ATENÇÃO: esta crítica contém spoilers. Os mais pontuais foram marcados.
"Quando me tornei anarquista tentei toda a espécie de disfarces respeitáveis. Primeiro vesti-me de bispo. Tinha lido, nos nossos panfletos "Superstição, eis o Vampiro" e "Padres de Rapina", tudo o possível acerca de bispos. Desses escritos concluí que eles eram uns velhos estranhos e terríveis que ocultavam à humanidade um segredo cruel. Fui mal informado. Quando pela primeira vez me apresentei num salão com as vestes episcopais e clamei: "Humilha-te! Humilha-te, presunçosa razão humana!", descobriram logo que eu não era bispo. Apanharam-me." (G.K. Chesterton, "O Homem que era Quinta-feira")
O terror de estreia de Evan Spiliotopoulos é muito bem resolvido com seu conteúdo religioso e a atmosfera gótica que quer construir. Para um católico como eu, isso é muito gratificante. Mas também é importante para conferir credibilidade a essa filiação ao gótico, que desde seus primórdios na literatura dialoga com a religião católica e articula mensagens em relação ao tema da fé. Abordagens e mensagens que partem, em muitas obras, apenas do senso comum e da aura de superstição em torno da religião, mas não aqui.
Sob esse ponto de vista, o filme é bem católico em suas assunções. Não há, em momento algum, a tentativa de levar tudo para um ceticismo caricaturizador das crenças religiosas e dos líderes, ou tampouco para o sensacionalismo da profanação em busca de um choque fácil. Desde o título original em inglês, tristemente adulterado na tradução, fica bem claro que o filme não quer profanar a imagem de Nossa Senhora e da fé católica, como alguns desavisados pensariam, como também não quer instaurar dúvidas teológicas ou psicológicas. Fica bem claro desde o título que o que se revelará ali é o mal, o diabo que se utiliza da fé para atrair as almas. Não o encontro de um "lado oculto" em Nossa Senhora, não uma exposição sobre fanatismo religioso ou corrupção na Igreja, mas um enredo que entra em pleno acordo com a Bíblia e as possibilidades para o mal em suas manifestações.
Todo o roteiro é construído de modo a mostrar ao espectador, logo de cara, que não se trata de um evento divino, mas sim satânico. Acompanhamos uma devoção a Maria que tem origem por Alice, a sobrinha do padre da igreja na pequena cidade de Banfield (Nova Inglaterra), que, após receber o que acredita ser uma cura miraculosa de Maria e começar a falar pela primeira vez na vida, sente o chamado da "Maria de Banfield" para espalhar sua mensagem e seu culto. Os eventos que precedem isso já deixam claros como tudo aquilo faz parte de uma maldição: a cena inicial de uma bruxa do século XIX,
que mais ao fim da trama descobriremos ser Maria Elnor
, queimada pelos habitantes da cidade na mesma árvore em que Alice recebe o suposto chamado; o jornalista que chega na cidade para investigar uma história e, tentando criar uma falsa narrativa, acaba quebrando o boneco usado para aprisionar o mau-espírito de Maria Elnor.
O mais interessante, porém, vem no tratamento espiritual de tudo aquilo. Alice diz com todas as letras que está feliz porque está ganhando fama ao espalhar a mensagem da "Maria de Banfield", que Maria a fez passar de uma garota esquecida a uma celebridade mundial. O jornalista, que é um homem com propensões ao ateísmo e com um passado de descrédito por inventar várias histórias para obter sucesso em sua carreira, se anima com a possibilidade de voltar a ser prestigiado e requisitado pelos jornais, já que ganha acesso exclusivo a Alice por estar envolvido no primeiro encontro dela com Maria. Percebemos a impossibilidade de se tratar de uma manifestação divina, uma vez que a palavra de Deus ensina que nunca se deve fazer algo buscando a glória pessoal, mas exclusivamente a glória de Deus. Tudo é errado desde o início naquela devoção, do ponto de vista cristão, e o filme escancara isso, até mesmo nas falas dos habitantes da cidade que citam versículos bíblicos a todo momento e não demoram a dizer: "O orgulho precede a queda", citando Provérbios 16, 18.
Dessa forma, a visão católica racional com relação aos milagres e aparições é sempre enfatizada em contraposição à superstição sensacionalista de que o demônio se utiliza. E o filme é bem explícito em suas intenções. As informações apresentadas sobre o processo do Vaticano para investigação desses eventos, com todo o rigor da provação científica, são mesmo bem acuradas. Ao invés da aceitação fácil que se expressaria em um filme que buscasse criticar uma suposta manipulação religiosa da Igreja para enganar os fiéis e um aspecto irracional da crença, essa relação entre ciência e fé, que a visão caricaturada tenderia a contrapor em uma antítese, é afirmada em sua união. Há o inquisidor que usa de todo seu conhecimento científico para tentar refutar a todo custo os supostos milagres, deixando desde o início bem clara suas intenções ordenadas pela Igreja. Essa união entre ciência e fé fica até mesmo escancarada na fala de uma personagem que tenta convencer o jornalista de que a fé não precisa ser irracional.
Há mesmo uma questão de posicionamento no espectro teológico de que o filme se utiliza para reafirmar essa racionalidade da fé. O padre Hagan, que deve representar a oposição naquela comunidade de aceitação fácil, cita uma frase de Martinho Lutero, que é imediatamente reconhecida pelo jornalista: "Onde Deus abre uma igreja, o diabo constrói uma capela ao lado". Ao contrário do pastor de First Reformed (2017), que dentro de sua posição protestante tem uma formação de autores católicos para enfatizar o valor que dá ao sacrifício, martírio e sofrimento, mais presentes na teologia católica, valores de grande importância em seu arco no filme, o padre aqui manifesta essa formação protestante que é mais radical em seu ceticismo com relação às aparições. Tudo sempre de maneira bem explícita, sem deixar nada nas entrelinhas, para que qualquer tipo de espectador possa reconhecer mesmo sem informações prévias. Esse escape da teologia católica no personagem, no extremismo de suas posições, mostra que, para além de manifestar uma visão católica, a unidade do filme está nessa contraposição entre as manifestações divinas, em sua razoabilidade, descompromisso e simplicidade, e as manifestações demoníacas em seu arrebatamento sensacionalista.
Para essa evidenciação, os aspectos estilísticos do filme parecem contribuir. O CGI meio kitsch das cenas de aparições e mortes, com momentos dignos de novela da Record, estranham sobretudo pelo fato do orçamento do filme não ser tão baixo: um orçamento padrão de A24 ou Blumhouse, que não produziria efeitos tão caricatos. Para além da marca da produção de Sam Raimi, que talvez assinale essa preferência pelo kitsch em alguma medida, parece que há uma permanente desconjunção entre o sobrenatural e o natural no filme. Isso se mostra tanto nessas cenas de aparições e mortes (a aparição da senhora no céu; a aparição saindo do lago; a cruz do altar pegando fogo
), em que a figura do sobrenatural aparece sempre bastante destacada do cenário natural, como uma moldura bastante gritante e destoante em um quadro, quanto em momentos súbitos que quebram um padrão construído até ali (cujo maior exemplo é a cena de documentário sobre o comércio da fé que está sendo realizado às portas da igreja em que todos os fiéis se reuniram para a grande consagração à Maria de Banfield, trazendo subitamente para o cotidiano banal um universo que estava centrado na atmosfera gótica sobrenatural).
Toda essa desconjunção, além de necessidades técnicas ou marca autoral, parece contribuir para a já destacada contraposição entre o universo divino e o universo satânico. Por já termos a noção da falsidade da aura divina que Alice e os outros veem no acontecimento, o suspense não está em descobrir o segredo (pelo menos não o grosso dele), mas em saber como se dará a contraposição, como tudo vai se resolver. Ou seja, em saber o que classicamente nossa curiosidade sempre espera: se o bem vencerá o mal. Mais ainda, nesse caso, como o bem se construirá em relação ao mal. Dessa forma, o filme constrói uma atmosfera gótica em que, diferentemente do que é classicamente feito, o segredo está na descoberta do bem a partir do mal instaurado. E essa atmosfera é bem construída, não é minada pelo uso dos tão temidos jump scares. Pelo contrário, eles ajudam a construí-la, já que são parte do destaque desarmônico do sobrenatural naquele mundo. Não aparecem em número desnecessário e não se tornam a muleta de apoio do filme, mas são utilizados em momentos em que fazem sentido.
As manifestações do mal que prevalecem ao longo do filme encontram-se nessa atmosfera de espetáculo sensacionalista, irracionalismo, egoísmo e falsidade.
O milagre divino, quando chega, é simples, humilde e dura para sempre. Em outras palavras, é um verdadeiro milagre, não uma ilusão para impressionar. Vem não por alguém necessitado de fama, mas pela oração sincera de um pecador e cético convertido, que sacrifica sua posição e reputação para salvar alguém que ama. Entra, assim, em concordância com o Evangelho, que mostra o Deus que se alegra pela conversão sincera dos pecadores, atende suas orações e se manifesta na simplicidade. É o Deus que nasce em uma manjedoura em meio aos animais e derrota os que ocupam trono de ouro. Que atende não quem ora com grandiloquência e mostra a todos as marcas de suas penitências, mas quem se recolhe em sua intimidade, seus joelhos no chão e pratica a virtude sem querer ser visto, conforme ensinou Jesus. Que se alegra mais com a volta de uma única ovelha que se perdeu do que com multidões de seguidores. E é por isso que nossa certeza sobre a veracidade desse milagre não é contaminada pelo final "to be continued...": o milagre tem essas características que atestam a real presença divina e marcam a contraposição estabelecida. Se há algo que o final revela, é apenas a continuidade dessa batalha espiritual que, segundo a revelação divina nos dá a conhecer, deve durar até o fim dos tempos.
De igual modo, os milagres ocorridos em Lourdes, que são mencionados no filme, vieram na manifestação simples e na humildade da jovem Bernadette, a quem Nossa Senhora pediu não que atraísse multidões e alcançasse fama no mundo todo, mas que cavasse um poço com as próprias mãos para fazer brotar a água dos milagres. E como o padre Hagan bem assinala, sofreu em vida o martírio do descrédito, não a glória da fama. "Pois todo aquele que a si mesmo se exaltar será humilhado, e todo aquele que a si mesmo se humilhar será exaltado", disse Jesus (Lucas 14, 11).
Talvez proposital, talvez por acidente, mas é um dos únicos casos em que um CGI tosco contribui para articular a ideia que o filme quer passar e para lidar com o gótico de maneira inventiva.
O filme todo se apoia nas interpretações de Daniel Kaluuya e Lakeith Stanfield, fazendo de seus momentos mais fortes e marcantes os discursos políticos inflamados de Fred Hampton (sobretudo o discurso final que consegue contagiar também Bill). Nesse sentido, parece quase uma peça de propaganda revolucionária misturada com uma certa abordagem de Wikipédia para contar a história dos dois.
Os dois atores conseguem carregar o filme com relativo sucesso, mas qualquer coisa mais interessante que podia ter sido explorada nas relações humanas e conflitos internos e externos dos personagens é deixada na superfície. No caso de Bill, seus remorsos e dúvidas são muito contidos, ficam no meio caminho entre a evidenciação e o apagamento. Parece que o diretor quer mostrá-los ao espectador em alguns momentos-chave, mas faz tudo de maneira meio discreta e indefinida, o que leva a não seguir por nenhum dos dois caminhos nas possibilidades para o personagem e entregar algo pouco verossímil.
Já no caso de Fred, uma cena como a do primeiro beijo com sua mulher, que mostra seu lado mais íntimo e as incertezas que esconde por trás daquela imagem inabalável, aparece ali isolada e nunca mais se repete. O personagem vai assumindo cada vez mais um tom "burocrático" nos meandros que enfrenta em sua rivalidade com o sistema, até sua morte, que é totalmente esvaziada de força e gera impacto zero no espectador, não conseguindo captar convincentemente nem a tristeza de sua mulher grávida. Logo o texto contando o restante dos eventos sobe na tela, na técnica mais manjada possível e sem deixar espaço para nenhuma emoção, contrastando com os objetivos catárticos que parecem ser buscados na figura de Fred.
Parece que tudo fica entre a frieza assumida e essa tentativa de abordar um certo lado sentimental que falha. Ao invés do filme propor-se a um dos dois e entregar-se a ele, a direção que não quer se arriscar em nada deixa tudo muito contido e sem força suficiente, desde essa construção dos personagens até a decupagem e montagem padrões. Assim, a história é contada de maneira "bonitinha" para vender aos simpatizantes da revolução e da luta contra o racismo, porém sem qualquer traço autoral mais evidente que poderia produzir uma grande obra.
Um dos melhores exemplos de combinação entre enredo e articulação estilística. Nosso olhar é jogado de um lado para o outro com os jump cuts, as mudanças de plano bruscas, a livre movimentação da câmera na mão, tudo provocando nossa desorientação em meio à perseguição urbana. É tudo tão bem combinado que quase nem sentimos o estranhamento desses recursos de filmagem pouco ortodoxos.
O melhor é que o filme consegue nos envolver tanto nesses momentos frenéticos, quanto na cena de interiores. Godard sabe construir tudo de um modo que os anseios dos personagens em todas as situações passam a ser os nossos. Na agitação parisiense, nosso olhar corre junto com eles. Na intimidade do quarto, quando há uma quebra de ritmo, acompanhamos o lento jogo dos corpos, a agitação expectante dos amantes em suas dúvidas e conflitos.
Por fim, o filme consegue mesmo enganar nossas expectativas, transformando nossa quase irritação frente à submissão, ingenuidade e complacência da figura feminina em empolgação com a virada no ato final. Patrícia, que passa a imagem de personagem plana ao longo do filme todo, mostra subitamente sua esfericidade. Há, então, uma quebra de “preconceitos”: mesmo com toda a desorientação promovida pela mise-en-scène experimental, tínhamos uma certa sensação de controle sobre o filme por essa planificação dos personagens. O destino final, com a fuga para a Itália, parecia certo. Por mais que nosso olhar saltasse de um lado para o outro, tínhamos plena certeza de onde terminaria por pousar. A finalização mostra que a desorientação não é um mero fetiche formalista ou mesmo somente um recurso para aumentar a emoção catártica nos momentos mais “movimentados”, mas o cerne de todo o filme.
É claro que o filme está interessado apenas em um bom-mocismo condescendente. Mas dentro dessa lógica, ele funciona bem. Mesmo que você não concorde com os revolucionários, se pegará torcendo por eles ao longo do filme todo. E o final, por mais clichê que seja, tem sua força e poderá emocionar os mais capturados e sensíveis.
A maior força do filme está na montagem. É aí que o traço autoral de Aaron Sorkin mais aparece. A montagem permite que o filme passe de uma abordagem quase teatral, com as disputas de poder em gestos e falas para convencer o júri (por parte de uns) ou simplesmente para afrontar o poder e mostrar uma performance da revolução (por parte dos personagens mais caricatos e maiores responsáveis pelos momentos de certo humor negro), a uma abordagem mais propriamente cinematográfica com o acesso dos eventos passados e das divergências de pensamento entre o grupo de manifestantes, que ficam nos bastidores.
A maneira como tudo é encadeado, conferindo maior destaque ao palco teatral do julgamento e acessando esses outros eventos a partir dali, dá uma boa dinâmica para contar a história, por um lado, e promover o maniqueísmo coroador dos revolucionários, por outro. Isso deixa espaço para que esses "confrontos em campo aberto" no julgamento usem da potência do teatro para conferir credibilidade a quem o filme quer heroicizar (os manifestantes), sem, no entanto, perder de vista a dimensão histórica. É de tal modo uma lógica teatral, que até se remonta às definições clássicas de Aristóteles: o filme até consegue, em alguma medida, incutir no público os sentimentos de compaixão e medo em relação aos heróis. O espectador - de maneira bem variável, cabe ressaltar - fica comovido com a injustiça e sente medo de que esta possa atingir sua sociedade contemporânea e ele mesmo.
Na melhor sequência do filme, que está nos minutos iniciais, vemos a organização dos protestos em Chicago e entendemos as diferenças de pensamento dentro daquele próprio grupo de líderes a partir da montagem paralela, da sucessão de planos que corta no meio a fala de um dos sete envolvidos e deixa para outro completar com algo que, pelo que percebemos, vai em uma linha totalmente diferente ao que o anterior diria. A maior oposição recai classicamente nas questões: usar ou não a violência, ser mais ideólogo ou mais combativo. Gerando humor no início, isso acabará por revelar os dramas internos daquele grupo e contribuirá para o o ápice da comoção junto àquele tipo de público já predito na cena final:
Melhor filme português de todos os tempos. Banho de leite, sorvetes de mulheres, ritual da fertilidade com uma garota de 15 anos sentada em uma cornucópia de ovos, a garota lendo um poema de Camões ao vaso sanitário fazendo as necessidades... o sublime desce às coisas mundanas e absurdas nessa união única em que o sagrado é evidenciado pelo profano, já que tudo é visto pelo olhar desse Deus encarnado no corpo de um pobre diabo.
João de Deus é o outro filho de Deus, aquele que, diferentemente do Cristo, encontra o sagrado em seus pecados e não consegue salvar nem a si mesmo. Assim como Cristo, porém, João de Deus também é perseguido pela sociedade que não compreende e não aceita seus atos. Quando percebemos essa relação, o filme adquire uma ironia deliciosa e somos livrados da culpa de ver tudo aquilo com seriedade. Somos, a esse ponto, como os dois patetas a brigar pelos cigarros a serem mantidos ou não na boca antes do acontecimento sério. Vemos antes da gravidade da violência que vem punir a pedofilia, o humor que dá a tudo um tom leve, um humor negro muito fino. A partir daí, o filme passa a funcionar como uma comédia mesmo, uma divina comédia humana.
O mais interessante de se notar é que, a partir desse segundo filme da trilogia, o olhar de João César Monteiro enquanto autor sobre sua obra vai ficando mais evidente, a moldura do quadro vai sendo evidenciada. Há aqui, em relação a "Recordações da Casa Amarela", uma decupagem bem mais econômica, com planos que se mudam muito pouco e apreendem em um único quadro todos os gestos dos personagens, extraindo suas forças desses gestos, à semelhança do teatro mesmo. Há construções que prezam mais evidentemente mais pela própria artificialidade, pelo espetáculo construído, desorientando a todo momento o espectador com a persistência da ação prolongada que tende tanto para o estranho (a natação simulada sobre a mesa), quanto para o cômico de um humor negro (o já mencionado confronto entre João e o pai ultrajado antes do confronto físico, que se torna uma luta para fumar cigarros); ou então, se manifesta nos planos sem contra-planos que se instauram nas conversas entre João e as suas "pupilas" do trabalho na gelateria.
Essa câmera expectante que aguarda que os acontecimentos se desenrolem por si, que vive o improviso do teatro, no que Leonor Areal chamou de "filme-esmola", é de fato a marca mais própria de João César Monteiro. Marca que não estava muito evidente no primeiro filme da trilogia, que prefere maiores sutilezas. Aqui em "A Comédia de Deus", esse olhar de Monteiro aparece, porém mesclado ao olhar de João de Deus. O amálgama ficará mais evidente em "As Bodas de Deus", o terceiro da trilogia.
É como se, dessa forma, João César Monteiro fosse cada vez mais se fundindo à sua criação, deixando esse processo natural da ficção que absorve a realidade do criador acontecer. Acontece o processo inverso com José Mojica Marins, cineasta em quem enxergo certas semelhanças com Monteiro, como sua contraparte brasileira. Mojica não suportou o horror de ser engolido pelo terrível Zé do Caixão, e teve que exorcizá-lo em "Exorcismo Negro". Monteiro, por outro lado, foi se tornando cada vez mais seu personagem fílmico, como se ambos tivessem chegado à conclusão de que não podiam existir separados, conforme se verá melhor no contexto de "As Bodas de Deus".
Há uma equação desigual: três tempos e quatro pessoas. No primeiro ato, aquele que se centra no cotidiano do "eu" trancado no quarto, vemos as cenas se desenrolarem diante dos nossos olhos com a narração do que se passou. Há uma grande consciência de futuro. Sabemos que a protagonista está narrando de um futuro distante o que ocorreu em seu passado. Além disso, as imagens e a narração não se acompanham, não se encaixam. Ora vemos a ação inicialmente representada e temos que esperar que a narração em off venha descrever o que já vimos, ou começamos a ver; ora a narração vem adiantar o que teremos que esperar se desenrolar na tela. De qualquer modo, essa espera constante, esse desbalanço, nos colocam na posição de futuro junto com a mulher. Já sabemos o que vai acontecer e revisitamos tudo dessa posição ulterior que gera o desconforto da espera.
No segundo ato, quem domina é o "ele", e o que importa para esse ele não é o futuro, mas o presente, como ele mesmo diz. O desconforto aqui vem por esse presente que nos aliena, por conhecer tudo enquanto acontece e não podermos, ao contrário de antes, nos colocar em uma posição de vantagem em relação a esse momento. As instruções sobre a masturbação que ele vai dando à mulher, que funcionam a ela como ordens para o próximo movimento, para nós funcionam como a narração presente, pois não vemos mais nada além de seu rosto em que a câmera se fecha e permanece. Tudo é instantâneo conforme o sexo rápido que o homem deseja, sem maiores vínculos.
No terceiro ato, o controle do "ela" traz ainda menos solidez. Não há mais narração para nos adiantar os acontecimentos ou nos fazer conhecê-los simultaneamente; há apenas o sexo selvagem e sem palavras que se arrasta por vários minutos. Tudo se descontrói no movimento seguinte, vai se tornando passado à medida mesmo em que ocorre, pois, sem a narração e sem maiores conexões dialógicas entre as mulheres, entramos a atravessar o rio de Heráclito: quando se passa novamente, tudo já mudou; nem você, nem a água são mais os mesmos. O que passou fica para trás e se renova. Quando tudo termina, a mulher sai sem mais. Acabou, e caberá apenas a nós espectadores usarmos de nossa memória para relembrar o fato e, possivelmente, relatá-lo.
Assim, o filme tem a consciência de sempre precisar do "tu", do espectador em quem a relação de todos esses tempos se operará. O espectador não é, portanto, um mero receptor, mas construtor do filme, conforme o título evidencia ao não esquecer do "tu". No entanto, o que fica para esse espectador ao fim? Será que ele será capaz de fazer aquele movimento de relembrar o que ficou perdido no passado ao fim do ato sexual para relatar sua experiência? Para mim, a resposta é não. Não farei questão de me lembrar do filme, pois a falta de conexão entre os atos não deixa nenhuma impressão final.
Parece, no entanto, que a ideia de Akerman, mais que essa impressão de conjunto, é que os planos possuam uma força autônoma entre si, trazendo ao espectador a experiência da angústia dessa opressão pelo cotidiano. Mas nem isso acontece. Conseguiu trazer-me não o tédio cativante, em que, mesmo que para sofrer com essa angústia, ficaria preso no filme, me arrastaria junto com as cenas, sentiria toda a frustração da mulher. Trouxe-me apenas o tédio em que se dá vontade de sair e ir olhar o celular mesmo. Sem força de conjunto, nem força autônoma dos planos e momentos, o filme busca envolver o "tu" nessa conjugação, mas não consegue. Ao fim, tudo fica em tempo sem pessoas e sem modos: o passado do esquecimento.
O filme articula o humor como a maioria dos trash dos anos 80. Aqui, porém, não é um humor inconsciente, produzido apenas no espectador e ligado aos efeitos visuais exagerados e mortes absurdas, como vemos na maioria dos filmes do gênero e como o próprio Larry Cohen construiu em The Stuff (1986). O horror visual e o maneirismo predominantes nessas produções dos anos 80 são aqui deixados de lado em nome de um suspense absurdo, porém bem mais sóbrio desse ponto de vista estilístico. Um suspense urbano, moderno, com um sistema de referências da cultura pop (sobretudo ligada à Marvel e aos quadrinhos) bem norteador de seus interesses, que está ali mais para construir um ambiente propício a essa narrativa leve e bem-humorada, sem interessar-se por levar essas referências muito longe e atribui-las significações maiores no conjunto. Nesse ambiente propício, o humor é recebido pelos próprios personagens e advém da própria consciência destes sobre o absurdo dos acontecimentos.
A atuação de Eric Roberts é especificamente poderosa nesse ponto, sendo capaz de interpretar um homem desesperado em busca de uma mulher que viu apenas uma vez na vida, com todos os acontecimentos corroborando para que pareça um louco (e de fato à beira da loucura em alguns momentos) ao contar aos outros o que vê, com uma consciência revisionista ulterior pela qual o conhecemos logo de cara (na voz em off que acompanha sua primeira aparição na tela) que enxerga em seu passado a banalidade de seus motivos e a singularidade dos acontecimentos em razão destes. Sua atuação consegue unir muito bem em seu personagem as atmosferas principais que o filme busca evocar (o mistério/suspense, o medo/tensão e o humor).
- Eu entendo por que você gosta tanto dessa câmera. - Entende? - Não é bem a realidade. A realidade diz que devemos ir embora. Não, é uma realidade totalmente filtrada. É como se pudesse fingir que as coisas não estão exatamente como estão.
A Bruxa de Blair é um produto de sua época e evidencia muito dela. Não só pelo enredo e pela lenda criada em torno do filme que só fazem sentido nesse contexto de 1999, mas também pela técnica que evoca uma atmosfera bem específica, fazendo sentirmo-nos nos Estados Unidos do final do século XX. Assim como todo filme, porém, consegue fugir a isso e renovar-se a cada nova projeção. Como diz Christian Metz, o movimento das imagens é sempre apreendido como atual pelo espectador. Não pode ser nem “reproduzido”, somente re-produzido, pois projetá-lo é produzi-lo novamente de maneira tão real quanto da primeira vez. Só que neste filme, particularmente, isso torna-se muito claro por alguns motivos.
Em primeiro lugar, a técnica do found footage cria esse “senso suplementar” de realidade. Sem nenhuma estilização, com filmagens caseiras em forma de documentário, percebemos mais aquilo como próximo da nossa realidade. O realismo é atingido não por uma encenação cotidiana e crua, mas por um quase apagamento da mise-en-scène. Nesse sentido, o filme torna-se mais próximo do que se poderia chamar “universal”, pois, ao contrário das escolhas de mise-en-scène que poderiam gerar divergências, consegue atingir a qualquer um: não por questão de gosto ou preferência, mas por percepção daquela situação como verossímil e cotidiana. Não é, porém, a realidade, e o filme nos coloca a consciência disso. O trecho de conversa citado é o momento de revelação dessa mentira do cinema. Apesar de toda a lenda construída sobre a veracidade dos acontecimentos, o filme nos dá o indício de que o que está diante da câmera nunca corresponde à realidade que conhecemos. O cinema é uma mentira, tão bem elaborada que se torna uma realidade outra.
É nessa realidade que existe o medo da bruxa de Blair. Por fim, não importa de fato se a bruxa é ou não real em nosso mundo. Nosso medo está contido no percurso fílmico e termina com o subir dos créditos na tela. Durante o filme, entramos naquela realidade, estamos ali com os três jovens na floresta próxima a Burkittsville tentando ver a ameaça que nunca se apresenta. Isso é potencializado pela técnica, em que nosso olhar é o olhar desses jovens. Mais que isso, é especificamente o olhar de Heather na maior parte. E mais, é o olhar da câmera que ela manipula e, portanto, um olhar manipulado por ela, uma realidade totalmente construída por essa manipulação da câmera, conforme os diálogos nos evidenciam. Não enxergamos nada além, nenhuma visão de conjunto que uma câmera de fora, focalizando uma encenação, nos daria. Isso leva a uma catarse tão grande que escapa para além da tensão e do medo. Acompanhando essa trajetória, chorei com os três amigos em seus momentos de desespero por estarem perdidos e ri com eles nos momentos de alívio cômico, nas pequenas consolações absurdas – ou tentativas de consolações – em meio à desgraça total.
Quando a filmagem termina, termina também esse nosso olhar e a nossa tentativa de fuga (sim, tornou-se também nossa), sem sequer conseguirmos ver a suposta bruxa. A ameaça, dessa forma, não vem para nosso mundo. Não ficamos com medo de que a bruxa possa nos pegar, pois, se ela existe, existe ali naquela floresta, naquele universo. E como terminamos sem poder confirmar esses medos, eles existirão novamente ao reassistirmos o filme. Não é como o final de A Bruxa (2015), que revela a singularidade da ameaça que existe apenas ali, com aquela menina, com aquele lugar. Um final desse tipo, com essa exposição explícita dessa singularidade, acaba não só retirando nosso medo posterior ao sair da exibição, como também anulando o medo que vínhamos sentindo durante todo o trajeto fílmico. Percebemos que é um medo em vão, pois não nos atingirá e não poderia mesmo nos atingir nem durante o filme.
Em A Bruxa de Blair, por outro lado, essa singularidade que existe não é explicitada. Ao reassistirmos o filme, entraremos novamente naquela realidade paralela e sentiremos o medo e a tensão novamente. Saberemos que não é em vão e que estamos percorrendo a trajetória proposta, nossa via crucis, que terminará sim ao fim das filmagens, mas que, enquanto não terminar, ainda temos o que temer, assim como os três jovens. É o tipo de filme que podemos reassistir várias e várias vezes, os sentimentos sempre se renovarão. E não se trata de uma preferência minha por explicações psicológicas ou finais abertos, mas da unidade com a proposta do filme. Um filme de espíritos, monstros, assassinos que andam à solta, pode ter um final explícito ou “aberto”: de qualquer forma, sairemos com a sensação de que é uma ameaça que pode nos atingir em nosso mundo, em nossa casa. Em filmes como A Bruxa de Blair ou A Bruxa, a ameaça está localizada somente ali no universo do filme, apesar de não sabermos logo de início. E para manter esse segredo escondido, os diretores tiveram a ideia de criar uma atmosfera em que nosso medo adviesse da alienação, da não-concretização de nossas expectativas. Enquanto Robert Eggers, porém, termina por entregar tudo, expondo a nós essa nossa “blindagem” em relação à ameaça e retirando, assim, nossas emoções em uma possível revisita ao filme, a dupla Daniel Myrick e Eduardo Sánchez consegue postergar o medo não para reflexões pós-fílmicas, mas criando essa aura em torno do próprio filme que confere uma força a ele enquanto reconhecimento de sua realidade autônoma.
O cinema é uma mentira sim. Não a mentira falsa. Antes, a mentira do mito, compreendido, na esteira de Barthes, como narrativa. E a realidade criada por esse mito pode ser maior que a nossa própria.
Tudo é muito passageiro. Assim como o RV sem parada muito longa, nenhuma cena dura mais de um minuto. O filme fica perdido entre uma abordagem documental mais direta, com cenas da protagonista interagindo com outros personagens mal desenvolvidos que não são capazes de construir uma linha narrativa efetiva e imersiva, e uma tentativa de abordagem sentimental que faz logo transformar-se em uma sequência de imagens bonitas das estonteantes paisagens do oeste dos EUA com música triste de fundo. A partir de um certo ponto, chega até a irritar esse tipo de sequência toda hora, sem dar tempo para que nada funcione de fato.
Um filme como "Na Natureza Selvagem", com temática semelhante, funciona melhor ao assumir uma abordagem documental. O drama construído opera dentro daquela própria lógica de documentário. No caso deste filme, a tentativa de conciliar as duas direções faz o filme ficar tão sem rumo quanto a protagonista muito bem interpretada por Frances McDormand, estragando a oportunidade de construir o que, de início, parece ter potencial para ser um grande filme pela importante e original temática.
Muito interessante a ideia de trazer essa convivência dramática entre o idoso com mal de alzheimer e sua família pela perspectiva dele próprio, de uma maneira que confere a tudo um caráter quase fantástico. Ficamos de início incomodados ao ver a maneira dura como todos tratam Anthony. Até mesmo sua filha tem um comportamento bastante estranho, surpreendendo-se com tudo de anormal que ele fala, mesmo sabendo estar diante de um senhor doente que está cada vez mais perdendo o controle sobre o que pensa, diz ou faz. Isso coloca o primeiro estranhamento, que nos faz perceber que julgar a verossimilhança do universo fílmico pela verossimilhança do nosso campo de conhecimento da realidade talvez não funcione.
Todo filme, enquanto uma outra realidade construída, com suas regras próprias, exige que deixemos essa nossa lógica do realismo cotidiano estrito. Este filme deixa isso claro, fazendo-nos confrontar nossa visão de mundo com o que é apresentado. Se inicialmente julgamos os personagens segundo essa nossa visão, vamos percebendo que eles não podem ser julgados tão simplesmente assim. Mais ou menos a partir da metade do filme, quando a temporalidade e espacialidade começam a não mais seguir o percurso linear e falsear o que vemos, construindo e remodelando tudo após, percebemos que estamos conhecendo tudo pelo olhar de Anthony. Aqui vê-se o quão falho é o título do filme traduzido para o português, Meu Pai. Enquanto o título original mantém a impessoalidade, o título brasileiro advoga por uma tomada de posição, que, no entanto, não entra em concordância com a posição assumida pelo filme. Se o filme é guiado pelo olhar de Anthony, faria mais sentido chamar-se "Minha Filha". Apenas mais um exemplo das problemáticas mudanças de nomes dos filmes na tradução, que, ao invés de traduzirem literalmente mesmo quando podem, sem prejuízos de estranhamentos para o público de outra cultura (como é o caso aqui), preferem modificar a proposta.
Assim, não há exatamente culpados e vítimas. Nosso "narrador" não é confiável, nada mais que um reflexo exacerbado dessa realidade própria do cinema enquanto mentira - não da falsidade, mas do mito (narrativa construída), que absorve e, ao mesmo tempo, ressignifica nossa própria realidade. Colocar esse idoso com alzheimer para nos mostrar tudo é, ao mesmo tempo, uma tentativa extrema de nos fazer perceber isso, e um retrato muito sensível e íntimo dessa problemática do confronto de gerações e necessidades, por uma perspectiva que não é geralmente valorizada. Enquanto nos perdemos junto com Anthony no tempo e espaço, sentimos de uma maneira muito forte seu desespero, sua tristeza, e passamos a questionar tudo junto com ele.
O questionamento de quem estaria sendo mais sensível para com os problemas do outro (o pai ou a filha) permanece por essa impossibilidade da resposta final, e é quase impossível deixarmos de pensar nele.
O que percebemos é que a enfermeira, ao final, possibilita a Anthony um amparo que ele nunca viu na filha. A enfermeira é a primeira a dar a mão a ele. E só então ele pode se abrir, deixar a consciência de seus problemas romper a barragem e, então, desmoronar em busca de um recomeço. Nesse momento, ele tem seu relógio no pulso, algo que sempre esteve perdendo durante o filme inteiro - ou seja, o controle do tempo.
Finalmente ele percebe que seu tempo está chegando ao fim e há essa iminência do recomeçar, renascer, conforme o ciclo da natureza. Após ele conseguir confessar à doutora que sente como se estivesse perdendo todas as suas folhas, os galhos, o vento e a chuva, a cena final no olhar para além da janela do asilo nos mostra o verde das folhas das árvores pinaculares e vistosas que cercam o lugar. Se em todos os (supostamente plurais) apartamentos em que Anthony morou ele olhava pela janela à procura dessas suas folhas e raízes, conseguindo ver apenas o cinza da vida moderna na cidade, agora esse reencontro com sua própria consciência possibilita que reencontre também o vigor de sua árvore da vida. Essa perspectiva final é, em minha leitura, quase animista, à semelhança do que é muito enfatizado pelas literaturas africanas em suas buscas por esses confrontos de gerações, da vida tradicional contra a vida moderna, e a valorização do idoso e da criança no ciclo que os perpassa e os une.
Anthony está agora pronto para encarar seu renascimento - não necessariamente o renascimento físico, mas o "rasgar-se e remendar-se" de sua consciência, de suas certezas, e sua continuidade espiritual, ideológica ou afetiva nos que ficam após sua partida. Do mesmo modo como a outra filha, após morrer em um acidente (ao menos pelo que nos é dado a conhecer), permaneceu na memória e na afetividade de Anthony, de uma maneira que assemelhava-se à presença física no mundo pela força desse afeto materializado nas pequenas coisas como a pintura, Anthony também permanecerá de alguma forma.
As tradições africanas acreditam nessa roda da continuidade, em que ninguém vai embora de verdade - pelo contrário, passa a um plano de quase onipresença, capaz de renascer na consciência dos jovens para guiar sua busca por amadurecimento. Antes de morrer, o ancião tem plena consciência de que entrará nesse processo. Nossa cultura cristã acredita em algo certa maneira parecido, de uma outra chave. Mesmo na visão confusa e fragilizada de Anthony, sua filha o ama em muitas medidas e certamente levará sua experiência adiante. Ou talvez até mesmo a doutora, que oferece um aconchego tão terno e sensível à visão de Anthony, com quem certamente ainda terá boas convivências.
Portanto, mesmo que fiquemos pensando, não importa, por fim, se há "bons e maus", "vítimas e culpados", "melhores ou piores": o universo de Anthony precisa ser compreendido segundo sua própria lógica, em sua própria luta para adquirir a ordenação e a consciência de partida e destino, "de onde e quando vim e para onde e quando vou". É isso que o filme mais evidencia.
Incrível como o filme consegue nos incluir naquele mundo que é tão único e distante da realidade cotidiana da grande maioria dos espectadores, de uma maneira que faz tudo soar familiar a todos. Creio que isso se dá, entre outras coisas, pelos diálogos, dos mais bem construídos que já vi.
Esses diálogos que possuem uma força convincente muito poderosa, sem deixar de serem naturais; a inevitabilidade do andar do filme, em que os movimentos guiam tudo; esses movimentos dos personagens em suas interações que se encadeiam muito bem; a segurança humana de seu caráter que transparece em cada afirmação e nos faz compreender a cada um individualmente. Tudo isso contribui para que o filme adquira o tom de uma naturalidade singular, uma simplicidade que é também complexa, porém sem ser difícil. Lembrou-me um pouco a escrita de Tchekhov, aquela escrita que encanta por essa naturalidade e simplicidade não-banais, por dizer o muito através do pouco, sem artificialismos e elementos retóricos, com uma visão muito íntima para o cotidiano. Uma visão que faz de cada elemento nosso “irmãozinho” (para usar o diminutivo que os russos tanto gostam). Ou, como disse Jacques Rivette sobre a beleza do cinema de Hawks, “uma beleza que manifesta a existência pelo respirar e o movimento pelo andar. O que é, é (That which is, is)”.
Naturalidade e “simplicidade complexa”, do nível moral dos personagens transbordam para os pequenos elementos cotidianos, são explicadas pelos objetos – os fósforos que sempre estão em falta nos bolsos de Geoff porque ele não se importa com o futuro ou com o passado, só com o presente; a moeda que define os destinos na sorte do cara-ou-coroa; as bebidas pagas um ao outro... Isso torna os personagens familiares com tudo ao seu redor e nos convence dessa familiaridade, de modo que também entramos para a família dos aviadores.
Podemos resumir a força do filme, portanto, principalmente em diálogos e movimentos, remontando ao que já apontava Rivette. Os diálogos, mais que nos colocarem na familiaridade desse universo moral instaurado ali, nos fazem compreendê-lo e aceitá-lo em alguns momentos. E nesse sentido, os movimentos também se fazem importantes. Bonnie é a personagem que primeiro entra em cena para acender o estopim dos acontecimentos do filme. Do mesmo modo, tudo se voltará a ela ao final. E assim como tudo se inicia na decisão da moeda, também terminará assim. Esses movimentos que constroem o filme. Se os críticos da Cahiers apontavam o movimento nas obras de Hawks como uma linha reta, em que as conclusões inevitáveis vão se atrasando para gerar a tensão, podemos dizer que nesse filme a tendência é um pouco diferente, descrevendo esse ciclo em que tudo retorna para o ponto de decolagem. Quando os pilotos estão no hotel ou no bar, ficamos à espera de que partam. Quando estão em voo, ficamos apreensivos por seu retorno perigoso. Isso é ditado pela freneticidade ambiciosa de Geoff, sempre à procura de realizar o maior número de trabalhos no menor período de tempo possível, sempre precisando do piloto para o próximo voo. E onde estiverem os homens, estamos ali com eles, seja no chão ou nos ares, sofrendo as mesmas tensões e problemas.
Já ao nível da moralidade em relação a essa pressa que empilha cadáveres e acidentes, tendo que aprender a engolir tudo junto com os drinques e seguir em frente, o olhar que nos guia é o de Bonnie. Sendo a personagem que inicia e termina tudo, acompanhamos sua trajetória na tentativa de compreensão daquele ambiente ao mesmo tempo estranho e fascinante a si. Chegamos de viagem junto com ela e adentramos um universo novo. Começamos por nos chocar como ela frente ao nível de frieza após a morte de Joe. Depois, levados por todos esses elementos de compreensão daquele mundo, passamos a entender e aceitar. Ao longo do filme, nos questionaremos novamente a respeito da validade de todos aqueles riscos em nome do dinheiro, a respeito das motivações de Geoff. Tentaremos aceitar junto com Bonnie, mesmo sem compreender tudo. Terminaremos por deixar nosso sentimentalismo aparecer novamente, para depois nos alegrarmos com ela pela descoberta da resposta final de Geoff. Se continuarmos refletindo, a batalha prosseguirá, como se ainda fôssemos uma Bonnie conhecendo tudo ali: será que vale arriscar as vidas para cumprir as metas? Será que Geoff tem razão em importar-se apenas com o presente, em não querer alguém que o prenda com preocupações de um relacionamento? Será que há razão em importar-se tanto assim com o orgulho e a honra ao ponto da imprudência?
A resposta pode parecer quase sempre não, mas às vezes também pensamos que é sim. De qualquer forma, o final nos escusa, ao menos a nível do percurso fílmico, de postergar essas reflexões. Nossa alegria por ver que MacPherson redimiu-se e reestabeleceu sua honra substitui o desconforto pela imprudência de Kid, o que fica marcado quando vemos o copo da bebida sendo erguido pelos novos companheiros. A alegria do desfecho pela moeda substitui nossos possíveis descontentamentos com Geoff. Os movimentos do filme aterrizam novamente na pista de pouso. Colocá-los novamente em trânsito para nova tarefa dependerá somente de nós: se, ao fim, saímos mais com a impetuosidade grave de Geoff ou com a prudência aguda de Bonnie. “That which is, is”.
A ideia é mais impressiva que a própria execução do filme. E não porque a execução é péssima, mas porque a ideia é devastadora e engole qualquer outra coisa. Premonição tem algo de realmente inovador em sua concepção, traz um dos motes de filme de terror mais angustiantes e que consegue algo talvez inédito: fazer o público sentir mais medo após sair do filme do que durante ele.
Ainda que um pouco minados pelos outros sentimentos com que convivem na trama adolescente e policial, os momentos de tensão são bem construídos e encaixados nessa trama para obter um equilíbrio entre diversão e horror. Apesar de toda a tentativa de construção de algo muito cotidiano para trazer a sensação da morte que espreita em qualquer canto e qualquer coisa que você for fazer, os melhores momentos são justamente aqueles em que as mortes se mostram mais improváveis, mais teatrais, cujo maior exemplo é a morte da professora. Trata-se de uma diferença entre realismo técnico e realismo dramático, como definiu André Bazin: nem sempre as construções mais verossimilmente reais são as capazes de gerar maior identificação. Esses momentos mais coreografados possuem o realismo dramático mais convincente justamente porque reforçam a ideia mais apavorante por trás do filme: não há escapatória. Luta-se contra um inimigo invisível e que não pode ser caçado ou detido, à diferença das ameaças tradicionais (monstros, assassinos, até mesmo com espíritos dá-se um jeito). Se a morte não vier dos momentos mais previsíveis, como ao atravessar a rua, ela encontrará uma maneira de acontecer nos mais improváveis, como quando você toma uma caneca de uísque acima do seu computador.
Isso deixa um sentimento que pode acompanhar uma pessoa pelo resto de sua vida ao sair do filme: simplesmente não há mais lugar seguro depois daquilo. O que você faria se, após tudo que viu, tivesse um sonho com acidente de avião um dia antes de embarcar em uma viagem? Eu sinceramente não sei o que faria. Eu tenho certeza que você também vai pensar duas vezes antes de tomar algo perto do seu computador, ou ao menos se certificar de que a caneca não está rachada. E ainda assim saberá que não adianta, pois se escapar dessa, a morte agirá por outra situação qualquer. Será ainda mais apavorante encontrar a caneca rachada do que não encontrá-la assim.
Nesse sentido, toda a ideia de transferir as forças superiores e ocultas (a morte) para coisas menores e palpáveis do nosso cotidiano (a caneca, o computador, a água do vaso sanitário), é interessante e funciona muito bem para deixar esse cisma no espectador. E se após algum tempo a execução do filme não for muito memorável, é justamente porque ele atingiu seu objetivo: a ideia que planta na mente de quem vê é tão forte que passa a ser encarada como um perigo dentro de seu próprio cotidiano, passa a ser relacionada não mais aos personagens do filme e às situações vividas, mas às nossas próprias situações. As cenas que mais ficarão na memória são justamente essas melhores encenadas, como a da morte da professora, por conta de sua concepção mirabolante e também pelo uso do horror, do choque visual, que é algo que o filme sabe unir muito bem a esse medo do que pode acontecer para dar a sensação de angústia completa, de mortes dolorosas e trágicas.
Para além de todo o evidenciado trabalho gráfico com o realismo da violência, Mel Gibson soube compreender e articular melhor que qualquer outro no cinema as diversas associações e metáforas dos Evangelhos. As montagens de atrações de Eisenstein possibilitam aqui a melhor contribuição que o cinema poderia dar para a representação do episódio bíblico, o diferencial do cinema que nenhuma outra arte poderia reproduzir.
Se o texto bíblico se vale da afirmação do mestre: “Eu sou o Pão da vida” (João 6, 35), o filme nos mostra isso com grandes sutilezas associativas: o manto descoberto que expõe o corpo de Cristo dando lugar ao pano dos pães desembrulhado na última ceia; o levantar do pão seguido do levantar da Cruz no calvário. Se o texto bíblico apenas pode esperar que a ação profética seja cumprida – “Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim deve ser levantado o Filho do Homem” (João 3, 14) – o filme nos leva para o “aqui e agora” do acontecimento (capacidade projetiva de espaço e tempo, a grande inovação do cinema) ao unir os episódios diante dos nossos olhos.
Mais que propor as relações, tudo deixa pincelado sutilmente para quem quiser ou precisar perceber o olhar católico de Gibson para os acontecimentos. Essas associações seriam ignoradas em um filme de olhar protestante, de um diretor que vê a metáfora do pão apenas como símbolo discursivo destituído da associação real que os católicos conhecem na realidade da Eucaristia, do sacrifício transposto para as espécies do pão e do vinho e sua transubstanciação em corpo e sangue, alma e divindade. Em verdade, os católicos são muito mais dados ao simbolismo, possuem as metáforas presentes e cumpridas diariamente em sua liturgia e nas imagens de suas igrejas, o que justifica o apreço do filme pela montagem associativa e leva a esse casamento da necessidade significativa com a potencialidade do cinema para levar a narrativa da Paixão a nova dimensão.
Do ponto de vista católico, o filme é quase perfeito. Para além dessas associações simbólicas do Evangelho, a catolicidade de Gibson possibilita momentos dramáticos muito íntimos e impactantes com relação à figura de Maria, muito cara aos católicos e vista com toda a sensibilidade devida do diretor. Os cruzamentos de olhares de Jesus e Maria durante a via sacra possuem essa expressividade íntima e geram os momentos mais dramáticos do filme. Isso unido à montagem associativa, em mais uma demonstração das possibilidades do cinema, temos uma das mais belas cenas de todos os tempos em que a necessidade associativa de Gibson transborda para além das próprias balizas do Evangelho, sem no entanto perder o sentido cristão: vemos Cristo dando um exemplo da sua capacidade de “fazer novas todas as coisas” em sua queda com a Cruz, que é sobreposta à sua queda na infância durante as brincadeiras, sendo em ambas socorrido pelo cuidado maternal de Maria. A interlocução de Jesus com sua mãe nesse momento – “Vê, mãe? Eu renovo todas as coisas” – funciona quase como uma confissão que quebra a parede da distância confortável entre o espectador e a tela e estabelece a cumplicidade tácita entre ele, Jesus e Maria. É como se Jesus revelasse saber o que está se passando no filme, saber que está sendo feita a montagem de atrações para associar esses dois momentos. Na verdade, o que Ele sabe é o que se passa na memória e no coração de sua mãe. Assim, ficamos sabendo que o que estamos vendo na tela é o que está no íntimo de Maria, seu olhar materno naquele momento para tudo.
Por fim, o catolicismo do diretor explica também toda a dimensão do filme que foi chamada de “gore” e que pode aproximá-lo de um filme de horror. Há não só o horror visual na violência crua com que o martírio é retratado, mas também o horror próximo do terror nas tentações demoníacas que perseguem Cristo e assolam Judas, trazendo uma perspectiva que quase não encontramos a respeito da Paixão em outras representações: a presença do mal, o causador do mal moral que leva os homens a fazerem aquilo com o Messias.
A teologia católica, muito mais que a protestante, sempre concedeu grande importância a essas realidades: a do sofrimento e a da importância de vigilância constante contra o mal. O sofrimento está intrínseco na realidade do sacrifício, e sempre presente nas representações do Cristo crucificado que encontramos nas igrejas católicas. Ou nas celebrações como a da Sexta-feira Santa, que lança a reflexão sobre essa parte dolorosa da Paixão. Os católicos nunca deixam perder de vista a realidade do sofrimento de Cristo ao tomar nossos pecados para cravar na cruz, o maior sofrimento que já existiu, e têm essa mesma cruz e esse crucificado como sinal de vitória sobre a morte e lembrete do quão preciosa é nossa salvação, comprada por preço altíssimo. A mortificação, castigo do corpo, é enfatizada na teologia católica como instrumento de resistência ao pecado e ao mal, como imitação do Cristo em suas dores. É com a oração e com o jejum, nas passagens de sua vida e até mesmo como representado no filme, que Jesus vence as tentações do demônio que está sempre à espreita.
Portanto, representar a violência sofrida com o maior nível de realismo possível (o que, segundo o que se pode apreender de reflexões de médicos que estudaram o assunto, não chega nem perto da crudelíssima realidade do Cristo que já nem tinha mais figura humana ao ser pregado na Cruz), é para o diretor católico uma necessidade de chocar mesmo o público para que se atente ao valor imenso desse sacrifício e possa perceber como nossas dores não são nada comparadas às de Cristo (o que, curiosamente, também ficou marcado no famoso meme dos sets de filmagem de “A Paixão de Cristo”, com a foto de um Jim Caviezel todo ensanguentado e chagado conversando com um Mel Gibson que parece explicar assuntos banais a ele, como um homem reclamando ao Senhor).
Unido a esse horror visual, há todo um elemento sombrio que acompanha o psicológico aflito de Cristo e as passagens do demônio, e que aproxima o filme dos elementos do terror/horror, produzindo atmosferas belissimamente construídas em termos sobretudo de cor e fotografia. O maior exemplo é a sequência inicial no Getsêmani, com a atmosfera de um negro azulado que causa arrepios para evidenciar o nível de aflição de Cristo e já preparar a aparição do demônio. Isso tem o efeito de transformar o filme no que realmente é a Paixão de Cristo e toda a vida do Salvador do ponto de vista teológico/literário para os autores cristãos: uma confluência de gêneros; a presença de compaixão e medo a um nível maior que de todos os dramas gregos da época de Aristóteles; ou, como diria G.K. Chesterton, o “romance do Cristianismo” – a razão por que o Cristianismo se assemelha aos romances e mesmo se sobressai nessas prosas literárias surgidas em sociedades cristãs, com as misturas de gêneros, perigos e conclusões que o romance e o Cristianismo possuem em comum em suas estruturas.
Essa evidenciação das características do autorismo de Gibson leva a compreender que a maior parte dos que se chocarão com o nível de horror do filme são não-católicos, e que o filme assume, portanto, uma visão particular sobre a Paixão que faz tudo que é representado encaixar-se perfeitamente para expressar essa visão católica.
Tudo isso posto, é o maior filme já realizado sobre o assunto. Assume um olhar sobre os acontecimentos e sabe articular muito bem isso em sua mise-en-scène, de uma maneira que, ao mesmo tempo que se aproxima o melhor possível da realidade da tortura, contribui para manifestar a visão assumida.
Mojica precisou dessa dissociação para deixar clara sua posição de autor e não ser engolido por sua criação. Isso é revelador porque diz muito a respeito do status autônomo da ficção e da arte, que sempre adquirem vida própria fora das mãos do realizador e chegam mesmo a tragá-lo. Somos frequentemente alertados do perigo de misturar ficção e realidade, de julgar uma obra pela vida de seu autor ou vice-versa. Mas, às vezes, isso se torna quase inevitável, porque a ficção passa a ser maior que a própria realidade. No caso de Mojica, conhecido e apresentado como Zé do Caixão até o fim de sua vida, isso torna-se gritante. À época do filme, ambos já eram vistos como uma só pessoa, como o próprio Mojica contribuiu para que acontecesse ao colocar Zé do Caixão como o realizador de seus filmes em “O Despertar da Besta” (1970). As consequências de permitir que o ciclo natural dessa fusão fosse levado a cabo, porém, devem ter se apresentado como terríveis a seus olhos.
Com uma figura tão devastadora e possessiva como Zé do Caixão, que se apresenta como o próprio príncipe das trevas, é impossível não ser engolido. Mojica, ao perceber quão horrível era a figura que criou (ou que encarnou em si), precisou mesmo exorcizá-la com suas próprias mãos e com a câmera mostrando isso para não tomar parte de seus horrores, reafirmando sua posição de cineasta católico frente a seu alter-ego demoníaco e profano.
Alexandre Astruc disse que, diferentemente do autor literário, o autor cinematográfico não escreve para libertar-se, mas sim encontra certa cumplicidade na ternura ou no horror do universo que explora, que não é senão a fonte da grandeza que o obceca e que ele acredita poder revelar. Com Mojica, um autor atormentado pelos horrores da sociedade brasileira da época ditatorial e talvez por questões de perversidade humana e mal moral que afligem o homem desde o início dos tempos, a figura de Zé do Caixão instaurou-se em seu imaginário quase que intuitivamente, quase como uma força própria, com todas as influências de Murnau e da literatura gótica que ele devia conhecer: Mojica sempre disse que Zé nasceu a partir de um sonho, em que ele se imaginava sendo arrastado até o caixão. Foi uma criação que veio de um surto de inspiração surgida de um inconsciente irrastreável (ou de outras forças ainda menos cognoscíveis). Porém, com o tempo, Zé do Caixão foi engolindo-o, ao ponto em que ele, Mojica, já não mais aparecia. Percebendo o perigo de ser tragado por essa figura que, ao contrário de si, atraía tudo com seu pessimismo materialista e profano, o exorcismo reafirmador de seus valores representa uma tomada de consciência desse poder da ficção e do perigo dessa cumplicidade do cineasta.
E o mais interessante é que essa nova tomada de consciência não passa sem se manifestar na linguagem cinematográfica. “Exorcismo Negro” é um filme bem mais sóbrio que seus anteriores, com um olhar quase que distanciado que observa de longe e vai se focando mais no espetáculo que ali se apresenta. Essa câmera que aproxima e afasta das pessoas, objetos e do cenário é a marca que se mantém ao longo de todo o filme, como se houvesse alguém à espreita observando tudo aquilo. Tal maneira de filmar não é recorrente no cinema de Mojica. Nos filmes de Zé do Caixão enquanto personagem, as técnicas são outras, buscam desorientar o espectador a todo momento e valorizar o horror nauseante das cenas não para envolver esse espectador, mas justamente para alertá-lo desse horror e dos perigos do “estranho mundo de Zé do Caixão”. Os múltiplos movimentos de câmera que acompanham os golpes de Zé, os artifícios visuais gore, os planos inusitados de partes do corpo, os reverse shots nos momentos de ataques às mulheres que fazem o próprio espectador levar o soco, tudo isso faz parecer como se houvesse alguém evidenciando para nós o horror de tudo aquilo, nos apontando e mostrando: “Olhe só como tudo isso é feio, não tome parte disso”. E quem é esse alguém?
Tradicionalmente, é o olhar do próprio diretor sobre sua obra que quebra essa nossa passividade de espectador, que nos explicita a moldura que envolve aquele quadro. A partir de “Exorcismo Negro”, podemos ter mais certeza disso: de fato, José Mojica é o realizador que não quer tomar parte nas ações de sua criação e mostra aquilo ao público com um olhar que o impede da identificação. Nos outros filmes em que Zé do Caixão aparece como personagem, é o olhar de Mojica que prevalece contemplando tudo aquilo com o mesmo horror com que observa o culto infernal a Zé em “Exorcismo Negro”. Conhecemos tudo a partir desse olhar contrário a tudo que é apresentado. Já neste filme, isso não pode acontecer porque Mojica não está manipulando a câmera, ele está ali diante dela. Sua presença no filme enquanto diretor e personagem, na metalinguagem proposta, faz com que o olhar manifestado não seja mais o seu. Por isso a diferente condução da câmera.
É um olhar outro que nos apresenta tudo, esse olhar que espreita de longe. A recusa da decupagem clássica nos leva a crer que esse olhar tem um dono, está proposto por alguém. Quem seria desta vez? Creio que a resposta só pode ser o próprio Zé do Caixão. Nessa inversão genial que o filme propõe, contemplamos o criador pelo olhar da própria criatura.
Uma ofensa à obra do meu autor favorito. O filme parece que quer chegar em algum lugar, mas não chega. É incrível como ele é anti-chestertoniano nesse sentido: Chesterton, com seus paradoxos geniais, era extremista na medida que se deve ser. Unia os extremos do improvável, passava as mensagens mais complexas de maneira tão bem trabalhada nas alegorias e metáforas que tornava tudo inteligível ao homem comum. Seu romance “O homem que era quinta-feira” é um dos maiores exemplos disso, trata uma das questões mais complexas da humanidade (o problema do mal) de uma maneira que, ao fim do livro, faz todos compreenderem e enxergarem o valor do sofrimento e os desígnios de Deus de uma maneira que nunca tinham enxergado, como aconteceu comigo. O filme, ao contrário disso, traz mensagens banais e crenças relativistas infantis de Deus contra religiões e sistemas dogmáticos, o individualismo do homem no enxergar de seu próprio deus, de uma maneira complexa, ou que ao menos tenta ser complexa. Coloca tantos temas e referências de um modo jogado e preguiçoso, encarados por personagens que nem tenta construir, que acaba não chegando a lugar algum e contamina até mesmo a mensagem que deveria existir ao final, que possui uma sacada até que interessante, mas simplesmente não consegue se fazer crível.
No início, apesar de toda a estética de novela da Band, o filme parece promissor. As cenas das tentações do padre, com os closes sensuais em partes do corpo em flashes rápidos, a passagem do tempo cortada por lapsos, são bem decupadas e trazem as marcas de um pesadelo, que é como a obra de Chesterton se apresenta. Ou, no caso aqui, de sucessivos pesadelos. No entanto, ao longo do filme percebemos que essas técnicas que evocam a embriaguez e o desvario são repetidas à exaustão não para intrigar o receptor e estabelecer uma mensagem, como o romance chestetoniano faz, mas como artifício fácil para dispensar a construção de um pesadelo mais elaborado, um pesadelo em que o personagem estivesse realmente inserido e interagindo com um todo. Essa abordagem serve mais para escusar o protagonista de tentar compreender alguma coisa do que está acontecendo.
Enquanto Gabriel Syme no romance percorre lugares improváveis, conhece pessoas que precisam ser decifradas e desmascaradas e interage com toda a paisagem e o ambiente ao seu redor, que denotam seus estados de espírito e o clima do mistério, o padre Smith aqui é sempre um alucinado que, às vezes pelo uso mesmo de alguma droga, outras não, acorda como um bêbado deslocado e parte para outra aventura sem se esforçar por se ordenar ou compreender algo. Sem se importar muito com quem são de fato as pessoas que encontra e ignorando completamente o cenário ao seu redor, que, por conta disso, passa completamente desaproveitado no filme.
Os personagens que o padre vai encontrando pelo caminho não possuem o mínimo de aprofundamento. Alguns ficam mesmo sem um lugar definido, como a prostituta que faz o padre inicialmente pecar e abandonar sua fé e posteriormente é vista em um breve relance na festa italiana, depois não aparece mais e ninguém dá importância. Os membros do grupo anarquista, que são tão marcantes e bem construídos no romance, cada um com uma característica peculiar desnaturada, no filme passam despercebidos. A maioria aparece uma vez apenas. O filme desperdiça uma ótima oportunidade de vincular-se ao romance na caracterização desses personagens, que na obra de Chesterton possuem ligações com seu dia correlato na ordem da criação do Gênesis. Uma transposição desses personagens, construídos então no início do século XX, para os dias de hoje, para o contexto do “baixo urbano” que o filme tenta evidenciar, seria interessantíssima. Mas ao contrário disso, seus nomes permanecem como uma referência distante e descontextualizada.
Há uma diferença entre construir e encadear, mas o filme não faz nenhum dos dois. Chesterton constrói as situações, personagens e elementos em seu pesadelo. Tudo adquire um sentido que vai sendo gradualmente evidenciado, mesmo com cada acontecimento anulando o anterior. É tudo tão bem construído que o sentido da história está em se tornar cada vez mais irreal e absurda, em buscar além das aparências. Os homens que inicialmente parecem ser anarquistas terríveis, vão um a um desmontando-se (literalmente) aos olhos de Syme e revelando-se policiais infiltrados. O filme, porém, sequer apresenta uma sucessão de eventos. Não temos tempo, espaço ou mesmo informações para conhecer os personagens e nos impressionar com eles. Do mesmo modo como todos são apresentados em um só balaio, todos se revelam de uma só vez, e ainda pelo relato distanciado de um terceiro personagem. É tudo tão frustrante que falha até como exercício de construir tensão.
Assim, o romance de Chesterton vai sendo usado mais como pretexto para apresentar a história base do que como referência e motivação. O personagem que é colocado para dar suporte à citação da dedicatória do romance que é pichada no muro e repetida algumas vezes pelos anarquistas, o personagem mais interessante de todo o filme, é igualmente mal aproveitado. Esse atendente de bar cego vem para dar um sentido todo desconstruído a essas palavras de Chesterton sobre os que acreditam sem ver. Se o autor inglês falava sobre a realidade da fé invisível nas melhorias vindouras, no filme esse crer sem ver adquire toda a conotação egoísta do homem solitário que pode prosseguir seu próprio caminho em busca do que acredita ou não.
Jack, o barman, passa a ser admirado pelo padre Smith por, após ter perdido a vista na guerra (ao que dá a entender), ter descoberto que Deus não existe e estamos sozinhos. É a visão que mais traz conforto ao padre, alguém que parece mesmo estar caminhando na escuridão, movido mais pelos apetites sexuais. Ele busca mais isso e essa confirmação fatalista de sua solidão e “liberdade” do que de fato redimir-se e adquirir o perdão do Papa. É por isso que o final, por mais que traga uma tentativa de construir algo, não funciona, porque isso não foi construído ao longo do filme todo. Só Deus ali acredita na redenção do padre. Nem o próprio padre acredita, porque passou o filme todo sem buscar a redenção, sem buscar entender nada. Não somos capazes de comprar a mensagem trazida pelo desfecho. Na verdade, não há mensagem, há apenas tentativa de dar um fechamento inteligentinho e, ao mesmo tempo, um tanto tocante, que o filiasse ao livro de Jó. Mas, novamente, a literatura é apenas usada como pretexto.
Se a história de Jó traz uma mensagem a respeito dos mistérios de Deus, que é justamente a de que não podemos compreendê-los, o filme vai para a facilidade da compreensão, para o Deus que testou e descobriu a bondade do homem e, através disso, de toda a humanidade. Um Deus que mata o Papa para descobrir isso. Uma bondade que não vem pela religião, pela vida em comunidade como o padre pregava à sua assembleia no início do filme, mas do homem solitário que caminha no escuro em rumo às suas próprias noções de bondade. Há um único momento em que tudo isso entra em contradição, porém que é ignorado por todo o resto do filme: quando Jack, perto da morte, diz estar vendo Deus. Ele que passou a vida toda acreditando e pregando a solidão do homem no mundo, não enxergando no escuro mais que sua própria moralidade. Porém, se isso foi uma tentativa de dar algum outro sentido à mensagem, o próprio filme a ignora completamente. Jack morre apavorado - "Se eu o temo tanto, o que sentirei em relação ao diabo, padre?" - e Smith sai indiferente a tudo isso.
O padre morre como um mártir de suas próprias paixões e conceitos, vítima desse deus infantil e individualista que apostou com o diabo e sai dizendo que ganhou. A falta de força da cena é tão grande, que até a ambiguidade com a qual termina é forçada e imprecisa. Novamente, tudo foi minado pela falta de sentido de todo o filme. Ao fim, o que fica? Uma Igreja corrompida pela ligação com o fascismo, como Sábado falou em algum momento – e portanto, como pode se depreender, anteriormente boa em seus desígnios de levar a Deus? Ou o próprio Deus sendo um mito, apesar de mitos serem reais e, portanto, precisarem ser detidos, como ela também disse depois? O filme não sabe e não está interessado nisso, apenas tenta passar algo, não importa o que for. Algo em que nem o próprio diretor entende ou acredita e, por conseguinte, também não conseguimos nós o fazer.
Chesterton usa o nonsense. Ele escreveu mesmo uma defesa do nonsense. Porém, nonsense de maneira alguma significa sem sentido. Essa é uma filosofia que parece estar muito além da compreensão do diretor. O pesadelo de Chesterton tem a força de um drama e as cores de uma fábula. Explica melhor a vida real que o próprio cotidiano. O pesadelo de Balazs Juszt tem a torpeza de uma noite de ressaca. Quando acordar, não se lembrar de nada é a melhor das possibilidades.
O mais interessante do filme é que ele não se leva a sério em momento algum. As incursões dos Trapalhões no trash são casos curiosos em sua obra e produziram alguns de seus melhores filmes, por transformarem isso em um novo e diferenciado elemento de humor na cinematografia brasileira. Se em "O Trapalhão nas Minas do Rei Salomão", porém, o tosco é colocado com pretensões de atingir a seriedade na aventura estilo Indiana Jones com toques de terror, aqui nesse filme o humor é assumido em todas as instâncias e faz dessa estética seu maior trunfo. Essa despretensão fica evidente nos efeitos: slowmotion, repetição de movimentos, a sonoridade cômica que acompanha os golpes das lutas intermináveis, na caracterização dos personagens... Adriano Stuart, alguém já familiarizado com paródias de grandes blockbusters americanos após ter realizado "Bacalhau" dois anos antes (paródia de "Tubarão") e que sabia bem como fazer um filme B por seu trabalho com José Mojica Marins em "Exorcismo Negro" (1974), era ciente das limitações do cinema brasileiro e de que a melhor chance de fazer dar certo nesses casos era assumindo o tosco e o humor sem precedentes, inclusive no que poderiam fazer de modo mais elaborado e sério - a cena do pássaro gigante saindo do ovo é antológica e deixa isso o mais evidente possível. O resultado é um trabalho inventivo, cheio de experimentalismos e realmente memorável, o que certamente não seria se tivessem tentado meramente adaptar Star Wars. Esse sequestro do então recente clássico de George Lucas para a realidade do cinema brasileiro e, especialmente, para a realidade dos Trapalhões, é algo que devia ser visto pelo mundo todo.
A primeira coisa que chama a atenção no filme é a ligação com o jogo Red Dead Redemption 2. Não uma ligação direta, mas evidenciada em alguns aspectos composicionais que fazem pensar que o jogo serviu como uma das inspirações para o filme, como os enquadramentos de câmera em terceira pessoa bem similares que marcam o início da jornada do Capitão Kidd ainda solitário, além de outros ângulos característicos de Red Dead que vão aparecendo ao longo do filme. Diferentemente dos filmes do período clássico do faroeste, em que as amplas locações abertas geravam excelentes planos gerais na natureza que ajudaram a distanciar o cinema do teatro, esse aqui enfoca muito mais os personagens, sempre mostrando a paisagem em relação a eles e vice-versa, como acontece no jogo. Em verdade, ambas as produções trabalham com “períodos de fronteira” para os temas e gêneros que abordam, o que impacta os valores priorizados na narrativa. Tanto o jogo quanto o filme se passam no pós-guerra civil, período em que a era do velho-oeste aproximava-se do fim. O filme filia-se à linha dos faroestes do período já de decaimento popular do gênero no cinema, a partir da década de 1950. Ambos os casos contribuem para que “Relatos do Mundo” seja menos focado na ação e nos grandes confrontos em campo aberto do que seria uma produção da época de ouro do western e do contexto auge do velho-oeste, preferindo dar mais espaço aos dramas dos personagens e às relações que desenvolvem entre si.
Assim, essa experiência já possibilitada pelo jogo é trabalhada aqui: os personagens humanos como centro da narrativa, com seus feitos heróicos e as belas fotografias vindo como subordinados a eles. No filme de Greengrass, isso é ainda mais potencializado pela trivialidade do herói, que não se encaixa no tipo cowboy, mas é um veterano de guerra que não perdeu sua sensibilidade frente ao mundo, que encara as coisas com um olhar inocente e bondoso, apesar de tentar manter-se inalterável. Ele acredita que a vida segue uma linha reta, portanto deve-se abandonar o passado e olhar para frente, buscar sempre novas histórias. É isso que ele tenta dar às pessoas com suas leituras de notícias em forma de contação de histórias que realiza de cidade em cidade. Do outro lado, temos a menina que é uma despatriada e sozinha no mundo, porém que, por sua criação indígena, acredita no ciclo, na importância de retomar o passado para construir o futuro. Ambos descobrirão uma grande conexão e uma ótima cumplicidade para enfrentar os perigos que aparecem, apesar de suas origens e pensamentos tão diferentes, tornando-se imagens de um duplo. Os dois gostam das histórias, principal elo que os une, com a diferença de que enquanto o Capitão usa-as como fuga de sua própria história, a menina acredita na necessidade de mantermos nossas recordações (o que gerará um dos momentos mais fortes do filme, que é sua visita ao local em que os pais foram mortos). O personagem de Tom Hanks passa o filme todo em um conformismo com aquele mundo, contudo demonstrando-se desencaixado dele. Tenta manter a “casca grossa” e evita demonstrar suas lembranças e fraquezas, tenta construir uma imagem de equilíbrio e controle, porém não sabe bem como agir quando o perigo realmente aparece. A maioria desses momentos fica a cargo da menina, alguém que nenhuma expressão mais profunda demonstra inicialmente por conhecer apenas violência e separação e nem conseguir comunicar-se em inglês. Todavia, ela possui um grande conhecimento prático de como sobreviver no velho-oeste e acaba salvando o Capitão Kidd mais de uma vez.
Essas jornadas dos dois que se cruzam, com esse complemento dinâmico, ao final acabam invertendo-se. Por fim, o Capitão acaba tendo que revisitar seu passado, momento em que toda a emoção guardada ao longo da trama desponta, possibilitando-nos conhecer mais sobre suas relações com a ex-mulher, seu passado na guerra e a culpa que carrega. Toda essa construção gradativa da emoção e da introspecção no personagem que “quebra” seu jeito fechado em si funciona muito bem no filme para construir nossos laços com ele e o desejo de conhecê-lo mais a fundo. Somente através dessa revisitação ele pode resolver-se com seus fantasmas e ter uma visão clara de como deve seguir seu futuro. A menina, por outro lado, apesar de acreditar na importância do passado para a construção do caminho, não possui mais passado em absoluto. Sua única felicidade está em seguir em busca de um novo futuro, como o Capitão acredita.
Os dois percebem que se completam e não podem seguir separados.
A construção da tensão na narrativa dá-se a partir de alguns eventos isolados que, apesar de não gerarem impacto prolongado, articulam-se bem em “soma de pontos”, como quadros que vão formando a imagem daquele universo que só pode ser conhecido um passo de cada vez, em que é cada um por si e Deus por todos. Até nisso o filme assemelha-se a Red Dead, em que o personagem vai descobrindo eventos ao percorrer o mundo com seu cavalo, cada um com sua particularidade. E essa aposta é certeira, pois está mais de acordo com o espírito da época representada do que os filmes que elegem um conflito central: liga-se a essa ideia do velho-oeste como estrada percorrida a cada dia um pouco, sem saber o que o dia de amanhã reserva. A jornada em que os personagens embarcam é solitária, feita para um homem só. No entanto, eles conseguem vencer essa barreira e aprendem a trabalhar juntos para enfrentar o que vier. Os poucos conflitos que aparecem na trilha dos dois dão conta da tensão da narrativa, e o filme trabalha bem a dualidade entre esse mundo diurno dos perigos e o mundo da noite, mais dado à reflexão e ao acesso (ou tentativa de acesso) à intimidade dos protagonistas. Isso fica perfeitamente demarcado pelas cores, que são marcantes na composição do filme em um jogo binário que possibilita uma fotografia belíssima: o amarelo da vegetação, das colinas, do sol e também dos lampiões nas cidades por onde os dois passam (onde também encontram perigos) versus o azul do céu noturno, momento em que se deitam para o descanso e onde acaba-se revelando em partículas um pouco mais da história de cada um.
Os conflitos, revelando diferentes quadros daquele universo, também colocam diversas questões sociais que o caracterizam e situações outras para a trama, para além de revelarem um pouco mais sobre os dois personagens centrais. O destaque fica para a luta contra a opressão de um ex-fazendeiro que controla uma cidade inteira, mas que não passa incólume pela chegada dos dois com suas histórias. A história de superação escolhida pelo Capitão Kidd ajuda o povo a enxergar sua condição e dá forças para que se rebelem contra ela, sobretudo na figura de um dos capangas do líder dessa cidade. Esse momento serve para mostrar o poder de reconstrução que advém da ficcionalização, da compreensão mais ampla do mundo que ela possibilita, poder que também se exercerá sobre os protagonistas e, em última instância, sobre nós mesmos através do próprio filme. A fina sintonia encontrada pela dupla de viajantes e as trocas de experiências e concepções de mundo entre eles não impactam somente a si, mas a todos que entram em contato, possibilitando que todos aprendam a recomeçar e encontrar seu lugar nessa longa estrada da vida.
Relatos do Mundo apresenta-se, desse modo, como um western diferenciado, que, à semelhança do jogo Red Dead Redemption, apresenta toda a fragmentação daquele universo causada pelos conflitos entre diferentes povos e personalidades e busca acessar uma dimensão mais humana nas suas fragilidades e reconstruções, retrato de um tempo que exige dos homens do velho-oeste essa reflexão mais pessoal e esse “rasgar-se e remendar-se”. O equilíbrio entre ação e drama dá-se de modo a proporcionar ora momentos de grande tensão, ora cenas emocionantes. Mesmo que tudo seja bem passageiro e não permaneça no ato seguinte, ao final tem-se uma sensação de que os eventos cumpriram sua função e nos ajudaram na compreensão daquele universo que o diretor quis colocar em cena para além do que é classicamente representado no contexto, bem como do nosso próprio universo e do nosso lugar nele.
Stephen King classificou esse filme como dono de um “poder fantasmagórico, misterioso” em seu livro Dança Macabra. De fato, acredito que essa é a melhor definição que se possa dar ao filme. Esse poder pode ser sentido em tudo, desde a música quase infantil dos créditos iniciais e que se desdobrará em toda uma trilha sonora estranha e com características de ópera ao longo do filme, dando uma força épica aos momentos (momentos de mortes ao som de coro soprano de bonecos, momentos de perseguição ao som de música dramática, momentos de acesso ao passado ao som de música romântica), mas sobretudo na cena de morte aos primeiros minutos. Simplesmente uma das cenas mais aterrorizantes que eu já vi, na união sinistra entre horrível e cômico nos manequins de cera e o ataque que inicialmente parece envolver fenômenos espirituais, mas que, como descobre-se depois, não é assim.
O que temos é, na verdade, um vilão com poderes telecinéticos que comanda os bonecos. O filme mostra-se uma junção entre O Massacre da Serra Elétrica e A Casa de Cera, porém bem mais inventivo que qualquer dos dois. Há o motivo popularizado por Hooper e que se tornaria clichê a partir das próximas décadas – os jovens que são impossibilitados de seguir viagem por falta e combustível e/ou pneu furado e acabam tendo que passar a noite em um lugar estranho que é comandado por esse sujeito excêntrico. As leves incursões em seu passado em uma tentativa inicialmente frustrada de conferir uma carga de emotividade e uma maior conexão com os personagens pode parecer clichê, mas funciona bem ao prover todo o mistério sobre sua esposa e ir construindo aos poucos esse mapa psicológico até culminar nas sucessivas reviravoltas ao final. Aliás, uma das coisas que o filme faz de melhor é rejeitar os clichês e se reerguer com novos plot twists quando parece que eles vão se instaurar. A resolução que começa a ser prevista pelo telespectador como cópia do clássico de Hooper e se transfere após algum tempo para Psicose acaba se mostrando algo realmente inventivo e original.
O mais interessante é ver as ótimas noções de espacialidade que possui David Schmoeller e que conferem um traço realmente autoral a seu terror. Esse trabalho com o espaço fica mais evidente em seu posterior Crawlspace (1986) – Mente Macabra ou Perversão Assassina em português – em que os labirintos e pontos de vista são centrais para a construção do filme. Mas aqui isso não é menos importante. Em um filme que joga bastante com as percepções de rostos para que não consigamos distinguir em vários momentos os bonecos das pessoas e tenta mesmo nos confundir com rostos caricatos como os de Chuck Connors e Robin Sherwood (em que um pouco trabalho de maquiagem já é suficiente para termos de aguçar nossa vista em algumas cenas), as excelentes construções em profundidade de campo e planos-sequência (dignas de um Orson Welles) tornam-se decisivas para modificar nossa percepção. Com os atores e objetos quase sempre distantes e espalhados pelo campo, somos tanto confundidos quanto convidados nos closes a acessar uma expressividade mais íntima do personagem que o filme não dispensa.
Parece que o diretor leu o livro "Jantar Secreto", de Raphael Montes, achou legal a ideia dos ricos formando clubes de jantares de carne humana como crítica social ao desprezo destes em relação às classes baixas e resolveu usar no filme, porém de uma maneira mal trabalhada que faz o canibalismo se tornar um mero detalhe incluído para fazer crítica e que, por não ser trabalhado na trama, poderia inclusive ser descartado. O filme todo cai nessa crítica extremamente forçada. Os diálogos são os mais clichês e artificiais possíveis para indicar isso e toda a motivação da trama parte disso, com um monte de coisa deixada sem desenvolvimento. As autuações são medíocres e mesmo ruins, somente para repetir esses diálogos, sobretudo no personagem de Otávio que o diretor tenta construir como "conservador", alardeando isso na sinopse, mas termina fazendo algo nem um pouco convincente ou verossímil, preso a chavões estúpidos. Otávio termina sendo somente um corno conformado e bobo. Por fim, o filme vale apenas pelas cenas gore que são aceitáveis. É um entretenimento de 80 minutos, nada mais que isso, e poderia bem ser um curta pela falta de assunto.
O filme é nada mais que uma reunião de situações bizarras com edições de cores e técnicas jogadas, guiadas por personagens que não possuem o mínimo de aprofundamento e não conseguem desenvolver qualquer conexão com você, seja de que sentimento for. Na verdade, grande parte do tempo você nem entende o que está acontecendo ou quem é quem ali, de tão confuso que é tudo. Rob Zombie parece não possuir a mínima noção de como criar um roteiro ou personagens. O personagem que inicialmente parece ser o principal morre nos primeiros minutos do filme, e o resto segue com inclusões a torto e a direito de novos rostos, cenários e situações sem sentido. Começa com um mínimo de sentido, e termina sem nenhum. Um filme feito simplesmente para parecer bizarro, mas jamais com o mesmo brilhantismo de vários trashs dos anos oitenta ou mesmo anteriores (Zé do Caixão, em quem Zombie diz ter se inspirado, mas parece não ter absorvido nada com coerência) que o fazem de maneira inventiva e em tramas com sequência lógica. Vale meia estrela somente pela cena tarantinesca em slow motion dos policiais encontrando os corpos no galpão, a única cena boa do filme.
Um excelente filme que mostra como o cinema nacional se desenvolveu bastante no gênero terror/horror. O diretor Dennison Ramalho foi elogiado por José Mojica Marins, o mestre supremo do nosso cinema, e não é pra menos. Ele consegue fazer uma combinação poderosa de elementos do cinema de horror americano com as situações da nossa realidade brasileira, usando-as tanto de mote para instaurar a trama psicológica quanto como atrações do conjunto que constroem toda a atmosfera do filme.
A história começa de uma maneira bem original, com a maior perfeição de um terror tipicamente brasileiro: o trabalhador do IML que, em um país marcado pela violência, lida com a morte bem de perto e pode perceber a transitividade e a miséria de nossas vidas, o que se reflete como um espelho de sua própria vida frustrada junto da esposa que só o deprecia. O humor se estabelece nesse diálogo com os mortos, mais do que o medo propriamente (o que é uma característica clássica do terror: a possibilidade de juntar humor, drama e qualquer outro gênero), evidenciando também essa miséria de nossas vidas, no melhor estilo Brás Cubas. A única coisa em que o filme peca nesse aspecto é na edição de som, já que as falas estilizadas dos mortos são, muitas vezes, incompreensíveis.
Com o uso indevido dos segredos que os mortos lhe confiam, Stênio inicia em sua jornada de tormenta. Muitas pessoas frustraram-se com esse segundo ato do filme por acreditarem que ele deixa de lado o enfoque brasileiro e se apega a fórmulas e técnicas americanas. No entanto, não vejo esse problema no filme: Dennison Ramalho sabe articular muito bem um clássico roteiro de uma família assombrada por um fantasma com situações que instauram o medo a partir de elementos da realidade brasileira: o exorcismo neo-pentecostal televisionado, o labirinto de cerol (a melhor cena do filme), os mortos pelas mais diversas situações que vão desde os traficantes até às vítimas de um deslizamento do morro (essa cena representa o maior momento de tensão dramática do filme, em que os problemas de Stênio começam a se avultar em todos os sentidos, não somente pela perseguição sofrida, mas por todo o contexto de seu trabalho. A atmosfera psicológica trabalha muito bem a desilusão e o desespero). A originalidade do filme está na maneira como articula esse roteiro clássico com essas situações de uma nova realidade que é, por si só, mais desesperadora que a que dá fundo aos filmes americanos do gênero. A fotografia gélida e escurecida que impera na maior parte da produção, mesmo durante do dia e em ambientes iluminados, promove o movimento contrário: a adaptação da tradição brasileira, que seria a de um país tropical iluminado, alegre, de cores vivas, à tradição dos filmes de terror de ambientes escuros e cores frias, e contribui também para toda a atmosfera de tensão e melancolia.
O maior problema do filme, ainda que isso não seja preponderante e não estrague em nada sua eficácia, é a resolução. Fiquei um pouco frustrado com o final por ter me parecido um tanto genérico, um subterfúgio para resolver a situação que não ficou muito explicado e não produziu grande impacto. Durante o filme todo fiquei contando com a possibilidade dos eventos sobrenaturais serem todos decorrentes de desvios psicológicos de Stênio (o que fica sugerido pelo título, "Morto não fala").
O final elimina essa possibilidade, porém não de uma maneira a produzir um grande impacto.
Nesse ponto, o roteiro apelou para a facilidade dos clichês para se resolver. Há ainda alguns outros pequenos problemas, como a falta de um certo aprofundamento na personagem de Lara. Sua crença e religião, por exemplo, são colocadas na história sem um grande papel, aparentemente apenas para ligar o filme à tradição do gótico e do horror de incluir os elementos da religiosidade, trabalhando isso, novamente, segundo a realidade brasileira (o crescimento dos grupos neo-pentecostais, intercalado também com uma menção à umbanda que vai fazer trabalho no cemitério quando Stênio decide ir desenterrar o corpo de Odete). Ainda que se relacione com a proposta do filme, isso não foi muito aprofundado e poderia ter um papel maior no ato final.
Apesar dessas pequenas decepções, o filme mostra-se como uma atualização original e inventiva do horror brasileiro que merecia muito mais estar na premiação do Oscar do que Bacurau, que pretende concorrer no próximo ano.
Visto: 18/11/2020 (mostra macaBRo na Darkflix) Nota: 8,5/10
Assisti a Bacurau nos cinemas ano passado e reassisti ontem. Desde a primeira vez eu já havia sido jogado entre idólatras e detratores. O filme foi superestimado de uma maneira geral por muitos que julgam apenas por seu papel crítico ao governo, enquanto alguns amigos meus colocaram o filme lá embaixo injustamente, apenas apegados a detalhes de composição técnica. Sinto falta de uma crítica sensata que julgue o filme como ele realmente é: um filme acima da média para os padrões do cinema brasileiro, mas não esse espetáculo de cinco estrelas que aqueles tomados pelo criticismo de esquerda alardeiam só pelo filme criticar as políticas do governo Bolsonaro e uma série de outras questões. É essa crítica que tento fazer aqui. Bacurau apresenta-se formalmente como uma mistura muito rica de gêneros e técnicas cinematográficas. Enxergamos ali uma atmosfera meio diesel punk, meio cyber agreste, e as referências e influências dos filmes americanos são bastante explícitas. Aqui reside a primeira contradição das críticas que o filme busca promover: para criticar o tal do "imperialismo norte-americano", a invasão norte-americana para subjugar os cidadãos, os diretores fazem um filme totalmente influenciado pelos filmes do país do Tio Sam: mesmo nível de violência gráfica, sintetizadores a la John Carpenter, clichês introduzidos pelos personagens americanos invasores (a mistura de gore e sexo de filmes como Sexta-Feira 13, por exemplo, como na cena em que os dois caçadores começam a transar depois de matar o casal)... isso não é ruim falando em termos de composição, apenas soa um pouco hipócrita para a proposta crítica do filme. Mas ainda podemos relevar isso se pensarmos que as inovações na produção cultural brasileira sempre vieram por antropofagismo e absorção cultural estrangeira, buscando achar um tom mais próprio, que é o que Bacurau faz. E o filme também busca mostrar que os brasileiros não são subalternos, mas podem pagar com a mesma moeda aos estrangeiros (levando isso também para o nível visual e técnico do filme). A maior contradição da proposta está na crítica aos supostos rumos violentos que o país seguiria com as políticas de liberação de armas do governo. Bacurau é uma sátira da sociedade brasileira futura, uma sociedade que naturaliza e banaliza a violência, o que podemos ver por várias pistas ao longo da produção, desde o início que já começa dizendo que a história se passa no "oeste de Pernambuco, daqui a alguns anos...". O problema com isso é:
ao fim, o que salva a população da morte é justamente as armas da cidade guardadas no museu
. A produção aqui tenta valorizar todo o passado de resistência do Nordeste, resistência a todos que oprimiram o povo, inclusive os próprios "ícones" saídos de lá, o que se mostra por referências ao bando de Lampião. Mas o efeito é invariavelmente o mesmo:
não fossem suas armas, todos teriam morrido, pois os americanos obviamente levariam suas armas e seriam o poder opressor. Penso que a ideia poderia ter sido melhor aproveitada se o roteiro tivesse explorado mais a subversão que tentou fazer no estereótipo do americano inteligente, estrategista, como vemos em seus filmes, que ali aparece como um completo idiota que atira ao acaso e só sai correndo e fazendo barulho, esperando a completa passividade do povo de Bacurau. Esse artifício poderia ter sido melhor aproveitado se os habitantes de Bacurau aqui se colocassem como os inteligentes e estrategistas, matando não com armas de fogo como as dos americanos, mas sim com armas caseiras e estratégias de ataque.
Isso daria muito mais força para a ideia que o filme tenta passar, de que a política de liberação de armas é prejudicial, e de quebra ressaltaria outra característica forte do brasileiro que é a inventividade e adaptação às mais inesperadas situações. Também seria perfeitamente possível, já que vemos que Bacurau, pelos efeitos do psicotrópico que funciona como uma espécie de "abridor de olhos e mentes" (tanto para o bem quanto para o mal, a depender do julgamento de cada um), é um povoado totalmente fora dos padrões de um povoado comum do interior: aceita com naturalidade a violência, a prostituição e a nudez; não segue ritos ou crenças religiosas, mas possui seus próprios ritos que são diferentes dos católicos, como fica claro na cena inicial do enterro; não aceita passivamente a política de deterioração das escolas que o poder local promove nas redondezas, mas é bastante consciente da importância do estudo e da leitura. Enfim, não é um vilarejo das estereotipadas pessoas simples e facilmente enganadas em tudo. Os americanos ora são apresentados como bastante estereotipados com seus preconceitos, ora com a subversão já mencionada, mas os cidadãos de Bacurau sempre fogem dos padrões, motivo pelo qual poderiam se colocar como esses estrategistas militares. Um dos maiores problemas do filme está nos furos de roteiro, que se avultam no desfecho.
Quando é de esperar que é chegado o clímax do enredo, com a guerra entre os norte-americanos e os "bacuralenses" (ou seria gente?), as ações se mostram ridículas e inverossímeis e tudo acaba em 5 minutos. Claro que os americanos não esperavam pela resistência do povo, achavam que seria fácil pegá-los, por isso acabaram sendo pegos de surpresa de modo igualmente fácil. Mas algumas ações, sobretudo do velho Michael, tornam-se absurdas: a cena do encontro dele com a personagem da Sônia Braga, em que ela oferece comida a ele, ele derruba a mesa e sai andando sem matá-la, é ridícula, termina do nada. A morte do cara que matou o menino, que devia ser cruel e dramática, é totalmente esquecível, sem nenhum impacto, tanto que nem lembro mais especificamente como ele morreu. A sequência de ações a partir daí é totalmente inverossímil: Michael começa a matar seus próprios companheiros e, depois que vê que está tudo perdido, pensa em se matar (quando ele poderia simplesmente ter fugido para o mato), mas então vê o espírito da matriarca morta e fica paralisado, até ser pego por um cangaceiro (ele poderia ter se matado mesmo assim, afinal o homem o estava ameaçando unicamente de morte mesmo, mas não o faz, sem motivo algum).
Enfim, parece que foi tudo simplesmente jogado para dar um conflito final e um fim para a história, somente enfatizando a resistência da população. Tudo poderia ser resolvido com o que eu já disse de um melhor aproveitamento da astúcia dos habitantes x a prepotência dos americanos.
A única cena que merece destaque é a do homem pelado explodindo a cabeça do americano, uma ótima construção que remonta a filmes trash como "Náusea Total", mostrando o corpo caído com a cabeça aberta pela metade. Essa cena é a maior reviravolta do filme.
Outros pontos que merecem consideração: as atuações são muito fracas, inclusive as dos atores convidados Sônia Braga e Udo Kier. O único que se destaca um pouco é Thomas Aquino. A fotografia e a direção, por outro lado, são boas. A trilha sonora também é excelente. Ao fim, o que fica é que é um filme com uma boa ideia, que não foi aproveitada do melhor modo, caindo em vários clichês e inverossimilhanças. O filme vale mais por sua inovação e ousadia técnica e pela representação de um Brasil que foge das representações que estamos acostumados a ver no cinema brasileiro, um Brasil pensado de um jeito diferente. Isso é suficiente para fazer um filme interessante de ser assistido e que é uma conquista para o cinema brasileiro atual tão acostumado com a homogenização. Minha nota fica entre 7 e 8.
Envolvente e catártico, te enche de vontade de fazer o bem. Boa crítica aos instrumentos de poder e sua busca por sensacionalismo. Só perde meia estrela pelo final que ficou meio corrido e vazio,
já que, após a vida do cara ser fudida na opinião pública a nível mundial, não mostra uma única retratação na mídia, entrevista, nada. Senti essa falta de ver ele aparecendo como herói perante o mundo, a mãe vendo tudo e tendo orgulho dele de novo.
No geral, um ótimo filme de um diretor consagrado. Como li em uma outra resenha, em outras mãos essa história poderia ter dado origem a um filme despersonalizado, talvez um telefilme. Mas Clint Eastwood sabe dar o tom dramático, sarcástico, ácido e nos fazer ficar decepcionados com os homens e sedentos do amor e tranquilidade familiares, que é o que mais importa, junto com o herói.
Entrou pra minha lista dos melhores da década, pelo menos um dos mais surpreendentes. Robert Eggers vem se mostrando como um diretor inventivo e ousado, que é uma das coisas que o cinema atual mais precisa. Tudo é arriscado nesse filme: a ideia de ser em preto e branco e totalmente fora dos padrões de imagem e tela, o fato de ter apenas dois personagens interagindo o tempo todo em lugar fechado, o abuso de símbolos e referências da mitologia que não serão compreendidos por todo mundo... mas o diretor consegue construir tudo de um modo extremamente inteligente e envolvente. O clima de tensão constante e crescente, tanto entre os dois personagens como em relação ao ambiente, o aprofundamento psicológico do personagem Ephraim, os diálogos que unem hostilidade, apego e humor na media certa, tudo contribui para deixar o espectador totalmente envolvido por quase duas horas, sem precisar de grandes cenários ou de um roteiro cheiro de ação e reviravoltas. Além disso, a fotografia e a atuação dos dois também são ótimas. Poderia facilmente se passar por um filme de Hitchcock. Aliás, o que fiquei pensando: seria Eggers o novo M. Night Shyamalan, que levou esse título de sucessor de Hitchcock no início do milênio? Os pontos de contato com os tempos de ouro do diretor indiano vão aos poucos aparecendo. O drama familiar que Shyamalan tanto gostava esteve presente em A Bruxa, agora em O Farol vemos um intimismo em personagens masculinos com passado problemático. Os finais de Eggers não possuem reviravoltas intensas como os de Shyamalan, mas o final desse novo filme me animou por não cometer o mesmo erro que me incomodou no do filme anterior, a única coisa que me me incomodou aliás: ser muito explícito ao ponto de ser bobo,
com o bode conversando com a garota com voz do demônio e as bruxas se manifestando de um modo
que deixou o filme com cara de série adolescente da Netflix aos últimos minutos. O final de O Farol se mostra bastante simbólico e abre possibilidade para interpretações e exercício de reflexão do público, algo que acho bom de ser feito. Eggers está se mostrando eficiente e inovador em construir suspenses de um modo que me dá essas esperanças, já que Shyamalan é meu diretor preferido e animou o mundo por anos com filmes diferentes de tudo que havia sido e estava sendo feito até então. O Farol é esse tipo de filme, que, como muitas produções de Shyamalan, provavelmente só será bem compreendido e receberá o crédito que merece daqui a alguns anos.
Rogai Por Nós
2.3 409 Assista AgoraATENÇÃO: esta crítica contém spoilers. Os mais pontuais foram marcados.
"Quando me tornei anarquista tentei toda a espécie de disfarces respeitáveis. Primeiro vesti-me de bispo. Tinha lido, nos nossos panfletos "Superstição, eis o Vampiro" e "Padres de Rapina", tudo o possível acerca de bispos. Desses escritos concluí que eles eram uns velhos estranhos e terríveis que ocultavam à humanidade um segredo cruel. Fui mal informado. Quando pela primeira vez me apresentei num salão com as vestes episcopais e clamei: "Humilha-te! Humilha-te, presunçosa razão humana!", descobriram logo que eu não era bispo. Apanharam-me." (G.K. Chesterton, "O Homem que era Quinta-feira")
O terror de estreia de Evan Spiliotopoulos é muito bem resolvido com seu conteúdo religioso e a atmosfera gótica que quer construir. Para um católico como eu, isso é muito gratificante. Mas também é importante para conferir credibilidade a essa filiação ao gótico, que desde seus primórdios na literatura dialoga com a religião católica e articula mensagens em relação ao tema da fé. Abordagens e mensagens que partem, em muitas obras, apenas do senso comum e da aura de superstição em torno da religião, mas não aqui.
Sob esse ponto de vista, o filme é bem católico em suas assunções. Não há, em momento algum, a tentativa de levar tudo para um ceticismo caricaturizador das crenças religiosas e dos líderes, ou tampouco para o sensacionalismo da profanação em busca de um choque fácil. Desde o título original em inglês, tristemente adulterado na tradução, fica bem claro que o filme não quer profanar a imagem de Nossa Senhora e da fé católica, como alguns desavisados pensariam, como também não quer instaurar dúvidas teológicas ou psicológicas. Fica bem claro desde o título que o que se revelará ali é o mal, o diabo que se utiliza da fé para atrair as almas. Não o encontro de um "lado oculto" em Nossa Senhora, não uma exposição sobre fanatismo religioso ou corrupção na Igreja, mas um enredo que entra em pleno acordo com a Bíblia e as possibilidades para o mal em suas manifestações.
Todo o roteiro é construído de modo a mostrar ao espectador, logo de cara, que não se trata de um evento divino, mas sim satânico. Acompanhamos uma devoção a Maria que tem origem por Alice, a sobrinha do padre da igreja na pequena cidade de Banfield (Nova Inglaterra), que, após receber o que acredita ser uma cura miraculosa de Maria e começar a falar pela primeira vez na vida, sente o chamado da "Maria de Banfield" para espalhar sua mensagem e seu culto. Os eventos que precedem isso já deixam claros como tudo aquilo faz parte de uma maldição: a cena inicial de uma bruxa do século XIX,
que mais ao fim da trama descobriremos ser Maria Elnor
O mais interessante, porém, vem no tratamento espiritual de tudo aquilo. Alice diz com todas as letras que está feliz porque está ganhando fama ao espalhar a mensagem da "Maria de Banfield", que Maria a fez passar de uma garota esquecida a uma celebridade mundial. O jornalista, que é um homem com propensões ao ateísmo e com um passado de descrédito por inventar várias histórias para obter sucesso em sua carreira, se anima com a possibilidade de voltar a ser prestigiado e requisitado pelos jornais, já que ganha acesso exclusivo a Alice por estar envolvido no primeiro encontro dela com Maria. Percebemos a impossibilidade de se tratar de uma manifestação divina, uma vez que a palavra de Deus ensina que nunca se deve fazer algo buscando a glória pessoal, mas exclusivamente a glória de Deus. Tudo é errado desde o início naquela devoção, do ponto de vista cristão, e o filme escancara isso, até mesmo nas falas dos habitantes da cidade que citam versículos bíblicos a todo momento e não demoram a dizer: "O orgulho precede a queda", citando Provérbios 16, 18.
Dessa forma, a visão católica racional com relação aos milagres e aparições é sempre enfatizada em contraposição à superstição sensacionalista de que o demônio se utiliza. E o filme é bem explícito em suas intenções. As informações apresentadas sobre o processo do Vaticano para investigação desses eventos, com todo o rigor da provação científica, são mesmo bem acuradas. Ao invés da aceitação fácil que se expressaria em um filme que buscasse criticar uma suposta manipulação religiosa da Igreja para enganar os fiéis e um aspecto irracional da crença, essa relação entre ciência e fé, que a visão caricaturada tenderia a contrapor em uma antítese, é afirmada em sua união. Há o inquisidor que usa de todo seu conhecimento científico para tentar refutar a todo custo os supostos milagres, deixando desde o início bem clara suas intenções ordenadas pela Igreja. Essa união entre ciência e fé fica até mesmo escancarada na fala de uma personagem que tenta convencer o jornalista de que a fé não precisa ser irracional.
Há mesmo uma questão de posicionamento no espectro teológico de que o filme se utiliza para reafirmar essa racionalidade da fé. O padre Hagan, que deve representar a oposição naquela comunidade de aceitação fácil, cita uma frase de Martinho Lutero, que é imediatamente reconhecida pelo jornalista: "Onde Deus abre uma igreja, o diabo constrói uma capela ao lado". Ao contrário do pastor de First Reformed (2017), que dentro de sua posição protestante tem uma formação de autores católicos para enfatizar o valor que dá ao sacrifício, martírio e sofrimento, mais presentes na teologia católica, valores de grande importância em seu arco no filme, o padre aqui manifesta essa formação protestante que é mais radical em seu ceticismo com relação às aparições. Tudo sempre de maneira bem explícita, sem deixar nada nas entrelinhas, para que qualquer tipo de espectador possa reconhecer mesmo sem informações prévias. Esse escape da teologia católica no personagem, no extremismo de suas posições, mostra que, para além de manifestar uma visão católica, a unidade do filme está nessa contraposição entre as manifestações divinas, em sua razoabilidade, descompromisso e simplicidade, e as manifestações demoníacas em seu arrebatamento sensacionalista.
Para essa evidenciação, os aspectos estilísticos do filme parecem contribuir. O CGI meio kitsch das cenas de aparições e mortes, com momentos dignos de novela da Record, estranham sobretudo pelo fato do orçamento do filme não ser tão baixo: um orçamento padrão de A24 ou Blumhouse, que não produziria efeitos tão caricatos. Para além da marca da produção de Sam Raimi, que talvez assinale essa preferência pelo kitsch em alguma medida, parece que há uma permanente desconjunção entre o sobrenatural e o natural no filme. Isso se mostra tanto nessas cenas de aparições e mortes (a aparição da senhora no céu; a aparição saindo do lago; a cruz do altar pegando fogo
e matando o padre inquisidor
Toda essa desconjunção, além de necessidades técnicas ou marca autoral, parece contribuir para a já destacada contraposição entre o universo divino e o universo satânico. Por já termos a noção da falsidade da aura divina que Alice e os outros veem no acontecimento, o suspense não está em descobrir o segredo (pelo menos não o grosso dele), mas em saber como se dará a contraposição, como tudo vai se resolver. Ou seja, em saber o que classicamente nossa curiosidade sempre espera: se o bem vencerá o mal. Mais ainda, nesse caso, como o bem se construirá em relação ao mal. Dessa forma, o filme constrói uma atmosfera gótica em que, diferentemente do que é classicamente feito, o segredo está na descoberta do bem a partir do mal instaurado. E essa atmosfera é bem construída, não é minada pelo uso dos tão temidos jump scares. Pelo contrário, eles ajudam a construí-la, já que são parte do destaque desarmônico do sobrenatural naquele mundo. Não aparecem em número desnecessário e não se tornam a muleta de apoio do filme, mas são utilizados em momentos em que fazem sentido.
As manifestações do mal que prevalecem ao longo do filme encontram-se nessa atmosfera de espetáculo sensacionalista, irracionalismo, egoísmo e falsidade.
O milagre divino, quando chega, é simples, humilde e dura para sempre. Em outras palavras, é um verdadeiro milagre, não uma ilusão para impressionar. Vem não por alguém necessitado de fama, mas pela oração sincera de um pecador e cético convertido, que sacrifica sua posição e reputação para salvar alguém que ama. Entra, assim, em concordância com o Evangelho, que mostra o Deus que se alegra pela conversão sincera dos pecadores, atende suas orações e se manifesta na simplicidade. É o Deus que nasce em uma manjedoura em meio aos animais e derrota os que ocupam trono de ouro. Que atende não quem ora com grandiloquência e mostra a todos as marcas de suas penitências, mas quem se recolhe em sua intimidade, seus joelhos no chão e pratica a virtude sem querer ser visto, conforme ensinou Jesus. Que se alegra mais com a volta de uma única ovelha que se perdeu do que com multidões de seguidores. E é por isso que nossa certeza sobre a veracidade desse milagre não é contaminada pelo final "to be continued...": o milagre tem essas características que atestam a real presença divina e marcam a contraposição estabelecida. Se há algo que o final revela, é apenas a continuidade dessa batalha espiritual que, segundo a revelação divina nos dá a conhecer, deve durar até o fim dos tempos.
De igual modo, os milagres ocorridos em Lourdes, que são mencionados no filme, vieram na manifestação simples e na humildade da jovem Bernadette, a quem Nossa Senhora pediu não que atraísse multidões e alcançasse fama no mundo todo, mas que cavasse um poço com as próprias mãos para fazer brotar a água dos milagres. E como o padre Hagan bem assinala, sofreu em vida o martírio do descrédito, não a glória da fama. "Pois todo aquele que a si mesmo se exaltar será humilhado, e todo aquele que a si mesmo se humilhar será exaltado", disse Jesus (Lucas 14, 11).
Talvez proposital, talvez por acidente, mas é um dos únicos casos em que um CGI tosco contribui para articular a ideia que o filme quer passar e para lidar com o gótico de maneira inventiva.
Judas e o Messias Negro
4.1 517 Assista AgoraO filme todo se apoia nas interpretações de Daniel Kaluuya e Lakeith Stanfield, fazendo de seus momentos mais fortes e marcantes os discursos políticos inflamados de Fred Hampton (sobretudo o discurso final que consegue contagiar também Bill). Nesse sentido, parece quase uma peça de propaganda revolucionária misturada com uma certa abordagem de Wikipédia para contar a história dos dois.
Os dois atores conseguem carregar o filme com relativo sucesso, mas qualquer coisa mais interessante que podia ter sido explorada nas relações humanas e conflitos internos e externos dos personagens é deixada na superfície. No caso de Bill, seus remorsos e dúvidas são muito contidos, ficam no meio caminho entre a evidenciação e o apagamento. Parece que o diretor quer mostrá-los ao espectador em alguns momentos-chave, mas faz tudo de maneira meio discreta e indefinida, o que leva a não seguir por nenhum dos dois caminhos nas possibilidades para o personagem e entregar algo pouco verossímil.
Já no caso de Fred, uma cena como a do primeiro beijo com sua mulher, que mostra seu lado mais íntimo e as incertezas que esconde por trás daquela imagem inabalável, aparece ali isolada e nunca mais se repete. O personagem vai assumindo cada vez mais um tom "burocrático" nos meandros que enfrenta em sua rivalidade com o sistema, até sua morte, que é totalmente esvaziada de força e gera impacto zero no espectador, não conseguindo captar convincentemente nem a tristeza de sua mulher grávida. Logo o texto contando o restante dos eventos sobe na tela, na técnica mais manjada possível e sem deixar espaço para nenhuma emoção, contrastando com os objetivos catárticos que parecem ser buscados na figura de Fred.
Parece que tudo fica entre a frieza assumida e essa tentativa de abordar um certo lado sentimental que falha. Ao invés do filme propor-se a um dos dois e entregar-se a ele, a direção que não quer se arriscar em nada deixa tudo muito contido e sem força suficiente, desde essa construção dos personagens até a decupagem e montagem padrões. Assim, a história é contada de maneira "bonitinha" para vender aos simpatizantes da revolução e da luta contra o racismo, porém sem qualquer traço autoral mais evidente que poderia produzir uma grande obra.
Acossado
4.1 510 Assista AgoraUm dos melhores exemplos de combinação entre enredo e articulação estilística. Nosso olhar é jogado de um lado para o outro com os jump cuts, as mudanças de plano bruscas, a livre movimentação da câmera na mão, tudo provocando nossa desorientação em meio à perseguição urbana. É tudo tão bem combinado que quase nem sentimos o estranhamento desses recursos de filmagem pouco ortodoxos.
O melhor é que o filme consegue nos envolver tanto nesses momentos frenéticos, quanto na cena de interiores. Godard sabe construir tudo de um modo que os anseios dos personagens em todas as situações passam a ser os nossos. Na agitação parisiense, nosso olhar corre junto com eles. Na intimidade do quarto, quando há uma quebra de ritmo, acompanhamos o lento jogo dos corpos, a agitação expectante dos amantes em suas dúvidas e conflitos.
Por fim, o filme consegue mesmo enganar nossas expectativas, transformando nossa quase irritação frente à submissão, ingenuidade e complacência da figura feminina em empolgação com a virada no ato final. Patrícia, que passa a imagem de personagem plana ao longo do filme todo, mostra subitamente sua esfericidade. Há, então, uma quebra de “preconceitos”: mesmo com toda a desorientação promovida pela mise-en-scène experimental, tínhamos uma certa sensação de controle sobre o filme por essa planificação dos personagens. O destino final, com a fuga para a Itália, parecia certo. Por mais que nosso olhar saltasse de um lado para o outro, tínhamos plena certeza de onde terminaria por pousar. A finalização mostra que a desorientação não é um mero fetiche formalista ou mesmo somente um recurso para aumentar a emoção catártica nos momentos mais “movimentados”, mas o cerne de todo o filme.
Os 7 de Chicago
4.0 581 Assista AgoraÉ claro que o filme está interessado apenas em um bom-mocismo condescendente. Mas dentro dessa lógica, ele funciona bem. Mesmo que você não concorde com os revolucionários, se pegará torcendo por eles ao longo do filme todo. E o final, por mais clichê que seja, tem sua força e poderá emocionar os mais capturados e sensíveis.
A maior força do filme está na montagem. É aí que o traço autoral de Aaron Sorkin mais aparece. A montagem permite que o filme passe de uma abordagem quase teatral, com as disputas de poder em gestos e falas para convencer o júri (por parte de uns) ou simplesmente para afrontar o poder e mostrar uma performance da revolução (por parte dos personagens mais caricatos e maiores responsáveis pelos momentos de certo humor negro), a uma abordagem mais propriamente cinematográfica com o acesso dos eventos passados e das divergências de pensamento entre o grupo de manifestantes, que ficam nos bastidores.
A maneira como tudo é encadeado, conferindo maior destaque ao palco teatral do julgamento e acessando esses outros eventos a partir dali, dá uma boa dinâmica para contar a história, por um lado, e promover o maniqueísmo coroador dos revolucionários, por outro. Isso deixa espaço para que esses "confrontos em campo aberto" no julgamento usem da potência do teatro para conferir credibilidade a quem o filme quer heroicizar (os manifestantes), sem, no entanto, perder de vista a dimensão histórica. É de tal modo uma lógica teatral, que até se remonta às definições clássicas de Aristóteles: o filme até consegue, em alguma medida, incutir no público os sentimentos de compaixão e medo em relação aos heróis. O espectador - de maneira bem variável, cabe ressaltar - fica comovido com a injustiça e sente medo de que esta possa atingir sua sociedade contemporânea e ele mesmo.
Na melhor sequência do filme, que está nos minutos iniciais, vemos a organização dos protestos em Chicago e entendemos as diferenças de pensamento dentro daquele próprio grupo de líderes a partir da montagem paralela, da sucessão de planos que corta no meio a fala de um dos sete envolvidos e deixa para outro completar com algo que, pelo que percebemos, vai em uma linha totalmente diferente ao que o anterior diria. A maior oposição recai classicamente nas questões: usar ou não a violência, ser mais ideólogo ou mais combativo. Gerando humor no início, isso acabará por revelar os dramas internos daquele grupo e contribuirá para o o ápice da comoção junto àquele tipo de público já predito na cena final:
o "ato de redenção" do personagem que mais destoa dos outros por suas próprias contradições.
A Comédia de Deus
3.9 13Melhor filme português de todos os tempos. Banho de leite, sorvetes de mulheres, ritual da fertilidade com uma garota de 15 anos sentada em uma cornucópia de ovos, a garota lendo um poema de Camões ao vaso sanitário fazendo as necessidades... o sublime desce às coisas mundanas e absurdas nessa união única em que o sagrado é evidenciado pelo profano, já que tudo é visto pelo olhar desse Deus encarnado no corpo de um pobre diabo.
João de Deus é o outro filho de Deus, aquele que, diferentemente do Cristo, encontra o sagrado em seus pecados e não consegue salvar nem a si mesmo. Assim como Cristo, porém, João de Deus também é perseguido pela sociedade que não compreende e não aceita seus atos. Quando percebemos essa relação, o filme adquire uma ironia deliciosa e somos livrados da culpa de ver tudo aquilo com seriedade. Somos, a esse ponto, como os dois patetas a brigar pelos cigarros a serem mantidos ou não na boca antes do acontecimento sério. Vemos antes da gravidade da violência que vem punir a pedofilia, o humor que dá a tudo um tom leve, um humor negro muito fino. A partir daí, o filme passa a funcionar como uma comédia mesmo, uma divina comédia humana.
O mais interessante de se notar é que, a partir desse segundo filme da trilogia, o olhar de João César Monteiro enquanto autor sobre sua obra vai ficando mais evidente, a moldura do quadro vai sendo evidenciada. Há aqui, em relação a "Recordações da Casa Amarela", uma decupagem bem mais econômica, com planos que se mudam muito pouco e apreendem em um único quadro todos os gestos dos personagens, extraindo suas forças desses gestos, à semelhança do teatro mesmo. Há construções que prezam mais evidentemente mais pela própria artificialidade, pelo espetáculo construído, desorientando a todo momento o espectador com a persistência da ação prolongada que tende tanto para o estranho (a natação simulada sobre a mesa), quanto para o cômico de um humor negro (o já mencionado confronto entre João e o pai ultrajado antes do confronto físico, que se torna uma luta para fumar cigarros); ou então, se manifesta nos planos sem contra-planos que se instauram nas conversas entre João e as suas "pupilas" do trabalho na gelateria.
Essa câmera expectante que aguarda que os acontecimentos se desenrolem por si, que vive o improviso do teatro, no que Leonor Areal chamou de "filme-esmola", é de fato a marca mais própria de João César Monteiro. Marca que não estava muito evidente no primeiro filme da trilogia, que prefere maiores sutilezas. Aqui em "A Comédia de Deus", esse olhar de Monteiro aparece, porém mesclado ao olhar de João de Deus. O amálgama ficará mais evidente em "As Bodas de Deus", o terceiro da trilogia.
É como se, dessa forma, João César Monteiro fosse cada vez mais se fundindo à sua criação, deixando esse processo natural da ficção que absorve a realidade do criador acontecer. Acontece o processo inverso com José Mojica Marins, cineasta em quem enxergo certas semelhanças com Monteiro, como sua contraparte brasileira. Mojica não suportou o horror de ser engolido pelo terrível Zé do Caixão, e teve que exorcizá-lo em "Exorcismo Negro". Monteiro, por outro lado, foi se tornando cada vez mais seu personagem fílmico, como se ambos tivessem chegado à conclusão de que não podiam existir separados, conforme se verá melhor no contexto de "As Bodas de Deus".
Eu, Tu, Ele, Ela
3.7 34Há uma equação desigual: três tempos e quatro pessoas. No primeiro ato, aquele que se centra no cotidiano do "eu" trancado no quarto, vemos as cenas se desenrolarem diante dos nossos olhos com a narração do que se passou. Há uma grande consciência de futuro. Sabemos que a protagonista está narrando de um futuro distante o que ocorreu em seu passado. Além disso, as imagens e a narração não se acompanham, não se encaixam. Ora vemos a ação inicialmente representada e temos que esperar que a narração em off venha descrever o que já vimos, ou começamos a ver; ora a narração vem adiantar o que teremos que esperar se desenrolar na tela. De qualquer modo, essa espera constante, esse desbalanço, nos colocam na posição de futuro junto com a mulher. Já sabemos o que vai acontecer e revisitamos tudo dessa posição ulterior que gera o desconforto da espera.
No segundo ato, quem domina é o "ele", e o que importa para esse ele não é o futuro, mas o presente, como ele mesmo diz. O desconforto aqui vem por esse presente que nos aliena, por conhecer tudo enquanto acontece e não podermos, ao contrário de antes, nos colocar em uma posição de vantagem em relação a esse momento. As instruções sobre a masturbação que ele vai dando à mulher, que funcionam a ela como ordens para o próximo movimento, para nós funcionam como a narração presente, pois não vemos mais nada além de seu rosto em que a câmera se fecha e permanece. Tudo é instantâneo conforme o sexo rápido que o homem deseja, sem maiores vínculos.
No terceiro ato, o controle do "ela" traz ainda menos solidez. Não há mais narração para nos adiantar os acontecimentos ou nos fazer conhecê-los simultaneamente; há apenas o sexo selvagem e sem palavras que se arrasta por vários minutos. Tudo se descontrói no movimento seguinte, vai se tornando passado à medida mesmo em que ocorre, pois, sem a narração e sem maiores conexões dialógicas entre as mulheres, entramos a atravessar o rio de Heráclito: quando se passa novamente, tudo já mudou; nem você, nem a água são mais os mesmos. O que passou fica para trás e se renova. Quando tudo termina, a mulher sai sem mais. Acabou, e caberá apenas a nós espectadores usarmos de nossa memória para relembrar o fato e, possivelmente, relatá-lo.
Assim, o filme tem a consciência de sempre precisar do "tu", do espectador em quem a relação de todos esses tempos se operará. O espectador não é, portanto, um mero receptor, mas construtor do filme, conforme o título evidencia ao não esquecer do "tu". No entanto, o que fica para esse espectador ao fim? Será que ele será capaz de fazer aquele movimento de relembrar o que ficou perdido no passado ao fim do ato sexual para relatar sua experiência? Para mim, a resposta é não. Não farei questão de me lembrar do filme, pois a falta de conexão entre os atos não deixa nenhuma impressão final.
Parece, no entanto, que a ideia de Akerman, mais que essa impressão de conjunto, é que os planos possuam uma força autônoma entre si, trazendo ao espectador a experiência da angústia dessa opressão pelo cotidiano. Mas nem isso acontece. Conseguiu trazer-me não o tédio cativante, em que, mesmo que para sofrer com essa angústia, ficaria preso no filme, me arrastaria junto com as cenas, sentiria toda a frustração da mulher. Trouxe-me apenas o tédio em que se dá vontade de sair e ir olhar o celular mesmo. Sem força de conjunto, nem força autônoma dos planos e momentos, o filme busca envolver o "tu" nessa conjugação, mas não consegue. Ao fim, tudo fica em tempo sem pessoas e sem modos: o passado do esquecimento.
A Ambulância
2.9 50O filme articula o humor como a maioria dos trash dos anos 80. Aqui, porém, não é um humor inconsciente, produzido apenas no espectador e ligado aos efeitos visuais exagerados e mortes absurdas, como vemos na maioria dos filmes do gênero e como o próprio Larry Cohen construiu em The Stuff (1986). O horror visual e o maneirismo predominantes nessas produções dos anos 80 são aqui deixados de lado em nome de um suspense absurdo, porém bem mais sóbrio desse ponto de vista estilístico. Um suspense urbano, moderno, com um sistema de referências da cultura pop (sobretudo ligada à Marvel e aos quadrinhos) bem norteador de seus interesses, que está ali mais para construir um ambiente propício a essa narrativa leve e bem-humorada, sem interessar-se por levar essas referências muito longe e atribui-las significações maiores no conjunto. Nesse ambiente propício, o humor é recebido pelos próprios personagens e advém da própria consciência destes sobre o absurdo dos acontecimentos.
A atuação de Eric Roberts é especificamente poderosa nesse ponto, sendo capaz de interpretar um homem desesperado em busca de uma mulher que viu apenas uma vez na vida, com todos os acontecimentos corroborando para que pareça um louco (e de fato à beira da loucura em alguns momentos) ao contar aos outros o que vê, com uma consciência revisionista ulterior pela qual o conhecemos logo de cara (na voz em off que acompanha sua primeira aparição na tela) que enxerga em seu passado a banalidade de seus motivos e a singularidade dos acontecimentos em razão destes. Sua atuação consegue unir muito bem em seu personagem as atmosferas principais que o filme busca evocar (o mistério/suspense, o medo/tensão e o humor).
A Bruxa de Blair
3.1 1,6K- Eu entendo por que você gosta tanto dessa câmera.
- Entende?
- Não é bem a realidade. A realidade diz que devemos ir embora. Não, é uma realidade totalmente filtrada. É como se pudesse fingir que as coisas não estão exatamente como estão.
A Bruxa de Blair é um produto de sua época e evidencia muito dela. Não só pelo enredo e pela lenda criada em torno do filme que só fazem sentido nesse contexto de 1999, mas também pela técnica que evoca uma atmosfera bem específica, fazendo sentirmo-nos nos Estados Unidos do final do século XX. Assim como todo filme, porém, consegue fugir a isso e renovar-se a cada nova projeção. Como diz Christian Metz, o movimento das imagens é sempre apreendido como atual pelo espectador. Não pode ser nem “reproduzido”, somente re-produzido, pois projetá-lo é produzi-lo novamente de maneira tão real quanto da primeira vez. Só que neste filme, particularmente, isso torna-se muito claro por alguns motivos.
Em primeiro lugar, a técnica do found footage cria esse “senso suplementar” de realidade. Sem nenhuma estilização, com filmagens caseiras em forma de documentário, percebemos mais aquilo como próximo da nossa realidade. O realismo é atingido não por uma encenação cotidiana e crua, mas por um quase apagamento da mise-en-scène. Nesse sentido, o filme torna-se mais próximo do que se poderia chamar “universal”, pois, ao contrário das escolhas de mise-en-scène que poderiam gerar divergências, consegue atingir a qualquer um: não por questão de gosto ou preferência, mas por percepção daquela situação como verossímil e cotidiana. Não é, porém, a realidade, e o filme nos coloca a consciência disso. O trecho de conversa citado é o momento de revelação dessa mentira do cinema. Apesar de toda a lenda construída sobre a veracidade dos acontecimentos, o filme nos dá o indício de que o que está diante da câmera nunca corresponde à realidade que conhecemos. O cinema é uma mentira, tão bem elaborada que se torna uma realidade outra.
É nessa realidade que existe o medo da bruxa de Blair. Por fim, não importa de fato se a bruxa é ou não real em nosso mundo. Nosso medo está contido no percurso fílmico e termina com o subir dos créditos na tela. Durante o filme, entramos naquela realidade, estamos ali com os três jovens na floresta próxima a Burkittsville tentando ver a ameaça que nunca se apresenta. Isso é potencializado pela técnica, em que nosso olhar é o olhar desses jovens. Mais que isso, é especificamente o olhar de Heather na maior parte. E mais, é o olhar da câmera que ela manipula e, portanto, um olhar manipulado por ela, uma realidade totalmente construída por essa manipulação da câmera, conforme os diálogos nos evidenciam. Não enxergamos nada além, nenhuma visão de conjunto que uma câmera de fora, focalizando uma encenação, nos daria. Isso leva a uma catarse tão grande que escapa para além da tensão e do medo. Acompanhando essa trajetória, chorei com os três amigos em seus momentos de desespero por estarem perdidos e ri com eles nos momentos de alívio cômico, nas pequenas consolações absurdas – ou tentativas de consolações – em meio à desgraça total.
Quando a filmagem termina, termina também esse nosso olhar e a nossa tentativa de fuga (sim, tornou-se também nossa), sem sequer conseguirmos ver a suposta bruxa. A ameaça, dessa forma, não vem para nosso mundo. Não ficamos com medo de que a bruxa possa nos pegar, pois, se ela existe, existe ali naquela floresta, naquele universo. E como terminamos sem poder confirmar esses medos, eles existirão novamente ao reassistirmos o filme. Não é como o final de A Bruxa (2015), que revela a singularidade da ameaça que existe apenas ali, com aquela menina, com aquele lugar. Um final desse tipo, com essa exposição explícita dessa singularidade, acaba não só retirando nosso medo posterior ao sair da exibição, como também anulando o medo que vínhamos sentindo durante todo o trajeto fílmico. Percebemos que é um medo em vão, pois não nos atingirá e não poderia mesmo nos atingir nem durante o filme.
Em A Bruxa de Blair, por outro lado, essa singularidade que existe não é explicitada. Ao reassistirmos o filme, entraremos novamente naquela realidade paralela e sentiremos o medo e a tensão novamente. Saberemos que não é em vão e que estamos percorrendo a trajetória proposta, nossa via crucis, que terminará sim ao fim das filmagens, mas que, enquanto não terminar, ainda temos o que temer, assim como os três jovens. É o tipo de filme que podemos reassistir várias e várias vezes, os sentimentos sempre se renovarão. E não se trata de uma preferência minha por explicações psicológicas ou finais abertos, mas da unidade com a proposta do filme. Um filme de espíritos, monstros, assassinos que andam à solta, pode ter um final explícito ou “aberto”: de qualquer forma, sairemos com a sensação de que é uma ameaça que pode nos atingir em nosso mundo, em nossa casa. Em filmes como A Bruxa de Blair ou A Bruxa, a ameaça está localizada somente ali no universo do filme, apesar de não sabermos logo de início. E para manter esse segredo escondido, os diretores tiveram a ideia de criar uma atmosfera em que nosso medo adviesse da alienação, da não-concretização de nossas expectativas. Enquanto Robert Eggers, porém, termina por entregar tudo, expondo a nós essa nossa “blindagem” em relação à ameaça e retirando, assim, nossas emoções em uma possível revisita ao filme, a dupla Daniel Myrick e Eduardo Sánchez consegue postergar o medo não para reflexões pós-fílmicas, mas criando essa aura em torno do próprio filme que confere uma força a ele enquanto reconhecimento de sua realidade autônoma.
O cinema é uma mentira sim. Não a mentira falsa. Antes, a mentira do mito, compreendido, na esteira de Barthes, como narrativa. E a realidade criada por esse mito pode ser maior que a nossa própria.
Nomadland
3.9 896 Assista AgoraTudo é muito passageiro. Assim como o RV sem parada muito longa, nenhuma cena dura mais de um minuto. O filme fica perdido entre uma abordagem documental mais direta, com cenas da protagonista interagindo com outros personagens mal desenvolvidos que não são capazes de construir uma linha narrativa efetiva e imersiva, e uma tentativa de abordagem sentimental que faz logo transformar-se em uma sequência de imagens bonitas das estonteantes paisagens do oeste dos EUA com música triste de fundo. A partir de um certo ponto, chega até a irritar esse tipo de sequência toda hora, sem dar tempo para que nada funcione de fato.
Um filme como "Na Natureza Selvagem", com temática semelhante, funciona melhor ao assumir uma abordagem documental. O drama construído opera dentro daquela própria lógica de documentário. No caso deste filme, a tentativa de conciliar as duas direções faz o filme ficar tão sem rumo quanto a protagonista muito bem interpretada por Frances McDormand, estragando a oportunidade de construir o que, de início, parece ter potencial para ser um grande filme pela importante e original temática.
Meu Pai
4.4 1,2K Assista AgoraMuito interessante a ideia de trazer essa convivência dramática entre o idoso com mal de alzheimer e sua família pela perspectiva dele próprio, de uma maneira que confere a tudo um caráter quase fantástico. Ficamos de início incomodados ao ver a maneira dura como todos tratam Anthony. Até mesmo sua filha tem um comportamento bastante estranho, surpreendendo-se com tudo de anormal que ele fala, mesmo sabendo estar diante de um senhor doente que está cada vez mais perdendo o controle sobre o que pensa, diz ou faz. Isso coloca o primeiro estranhamento, que nos faz perceber que julgar a verossimilhança do universo fílmico pela verossimilhança do nosso campo de conhecimento da realidade talvez não funcione.
Todo filme, enquanto uma outra realidade construída, com suas regras próprias, exige que deixemos essa nossa lógica do realismo cotidiano estrito. Este filme deixa isso claro, fazendo-nos confrontar nossa visão de mundo com o que é apresentado. Se inicialmente julgamos os personagens segundo essa nossa visão, vamos percebendo que eles não podem ser julgados tão simplesmente assim. Mais ou menos a partir da metade do filme, quando a temporalidade e espacialidade começam a não mais seguir o percurso linear e falsear o que vemos, construindo e remodelando tudo após, percebemos que estamos conhecendo tudo pelo olhar de Anthony. Aqui vê-se o quão falho é o título do filme traduzido para o português, Meu Pai. Enquanto o título original mantém a impessoalidade, o título brasileiro advoga por uma tomada de posição, que, no entanto, não entra em concordância com a posição assumida pelo filme. Se o filme é guiado pelo olhar de Anthony, faria mais sentido chamar-se "Minha Filha". Apenas mais um exemplo das problemáticas mudanças de nomes dos filmes na tradução, que, ao invés de traduzirem literalmente mesmo quando podem, sem prejuízos de estranhamentos para o público de outra cultura (como é o caso aqui), preferem modificar a proposta.
Assim, não há exatamente culpados e vítimas. Nosso "narrador" não é confiável, nada mais que um reflexo exacerbado dessa realidade própria do cinema enquanto mentira - não da falsidade, mas do mito (narrativa construída), que absorve e, ao mesmo tempo, ressignifica nossa própria realidade. Colocar esse idoso com alzheimer para nos mostrar tudo é, ao mesmo tempo, uma tentativa extrema de nos fazer perceber isso, e um retrato muito sensível e íntimo dessa problemática do confronto de gerações e necessidades, por uma perspectiva que não é geralmente valorizada. Enquanto nos perdemos junto com Anthony no tempo e espaço, sentimos de uma maneira muito forte seu desespero, sua tristeza, e passamos a questionar tudo junto com ele.
O questionamento de quem estaria sendo mais sensível para com os problemas do outro (o pai ou a filha) permanece por essa impossibilidade da resposta final, e é quase impossível deixarmos de pensar nele.
O que percebemos é que a enfermeira, ao final, possibilita a Anthony um amparo que ele nunca viu na filha. A enfermeira é a primeira a dar a mão a ele. E só então ele pode se abrir, deixar a consciência de seus problemas romper a barragem e, então, desmoronar em busca de um recomeço. Nesse momento, ele tem seu relógio no pulso, algo que sempre esteve perdendo durante o filme inteiro - ou seja, o controle do tempo.
Finalmente ele percebe que seu tempo está chegando ao fim e há essa iminência do recomeçar, renascer, conforme o ciclo da natureza. Após ele conseguir confessar à doutora que sente como se estivesse perdendo todas as suas folhas, os galhos, o vento e a chuva, a cena final no olhar para além da janela do asilo nos mostra o verde das folhas das árvores pinaculares e vistosas que cercam o lugar. Se em todos os (supostamente plurais) apartamentos em que Anthony morou ele olhava pela janela à procura dessas suas folhas e raízes, conseguindo ver apenas o cinza da vida moderna na cidade, agora esse reencontro com sua própria consciência possibilita que reencontre também o vigor de sua árvore da vida. Essa perspectiva final é, em minha leitura, quase animista, à semelhança do que é muito enfatizado pelas literaturas africanas em suas buscas por esses confrontos de gerações, da vida tradicional contra a vida moderna, e a valorização do idoso e da criança no ciclo que os perpassa e os une.
Anthony está agora pronto para encarar seu renascimento - não necessariamente o renascimento físico, mas o "rasgar-se e remendar-se" de sua consciência, de suas certezas, e sua continuidade espiritual, ideológica ou afetiva nos que ficam após sua partida. Do mesmo modo como a outra filha, após morrer em um acidente (ao menos pelo que nos é dado a conhecer), permaneceu na memória e na afetividade de Anthony, de uma maneira que assemelhava-se à presença física no mundo pela força desse afeto materializado nas pequenas coisas como a pintura, Anthony também permanecerá de alguma forma.
As tradições africanas acreditam nessa roda da continuidade, em que ninguém vai embora de verdade - pelo contrário, passa a um plano de quase onipresença, capaz de renascer na consciência dos jovens para guiar sua busca por amadurecimento. Antes de morrer, o ancião tem plena consciência de que entrará nesse processo. Nossa cultura cristã acredita em algo certa maneira parecido, de uma outra chave. Mesmo na visão confusa e fragilizada de Anthony, sua filha o ama em muitas medidas e certamente levará sua experiência adiante. Ou talvez até mesmo a doutora, que oferece um aconchego tão terno e sensível à visão de Anthony, com quem certamente ainda terá boas convivências.
Portanto, mesmo que fiquemos pensando, não importa, por fim, se há "bons e maus", "vítimas e culpados", "melhores ou piores": o universo de Anthony precisa ser compreendido segundo sua própria lógica, em sua própria luta para adquirir a ordenação e a consciência de partida e destino, "de onde e quando vim e para onde e quando vou". É isso que o filme mais evidencia.
O Paraíso Infernal
3.9 26Incrível como o filme consegue nos incluir naquele mundo que é tão único e distante da realidade cotidiana da grande maioria dos espectadores, de uma maneira que faz tudo soar familiar a todos. Creio que isso se dá, entre outras coisas, pelos diálogos, dos mais bem construídos que já vi.
Esses diálogos que possuem uma força convincente muito poderosa, sem deixar de serem naturais; a inevitabilidade do andar do filme, em que os movimentos guiam tudo; esses movimentos dos personagens em suas interações que se encadeiam muito bem; a segurança humana de seu caráter que transparece em cada afirmação e nos faz compreender a cada um individualmente. Tudo isso contribui para que o filme adquira o tom de uma naturalidade singular, uma simplicidade que é também complexa, porém sem ser difícil. Lembrou-me um pouco a escrita de Tchekhov, aquela escrita que encanta por essa naturalidade e simplicidade não-banais, por dizer o muito através do pouco, sem artificialismos e elementos retóricos, com uma visão muito íntima para o cotidiano. Uma visão que faz de cada elemento nosso “irmãozinho” (para usar o diminutivo que os russos tanto gostam). Ou, como disse Jacques Rivette sobre a beleza do cinema de Hawks, “uma beleza que manifesta a existência pelo respirar e o movimento pelo andar. O que é, é (That which is, is)”.
Naturalidade e “simplicidade complexa”, do nível moral dos personagens transbordam para os pequenos elementos cotidianos, são explicadas pelos objetos – os fósforos que sempre estão em falta nos bolsos de Geoff porque ele não se importa com o futuro ou com o passado, só com o presente; a moeda que define os destinos na sorte do cara-ou-coroa; as bebidas pagas um ao outro... Isso torna os personagens familiares com tudo ao seu redor e nos convence dessa familiaridade, de modo que também entramos para a família dos aviadores.
Podemos resumir a força do filme, portanto, principalmente em diálogos e movimentos, remontando ao que já apontava Rivette. Os diálogos, mais que nos colocarem na familiaridade desse universo moral instaurado ali, nos fazem compreendê-lo e aceitá-lo em alguns momentos. E nesse sentido, os movimentos também se fazem importantes. Bonnie é a personagem que primeiro entra em cena para acender o estopim dos acontecimentos do filme. Do mesmo modo, tudo se voltará a ela ao final. E assim como tudo se inicia na decisão da moeda, também terminará assim. Esses movimentos que constroem o filme. Se os críticos da Cahiers apontavam o movimento nas obras de Hawks como uma linha reta, em que as conclusões inevitáveis vão se atrasando para gerar a tensão, podemos dizer que nesse filme a tendência é um pouco diferente, descrevendo esse ciclo em que tudo retorna para o ponto de decolagem. Quando os pilotos estão no hotel ou no bar, ficamos à espera de que partam. Quando estão em voo, ficamos apreensivos por seu retorno perigoso. Isso é ditado pela freneticidade ambiciosa de Geoff, sempre à procura de realizar o maior número de trabalhos no menor período de tempo possível, sempre precisando do piloto para o próximo voo. E onde estiverem os homens, estamos ali com eles, seja no chão ou nos ares, sofrendo as mesmas tensões e problemas.
Já ao nível da moralidade em relação a essa pressa que empilha cadáveres e acidentes, tendo que aprender a engolir tudo junto com os drinques e seguir em frente, o olhar que nos guia é o de Bonnie. Sendo a personagem que inicia e termina tudo, acompanhamos sua trajetória na tentativa de compreensão daquele ambiente ao mesmo tempo estranho e fascinante a si. Chegamos de viagem junto com ela e adentramos um universo novo. Começamos por nos chocar como ela frente ao nível de frieza após a morte de Joe. Depois, levados por todos esses elementos de compreensão daquele mundo, passamos a entender e aceitar. Ao longo do filme, nos questionaremos novamente a respeito da validade de todos aqueles riscos em nome do dinheiro, a respeito das motivações de Geoff. Tentaremos aceitar junto com Bonnie, mesmo sem compreender tudo. Terminaremos por deixar nosso sentimentalismo aparecer novamente, para depois nos alegrarmos com ela pela descoberta da resposta final de Geoff. Se continuarmos refletindo, a batalha prosseguirá, como se ainda fôssemos uma Bonnie conhecendo tudo ali: será que vale arriscar as vidas para cumprir as metas? Será que Geoff tem razão em importar-se apenas com o presente, em não querer alguém que o prenda com preocupações de um relacionamento? Será que há razão em importar-se tanto assim com o orgulho e a honra ao ponto da imprudência?
A resposta pode parecer quase sempre não, mas às vezes também pensamos que é sim. De qualquer forma, o final nos escusa, ao menos a nível do percurso fílmico, de postergar essas reflexões. Nossa alegria por ver que MacPherson redimiu-se e reestabeleceu sua honra substitui o desconforto pela imprudência de Kid, o que fica marcado quando vemos o copo da bebida sendo erguido pelos novos companheiros. A alegria do desfecho pela moeda substitui nossos possíveis descontentamentos com Geoff. Os movimentos do filme aterrizam novamente na pista de pouso. Colocá-los novamente em trânsito para nova tarefa dependerá somente de nós: se, ao fim, saímos mais com a impetuosidade grave de Geoff ou com a prudência aguda de Bonnie. “That which is, is”.
Premonição
3.3 1,2K Assista AgoraA ideia é mais impressiva que a própria execução do filme. E não porque a execução é péssima, mas porque a ideia é devastadora e engole qualquer outra coisa. Premonição tem algo de realmente inovador em sua concepção, traz um dos motes de filme de terror mais angustiantes e que consegue algo talvez inédito: fazer o público sentir mais medo após sair do filme do que durante ele.
Ainda que um pouco minados pelos outros sentimentos com que convivem na trama adolescente e policial, os momentos de tensão são bem construídos e encaixados nessa trama para obter um equilíbrio entre diversão e horror. Apesar de toda a tentativa de construção de algo muito cotidiano para trazer a sensação da morte que espreita em qualquer canto e qualquer coisa que você for fazer, os melhores momentos são justamente aqueles em que as mortes se mostram mais improváveis, mais teatrais, cujo maior exemplo é a morte da professora. Trata-se de uma diferença entre realismo técnico e realismo dramático, como definiu André Bazin: nem sempre as construções mais verossimilmente reais são as capazes de gerar maior identificação. Esses momentos mais coreografados possuem o realismo dramático mais convincente justamente porque reforçam a ideia mais apavorante por trás do filme: não há escapatória. Luta-se contra um inimigo invisível e que não pode ser caçado ou detido, à diferença das ameaças tradicionais (monstros, assassinos, até mesmo com espíritos dá-se um jeito). Se a morte não vier dos momentos mais previsíveis, como ao atravessar a rua, ela encontrará uma maneira de acontecer nos mais improváveis, como quando você toma uma caneca de uísque acima do seu computador.
Isso deixa um sentimento que pode acompanhar uma pessoa pelo resto de sua vida ao sair do filme: simplesmente não há mais lugar seguro depois daquilo. O que você faria se, após tudo que viu, tivesse um sonho com acidente de avião um dia antes de embarcar em uma viagem? Eu sinceramente não sei o que faria. Eu tenho certeza que você também vai pensar duas vezes antes de tomar algo perto do seu computador, ou ao menos se certificar de que a caneca não está rachada. E ainda assim saberá que não adianta, pois se escapar dessa, a morte agirá por outra situação qualquer. Será ainda mais apavorante encontrar a caneca rachada do que não encontrá-la assim.
Nesse sentido, toda a ideia de transferir as forças superiores e ocultas (a morte) para coisas menores e palpáveis do nosso cotidiano (a caneca, o computador, a água do vaso sanitário), é interessante e funciona muito bem para deixar esse cisma no espectador. E se após algum tempo a execução do filme não for muito memorável, é justamente porque ele atingiu seu objetivo: a ideia que planta na mente de quem vê é tão forte que passa a ser encarada como um perigo dentro de seu próprio cotidiano, passa a ser relacionada não mais aos personagens do filme e às situações vividas, mas às nossas próprias situações. As cenas que mais ficarão na memória são justamente essas melhores encenadas, como a da morte da professora, por conta de sua concepção mirabolante e também pelo uso do horror, do choque visual, que é algo que o filme sabe unir muito bem a esse medo do que pode acontecer para dar a sensação de angústia completa, de mortes dolorosas e trágicas.
A Paixão de Cristo
3.7 1,2K Assista AgoraPara além de todo o evidenciado trabalho gráfico com o realismo da violência, Mel Gibson soube compreender e articular melhor que qualquer outro no cinema as diversas associações e metáforas dos Evangelhos. As montagens de atrações de Eisenstein possibilitam aqui a melhor contribuição que o cinema poderia dar para a representação do episódio bíblico, o diferencial do cinema que nenhuma outra arte poderia reproduzir.
Se o texto bíblico se vale da afirmação do mestre: “Eu sou o Pão da vida” (João 6, 35), o filme nos mostra isso com grandes sutilezas associativas: o manto descoberto que expõe o corpo de Cristo dando lugar ao pano dos pães desembrulhado na última ceia; o levantar do pão seguido do levantar da Cruz no calvário. Se o texto bíblico apenas pode esperar que a ação profética seja cumprida – “Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim deve ser levantado o Filho do Homem” (João 3, 14) – o filme nos leva para o “aqui e agora” do acontecimento (capacidade projetiva de espaço e tempo, a grande inovação do cinema) ao unir os episódios diante dos nossos olhos.
Mais que propor as relações, tudo deixa pincelado sutilmente para quem quiser ou precisar perceber o olhar católico de Gibson para os acontecimentos. Essas associações seriam ignoradas em um filme de olhar protestante, de um diretor que vê a metáfora do pão apenas como símbolo discursivo destituído da associação real que os católicos conhecem na realidade da Eucaristia, do sacrifício transposto para as espécies do pão e do vinho e sua transubstanciação em corpo e sangue, alma e divindade. Em verdade, os católicos são muito mais dados ao simbolismo, possuem as metáforas presentes e cumpridas diariamente em sua liturgia e nas imagens de suas igrejas, o que justifica o apreço do filme pela montagem associativa e leva a esse casamento da necessidade significativa com a potencialidade do cinema para levar a narrativa da Paixão a nova dimensão.
Do ponto de vista católico, o filme é quase perfeito. Para além dessas associações simbólicas do Evangelho, a catolicidade de Gibson possibilita momentos dramáticos muito íntimos e impactantes com relação à figura de Maria, muito cara aos católicos e vista com toda a sensibilidade devida do diretor. Os cruzamentos de olhares de Jesus e Maria durante a via sacra possuem essa expressividade íntima e geram os momentos mais dramáticos do filme. Isso unido à montagem associativa, em mais uma demonstração das possibilidades do cinema, temos uma das mais belas cenas de todos os tempos em que a necessidade associativa de Gibson transborda para além das próprias balizas do Evangelho, sem no entanto perder o sentido cristão: vemos Cristo dando um exemplo da sua capacidade de “fazer novas todas as coisas” em sua queda com a Cruz, que é sobreposta à sua queda na infância durante as brincadeiras, sendo em ambas socorrido pelo cuidado maternal de Maria. A interlocução de Jesus com sua mãe nesse momento – “Vê, mãe? Eu renovo todas as coisas” – funciona quase como uma confissão que quebra a parede da distância confortável entre o espectador e a tela e estabelece a cumplicidade tácita entre ele, Jesus e Maria. É como se Jesus revelasse saber o que está se passando no filme, saber que está sendo feita a montagem de atrações para associar esses dois momentos. Na verdade, o que Ele sabe é o que se passa na memória e no coração de sua mãe. Assim, ficamos sabendo que o que estamos vendo na tela é o que está no íntimo de Maria, seu olhar materno naquele momento para tudo.
Por fim, o catolicismo do diretor explica também toda a dimensão do filme que foi chamada de “gore” e que pode aproximá-lo de um filme de horror. Há não só o horror visual na violência crua com que o martírio é retratado, mas também o horror próximo do terror nas tentações demoníacas que perseguem Cristo e assolam Judas, trazendo uma perspectiva que quase não encontramos a respeito da Paixão em outras representações: a presença do mal, o causador do mal moral que leva os homens a fazerem aquilo com o Messias.
A teologia católica, muito mais que a protestante, sempre concedeu grande importância a essas realidades: a do sofrimento e a da importância de vigilância constante contra o mal. O sofrimento está intrínseco na realidade do sacrifício, e sempre presente nas representações do Cristo crucificado que encontramos nas igrejas católicas. Ou nas celebrações como a da Sexta-feira Santa, que lança a reflexão sobre essa parte dolorosa da Paixão. Os católicos nunca deixam perder de vista a realidade do sofrimento de Cristo ao tomar nossos pecados para cravar na cruz, o maior sofrimento que já existiu, e têm essa mesma cruz e esse crucificado como sinal de vitória sobre a morte e lembrete do quão preciosa é nossa salvação, comprada por preço altíssimo. A mortificação, castigo do corpo, é enfatizada na teologia católica como instrumento de resistência ao pecado e ao mal, como imitação do Cristo em suas dores. É com a oração e com o jejum, nas passagens de sua vida e até mesmo como representado no filme, que Jesus vence as tentações do demônio que está sempre à espreita.
Portanto, representar a violência sofrida com o maior nível de realismo possível (o que, segundo o que se pode apreender de reflexões de médicos que estudaram o assunto, não chega nem perto da crudelíssima realidade do Cristo que já nem tinha mais figura humana ao ser pregado na Cruz), é para o diretor católico uma necessidade de chocar mesmo o público para que se atente ao valor imenso desse sacrifício e possa perceber como nossas dores não são nada comparadas às de Cristo (o que, curiosamente, também ficou marcado no famoso meme dos sets de filmagem de “A Paixão de Cristo”, com a foto de um Jim Caviezel todo ensanguentado e chagado conversando com um Mel Gibson que parece explicar assuntos banais a ele, como um homem reclamando ao Senhor).
Unido a esse horror visual, há todo um elemento sombrio que acompanha o psicológico aflito de Cristo e as passagens do demônio, e que aproxima o filme dos elementos do terror/horror, produzindo atmosferas belissimamente construídas em termos sobretudo de cor e fotografia. O maior exemplo é a sequência inicial no Getsêmani, com a atmosfera de um negro azulado que causa arrepios para evidenciar o nível de aflição de Cristo e já preparar a aparição do demônio. Isso tem o efeito de transformar o filme no que realmente é a Paixão de Cristo e toda a vida do Salvador do ponto de vista teológico/literário para os autores cristãos: uma confluência de gêneros; a presença de compaixão e medo a um nível maior que de todos os dramas gregos da época de Aristóteles; ou, como diria G.K. Chesterton, o “romance do Cristianismo” – a razão por que o Cristianismo se assemelha aos romances e mesmo se sobressai nessas prosas literárias surgidas em sociedades cristãs, com as misturas de gêneros, perigos e conclusões que o romance e o Cristianismo possuem em comum em suas estruturas.
Essa evidenciação das características do autorismo de Gibson leva a compreender que a maior parte dos que se chocarão com o nível de horror do filme são não-católicos, e que o filme assume, portanto, uma visão particular sobre a Paixão que faz tudo que é representado encaixar-se perfeitamente para expressar essa visão católica.
Tudo isso posto, é o maior filme já realizado sobre o assunto. Assume um olhar sobre os acontecimentos e sabe articular muito bem isso em sua mise-en-scène, de uma maneira que, ao mesmo tempo que se aproxima o melhor possível da realidade da tortura, contribui para manifestar a visão assumida.
Exorcismo Negro
3.6 39Mojica precisou dessa dissociação para deixar clara sua posição de autor e não ser engolido por sua criação. Isso é revelador porque diz muito a respeito do status autônomo da ficção e da arte, que sempre adquirem vida própria fora das mãos do realizador e chegam mesmo a tragá-lo. Somos frequentemente alertados do perigo de misturar ficção e realidade, de julgar uma obra pela vida de seu autor ou vice-versa. Mas, às vezes, isso se torna quase inevitável, porque a ficção passa a ser maior que a própria realidade. No caso de Mojica, conhecido e apresentado como Zé do Caixão até o fim de sua vida, isso torna-se gritante. À época do filme, ambos já eram vistos como uma só pessoa, como o próprio Mojica contribuiu para que acontecesse ao colocar Zé do Caixão como o realizador de seus filmes em “O Despertar da Besta” (1970). As consequências de permitir que o ciclo natural dessa fusão fosse levado a cabo, porém, devem ter se apresentado como terríveis a seus olhos.
Com uma figura tão devastadora e possessiva como Zé do Caixão, que se apresenta como o próprio príncipe das trevas, é impossível não ser engolido. Mojica, ao perceber quão horrível era a figura que criou (ou que encarnou em si), precisou mesmo exorcizá-la com suas próprias mãos e com a câmera mostrando isso para não tomar parte de seus horrores, reafirmando sua posição de cineasta católico frente a seu alter-ego demoníaco e profano.
Alexandre Astruc disse que, diferentemente do autor literário, o autor cinematográfico não escreve para libertar-se, mas sim encontra certa cumplicidade na ternura ou no horror do universo que explora, que não é senão a fonte da grandeza que o obceca e que ele acredita poder revelar. Com Mojica, um autor atormentado pelos horrores da sociedade brasileira da época ditatorial e talvez por questões de perversidade humana e mal moral que afligem o homem desde o início dos tempos, a figura de Zé do Caixão instaurou-se em seu imaginário quase que intuitivamente, quase como uma força própria, com todas as influências de Murnau e da literatura gótica que ele devia conhecer: Mojica sempre disse que Zé nasceu a partir de um sonho, em que ele se imaginava sendo arrastado até o caixão. Foi uma criação que veio de um surto de inspiração surgida de um inconsciente irrastreável (ou de outras forças ainda menos cognoscíveis). Porém, com o tempo, Zé do Caixão foi engolindo-o, ao ponto em que ele, Mojica, já não mais aparecia. Percebendo o perigo de ser tragado por essa figura que, ao contrário de si, atraía tudo com seu pessimismo materialista e profano, o exorcismo reafirmador de seus valores representa uma tomada de consciência desse poder da ficção e do perigo dessa cumplicidade do cineasta.
E o mais interessante é que essa nova tomada de consciência não passa sem se manifestar na linguagem cinematográfica. “Exorcismo Negro” é um filme bem mais sóbrio que seus anteriores, com um olhar quase que distanciado que observa de longe e vai se focando mais no espetáculo que ali se apresenta. Essa câmera que aproxima e afasta das pessoas, objetos e do cenário é a marca que se mantém ao longo de todo o filme, como se houvesse alguém à espreita observando tudo aquilo. Tal maneira de filmar não é recorrente no cinema de Mojica. Nos filmes de Zé do Caixão enquanto personagem, as técnicas são outras, buscam desorientar o espectador a todo momento e valorizar o horror nauseante das cenas não para envolver esse espectador, mas justamente para alertá-lo desse horror e dos perigos do “estranho mundo de Zé do Caixão”. Os múltiplos movimentos de câmera que acompanham os golpes de Zé, os artifícios visuais gore, os planos inusitados de partes do corpo, os reverse shots nos momentos de ataques às mulheres que fazem o próprio espectador levar o soco, tudo isso faz parecer como se houvesse alguém evidenciando para nós o horror de tudo aquilo, nos apontando e mostrando: “Olhe só como tudo isso é feio, não tome parte disso”. E quem é esse alguém?
Tradicionalmente, é o olhar do próprio diretor sobre sua obra que quebra essa nossa passividade de espectador, que nos explicita a moldura que envolve aquele quadro. A partir de “Exorcismo Negro”, podemos ter mais certeza disso: de fato, José Mojica é o realizador que não quer tomar parte nas ações de sua criação e mostra aquilo ao público com um olhar que o impede da identificação. Nos outros filmes em que Zé do Caixão aparece como personagem, é o olhar de Mojica que prevalece contemplando tudo aquilo com o mesmo horror com que observa o culto infernal a Zé em “Exorcismo Negro”. Conhecemos tudo a partir desse olhar contrário a tudo que é apresentado. Já neste filme, isso não pode acontecer porque Mojica não está manipulando a câmera, ele está ali diante dela. Sua presença no filme enquanto diretor e personagem, na metalinguagem proposta, faz com que o olhar manifestado não seja mais o seu. Por isso a diferente condução da câmera.
É um olhar outro que nos apresenta tudo, esse olhar que espreita de longe. A recusa da decupagem clássica nos leva a crer que esse olhar tem um dono, está proposto por alguém. Quem seria desta vez? Creio que a resposta só pode ser o próprio Zé do Caixão. Nessa inversão genial que o filme propõe, contemplamos o criador pelo olhar da própria criatura.
O Homem que Foi Quinta-Feira
2.0 2Uma ofensa à obra do meu autor favorito. O filme parece que quer chegar em algum lugar, mas não chega. É incrível como ele é anti-chestertoniano nesse sentido: Chesterton, com seus paradoxos geniais, era extremista na medida que se deve ser. Unia os extremos do improvável, passava as mensagens mais complexas de maneira tão bem trabalhada nas alegorias e metáforas que tornava tudo inteligível ao homem comum. Seu romance “O homem que era quinta-feira” é um dos maiores exemplos disso, trata uma das questões mais complexas da humanidade (o problema do mal) de uma maneira que, ao fim do livro, faz todos compreenderem e enxergarem o valor do sofrimento e os desígnios de Deus de uma maneira que nunca tinham enxergado, como aconteceu comigo. O filme, ao contrário disso, traz mensagens banais e crenças relativistas infantis de Deus contra religiões e sistemas dogmáticos, o individualismo do homem no enxergar de seu próprio deus, de uma maneira complexa, ou que ao menos tenta ser complexa. Coloca tantos temas e referências de um modo jogado e preguiçoso, encarados por personagens que nem tenta construir, que acaba não chegando a lugar algum e contamina até mesmo a mensagem que deveria existir ao final, que possui uma sacada até que interessante, mas simplesmente não consegue se fazer crível.
No início, apesar de toda a estética de novela da Band, o filme parece promissor. As cenas das tentações do padre, com os closes sensuais em partes do corpo em flashes rápidos, a passagem do tempo cortada por lapsos, são bem decupadas e trazem as marcas de um pesadelo, que é como a obra de Chesterton se apresenta. Ou, no caso aqui, de sucessivos pesadelos. No entanto, ao longo do filme percebemos que essas técnicas que evocam a embriaguez e o desvario são repetidas à exaustão não para intrigar o receptor e estabelecer uma mensagem, como o romance chestetoniano faz, mas como artifício fácil para dispensar a construção de um pesadelo mais elaborado, um pesadelo em que o personagem estivesse realmente inserido e interagindo com um todo. Essa abordagem serve mais para escusar o protagonista de tentar compreender alguma coisa do que está acontecendo.
Enquanto Gabriel Syme no romance percorre lugares improváveis, conhece pessoas que precisam ser decifradas e desmascaradas e interage com toda a paisagem e o ambiente ao seu redor, que denotam seus estados de espírito e o clima do mistério, o padre Smith aqui é sempre um alucinado que, às vezes pelo uso mesmo de alguma droga, outras não, acorda como um bêbado deslocado e parte para outra aventura sem se esforçar por se ordenar ou compreender algo. Sem se importar muito com quem são de fato as pessoas que encontra e ignorando completamente o cenário ao seu redor, que, por conta disso, passa completamente desaproveitado no filme.
Os personagens que o padre vai encontrando pelo caminho não possuem o mínimo de aprofundamento. Alguns ficam mesmo sem um lugar definido, como a prostituta que faz o padre inicialmente pecar e abandonar sua fé e posteriormente é vista em um breve relance na festa italiana, depois não aparece mais e ninguém dá importância. Os membros do grupo anarquista, que são tão marcantes e bem construídos no romance, cada um com uma característica peculiar desnaturada, no filme passam despercebidos. A maioria aparece uma vez apenas. O filme desperdiça uma ótima oportunidade de vincular-se ao romance na caracterização desses personagens, que na obra de Chesterton possuem ligações com seu dia correlato na ordem da criação do Gênesis. Uma transposição desses personagens, construídos então no início do século XX, para os dias de hoje, para o contexto do “baixo urbano” que o filme tenta evidenciar, seria interessantíssima. Mas ao contrário disso, seus nomes permanecem como uma referência distante e descontextualizada.
Há uma diferença entre construir e encadear, mas o filme não faz nenhum dos dois. Chesterton constrói as situações, personagens e elementos em seu pesadelo. Tudo adquire um sentido que vai sendo gradualmente evidenciado, mesmo com cada acontecimento anulando o anterior. É tudo tão bem construído que o sentido da história está em se tornar cada vez mais irreal e absurda, em buscar além das aparências. Os homens que inicialmente parecem ser anarquistas terríveis, vão um a um desmontando-se (literalmente) aos olhos de Syme e revelando-se policiais infiltrados. O filme, porém, sequer apresenta uma sucessão de eventos. Não temos tempo, espaço ou mesmo informações para conhecer os personagens e nos impressionar com eles. Do mesmo modo como todos são apresentados em um só balaio, todos se revelam de uma só vez, e ainda pelo relato distanciado de um terceiro personagem. É tudo tão frustrante que falha até como exercício de construir tensão.
Assim, o romance de Chesterton vai sendo usado mais como pretexto para apresentar a história base do que como referência e motivação. O personagem que é colocado para dar suporte à citação da dedicatória do romance que é pichada no muro e repetida algumas vezes pelos anarquistas, o personagem mais interessante de todo o filme, é igualmente mal aproveitado. Esse atendente de bar cego vem para dar um sentido todo desconstruído a essas palavras de Chesterton sobre os que acreditam sem ver. Se o autor inglês falava sobre a realidade da fé invisível nas melhorias vindouras, no filme esse crer sem ver adquire toda a conotação egoísta do homem solitário que pode prosseguir seu próprio caminho em busca do que acredita ou não.
Jack, o barman, passa a ser admirado pelo padre Smith por, após ter perdido a vista na guerra (ao que dá a entender), ter descoberto que Deus não existe e estamos sozinhos. É a visão que mais traz conforto ao padre, alguém que parece mesmo estar caminhando na escuridão, movido mais pelos apetites sexuais. Ele busca mais isso e essa confirmação fatalista de sua solidão e “liberdade” do que de fato redimir-se e adquirir o perdão do Papa. É por isso que o final, por mais que traga uma tentativa de construir algo, não funciona, porque isso não foi construído ao longo do filme todo. Só Deus ali acredita na redenção do padre. Nem o próprio padre acredita, porque passou o filme todo sem buscar a redenção, sem buscar entender nada. Não somos capazes de comprar a mensagem trazida pelo desfecho. Na verdade, não há mensagem, há apenas tentativa de dar um fechamento inteligentinho e, ao mesmo tempo, um tanto tocante, que o filiasse ao livro de Jó. Mas, novamente, a literatura é apenas usada como pretexto.
Se a história de Jó traz uma mensagem a respeito dos mistérios de Deus, que é justamente a de que não podemos compreendê-los, o filme vai para a facilidade da compreensão, para o Deus que testou e descobriu a bondade do homem e, através disso, de toda a humanidade. Um Deus que mata o Papa para descobrir isso. Uma bondade que não vem pela religião, pela vida em comunidade como o padre pregava à sua assembleia no início do filme, mas do homem solitário que caminha no escuro em rumo às suas próprias noções de bondade. Há um único momento em que tudo isso entra em contradição, porém que é ignorado por todo o resto do filme: quando Jack, perto da morte, diz estar vendo Deus. Ele que passou a vida toda acreditando e pregando a solidão do homem no mundo, não enxergando no escuro mais que sua própria moralidade. Porém, se isso foi uma tentativa de dar algum outro sentido à mensagem, o próprio filme a ignora completamente. Jack morre apavorado - "Se eu o temo tanto, o que sentirei em relação ao diabo, padre?" - e Smith sai indiferente a tudo isso.
O padre morre como um mártir de suas próprias paixões e conceitos, vítima desse deus infantil e individualista que apostou com o diabo e sai dizendo que ganhou. A falta de força da cena é tão grande, que até a ambiguidade com a qual termina é forçada e imprecisa. Novamente, tudo foi minado pela falta de sentido de todo o filme. Ao fim, o que fica? Uma Igreja corrompida pela ligação com o fascismo, como Sábado falou em algum momento – e portanto, como pode se depreender, anteriormente boa em seus desígnios de levar a Deus? Ou o próprio Deus sendo um mito, apesar de mitos serem reais e, portanto, precisarem ser detidos, como ela também disse depois? O filme não sabe e não está interessado nisso, apenas tenta passar algo, não importa o que for. Algo em que nem o próprio diretor entende ou acredita e, por conseguinte, também não conseguimos nós o fazer.
Chesterton usa o nonsense. Ele escreveu mesmo uma defesa do nonsense. Porém, nonsense de maneira alguma significa sem sentido. Essa é uma filosofia que parece estar muito além da compreensão do diretor. O pesadelo de Chesterton tem a força de um drama e as cores de uma fábula. Explica melhor a vida real que o próprio cotidiano. O pesadelo de Balazs Juszt tem a torpeza de uma noite de ressaca. Quando acordar, não se lembrar de nada é a melhor das possibilidades.
Os Trapalhões na Guerra dos Planetas
2.8 58 Assista AgoraO mais interessante do filme é que ele não se leva a sério em momento algum. As incursões dos Trapalhões no trash são casos curiosos em sua obra e produziram alguns de seus melhores filmes, por transformarem isso em um novo e diferenciado elemento de humor na cinematografia brasileira. Se em "O Trapalhão nas Minas do Rei Salomão", porém, o tosco é colocado com pretensões de atingir a seriedade na aventura estilo Indiana Jones com toques de terror, aqui nesse filme o humor é assumido em todas as instâncias e faz dessa estética seu maior trunfo. Essa despretensão fica evidente nos efeitos: slowmotion, repetição de movimentos, a sonoridade cômica que acompanha os golpes das lutas intermináveis, na caracterização dos personagens... Adriano Stuart, alguém já familiarizado com paródias de grandes blockbusters americanos após ter realizado "Bacalhau" dois anos antes (paródia de "Tubarão") e que sabia bem como fazer um filme B por seu trabalho com José Mojica Marins em "Exorcismo Negro" (1974), era ciente das limitações do cinema brasileiro e de que a melhor chance de fazer dar certo nesses casos era assumindo o tosco e o humor sem precedentes, inclusive no que poderiam fazer de modo mais elaborado e sério - a cena do pássaro gigante saindo do ovo é antológica e deixa isso o mais evidente possível. O resultado é um trabalho inventivo, cheio de experimentalismos e realmente memorável, o que certamente não seria se tivessem tentado meramente adaptar Star Wars. Esse sequestro do então recente clássico de George Lucas para a realidade do cinema brasileiro e, especialmente, para a realidade dos Trapalhões, é algo que devia ser visto pelo mundo todo.
Relatos do Mundo
3.5 315 Assista AgoraA primeira coisa que chama a atenção no filme é a ligação com o jogo Red Dead Redemption 2. Não uma ligação direta, mas evidenciada em alguns aspectos composicionais que fazem pensar que o jogo serviu como uma das inspirações para o filme, como os enquadramentos de câmera em terceira pessoa bem similares que marcam o início da jornada do Capitão Kidd ainda solitário, além de outros ângulos característicos de Red Dead que vão aparecendo ao longo do filme. Diferentemente dos filmes do período clássico do faroeste, em que as amplas locações abertas geravam excelentes planos gerais na natureza que ajudaram a distanciar o cinema do teatro, esse aqui enfoca muito mais os personagens, sempre mostrando a paisagem em relação a eles e vice-versa, como acontece no jogo. Em verdade, ambas as produções trabalham com “períodos de fronteira” para os temas e gêneros que abordam, o que impacta os valores priorizados na narrativa. Tanto o jogo quanto o filme se passam no pós-guerra civil, período em que a era do velho-oeste aproximava-se do fim. O filme filia-se à linha dos faroestes do período já de decaimento popular do gênero no cinema, a partir da década de 1950. Ambos os casos contribuem para que “Relatos do Mundo” seja menos focado na ação e nos grandes confrontos em campo aberto do que seria uma produção da época de ouro do western e do contexto auge do velho-oeste, preferindo dar mais espaço aos dramas dos personagens e às relações que desenvolvem entre si.
Assim, essa experiência já possibilitada pelo jogo é trabalhada aqui: os personagens humanos como centro da narrativa, com seus feitos heróicos e as belas fotografias vindo como subordinados a eles. No filme de Greengrass, isso é ainda mais potencializado pela trivialidade do herói, que não se encaixa no tipo cowboy, mas é um veterano de guerra que não perdeu sua sensibilidade frente ao mundo, que encara as coisas com um olhar inocente e bondoso, apesar de tentar manter-se inalterável. Ele acredita que a vida segue uma linha reta, portanto deve-se abandonar o passado e olhar para frente, buscar sempre novas histórias. É isso que ele tenta dar às pessoas com suas leituras de notícias em forma de contação de histórias que realiza de cidade em cidade. Do outro lado, temos a menina que é uma despatriada e sozinha no mundo, porém que, por sua criação indígena, acredita no ciclo, na importância de retomar o passado para construir o futuro. Ambos descobrirão uma grande conexão e uma ótima cumplicidade para enfrentar os perigos que aparecem, apesar de suas origens e pensamentos tão diferentes, tornando-se imagens de um duplo. Os dois gostam das histórias, principal elo que os une, com a diferença de que enquanto o Capitão usa-as como fuga de sua própria história, a menina acredita na necessidade de mantermos nossas recordações (o que gerará um dos momentos mais fortes do filme, que é sua visita ao local em que os pais foram mortos). O personagem de Tom Hanks passa o filme todo em um conformismo com aquele mundo, contudo demonstrando-se desencaixado dele. Tenta manter a “casca grossa” e evita demonstrar suas lembranças e fraquezas, tenta construir uma imagem de equilíbrio e controle, porém não sabe bem como agir quando o perigo realmente aparece. A maioria desses momentos fica a cargo da menina, alguém que nenhuma expressão mais profunda demonstra inicialmente por conhecer apenas violência e separação e nem conseguir comunicar-se em inglês. Todavia, ela possui um grande conhecimento prático de como sobreviver no velho-oeste e acaba salvando o Capitão Kidd mais de uma vez.
Essas jornadas dos dois que se cruzam, com esse complemento dinâmico, ao final acabam invertendo-se. Por fim, o Capitão acaba tendo que revisitar seu passado, momento em que toda a emoção guardada ao longo da trama desponta, possibilitando-nos conhecer mais sobre suas relações com a ex-mulher, seu passado na guerra e a culpa que carrega. Toda essa construção gradativa da emoção e da introspecção no personagem que “quebra” seu jeito fechado em si funciona muito bem no filme para construir nossos laços com ele e o desejo de conhecê-lo mais a fundo. Somente através dessa revisitação ele pode resolver-se com seus fantasmas e ter uma visão clara de como deve seguir seu futuro. A menina, por outro lado, apesar de acreditar na importância do passado para a construção do caminho, não possui mais passado em absoluto. Sua única felicidade está em seguir em busca de um novo futuro, como o Capitão acredita.
Os dois percebem que se completam e não podem seguir separados.
A construção da tensão na narrativa dá-se a partir de alguns eventos isolados que, apesar de não gerarem impacto prolongado, articulam-se bem em “soma de pontos”, como quadros que vão formando a imagem daquele universo que só pode ser conhecido um passo de cada vez, em que é cada um por si e Deus por todos. Até nisso o filme assemelha-se a Red Dead, em que o personagem vai descobrindo eventos ao percorrer o mundo com seu cavalo, cada um com sua particularidade. E essa aposta é certeira, pois está mais de acordo com o espírito da época representada do que os filmes que elegem um conflito central: liga-se a essa ideia do velho-oeste como estrada percorrida a cada dia um pouco, sem saber o que o dia de amanhã reserva. A jornada em que os personagens embarcam é solitária, feita para um homem só. No entanto, eles conseguem vencer essa barreira e aprendem a trabalhar juntos para enfrentar o que vier. Os poucos conflitos que aparecem na trilha dos dois dão conta da tensão da narrativa, e o filme trabalha bem a dualidade entre esse mundo diurno dos perigos e o mundo da noite, mais dado à reflexão e ao acesso (ou tentativa de acesso) à intimidade dos protagonistas. Isso fica perfeitamente demarcado pelas cores, que são marcantes na composição do filme em um jogo binário que possibilita uma fotografia belíssima: o amarelo da vegetação, das colinas, do sol e também dos lampiões nas cidades por onde os dois passam (onde também encontram perigos) versus o azul do céu noturno, momento em que se deitam para o descanso e onde acaba-se revelando em partículas um pouco mais da história de cada um.
Os conflitos, revelando diferentes quadros daquele universo, também colocam diversas questões sociais que o caracterizam e situações outras para a trama, para além de revelarem um pouco mais sobre os dois personagens centrais. O destaque fica para a luta contra a opressão de um ex-fazendeiro que controla uma cidade inteira, mas que não passa incólume pela chegada dos dois com suas histórias. A história de superação escolhida pelo Capitão Kidd ajuda o povo a enxergar sua condição e dá forças para que se rebelem contra ela, sobretudo na figura de um dos capangas do líder dessa cidade. Esse momento serve para mostrar o poder de reconstrução que advém da ficcionalização, da compreensão mais ampla do mundo que ela possibilita, poder que também se exercerá sobre os protagonistas e, em última instância, sobre nós mesmos através do próprio filme. A fina sintonia encontrada pela dupla de viajantes e as trocas de experiências e concepções de mundo entre eles não impactam somente a si, mas a todos que entram em contato, possibilitando que todos aprendam a recomeçar e encontrar seu lugar nessa longa estrada da vida.
Relatos do Mundo apresenta-se, desse modo, como um western diferenciado, que, à semelhança do jogo Red Dead Redemption, apresenta toda a fragmentação daquele universo causada pelos conflitos entre diferentes povos e personalidades e busca acessar uma dimensão mais humana nas suas fragilidades e reconstruções, retrato de um tempo que exige dos homens do velho-oeste essa reflexão mais pessoal e esse “rasgar-se e remendar-se”. O equilíbrio entre ação e drama dá-se de modo a proporcionar ora momentos de grande tensão, ora cenas emocionantes. Mesmo que tudo seja bem passageiro e não permaneça no ato seguinte, ao final tem-se uma sensação de que os eventos cumpriram sua função e nos ajudaram na compreensão daquele universo que o diretor quis colocar em cena para além do que é classicamente representado no contexto, bem como do nosso próprio universo e do nosso lugar nele.
Armadilha para Turistas
3.1 114Stephen King classificou esse filme como dono de um “poder fantasmagórico, misterioso” em seu livro Dança Macabra. De fato, acredito que essa é a melhor definição que se possa dar ao filme. Esse poder pode ser sentido em tudo, desde a música quase infantil dos créditos iniciais e que se desdobrará em toda uma trilha sonora estranha e com características de ópera ao longo do filme, dando uma força épica aos momentos (momentos de mortes ao som de coro soprano de bonecos, momentos de perseguição ao som de música dramática, momentos de acesso ao passado ao som de música romântica), mas sobretudo na cena de morte aos primeiros minutos. Simplesmente uma das cenas mais aterrorizantes que eu já vi, na união sinistra entre horrível e cômico nos manequins de cera e o ataque que inicialmente parece envolver fenômenos espirituais, mas que, como descobre-se depois, não é assim.
O que temos é, na verdade, um vilão com poderes telecinéticos que comanda os bonecos. O filme mostra-se uma junção entre O Massacre da Serra Elétrica e A Casa de Cera, porém bem mais inventivo que qualquer dos dois. Há o motivo popularizado por Hooper e que se tornaria clichê a partir das próximas décadas – os jovens que são impossibilitados de seguir viagem por falta e combustível e/ou pneu furado e acabam tendo que passar a noite em um lugar estranho que é comandado por esse sujeito excêntrico. As leves incursões em seu passado em uma tentativa inicialmente frustrada de conferir uma carga de emotividade e uma maior conexão com os personagens pode parecer clichê, mas funciona bem ao prover todo o mistério sobre sua esposa e ir construindo aos poucos esse mapa psicológico até culminar nas sucessivas reviravoltas ao final. Aliás, uma das coisas que o filme faz de melhor é rejeitar os clichês e se reerguer com novos plot twists quando parece que eles vão se instaurar. A resolução que começa a ser prevista pelo telespectador como cópia do clássico de Hooper e se transfere após algum tempo para Psicose acaba se mostrando algo realmente inventivo e original.
O mais interessante é ver as ótimas noções de espacialidade que possui David Schmoeller e que conferem um traço realmente autoral a seu terror. Esse trabalho com o espaço fica mais evidente em seu posterior Crawlspace (1986) – Mente Macabra ou Perversão Assassina em português – em que os labirintos e pontos de vista são centrais para a construção do filme. Mas aqui isso não é menos importante. Em um filme que joga bastante com as percepções de rostos para que não consigamos distinguir em vários momentos os bonecos das pessoas e tenta mesmo nos confundir com rostos caricatos como os de Chuck Connors e Robin Sherwood (em que um pouco trabalho de maquiagem já é suficiente para termos de aguçar nossa vista em algumas cenas), as excelentes construções em profundidade de campo e planos-sequência (dignas de um Orson Welles) tornam-se decisivas para modificar nossa percepção. Com os atores e objetos quase sempre distantes e espalhados pelo campo, somos tanto confundidos quanto convidados nos closes a acessar uma expressividade mais íntima do personagem que o filme não dispensa.
O Clube dos Canibais
3.1 149 Assista AgoraParece que o diretor leu o livro "Jantar Secreto", de Raphael Montes, achou legal a ideia dos ricos formando clubes de jantares de carne humana como crítica social ao desprezo destes em relação às classes baixas e resolveu usar no filme, porém de uma maneira mal trabalhada que faz o canibalismo se tornar um mero detalhe incluído para fazer crítica e que, por não ser trabalhado na trama, poderia inclusive ser descartado.
O filme todo cai nessa crítica extremamente forçada. Os diálogos são os mais clichês e artificiais possíveis para indicar isso e toda a motivação da trama parte disso, com um monte de coisa deixada sem desenvolvimento. As autuações são medíocres e mesmo ruins, somente para repetir esses diálogos, sobretudo no personagem de Otávio que o diretor tenta construir como "conservador", alardeando isso na sinopse, mas termina fazendo algo nem um pouco convincente ou verossímil, preso a chavões estúpidos. Otávio termina sendo somente um corno conformado e bobo. Por fim, o filme vale apenas pelas cenas gore que são aceitáveis. É um entretenimento de 80 minutos, nada mais que isso, e poderia bem ser um curta pela falta de assunto.
A Casa dos 1000 Corpos
3.2 421 Assista AgoraO filme é nada mais que uma reunião de situações bizarras com edições de cores e técnicas jogadas, guiadas por personagens que não possuem o mínimo de aprofundamento e não conseguem desenvolver qualquer conexão com você, seja de que sentimento for. Na verdade, grande parte do tempo você nem entende o que está acontecendo ou quem é quem ali, de tão confuso que é tudo. Rob Zombie parece não possuir a mínima noção de como criar um roteiro ou personagens. O personagem que inicialmente parece ser o principal morre nos primeiros minutos do filme, e o resto segue com inclusões a torto e a direito de novos rostos, cenários e situações sem sentido. Começa com um mínimo de sentido, e termina sem nenhum. Um filme feito simplesmente para parecer bizarro, mas jamais com o mesmo brilhantismo de vários trashs dos anos oitenta ou mesmo anteriores (Zé do Caixão, em quem Zombie diz ter se inspirado, mas parece não ter absorvido nada com coerência) que o fazem de maneira inventiva e em tramas com sequência lógica. Vale meia estrela somente pela cena tarantinesca em slow motion dos policiais encontrando os corpos no galpão, a única cena boa do filme.
Morto Não Fala
3.4 384 Assista AgoraUm excelente filme que mostra como o cinema nacional se desenvolveu bastante no gênero terror/horror. O diretor Dennison Ramalho foi elogiado por José Mojica Marins, o mestre supremo do nosso cinema, e não é pra menos. Ele consegue fazer uma combinação poderosa de elementos do cinema de horror americano com as situações da nossa realidade brasileira, usando-as tanto de mote para instaurar a trama psicológica quanto como atrações do conjunto que constroem toda a atmosfera do filme.
A história começa de uma maneira bem original, com a maior perfeição de um terror tipicamente brasileiro: o trabalhador do IML que, em um país marcado pela violência, lida com a morte bem de perto e pode perceber a transitividade e a miséria de nossas vidas, o que se reflete como um espelho de sua própria vida frustrada junto da esposa que só o deprecia. O humor se estabelece nesse diálogo com os mortos, mais do que o medo propriamente (o que é uma característica clássica do terror: a possibilidade de juntar humor, drama e qualquer outro gênero), evidenciando também essa miséria de nossas vidas, no melhor estilo Brás Cubas. A única coisa em que o filme peca nesse aspecto é na edição de som, já que as falas estilizadas dos mortos são, muitas vezes, incompreensíveis.
Com o uso indevido dos segredos que os mortos lhe confiam, Stênio inicia em sua jornada de tormenta. Muitas pessoas frustraram-se com esse segundo ato do filme por acreditarem que ele deixa de lado o enfoque brasileiro e se apega a fórmulas e técnicas americanas. No entanto, não vejo esse problema no filme: Dennison Ramalho sabe articular muito bem um clássico roteiro de uma família assombrada por um fantasma com situações que instauram o medo a partir de elementos da realidade brasileira: o exorcismo neo-pentecostal televisionado, o labirinto de cerol (a melhor cena do filme), os mortos pelas mais diversas situações que vão desde os traficantes até às vítimas de um deslizamento do morro (essa cena representa o maior momento de tensão dramática do filme, em que os problemas de Stênio começam a se avultar em todos os sentidos, não somente pela perseguição sofrida, mas por todo o contexto de seu trabalho. A atmosfera psicológica trabalha muito bem a desilusão e o desespero). A originalidade do filme está na maneira como articula esse roteiro clássico com essas situações de uma nova realidade que é, por si só, mais desesperadora que a que dá fundo aos filmes americanos do gênero. A fotografia gélida e escurecida que impera na maior parte da produção, mesmo durante do dia e em ambientes iluminados, promove o movimento contrário: a adaptação da tradição brasileira, que seria a de um país tropical iluminado, alegre, de cores vivas, à tradição dos filmes de terror de ambientes escuros e cores frias, e contribui também para toda a atmosfera de tensão e melancolia.
O maior problema do filme, ainda que isso não seja preponderante e não estrague em nada sua eficácia, é a resolução. Fiquei um pouco frustrado com o final por ter me parecido um tanto genérico, um subterfúgio para resolver a situação que não ficou muito explicado e não produziu grande impacto. Durante o filme todo fiquei contando com a possibilidade dos eventos sobrenaturais serem todos decorrentes de desvios psicológicos de Stênio (o que fica sugerido pelo título, "Morto não fala").
O final elimina essa possibilidade, porém não de uma maneira a produzir um grande impacto.
Apesar dessas pequenas decepções, o filme mostra-se como uma atualização original e inventiva do horror brasileiro que merecia muito mais estar na premiação do Oscar do que Bacurau, que pretende concorrer no próximo ano.
Visto: 18/11/2020 (mostra macaBRo na Darkflix)
Nota: 8,5/10
Bacurau
4.3 2,8K Assista AgoraAssisti a Bacurau nos cinemas ano passado e reassisti ontem. Desde a primeira vez eu já havia sido jogado entre idólatras e detratores. O filme foi superestimado de uma maneira geral por muitos que julgam apenas por seu papel crítico ao governo, enquanto alguns amigos meus colocaram o filme lá embaixo injustamente, apenas apegados a detalhes de composição técnica. Sinto falta de uma crítica sensata que julgue o filme como ele realmente é: um filme acima da média para os padrões do cinema brasileiro, mas não esse espetáculo de cinco estrelas que aqueles tomados pelo criticismo de esquerda alardeiam só pelo filme criticar as políticas do governo Bolsonaro e uma série de outras questões. É essa crítica que tento fazer aqui.
Bacurau apresenta-se formalmente como uma mistura muito rica de gêneros e técnicas cinematográficas. Enxergamos ali uma atmosfera meio diesel punk, meio cyber agreste, e as referências e influências dos filmes americanos são bastante explícitas. Aqui reside a primeira contradição das críticas que o filme busca promover: para criticar o tal do "imperialismo norte-americano", a invasão norte-americana para subjugar os cidadãos, os diretores fazem um filme totalmente influenciado pelos filmes do país do Tio Sam: mesmo nível de violência gráfica, sintetizadores a la John Carpenter, clichês introduzidos pelos personagens americanos invasores (a mistura de gore e sexo de filmes como Sexta-Feira 13, por exemplo, como na cena em que os dois caçadores começam a transar depois de matar o casal)... isso não é ruim falando em termos de composição, apenas soa um pouco hipócrita para a proposta crítica do filme. Mas ainda podemos relevar isso se pensarmos que as inovações na produção cultural brasileira sempre vieram por antropofagismo e absorção cultural estrangeira, buscando achar um tom mais próprio, que é o que Bacurau faz. E o filme também busca mostrar que os brasileiros não são subalternos, mas podem pagar com a mesma moeda aos estrangeiros (levando isso também para o nível visual e técnico do filme).
A maior contradição da proposta está na crítica aos supostos rumos violentos que o país seguiria com as políticas de liberação de armas do governo. Bacurau é uma sátira da sociedade brasileira futura, uma sociedade que naturaliza e banaliza a violência, o que podemos ver por várias pistas ao longo da produção, desde o início que já começa dizendo que a história se passa no "oeste de Pernambuco, daqui a alguns anos...". O problema com isso é:
ao fim, o que salva a população da morte é justamente as armas da cidade guardadas no museu
não fossem suas armas, todos teriam morrido, pois os americanos obviamente levariam suas armas e seriam o poder opressor. Penso que a ideia poderia ter sido melhor aproveitada se o roteiro tivesse explorado mais a subversão que tentou fazer no estereótipo do americano inteligente, estrategista, como vemos em seus filmes, que ali aparece como um completo idiota que atira ao acaso e só sai correndo e fazendo barulho, esperando a completa passividade do povo de Bacurau. Esse artifício poderia ter sido melhor aproveitado se os habitantes de Bacurau aqui se colocassem como os inteligentes e estrategistas, matando não com armas de fogo como as dos americanos, mas sim com armas caseiras e estratégias de ataque.
Um dos maiores problemas do filme está nos furos de roteiro, que se avultam no desfecho.
Quando é de esperar que é chegado o clímax do enredo, com a guerra entre os norte-americanos e os "bacuralenses" (ou seria gente?), as ações se mostram ridículas e inverossímeis e tudo acaba em 5 minutos. Claro que os americanos não esperavam pela resistência do povo, achavam que seria fácil pegá-los, por isso acabaram sendo pegos de surpresa de modo igualmente fácil. Mas algumas ações, sobretudo do velho Michael, tornam-se absurdas: a cena do encontro dele com a personagem da Sônia Braga, em que ela oferece comida a ele, ele derruba a mesa e sai andando sem matá-la, é ridícula, termina do nada. A morte do cara que matou o menino, que devia ser cruel e dramática, é totalmente esquecível, sem nenhum impacto, tanto que nem lembro mais especificamente como ele morreu. A sequência de ações a partir daí é totalmente inverossímil: Michael começa a matar seus próprios companheiros e, depois que vê que está tudo perdido, pensa em se matar (quando ele poderia simplesmente ter fugido para o mato), mas então vê o espírito da matriarca morta e fica paralisado, até ser pego por um cangaceiro (ele poderia ter se matado mesmo assim, afinal o homem o estava ameaçando unicamente de morte mesmo, mas não o faz, sem motivo algum).
A única cena que merece destaque é a do homem pelado explodindo a cabeça do americano, uma ótima construção que remonta a filmes trash como "Náusea Total", mostrando o corpo caído com a cabeça aberta pela metade. Essa cena é a maior reviravolta do filme.
Outros pontos que merecem consideração: as atuações são muito fracas, inclusive as dos atores convidados Sônia Braga e Udo Kier. O único que se destaca um pouco é Thomas Aquino. A fotografia e a direção, por outro lado, são boas. A trilha sonora também é excelente.
Ao fim, o que fica é que é um filme com uma boa ideia, que não foi aproveitada do melhor modo, caindo em vários clichês e inverossimilhanças. O filme vale mais por sua inovação e ousadia técnica e pela representação de um Brasil que foge das representações que estamos acostumados a ver no cinema brasileiro, um Brasil pensado de um jeito diferente. Isso é suficiente para fazer um filme interessante de ser assistido e que é uma conquista para o cinema brasileiro atual tão acostumado com a homogenização. Minha nota fica entre 7 e 8.
O Caso Richard Jewell
3.7 244 Assista AgoraEnvolvente e catártico, te enche de vontade de fazer o bem. Boa crítica aos instrumentos de poder e sua busca por sensacionalismo. Só perde meia estrela pelo final que ficou meio corrido e vazio,
já que, após a vida do cara ser fudida na opinião pública a nível mundial, não mostra uma única retratação na mídia, entrevista, nada. Senti essa falta de ver ele aparecendo como herói perante o mundo, a mãe vendo tudo e tendo orgulho dele de novo.
No geral, um ótimo filme de um diretor consagrado. Como li em uma outra resenha, em outras mãos essa história poderia ter dado origem a um filme despersonalizado, talvez um telefilme. Mas Clint Eastwood sabe dar o tom dramático, sarcástico, ácido e nos fazer ficar decepcionados com os homens e sedentos do amor e tranquilidade familiares, que é o que mais importa, junto com o herói.
O Farol
3.8 1,6K Assista AgoraEntrou pra minha lista dos melhores da década, pelo menos um dos mais surpreendentes. Robert Eggers vem se mostrando como um diretor inventivo e ousado, que é uma das coisas que o cinema atual mais precisa. Tudo é arriscado nesse filme: a ideia de ser em preto e branco e totalmente fora dos padrões de imagem e tela, o fato de ter apenas dois personagens interagindo o tempo todo em lugar fechado, o abuso de símbolos e referências da mitologia que não serão compreendidos por todo mundo... mas o diretor consegue construir tudo de um modo extremamente inteligente e envolvente. O clima de tensão constante e crescente, tanto entre os dois personagens como em relação ao ambiente, o aprofundamento psicológico do personagem Ephraim, os diálogos que unem hostilidade, apego e humor na media certa, tudo contribui para deixar o espectador totalmente envolvido por quase duas horas, sem precisar de grandes cenários ou de um roteiro cheiro de ação e reviravoltas. Além disso, a fotografia e a atuação dos dois também são ótimas. Poderia facilmente se passar por um filme de Hitchcock. Aliás, o que fiquei pensando: seria Eggers o novo M. Night Shyamalan, que levou esse título de sucessor de Hitchcock no início do milênio? Os pontos de contato com os tempos de ouro do diretor indiano vão aos poucos aparecendo. O drama familiar que Shyamalan tanto gostava esteve presente em A Bruxa, agora em O Farol vemos um intimismo em personagens masculinos com passado problemático. Os finais de Eggers não possuem reviravoltas intensas como os de Shyamalan, mas o final desse novo filme me animou por não cometer o mesmo erro que me incomodou no do filme anterior, a única coisa que me me incomodou aliás: ser muito explícito ao ponto de ser bobo,
com o bode conversando com a garota com voz do demônio e as bruxas se manifestando de um modo
Eggers está se mostrando eficiente e inovador em construir suspenses de um modo que me dá essas esperanças, já que Shyamalan é meu diretor preferido e animou o mundo por anos com filmes diferentes de tudo que havia sido e estava sendo feito até então. O Farol é esse tipo de filme, que, como muitas produções de Shyamalan, provavelmente só será bem compreendido e receberá o crédito que merece daqui a alguns anos.