões de um cotidiano que está sendo reorganizado em 'Donato' — como o seu corpo se adapta à cadeira, cedendo em dobras a dureza do músculo, a condição de herói infalível também vai se dobrando aos poucos até caber na moldura do homem falho que abandonou tudo pra fugir em busca de si mesmo.
Karim aborda o universo masculino nos oferecendo, em linguagem e ações literais, toda a fisicalidade que há nas expressões de sentimentos num ‘ser Y’. Porque eles, tipicamente, lidam melhor com o subjetivo se buscam sua equivalência numa manifestação concreta; assim expressam suas vedadas dores interiores em explosões físicas. Aqui desde o delicado ao mais violento gesto nos evidenciam isso: como na cena intimista em que o salva-vidas cheira o capacete de Konrad, talvez tragando-o para tentar retê-lo dentro de si; até a turbulenta cena em que seu irmão abandonado, 'Ayrton' (Jesuíta Barbosa), já adulto, retorna à sua vida e o confronta esmurrando-o até que aquilo se acomoda e se torna um tenso abraço de saudade.
Claro, sem contar todos os objetos tipicamente viris e a relação com eles na mise en scène: motos, capacetes, ferramentas e um avião a jato, varando o céu, discreto símbolo fálico. Tudo isso, enfim, que forma o inventário social do ser masculino e nos faz entender aquelas típicas pulsões de ação que os homens trazem consigo desde muito cedo.
Em via oposta a essas sugestões de ação rondando as personagens, lembro como o cinema de Aïnouz é um empilhamento de delicadezas que vão se desmoronando sobre a gente, pouco a pouco. Por duas vezes, com raios de Sol sobre o rosto de Wagner, e apenas isso, o diretor nos situa em que ponto do processo está o realojamento da personagem naquele espaço em que foi viver.
Na primeira vez, imediatamente depois de uma cena de sexo entre 'Konrad' e 'Donato', um corte, temos o brasileiro andando pela rua. O feixe de raios solares, vistos por ele ao olhar pra cima e vistos pela câmera através de uma contra-plongée, se acomodam nas maçãs do rosto corado de Moura. Num característico sorriso de lábios cerrados, em que projeta ainda mais suas maçãs salientes, seu rosto nos conta duma alegria que é saúde e, por isso, lhe ‘salta as faces e o faz corar’. Há frescor expresso no malar de Wagner — e afinal tudo naquela terra, em que a personagem recém acostuma-se, também parece prometer renovação.
Na segunda vez, numa passagem de tempo longa entre uma cena e outra: já de barba e cabelos crescidos, saindo de um mercado, o vemos olhar pra cima numa contração que forma um sorriso de canto de boca — no que parece ser apenas um reflexo àquela brecha de luz solar que se abre sobre ele. O brasileiro já não projeta mais sua satisfação pessoal na recompensa de um dia morninho, é agora um homem prático que inspira pra receber o máximo de calor que lhe é dado, eventualmente, numa terra fria.
Mas não importa se, empilhando delicadezas, a peça da vez são planos detalhes de duas tatuagens de 'Konrad' ou se é a pan que, antes do giro, está em close em 'Donato' e nos revela pintinhas meigas escalando sua nuca — e Karim gosta desse ângulo, tanto quanto Antonioni em sua trilogia— Aïnouz mantém desejos vivos em imagens que nos arrastam até afundarmos nelas. Sua tela é como um aquário onde sutilezas se debatem em inarredáveis correntes de paixão.
E num filme onde as expressões corporais são por si só explicações pra uma trama com poucos diálogos, não poderia faltar cenas de dança — já uma marca registrada no cinema do diretor:
A personagem do Moura e do Clemens dançam alucinadamente, em câmera lenta — “o corpo no espaço é pó”. E é inevitável pensar que como há uma contradição entre esse efeito lento que dá aos movimentos súbitos dos personagens apenas uma ilusão de permeância na tela, há em qualquer dança um também paradoxo; um paradoxo que é reconhecível na busca interior do próprio protagonista, ou seja: o momento onde o corpo se permite ser mais livre de pesos mundanos, dominando-se ao expressar seu próprio ritmo, é também o momento onde está mais renunciado a si porque sujeito apenas ao som que vem de fora dele. E na vida há mesmo que se conciliar a dureza dessa contradição: dar-se e perder-se do entorno.
Não é fácil coordenar dois extremos tão desastrados quanto se doar e devolver-se a si mesmo; mas o cinema de Karim pelo menos nos ajuda nesse exercício, lá onde razão e emoção, técnica e sensibilidade, saltam juntas pro mesmo e fatal abismo de beleza. Sua arte tem rigor na forma — cada plano, a disposição espacial dos seres e coisas — mas, ao mesmo tempo, sentimos ela reagir é em cada centímetro de nossa pele convocada. Aliás, sua Arte reage na pele de todos os envolvidos!
Larissa Gouveia
Central do Brasil
4.1 1,8K Assista AgoraO país da delicadeza perdida (e reencontrada!)
'Dora' é mais que a condensação desta gente brasileira, que ri quando deve chorar; ela é a corporificação dum Brasil que, ao se encouraçar diante de suas tragédias cotidianas, endurece e perde a ternura pelo outro. Esse país que, para se defender "malandramente" de seus próprios males, torna-se indiferente ao que nos atinge como um só povo que somos de fato.
Mas é embaixo dessa crosta, aparentemente insensível, que essa gente guarda exatamente uma pele fustigada de tanta humanidade. Nesse sentido: até as rugas, geográficas no rosto não maquiado de Fernanda, nos fazem percorrer aquela mesma paisagem de rostos devastados por essa floresta urbana.
Suas linhas de expressão, tão humanas, são exatamente a antítese das linhas desumanas por onde percorrem aqueles trens nos trilhos da Central do Brasil — trens que traçam com o seu dinamismo de máquina, forçosa e urgente, a mecanização dos homens.
Fernanda atua com a pele exposta. Seu corpo modifica de postura e é possível notarmos, até mesmo, o que seriam as lesões por esforço repetitivo herdadas da profissão de professora. Seus ombros são recolhidos e ensimesmados — como se ainda estivera debruçada sobre um interminável quadro negro — bem diferentes das saboneteiras (eretas e expostas) da personagem de Marília, também professora, com o porém de não ter se deixado encruar em suas insuficiências.
As mãos, hábeis ao escrever cartas, têm a mesma praticidade de quem por muito tempo escrevera a giz todo o conteúdo da aula. O modo pendente como seus óculos mal se assentam, no rosto ouvinte desinteressado, denunciam a incomunicabilidade adquirida. Em tudo, Fernanda materializa essa anti-heroína petrificada pela dureza da vida que levou.
No entanto, ao longo de sua trajetória (numa viagem em que se aprochega a si mesma e sai de seu individualismo), Dora nos faz perceber que é exatamente o contrário da anestesia — ela é a dor calcificada, os males no tutano aparentemente já descarnado. E é essa a trajetória do próprio filme: uma busca pelo tecido vivo na massa disforme. Mas é essa busca com tantas sutilezas nas redescobertas emocionais que, quando vemos 'Dora' escrever pra 'Josué', já não nos resta dúvida que ela se reencontrou com aquela erma menininha que o pai (o mesmo que a desconheceu adolescente) deixou dar o apito do trem.
Do alheamento ante a máquina mecânica da Central, com a qual se locomovia em seu cotidiano apático, ela retorna ao encantamento de quem pôde dar a partida pra uma nova viagem num mundo em que tudo interessava porque tudo era descoberta.
E se 'Dora' foi esse país que se negou a ver as mazelas dentro e fora de si, porque já experimentara desgosto suficiente na lida diária, Josué é a esperança desse Brasil se refazer no contato com a dor do outro. O menino oferece a senhora um perdão que ela nem seria capaz de pedir a si própria. Não é à toa que ele fique lá naquele ermo de casas se construindo, num Brasil de pó e suor que se reergue à força — se reinventando num limbo dos esquecidos.
Ela e o filme — porque ele era ela e ela era ele — são uma espécie de 'Encouraçado Potemkin', mas é num levante em nome da ternura sonegada; num ponto onde já se torna insuportável ser capitaneado pelo descaso. Em uma corajosa travessia, na qual a protagonista sai de sua zona de desconfortos próprios e assume a rota de inexatos caminhos, o filme decide transformar a crueza da frustração numa experiência de realização através da vitória do outro.
Depois desta viagem, atravessando o inchaço da megalópole, penetrando as vísceras dum Brasil profundo, nem ela nem nós poderíamos ou deveríamos sair os mesmos. E se 'Josué' de fato não reencontra seu pai, nós sim reencontramos nosso país — judiado e imperfeito como certamente estaria o pai do próprio garoto, mas que justamente por isso necessita do nosso abraço renovador de forças.
Dom
2.5 167"O resto é saber se a Capitu da Praia da Glória já estava dentro da de Mata-cavalo". Ou, diferente da onipresente dúvida de Bentinho, a obra cinematográfica que com certeza não estava dentro daquela literária de Machado de Assis
"Amizade. Paixão. Ciúme": o texto e o apelo visual do cartaz, nos fazem supor o lançamento de mais um hit do sertanejo universitário — “bebi/ chorei largado” —, mas era pra ser Machado.
“Marcela amou-me por 15 meses e onze contos de réis”, assim Machado de Assis resumia, antipático cirúrgico, um affair de 'Brás Cubas' — o 'defunto-autor' de 'Memórias Póstumas'. O poder de síntese, seu tom de humor seco como vermute, a voz do autor inventado confundindo-se com o Realismo do narrador real… Não se espera que seja simples transpor um autor específico assim pra uma outra linguagem com suas próprias especificidades; mas também não se pode deixar de lamentar que alguém delete justamente tais peculiaridades de um escritor que sabia ser provocador sem, no entanto, recorrer a atalhos apelativos.
Livre adaptação? Reimaginação? Em qualquer uma das hipóteses, eleja-se a denominação que quiser, ‘Dom’ estica tanto os limites que termina se enforcando com a própria corda que se deu.
É necessário fazer um parêntese aqui na questão da linguagem literária X a cinematográfica. Oportunidade para concluir que um outro escritor brasileiro, mais proibitivo em se tratando da possibilidade de incorporar seu estilo fabuloso, conseguiu receber ao menos uma adaptação pras telonas digna da sua obra — me refiro a Guimarães Rosa, e ao filme de Roberto Santos: ‘A Hora e a Vez de Augusto Matraga’.
Enquanto isso, Machado, afiado cronista do seu tempo, universal ao flagrar os ruídos inconciliáveis nas relações humanas — com uma linguagem, em tese, menos difícil de ser convertida pro cinema — ainda se mantém carente de uma obra de cinema à altura das suas literárias.
Neste ponto é preciso cravar onde os diretores e roteiristas costumam pecar: tornando o autor palatável, reduzindo suas construções a personagens sem nenhuma irregularidade no relevo.
É certo que adaptar (sobretudo em se tratando de linguagens opostas) faz-nos deduzir perdas inevitáveis, isso já desde o significado do termo empregado para tal. Porém, adaptar também significa que algo se encaixe confortavelmente na moldura que se propõe entrar — e é nesse ponto que os adaptadores Machadianos tendem a falhar miseravelmente.
‘Dom’, ‘A Cartomante’ (2004) ou mesmo ‘Capitu’ (1968) — que não realizou de fato o roteiro provocador imaginado por Paulo Emílio Sales e Lygia Fagundes— todos esses estacionaram as suas releituras no drama central e por ele foram acuados; só lhes restando moer a densidade do 'Bruxo do Cosme Velho', até que essa se tornasse uma papinha feita de conflitos esgotados.
Resumindo, para esses diretores: descascar e apropriar-se da linguagem não é nada, espremer o suco apelativo é tudo… E o melhor exemplo — dessa diluição Machadiana — é Dom.
Aqui o roteiro pretende uma *reimaginação*, partindo dum personagem que é filho de admiradores da obra de Assis. O protagonista, ‘Dom’, é obcecado pelo romance 'Dom Casmurro' e deseja vivenciá-lo na realidade. Só nesse mote, mal nutrido, já há papinha mastigada o suficiente.
Moacyr Goés reencarna 'Bento' e 'Capitu' num casal contemporâneo, na tentativa de reacender o conflito amoroso da relação entre ambos. Para tal, confiou que a beleza de Maria Fernanda Cândido seria, por si só, atributo suficiente para nos convencer de sua afinidade com a “cigana oblíqua e dissimulada”.
No entanto, a 'Capitu' Machadiana é mais que uma beleza açoitando o ego masculino; ela é um arquétipo que reúne em si a incompreensão do olhar masculino sobre a instabilidade da natureza feminina — instabilidade até mesmo biológica, hormonal.
Em última análise, essa “mulher em milhares” espelha em si a típica insegurança que os homens, seres excessivamente lógicos, têm ao lidar com o subjetivo que é próprio do ser feminino. 'Bentinho' precisa de prova material que o interior e o exterior de sua amada não se desmentem; baseia seu relacionamento no exame de pistas que validam ou rebaixam seu ego, é incapaz de capturar sutilezas que são improváveis.
A grande sacada do escritor é que a dona dos “olhos de ressaca” só exista justamente se espiada pelas frestas de um personagem masculino torturado por seus próprios fantasmas — tudo o que percebemos dela é o que, antes e sempre, encontra-se inacessível ao protagonista do livro; vemos, ou julgamos ver, o que lhe escapa; uma fina construção!
Diante disso tudo: reduzir 'Capitolina' a uma femme fatale tem infinitamente menos camadas do que o escritor propôs, além de esgotar o enigma de uma esfinge que devora o inconsciente coletivo. E se 'Dom Casmurro' obriga a olharmos além de sua mágoa alienada, 'Dom' nos esfrega o apelo visual na cara.
Mas o esquartejamento de personagem não fica restrito ao ícone feminino:
O ‘Dom’ de Marcos Palmeira é risível. Menos que um ciumento patológico, ele parece ser só um moleque mimado querendo impedir a vista para sua paisagem feminina paradisíaca .
É como se, mal comparando, alguém convertesse aquela dor de cotovelo LupiCÍNICA ao sentimentalismo barato de Zezé de Camargo. Imagine alguém sair de: “Você há de rolar como as pedras/ Que rolam na estrada/ Sem ter nunca um cantinho de seu/ Pra poder descansar” e ir para: “Pois sempre que um outro te tocar/ Na hora você pode se entregar/ Mas não vai me esquecer nem mesmo assim”.
Moacyr Góes fez um cinema “fast food”, embalado pra consumo fácil. Por mais modernização que se queira emprestar a uma obra, a partir do ponto que ela se torna estilisticamente irreconhecível, não há mais uma adaptação e, sim, uma apropriação indébita.
O único momento digno de nota é o involuntário bordão de 'Miguel' (Bruno Garcia) durante o diálogo com uma amiga: “É por isso que essa porra deste país não vai pra frente. O cara escreve o maior romance da literatura brasileira e Daniela só se lembra disso?” Seria um ato falho acusando o golpe fílmico? Aliás, o próprio Bruno um esquecível 'Escobar' com jeitão de “ahhh leke, leke” carioca. Ator de composição de personagem, sensível aos detalhes, creio que suas grandes colaborações culturais seguem sendo respectivamente: a apaixonante Vilma de ‘Sexo Frágil’, Vicentão de o ‘Auto da Compadecida’ e a narração do ‘Tecendo o Saber’.
(Larissa Gouveia)
Independência ou Morte
3.1 33A Irreal Família Portuguesa
É necessário lembrar que, também na linguagem artística, “longe vá temor servil”…
Não raramente a Arte tem uma preferência pela idealização, até mesmo através da busca por formas algebricamente perfeitas, a proporção áurea não me deixa mentir. Uma escolha, é claro, incompatível com a realidade humana defeituosa tal como ela é.
Pedro Américo imortalizou uma bela duma farsa histórica no seu quadro ‘Independência ou Morte’: uma perfeita cena de batalha épica, com direito a regimento em uniforme de gala que, obviamente, nunca existiu assim. Nem o Otávio Mesquita, naquela sua matéria anual, nos deixa esquecer que a história real é, nada pomposa, ridícula (Dom Pedro I estava montado numa mula e sofria de diarreia na ocasião ‘heroica’).
‘Independência ou morte’, o filme, é outra farsa meramente iconográfica; uma versão romanceada que coleciona eufemismos em cima dos fatos. Tudo bem que fosse um cinema de nicho patriota, comemorativo do sesquicentenário da Independência do Brasil e em plena ditadura de Médici, ainda assim é puxa-saquismo demais para liberdade artística de menos.
No que diz respeito à linguagem cinematográfica, apesar de ser cuidadosamente enquadrado e fotografado, padece de uma cansativa sucessão de travellings frontais indo, mexicanamente, encontrar reações nos rostos admirados — o movimento também chamado de Dolly, mais do que nunca, se mostra uma tática apelativa de enfoque (usada amiúde). Seria um tédio subliminar do diretor? Ele próprio, se lembrando de nos manter atentos à trama edulcorada. Ou o filme acusando o golpe? Uma espécie de confissão subliminar nos demonstrando que, sob o efeito desta tática visual, o cineasta e a trama ressaltavam os personagens de modo afetado.
Verdades devem ser ditas, até a respeito das mentiras: plasticamente, é sim um deleite para as nossas retinas. O que a fita falha ao adocicar o enredo, acerta em ‘alegorias e adereços’. Impressiona o luxo da cenografia e dos cenários, os figurinos impecáveis, o plumário e os brocados, rendas, cetim, veludo; a paleta de cores intensas bem distribuídas (com prevalência do vermelho e dourado, indissociáveis da imagem da realeza).
É mesmo admirável a capacidade de reproduzir a opulência da corte real, sem jamé soar vagabundo — afinal, conhecemos os eternos problemas orçamentais do cinema nacional. Mas até o que seria sua qualidade técnica, carrega consigo uma nódoa ética:
‘Independência ou Morte’, o filme mais visto daquele ano, não apenas aparenta ser bem caro pros padrões da época, de fato a produção recebeu grandes investimentos do Estado que visava obter com ele um típico produto de imagem ufanista made in ditadura — nos moldes de “eu te amo, meu Brasil, eu te amo”.
Por falar em aparência… Nada supera, aqui, a beleza de Tarcísio Meira então no auge — suave e viril em acordes equilibrados. Noves fora zero, é o que de real se eternizou no filme:
Em plano aberto, D. Pedro faz um passeio desafetado — sem sua guarda, sorridente, ele interage próximo do seu povo. Esta óbvia imagem de humildade se desmente quando flagramos a linguagem cinematográfica: filmando-o em contra plongèe, o plano cinematográfico tipicamente usado para exaltação de poder, o diretor tratava de reforçar o ar de ‘estátua majestosa’— que mantém o mito imensamente maior que seus súditos ajoelhados.
Entretanto, num empuxo para fora da diegese, era o sorriso imantado do próprio Tarcísio quem desfazia a impressão inatingível e mantinha nós próprios, telespectadores, gravitando em volta da personagem. Eis aqui a tônica de toda a película.
Se Pedrão fosse irresistível, como é esse retratado na obra de Coimbra, não precisaria nem ter dado um grito pela Independência; bastaria ter pedido com jeitinho.
‘Independência ou Morte’ tem o dom de iludir e assim o faz com seu ator protagonista, escolhido a dedo, afinal Tarcisão foi (ou soube ser) um vulto feliz de masculinidade — quer seja determinando a composição típica do galã de TV, o arquétipo do machão na Pornochanchada ou mesmo (inacreditavelmente) sob a pele morena do conquistador português, um Cristo Militar, naquele que seria o último delírio de Glauber Rocha (‘Idade da Terra’, 1980).
Em contraponto, Glória Menezes não poderia compor uma Domitila mais equivocada : zero sexy appeal. Morre nesse filme a imagem vulgívaga da ‘Marquesa de Santos’, que fez da sua relação com o imperador uma das mais tórridas que a história já conheceu (a ‘Marquesa’ — seu título de nobreza foi conferido pelo próprio amante — dominava até a arte do pompoarismo!).
Não se pode culpar Glória por tudo; muito embora, a começar pelo seu physique du rôle, o papel de uma amante insaciável não lhe coubesse como uma luva. Dê-se então o justo desconto de que o roteiro fabricou uma romantização xarope, donde não é de espantar que se tenha apagado qualquer traço de sensualidade e vanguarda da Domitila real. Vale lembrar: trata-se de uma das raríssimas mulheres desquitadas àquela época, a esperta ‘teúda e manteúda’ de um príncipe.
Aqui o affair — mais escandaloso da corte — vira uma fábula à la Disney. Aliás, pra suavizar o que ainda restasse de “impudico, despudorado, Marlon Brando”, escolheram justamente dois atores casados na vida real; formando, assim, um nó moralista no inconsciente coletivo.
‘Independência ou morte’ é mais que uma obra de joelhos diante da monarquia que desejou nos recolonizar, os pioneiros na corrupção institucionalizada que nos arruína até hoje, beira a hagiografia de (São?) ‘Pedro I do Brasil’. Pura cosmética histórica, do tipo que torna ainda mais feio conhecê-la sem maquiagem.
Como, diante desse filme *mistificador (*para ficar numa citação ao Quércia), pensar naqueles portugueses? Devasso (D. Pedro I) ou glutão (D. João VI) — antes e depois do grito às margens do Ipiranga, mantenedores do poder das elites.
Já dizia Carlos Drummond: “Precisamos louvar o Brasil/ Não é só um país sem igual./ Nossas revoluções são bem maiores do que quaisquer outras; nossos erros também”.
(Larissa Gouveia)
Viridiana
4.2 141Se você é desses que esperam da arte algum tipo de salvo-conduto, uma manifestação auto piedosa que nos dê (enquanto humanos falhos) qualquer fagulha de virtude que, na realidade, na relação terra a terra não podemos sustentar… Definitivamente, não manterá o oxigênio suficiente pra poder mergulhar fundo em Buñuel — ou melhor: se sufocará ao ser mergulhado, sondado por ele. Mas talvez seja ainda mais impactante a sua colisão frontal, chocando-se contra as inarredáveis pedras de nilismo ou humor negro.
O velho conseguiu angustiar até seu 'parça' de cinema: tem uma história deliciosa com o de Sicca (depois de ver justamente 'Viridiana'), ele saiu pra tomar umas com Buñuel e com a esposa deste: Jeanne. Não sei de que tal modo ele estava horrorizado que chegou a perguntar pra mulher do "Anjo Exterminador": se este era tão monstruoso que enquanto fazia amor com ela batia nela. rss.
É urgente grifar: Luis nunca nos choca gratuitamente; não é o tipo de iconoclasta redundante pervertendo só por perverter, um daqueles malucos vomitando em cima dos monumentos erguidos pela fé alheia. Pelo contrário, penso que o que nos perturba de fato seja que ele exponha o ser humano em situações desestabilizadoras do modo tão lúcido como fazia. E, veja bem, não era postando-se indiferente como faria um sociopata; era, antes e sempre, aprofundado.
Sim! Porque uma coisa é você ser um 'porra louca' degenerado, do tipo Bukowski, outra bem diferente é você ter a coragem de sentar e tomar um café com nossas sombras mais fantasmagóricas; acossado por elas, não acender a luz. Mas o 'Anjo Exterminador' ainda ousou ir além, afinal, projetou nossas sombras mesmo na aparente claridade de nossos gestos benevolentes.
Lembro da comparação que G. Rosa fez a respeito da alma humana, disse: (…) “amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e *escuros* como os sofrimentos dos homens”. Nas profundezas de nossa alma, sim, somos turvos até mesmo se contemplados por nós próprios… E é sem massagem que o lobo mau espanhol derruba a nossa remota casinha de ingenuidade.
Nada que o ser humano faça em função de uma virtude perfeccionista, purificadora da humanidade, por mais bem intencionada que seja, é suficiente para domar nosso primitivismo em essência. Nesse sentido: até a caridade cristã, se impondo como uma obcecada causa moral, está fadada ao fracasso. Isso a protagonista, Viridiana (Silvia Piñal), noviça recém saída de um convento, provará literalmente na própria carne.
Nossa barbárie, ou desejos sublimados, vem à tona sobretudo na esfera coletiva — de um jeito ou de outro, escapam dos nossos contêineres morais; de alcance incalculável, colidem com a cultivada nobreza dos outros. Aqui sobram cenas que ilustram isso (do sutil ao histérico): ‘Jorge’ (Francisco Rabal) lava a mão (gesto de isenção), a empregada ‘Ramona’ (que se amasiou a ele) subitamente morde-a cheia de desejo. De outra feita, tomado por insuspeita dignidade, ele tendo comprado fica satisfeito por salvar um cão exausto que corria amarrado a uma charrete — só pra no quadro seguinte, com um humor bizarro, o diretor nos mostrar a mesma cena se repetir com outro cão.
Na mais histérica das sequências dentre as de tom erótico: onde é sugerido um fetiche necrófilo por parte de Dom Jaime (o tio, interpretado por Fernando Rey), pra mim a prova nítida de que jamais Buñuel nos choca gratuitamente, a sobrinha virgem está somente desmaiada e o que permanece sempre é a projeção dos desejos reprimidos pelo viúvo, a sós, assombrado pela chance de poder dar vazão a sua sexualidade sufocada — a cena apenas nos dá a oportunidade de espiar o afloramento do lado mais adoecido da personagem, espectadores acidentalmente voyeurs, como faz a garotinha através da janela.
Até uma tola corda, que a mesma meninota brinca, é exatamente aquela que (com suas sugestivas pontas fálicas) se enforca o tio reprimido. Ou seja: nem os objetos escapam dos significados inocentes ou mórbidos que lhes podemos dar com nossas inadvertidas (re)ações, nossos extravasamentos.
Sob a direção do espanhol, nada é focado inutilmente nesse constante exercício de nos escancarar a nós mesmos… Assim não podemos desperdiçar a sequência em que Jorge elogia os lábios carnudos de Ramona e, em seguida, a beija; ela delira. Fica nítido que algo sacana vai se desenrolar — ele insinua: “anda, vamos sentarnos un momento” — no entanto, ambos permanecem fora do campo. Ao invés da câmera acompanhá-los, um travelling lateral vai em busca até finalmente enquadrar — e, em seguida, se afastar num Dolly back — um rato sendo caçado por um gato! A piada com a câmera, que ‘caça’ o rato e se afasta após o pulo do gato, nos entrega a malícia da cena que não poderia ser mais sugestiva, sem precisar um só vulto de sexo literal.
Pessimista, sem dúvida, tudo isso, medido e bem pesado, não deveria nos fazer supor que Luis fosse um típico misantropo — não, daqueles que lamentam os seres humanos indistintamente.
O que aguçava a sua rebelião, na verdade, eram justamente os mecanismos que tentam podar nossos instintos mal incubados — eram as repressões, moralismos; em suma: o virtuosismo cristão. Tinha um desprezo crônico pelos burgueses e sua forjada impressão de ordem, falsamente dignos em suas preciosas redomas. A esses últimos, o diretor guardava sua maior dose de escarnecimento; aqui o melhor exemplo disso é a explosiva sequência dos mendigos invadindo a mansão (ilustrada pela paródia a Santa Ceia). Ali, sua capacidade cinematográfica chega ao auge. Ah! Inegavelmente, ele se deliciava com a manada de homens sujos, animais ferozes, espatifando a delicada redoma de cristal…
Seu cinema é, de fato, uma exploração do que há de mais vulcânico no ser humano. Penso que até por causa disso o ritmo de filmes como 'Viridiana' dispensam prólogos de intenções - evitam cenas de antecipação, as reações explodem porque já estão à flor da pele sempre a ponto de se romper:
O icônico suicídio de 'Don Jaime', por exemplo, é precedido apenas por uma espécie de riso de satisfação mórbida, um papel em branco e uma caneta; não há qualquer coisa na mise en scène que sugira uma angústia irremediável. Tudo que o diretor nos deixa espiar, exatamente através do riso mórbido, é o impetuoso desejo do tio de deixar a sobrinha (que rejeitara seus apelos de casamento) sentindo-se culpada por sua morte.
Enfim, reconheçamos: não há como nos prevenir de nós mesmos, de nossas micro ou macro obsessões, o que dirá em relação às do outros… Mas, sejamos justos, Buñuel tentou nos avisar..
Bye Bye Brasil
3.9 145 Assista AgoraO filme de espírito mais felliniano que Cacá já fez! Seu doce rompimento com os severos mandamentos do cinema politizado (digamos melhor: um corte na linha de seu cinema mais obviamente panfletário, já que aqui jamais abandona sua consciência social).
Road movie, sim, pero antes e sempre uma trupe mambembe percorrendo as funduras de um Brasil esquecido pelo chamado progresso (para a felicidade dos artistas da trupe, indo parar em recantos até literalmente 'desantenados').
A bela cena em que o 'Lorde Cigano' (interpretado por Wilker) faz nevar no sertão, ela em especial, é puro Fellini — mais especificamente, o de 'Intervista' ou mesmo (menos obviamente) o de 'Ginger e Fred'. Inclua-se aí um olhar em comum, fatalmente nostálgico, diante do que a TV vinha fazendo ao desinflamar a chama do Cinema — na ótica do diretor italiano — e aí no filme de Cacá a chama da arte mambembe nas cidadezinhas interioranas. Em ambos os contextos culturais, o do brasileiro e do italiano, a telinha deslumbrando os telespectadores com seu apelo pro entretenimento fácil e os dois cineastas fazendo filmes pra não deixar a mágica da telona morrer.
Porém, por outro lado, não falo de uma simples imitação; Cacá absolve aquele olhar lúdico de Federico, mas o transpõe para a nossa árida realidade brasileira. A cena citada tem, por exemplo, uma ironia tragicômica (que sendo toda nossa, creio, até o 'Guido' de '8 e 1/2' endossaria): a magia da arte pode não mudar diretamente nossa dura realidade (fartura ou progresso, como sugere um dos espectadores de 'Lorde Cigano'), sendo mais luz do que a ação propriamente dita; porém, justamente pelo superpoder de voar acima dos fatos, pode nos ensinar a querer mais que os limites que nos são impostos. Nesse sentido: fazer nevar num país tropical, de ingênuo truque de um malandro mandrake, torna-se também um ato político de transpor o Brasil tal como é.
Como diria Glauber, no seu manifesto 'Eztetyka do Sonho': "arte revolucionária deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não suporte mais viver nesta realidade absurda".
Ah! E que imã cênico era o Zé Wilker! Atraindo pra si toda a nossa energia vital. Nos hipnotizando com seu vozeirão que cai como uma luva nesse mandrake safo, gitano de cartola, esse que tem o criativo instinto de sobrevivência que é a grande marca registrada do brasileiro médio.
O Pagador de Promessas
4.3 363 Assista AgoraÉ sintomático que, quase invariavelmente, as críticas deste filme deem mil voltas (como um inseto em volta da lâmpada) para exaltar sempre e inequivocamente a mesma coisa — ou seja: o seio da história que originou o roteiro e, enfim, sua correta execução.
Essa — a história — é de fato brilhante e saída da mente de um agudo crítico das nossas contradições brasileiras (claro que me refiro a Dias Gomes). Ele, sim, soube usar as nossas contradições também na forma — extrapolando o conteúdo abordado encarnando nossa expressão em seus diálogos, trejeitos de personagens e alegorias teatrais. Diferentemente de Anselmo Duarte, que nada mais faz do que contar uma ótima história sem jamais personificar nossa cara em sua linguagem cinematográfica.
Eu faço um esforço para localizar qualidades fílmicas extraordinárias nessa obra e, simplesmente, não consigo — como dizem os mexicanos: ‘ni modo’. Evidentemente há boa técnica: planos acurados (inclusive gosto muito daquele plano de detalhe quando o ‘Zé dos Burros’ contempla a face da santa mirando-a com um ar inocentemente fetichista). É uma película costurada por um capricho formal, até certo ponto inquestionável; mas, pra mim, padece sempre daquela beleza estéril, higiênica que a Vera Cruz inteira personificava — imitando as virtudes da técnica Hollywoodiana (ou europeia), da forma mais isenta e disciplinada possível.
Trocando em miúdos: é o tipo de obra que poderia ser assinada por qualquer diretor contemporâneo ao Anselmo, munido desse roteiro e de semelhante aparato técnico; não há um toque indelével de criador. Há ourivesaria, nunca aquele vento autoral soprando vida nas narinas da criatura. Pra mim, Duarte era um técnico aplicado no labor cinematográfico, nunca um inventor capaz de se fixar no inconsciente coletivo — jamé um sonhador nos reposicionando frente a nossa dura realidade.
A trama é cirúrgica ao expor o caleidoscópio de nossa multiplicidade, para o bem e para o mal — multiplicidade representada no sincretismo da fé de nossa gente X o arcaico tradicionalismo das nossas instituições religiosas; no conservadorismo de povo colonizado X a anarquia de um povo que é bárbaro por natureza. Pero não há absolutamente nada na “caligrafia” visual do Anselmo que caracterize essa identidade, o que dirá a multiplicidade dela (mesmo lhe dando o desconto de situá-lo no epicentro: na exata zona de transição, da inofensiva Vera Cruz para o nosso período mais inventivo (o do Cinema Novo).
"Não sou capaz de" assimilar rs que entre obras revolucionárias em linguagem, contraditórias como são as entranhas do nosso povo — a exemplo das que Glauber nos ofereceu, ou mesmo com a fascinante contenção formal de Leon — o único filme que tenha merecido o prêmio máximo de Cannes seja justamente o mais neutro possível em relação a nossa alma criadora.
O que me tranquiliza, parcialmente, é saber que uma simples revisão em materiais críticos de revistas especializadas, como a Cahiers e afins, nos denuncia como o filme de Anselmo caíra até mesmo no ridículo quando, meros dois anos depois, os parrudos diretores e críticos europeus tomaram conhecimento da nitroglicerina pura que foi o despontar de nosso Cinema Novo e sua linguagem que absorveu e implodiu os cânones europeus.
Vale lembrar que, em 1964, 'Deus e o Diabo na Terra do Sol', o filme que convulsionou o festival naquele ano, impressionando deuses como Fritz Lang e Buñuel, perdera a Palma de Ouro por apenas um voto; como vemos, uma mera contingência numérica diante de uma obra que é, ainda hoje, inesgotável em sua linguagem. Sim! Prêmios, antes e sempre, são circunstanciais; já o Tempo é o melhor dos revisores e nos mostra quais mitos se mantém de pé.
Ao fim e ao cabo, penso numa imagem ilustrativa que resume toda a minha impressão sobre 'O Pagador de Promessas': um ebó gourmet rs; um sarapatel com as vísceras mascaradas em ervas finas — um Brasil exposto, mas dum modo a não ferir suscetibilidades estrangeiras. Aliás tenho cá pra mim que foi esse polimento na riqueza do estilo já ditado por eles, essa postura vira-lata diante das criações do ‘Primeiro Mundo’, exatamente os fatores que propiciaram a tal vitória do ‘Pagador’ em Cannes — claro, diante do indisfarçável narcisismo dos cineastas Primeiro-Mundistas.
P.S: A propósito da Glória Menezes nesse filme: considero a personagem feminina mais intragável da história do cinema nacional — mais pesada que a cruz carregada pelo “ZÉ”. Uma fusão de tudo de pior no estereótipo da mulher (do) caipira: débil, ranheta, pateticamente ‘dessituada’ e, antes e sempre, sonsa; tudo isso piorado por uma interpretação pífia, que fica ainda menor diante do brilhantismo do Leonardo Villar (que viria ter a sua apoteose 3 anos depois vivendo ‘Augusto Matraga’ no indefectível filme de Roberto Santos).