Dirigida por Stanley Kubrick, a adaptação da distopia escrita por Anthony Burgess propõe uma reflexão já a partir de seu título. Ao juntar o orgânico (laranja) com o artificial (mecânica), o autor deixa implícito nosso condicionamento a seguir determinados padrões, bem como a influência do meio em nossas decisões cotidianas.
Tais padrões, no entanto, não são respeitados por Alex e sua gangue, que se comportam de maneira instintiva, liberando seu lado animal sem preocupação com as consequências. Nas palavras de um mendigo agredido no início do filme, “a lei e a ordem não existem mais” para o quarteto.
Em um plano geral, essa desordem também pode ser observada pelo contraste na vestimenta dos moradores da cidade. Enquanto as mulheres usam roupas extravagantes, os homens adotam como base um figurino mais formal e sóbrio, evidenciando o momento conflituoso vivido por aquela sociedade.
A história ganha contornos irônicos quando Alex acaba capturado pela polícia. Como a violência é a maneira encontrada pela trupe para se comunicar, esse é o único modo enxergado para resolver os problemas entre eles. Nesse caso, vale a lei do mais forte. Quando a gangue se rebela contra Alex e, cansada de sua tirania, o trai, o líder passa de agressor à vítima e experimenta na pele a “ultra violência” tão propagada por ele.
Quando o protagonista chega à penitenciária, a violência não cessa; apenas se mascara. A promessa de uma redução de pena convence Alex a participar de um experimento que tem como objetivo tranformar o mal em bem, mas o que se vê, na prática, são métodos desumanos que eliminam qualquer possibilidade de livre arbítrio da “cobaia”. Alex não ganha discernimento ou consciência de seus atos. Pelo contrário. Ele continua tendo os mesmos desejos, mas os efeitos colaterais do tratamento tornam o anti-herói incapaz de qualquer reação que vai de encontro dos padrões morais.
A “cura”, contudo, só é alcançada quando o jovem, transtornado por sua incapacidade de reação, mesmo contra antigas vítimas, tenta se matar. No hospital, após a tentativa fracassada de suicídio, Alex é submetido a uma cirurgia e recupera sua capacidade de escolha.
Ainda que mais de 40 anos separem a data de lançamento do filme dos dias atuais, é possível traçar alguns paralelos entre a sociedade retratada por Kubrick e a nossa, em um parâmetro global. Entre eles, podemos citar a deliquência juvenil e a dificuldade em lidar com as transformações, a desigualdade social (presente no contraste entre a casa de Alex e a residência invadida no começo do filme), as cidades abandonas ao crime e a alienação dos pais em relação às vidas dos filhos.. Características que não se restringem ao Brasil e que também podem ser observadas num aspecto global. Além disso, outros trêss fatores merecem um maior destaque: a objetificação e hipersexualização dos corpos, a banalidade da violência e o limite das práticas do Estado sobre os criminosos.
São inúmeras as cenas que trazem referências sexuais aos olhos do espectador. As cenas de estupro, claro, causam um impacto imediato, mas Kubrick não para por aí. Alex e seus comparsas estão rodeados por objetos fálicos, que transmitem à quem assiste a maneira como eles enxergam o mundo. Para o quarteto, assim como para Oscar Wilde, “tudo é sobre sexo, exceto o sexo. Sexo é sobre poder”.
O filme também nos faz refletir sobre o abuso policial e sua condição privilegiada para fazer da impunidade, lei; a maneira como utilizamos drogas lícitas e ilícitas para liberar o animal em nós e o espetáculo de horror, cada vez mais presente nos meios de comunicação.
Nenhum tópico, no entanto, chama mais atenção que o político. A corrupção e tentativa de manipulação da classe política é evidente. Além disso, Laranja Mecânica busca descobrir até onde o Estado pode ir para devolver um preso ao convívio social sem corrompê-lo. Temas relevantes, que ainda merecem destaque.
Com diálogos ácidos, fotografia impecável e atuações monstruosas de Cate Blanchet e Judi Dench, a produção de Richard Eyre também poderia ser intitulada “Notas sobre a solidão”. É a partir do diário da protagonista, Barbara (Dench), que acompanhamos a vida de uma professora veterana e já desiludida com o sistema educacional ganhar fôlego com a chegada de uma nova companheira de trabalho.
À primeira vista, Sheba (Blanchet) se apresenta numa frequência diferente da colega. Ela é jovem, carismática e traz consigo o desejo de mudar o mundo. O que notamos ao longo da narrativa, no entanto, é que as professoras, cada um a seu modo, compartilham de um sentimento que irá pavimentar os caminhos da história: a solidão.
O casamento frustrado com Richard, um homem mais velho que lhe deu aula na Universidade, e a dupla maternidade fazem Sheba prisioneira da rotina. E é quando a professora se aproxima de Steven, seu aluno de 15 anos, que a carência se torna explícita. Rapidamente a troca de olhares ganha contornos mais sinuosos e o garoto assume a posição de amante.
Contudo, o caso proibido entre a dupla é descoberto por Barbara e o que se configura a partir daí é um jogo de dominação e chantagem. A veterana, dona de uma homossexualidade velada, aproveita a situação para se aproximar de Sheba e, ao menos em sua cabeça, dar início a um romance obsessivo que tem, como único combustível, o medo da exposição.
Apesar da ausência de sensacionalismo em temas delicados, como a pedofilia e a homossexualidade, e, vale ressaltar mais uma vez, atuação impecável do elenco principal, “Notas sobre um escândalo” peca na velocidade da narrativa. O roteiro é sólido, mas, ao amarrar várias pontas em pouco mais de 90 minutos de filme, Eyre passa muito rápido por determinadas situações e entrega um filme abaixo do seu potencial.
Em “Marxismo e Filosofia da Liguagem”, Mikhail Bakthtin aponta para a carga ideológica trazida pela palavra e seu papel sobre a realidade social de cada indivíduo. Essa corrente de pensamento do teórico russo pode ser melhor compreendida através de um parelelo com o filme de Julie Gavras.
Partindo do ponto de vista de uma criança de nove anos (Anna de la Mesa), a diretora apresenta temas complexos e polêmicos, como desigualdade social, aborto, política e economia. A escolha de Gavras torna o longa mais suave e didático, uma vez que a inocência de Anna é explorada para facilitar os questionamentos e reflexões.
O momento de transformação do filme ocorre quando Anna tem contato com sua tia Marga e sua prima Pillar, que deixam a Espanha às pressas após um atentado político causado pelo General Franco, que culmina com a morte do marido de Marga.
É a partir dessa tragédia pessoal que Fernando e Marie reexaminam suas visões políticas e decidem mudar drasticamente, afetando o cotidiano de Anna e de seu irmãozinho, François. Depois de uma viagem para o Chile e de um contato direto com a efervescência do local, provocada pela eleição de Salvador Allende, Fernando abandona a estabilidade de seu emprego numa firma de advocacia e passa a defender as minorias, Marie troca as crônicas na revista Marie Claire por publicações independentes sobre temas mais relevantes, como o aborto e a luta feminista, e a família, uma casa grande e uma vida de privilégios por um apartamento minúsculo no centro de Paris.
A postura “comunista” dos pais, não demora a respingar em Anna e o primeiro baque sofrido pela garota é a demissão de sua babá, Filomena, que a adverte sobre os perigos dos “barbudos vermelhos”. A cubana, que deixou Cuba após a ascensão de Fidel Castro ao poder, é substituída por refugiadas de Grécia e Vietnã, países também afetados pelos horrores da guerra. O choque de culturas evidente, transitando das refeições preparadas às histórias narradas pelas mulheres, é fundamental para o amadurecimento de Anna, assim como a abertura de seus pais e de seus “camaradas” para responder aos seus questionamentos.
E são justamente os questionamentos de Anna que ressignificam sua maneira de enxergar a situação, pois, conforme aponta Bakhtin, “todo signo resulta de um consenso entre os indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de organização”. A menina abandona a postura de “pequena múmia”, mas não sofre uma “lavagem cerebral”, como pregava Filomena. Pelo contrário. Anna adota uma postura crítica que, inclusive, faz seus pais reverem alguns de seus valores, e nos mostra que o mundo não precisa ser dicotômico. “A Culpa é do Fidel” não objetiva vender uma imagem positiva ou negativa das correntes políticas apresentadas, mas sim nos lembrar de que é possível crescer em tempos de crise.
Lançado em 1927, o filme de Fritz Lang é um marco do cinema expressionista alemão. A história é ambientada um Século mais tarde, na futurista de Metropolis, onde é possível notar uma sociedade dividida em duas camadas: a elite, habitante da superfície, e a classe operária, condenada ao subterrâneo e à mão-de-obra das máquinas que dão vida à cidade. No entanto, essa hierarquia é ameaçada quando Freder, filho do criador de Metropolis, se apaixona por Maria, a líder dos operários.
Durante os 150 minutos de filme, muitos deles recuperados recentemente, é possível notar influências e simbolismos, que vão do período socrático ao Marxismo, do cristianismo à mitologia grega. Destaque também para a fotografia, a trilha sonora e a atuação caricata dos atores, clássica dos filmes expressionistas.
Logo na abertura fica evidente a condição subhumana a que o grupo de trabalhadores é submetida. Eles se locomovem como um rebanho e têm, como única função, manter as máquinas funcionando e a cidade existindo. Como conceitua Karl Marx, os trabalhadores vendem sua força de trabalho como único meio de sobrevivência, não possuem nenhum direito sobre o que é produzido e permanecem alienados ao que acontece na superfície.
Essa alienação, contudo, não é exclusividade da classe operária. A elite, retratada, através dos trajes e das formas de lazer, como uma espécie de sociedade da Grécia Antiga, sofre do mesmo mal e vive sem se preocupar em conhecer a força que alimenta a cidade.
No comando de Metropolis está Joh Fredesen, um empresário frio e calculista, que, logo de início, ao ser filmado com um compasso e um esquadro em mãos, passa uma imagem de criador daquele Universo. Fredesen tem um filho, Freder, que se apaixona por Maria, grande influência entre os trabalhadores, e é aí que se encontra o momento chave do filme. Mesmo antes de sonhar com a máquina Moloch (uma metáfora que nos lembra que todo progresso vem com sacrifícios), o jovem se familiariza com a condição dos operários, que passa a chamar de irmãos, assume o papel de Salvador e, literalmente, desce ao mundo deles, levando esperança e auxílio. Maria, por sua vez, é retratada não apenas como uma santa, mas como uma profeta, que prega a vinda de um mediador (coração) para unir os empregados (mãos) e os patrões (cabeça).
A inflêuncia de Maria sobre os trabalhadores incomodava Fredersen, que encomendou a um cientista a construção de um robô, Hel (numa alusão à Helena de Tróia), com a mesma aparência da profeta, a fim de semear a discórdia entre os funcionários e acabar com o clima de união entre eles. Antes, porém, Hel é testada em uma festa que tem, como convidados, os 100 homens mais ricos de Metropolis e se torna um símbolo de sedução capaz de manipular os presentes, até então amigos, a se matarem em seu nome.
Comprovada a eficácia de Hel, o robô assume o posto de Maria no subterrâneo e induz a multidão, que fica cega para o problema real (as péssimas condições de trabalho) e quebra a máquina principal, inundando a cidade e quase sacrificando todo o seu futuro, aqui representado pelas crianças. É nesse cenário de desespero e de literal caça às bruxas (afinal, após se darem conta do erro, a classe operária inicia uma caça à Maria e só descobrem o robô impostor ao queimá-lo na fogueira) que temos o clímax do filme.
O final é um tanto quanto decepcionante, mas dá margem para mais de uma interpretação. Ao mesmo tempo em que sinaliza uma oportunidade de melhores condições de vida para os trabalhadores, através da união das classes pelo mediador, também pode significar uma solução pacífica para manter tudo como está. O mediador (coração) serviria apenas para apelar para o sentimentalismo e evitar novas revoltas.
Escrito em 1967, por Guy Debord, “A sociedade do Espetáculo” teve papel fundamental na construção do movimento de maio de 68, na França. A ideia de valorização do “ter” em relação ao “ser” e a forma como as mercadorias e as imagens carregadas por elas se tornam essenciais à sociedade contemporânea são teses apresentadas na obra do pensador e cineasta francês, também observadas em 1,99 – um supermercado que vende palavras.
Ambientado em um cenário todo branco, com carrinhos e prateleiras que lembram um supermercado, o filme de Marcelo Masagão acompanha “consumidores” que, sem direito à fala durante o longa, limitam-se a circular pelos corredores, apáticos, recolhendo caixas vazias, estampadas apenas com slogans de marcas famosas, mensagens positivas ou frases de autoajuda. O fato de não haver nada dentro das caixas induz o espectador a pensar que mais importante que os produtos adquiridos é a sensação que eles transmitem e a imagem construída a partir destes. É o fetiche pelo “ter” (cobra) engolindo a necessidade (rato). Há também uma espécie de máquina que mostra, da infância à velhice do indivíduo, todas as marcas que o acompanharam durante a vida
E é assim, por meio de esquetes, trilha impactante e planos sequência, que Masagão expõe percepções sobre a vida, convivência em sociedade, violência e o sentimento de angústia cada vez mais presente nas pessoas. A banalização de tudo, inclusive do sexo, também é retratada, como é possível observar na cena do caixa eletrônico e nos pensamentos mais íntimos dos consumidores.
Além de críticas sutis à desvalorização dos mais velhos na sociedade, com idosos se colocando em grandes geladeiras, e à influência cada vez maior da tecnologia sobre a natureza, representada pelo leite achocolatado que jorra das tetas da vaca, outro ponto importante explorado pelo diretor é o da desigualdade social. Do lado de fora do supermercado, pessoas, também com um ar angustiado, vagam de um lado para o outro, aguardando por uma oportunidade de se juntar àquele mundo. Quando dois dos excluídos são selecionados para entrar no supermercado, porém, eles não se juntam aos clientes, mas aos funcionários do local, reforçando a ideia de “apartheid social”. Interessante notar também que, mesmo fora do ambiente, os marginalizados procuram repetir o mesmo comportamento dos clientes. Ambos os grupos seguem padrões que já parecem pré-definidos, tendo como exemplo os momentos em que todos se exercitam ou atendem aos celulares.
A forma inovadora com que Masagão aborda um tema já explorado a exaustão, no entanto, não impede que a ideia central seja decifrada nos primeiros minutos e, nesse ponto, o diretor peca pela repetição ao transformar o que poderia ser um excelente curta em um filme maçante e, ao contrário do que sugere o título, de difícil acesso ao grande público. Com tantas opções mais agradáveis, não será surpresa se 1,99 terminar desprezado nas prateleiras, entre um produto e outro.
Laranja Mecânica
4.3 3,8K Assista AgoraDirigida por Stanley Kubrick, a adaptação da distopia escrita por Anthony Burgess propõe uma reflexão já a partir de seu título. Ao juntar o orgânico (laranja) com o artificial (mecânica), o autor deixa implícito nosso condicionamento a seguir determinados padrões, bem como a influência do meio em nossas decisões cotidianas.
Tais padrões, no entanto, não são respeitados por Alex e sua gangue, que se comportam de maneira instintiva, liberando seu lado animal sem preocupação com as consequências. Nas palavras de um mendigo agredido no início do filme, “a lei e a ordem não existem mais” para o quarteto.
Em um plano geral, essa desordem também pode ser observada pelo contraste na vestimenta dos moradores da cidade. Enquanto as mulheres usam roupas extravagantes, os homens adotam como base um figurino mais formal e sóbrio, evidenciando o momento conflituoso vivido por aquela sociedade.
A história ganha contornos irônicos quando Alex acaba capturado pela polícia. Como a violência é a maneira encontrada pela trupe para se comunicar, esse é o único modo enxergado para resolver os problemas entre eles. Nesse caso, vale a lei do mais forte. Quando a gangue se rebela contra Alex e, cansada de sua tirania, o trai, o líder passa de agressor à vítima e experimenta na pele a “ultra violência” tão propagada por ele.
Quando o protagonista chega à penitenciária, a violência não cessa; apenas se mascara. A promessa de uma redução de pena convence Alex a participar de um experimento que tem como objetivo tranformar o mal em bem, mas o que se vê, na prática, são métodos desumanos que eliminam qualquer possibilidade de livre arbítrio da “cobaia”. Alex não ganha discernimento ou consciência de seus atos. Pelo contrário. Ele continua tendo os mesmos desejos, mas os efeitos colaterais do tratamento tornam o anti-herói incapaz de qualquer reação que vai de encontro dos padrões morais.
A “cura”, contudo, só é alcançada quando o jovem, transtornado por sua incapacidade de reação, mesmo contra antigas vítimas, tenta se matar. No hospital, após a tentativa fracassada de suicídio, Alex é submetido a uma cirurgia e recupera sua capacidade de escolha.
Ainda que mais de 40 anos separem a data de lançamento do filme dos dias atuais, é possível traçar alguns paralelos entre a sociedade retratada por Kubrick e a nossa, em um parâmetro global. Entre eles, podemos citar a deliquência juvenil e a dificuldade em lidar com as transformações, a desigualdade social (presente no contraste entre a casa de Alex e a residência invadida no começo do filme), as cidades abandonas ao crime e a alienação dos pais em relação às vidas dos filhos.. Características que não se restringem ao Brasil e que também podem ser observadas num aspecto global. Além disso, outros trêss fatores merecem um maior destaque: a objetificação e hipersexualização dos corpos, a banalidade da violência e o limite das práticas do Estado sobre os criminosos.
São inúmeras as cenas que trazem referências sexuais aos olhos do espectador. As cenas de estupro, claro, causam um impacto imediato, mas Kubrick não para por aí. Alex e seus comparsas estão rodeados por objetos fálicos, que transmitem à quem assiste a maneira como eles enxergam o mundo. Para o quarteto, assim como para Oscar Wilde, “tudo é sobre sexo, exceto o sexo. Sexo é sobre poder”.
O filme também nos faz refletir sobre o abuso policial e sua condição privilegiada para fazer da impunidade, lei; a maneira como utilizamos drogas lícitas e ilícitas para liberar o animal em nós e o espetáculo de horror, cada vez mais presente nos meios de comunicação.
Nenhum tópico, no entanto, chama mais atenção que o político. A corrupção e tentativa de manipulação da classe política é evidente. Além disso, Laranja Mecânica busca descobrir até onde o Estado pode ir para devolver um preso ao convívio social sem corrompê-lo. Temas relevantes, que ainda merecem destaque.
Um Lugar Silencioso
4.0 3,0K Assista AgoraManual de como sobreviver ao fim do mundo:
Não tenha filhos
Notas Sobre um Escândalo
4.0 539 Assista AgoraCom diálogos ácidos, fotografia impecável e atuações monstruosas de Cate Blanchet e Judi Dench, a produção de Richard Eyre também poderia ser intitulada “Notas sobre a solidão”. É a partir do diário da protagonista, Barbara (Dench), que acompanhamos a vida de uma professora veterana e já desiludida com o sistema educacional ganhar fôlego com a chegada de uma nova companheira de trabalho.
À primeira vista, Sheba (Blanchet) se apresenta numa frequência diferente da colega. Ela é jovem, carismática e traz consigo o desejo de mudar o mundo. O que notamos ao longo da narrativa, no entanto, é que as professoras, cada um a seu modo, compartilham de um sentimento que irá pavimentar os caminhos da história: a solidão.
O casamento frustrado com Richard, um homem mais velho que lhe deu aula na Universidade, e a dupla maternidade fazem Sheba prisioneira da rotina. E é quando a professora se aproxima de Steven, seu aluno de 15 anos, que a carência se torna explícita. Rapidamente a troca de olhares ganha contornos mais sinuosos e o garoto assume a posição de amante.
Contudo, o caso proibido entre a dupla é descoberto por Barbara e o que se configura a partir daí é um jogo de dominação e chantagem. A veterana, dona de uma homossexualidade velada, aproveita a situação para se aproximar de Sheba e, ao menos em sua cabeça, dar início a um romance obsessivo que tem, como único combustível, o medo da exposição.
Apesar da ausência de sensacionalismo em temas delicados, como a pedofilia e a homossexualidade, e, vale ressaltar mais uma vez, atuação impecável do elenco principal, “Notas sobre um escândalo” peca na velocidade da narrativa. O roteiro é sólido, mas, ao amarrar várias pontas em pouco mais de 90 minutos de filme, Eyre passa muito rápido por determinadas situações e entrega um filme abaixo do seu potencial.
A Culpa é do Fidel
4.3 304Em “Marxismo e Filosofia da Liguagem”, Mikhail Bakthtin aponta para a carga ideológica trazida pela palavra e seu papel sobre a realidade social de cada indivíduo. Essa corrente de pensamento do teórico russo pode ser melhor compreendida através de um parelelo com o filme de Julie Gavras.
Partindo do ponto de vista de uma criança de nove anos (Anna de la Mesa), a diretora apresenta temas complexos e polêmicos, como desigualdade social, aborto, política e economia. A escolha de Gavras torna o longa mais suave e didático, uma vez que a inocência de Anna é explorada para facilitar os questionamentos e reflexões.
O momento de transformação do filme ocorre quando Anna tem contato com sua tia Marga e sua prima Pillar, que deixam a Espanha às pressas após um atentado político causado pelo General Franco, que culmina com a morte do marido de Marga.
É a partir dessa tragédia pessoal que Fernando e Marie reexaminam suas visões políticas e decidem mudar drasticamente, afetando o cotidiano de Anna e de seu irmãozinho, François. Depois de uma viagem para o Chile e de um contato direto com a efervescência do local, provocada pela eleição de Salvador Allende, Fernando abandona a estabilidade de seu emprego numa firma de advocacia e passa a defender as minorias, Marie troca as crônicas na revista Marie Claire por publicações independentes sobre temas mais relevantes, como o aborto e a luta feminista, e a família, uma casa grande e uma vida de privilégios por um apartamento minúsculo no centro de Paris.
A postura “comunista” dos pais, não demora a respingar em Anna e o primeiro baque sofrido pela garota é a demissão de sua babá, Filomena, que a adverte sobre os perigos dos “barbudos vermelhos”. A cubana, que deixou Cuba após a ascensão de Fidel Castro ao poder, é substituída por refugiadas de Grécia e Vietnã, países também afetados pelos horrores da guerra. O choque de culturas evidente, transitando das refeições preparadas às histórias narradas pelas mulheres, é fundamental para o amadurecimento de Anna, assim como a abertura de seus pais e de seus “camaradas” para responder aos seus questionamentos.
E são justamente os questionamentos de Anna que ressignificam sua maneira de enxergar a situação, pois, conforme aponta Bakhtin, “todo signo resulta de um consenso entre os indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de organização”. A menina abandona a postura de “pequena múmia”, mas não sofre uma “lavagem cerebral”, como pregava Filomena. Pelo contrário. Anna adota uma postura crítica que, inclusive, faz seus pais reverem alguns de seus valores, e nos mostra que o mundo não precisa ser dicotômico. “A Culpa é do Fidel” não objetiva vender uma imagem positiva ou negativa das correntes políticas apresentadas, mas sim nos lembrar de que é possível crescer em tempos de crise.
Metrópolis
4.4 630 Assista AgoraLançado em 1927, o filme de Fritz Lang é um marco do cinema expressionista alemão. A história é ambientada um Século mais tarde, na futurista de Metropolis, onde é possível notar uma sociedade dividida em duas camadas: a elite, habitante da superfície, e a classe operária, condenada ao subterrâneo e à mão-de-obra das máquinas que dão vida à cidade. No entanto, essa hierarquia é ameaçada quando Freder, filho do criador de Metropolis, se apaixona por Maria, a líder dos operários.
Durante os 150 minutos de filme, muitos deles recuperados recentemente, é possível notar influências e simbolismos, que vão do período socrático ao Marxismo, do cristianismo à mitologia grega. Destaque também para a fotografia, a trilha sonora e a atuação caricata dos atores, clássica dos filmes expressionistas.
Logo na abertura fica evidente a condição subhumana a que o grupo de trabalhadores é submetida. Eles se locomovem como um rebanho e têm, como única função, manter as máquinas funcionando e a cidade existindo. Como conceitua Karl Marx, os trabalhadores vendem sua força de trabalho como único meio de sobrevivência, não possuem nenhum direito sobre o que é produzido e permanecem alienados ao que acontece na superfície.
Essa alienação, contudo, não é exclusividade da classe operária. A elite, retratada, através dos trajes e das formas de lazer, como uma espécie de sociedade da Grécia Antiga, sofre do mesmo mal e vive sem se preocupar em conhecer a força que alimenta a cidade.
No comando de Metropolis está Joh Fredesen, um empresário frio e calculista, que, logo de início, ao ser filmado com um compasso e um esquadro em mãos, passa uma imagem de criador daquele Universo. Fredesen tem um filho, Freder, que se apaixona por Maria, grande influência entre os trabalhadores, e é aí que se encontra o momento chave do filme. Mesmo antes de sonhar com a máquina Moloch (uma metáfora que nos lembra que todo progresso vem com sacrifícios), o jovem se familiariza com a condição dos operários, que passa a chamar de irmãos, assume o papel de Salvador e, literalmente, desce ao mundo deles, levando esperança e auxílio. Maria, por sua vez, é retratada não apenas como uma santa, mas como uma profeta, que prega a vinda de um mediador (coração) para unir os empregados (mãos) e os patrões (cabeça).
A inflêuncia de Maria sobre os trabalhadores incomodava Fredersen, que encomendou a um cientista a construção de um robô, Hel (numa alusão à Helena de Tróia), com a mesma aparência da profeta, a fim de semear a discórdia entre os funcionários e acabar com o clima de união entre eles. Antes, porém, Hel é testada em uma festa que tem, como convidados, os 100 homens mais ricos de Metropolis e se torna um símbolo de sedução capaz de manipular os presentes, até então amigos, a se matarem em seu nome.
Comprovada a eficácia de Hel, o robô assume o posto de Maria no subterrâneo e induz a multidão, que fica cega para o problema real (as péssimas condições de trabalho) e quebra a máquina principal, inundando a cidade e quase sacrificando todo o seu futuro, aqui representado pelas crianças. É nesse cenário de desespero e de literal caça às bruxas (afinal, após se darem conta do erro, a classe operária inicia uma caça à Maria e só descobrem o robô impostor ao queimá-lo na fogueira) que temos o clímax do filme.
O final é um tanto quanto decepcionante, mas dá margem para mais de uma interpretação. Ao mesmo tempo em que sinaliza uma oportunidade de melhores condições de vida para os trabalhadores, através da união das classes pelo mediador, também pode significar uma solução pacífica para manter tudo como está. O mediador (coração) serviria apenas para apelar para o sentimentalismo e evitar novas revoltas.
1,99 - Um Supermercado Que Vende Palavras
3.2 105Escrito em 1967, por Guy Debord, “A sociedade do Espetáculo” teve papel fundamental na construção do movimento de maio de 68, na França. A ideia de valorização do “ter” em relação ao “ser” e a forma como as mercadorias e as imagens carregadas por elas se tornam essenciais à sociedade contemporânea são teses apresentadas na obra do pensador e cineasta francês, também observadas em 1,99 – um supermercado que vende palavras.
Ambientado em um cenário todo branco, com carrinhos e prateleiras que lembram um supermercado, o filme de Marcelo Masagão acompanha “consumidores” que, sem direito à fala durante o longa, limitam-se a circular pelos corredores, apáticos, recolhendo caixas vazias, estampadas apenas com slogans de marcas famosas, mensagens positivas ou frases de autoajuda. O fato de não haver nada dentro das caixas induz o espectador a pensar que mais importante que os produtos adquiridos é a sensação que eles transmitem e a imagem construída a partir destes. É o fetiche pelo “ter” (cobra) engolindo a necessidade (rato). Há também uma espécie de máquina que mostra, da infância à velhice do indivíduo, todas as marcas que o acompanharam durante a vida
E é assim, por meio de esquetes, trilha impactante e planos sequência, que Masagão expõe percepções sobre a vida, convivência em sociedade, violência e o sentimento de angústia cada vez mais presente nas pessoas. A banalização de tudo, inclusive do sexo, também é retratada, como é possível observar na cena do caixa eletrônico e nos pensamentos mais íntimos dos consumidores.
Além de críticas sutis à desvalorização dos mais velhos na sociedade, com idosos se colocando em grandes geladeiras, e à influência cada vez maior da tecnologia sobre a natureza, representada pelo leite achocolatado que jorra das tetas da vaca, outro ponto importante explorado pelo diretor é o da desigualdade social. Do lado de fora do supermercado, pessoas, também com um ar angustiado, vagam de um lado para o outro, aguardando por uma oportunidade de se juntar àquele mundo. Quando dois dos excluídos são selecionados para entrar no supermercado, porém, eles não se juntam aos clientes, mas aos funcionários do local, reforçando a ideia de “apartheid social”. Interessante notar também que, mesmo fora do ambiente, os marginalizados procuram repetir o mesmo comportamento dos clientes. Ambos os grupos seguem padrões que já parecem pré-definidos, tendo como exemplo os momentos em que todos se exercitam ou atendem aos celulares.
A forma inovadora com que Masagão aborda um tema já explorado a exaustão, no entanto, não impede que a ideia central seja decifrada nos primeiros minutos e, nesse ponto, o diretor peca pela repetição ao transformar o que poderia ser um excelente curta em um filme maçante e, ao contrário do que sugere o título, de difícil acesso ao grande público. Com tantas opções mais agradáveis, não será surpresa se 1,99 terminar desprezado nas prateleiras, entre um produto e outro.
O Crítico
3.3 39 Assista AgoraUm filme sobre clichês sem um final clichê