"Medo da morte, do confinamento, da velocidade, da altura, de avião, de distância, da loucura. Medo das amputações. Medo de navios. Medo do mar. Medo de tubarões, jacarés, cobras, cachorros desconhecidos. De armas, dentistas, miséria, estádios de futebol, insetos, multidões, elevadores, doenças, médicos, tempestades de raio, eletricidade, panelas de pressão, bujões de gás, cidades muito grandes, ruas vazias, sangue, câncer, polícia, escorpiões, envelhecimento. Medo da impotência. Medo de que me deixem de amar. Medo de que me façam ridículo em público. Medo de não estar com a razão. Medo de ser enganado. Medo de ser preterido. Medo de parecer frágil. Medo de saber a verdade. Medo de não saber a verdade."
Dentre todas as virtudes, que são todas, destaca-se a aula de narração em off, bastante pontual, portanto nada intrusiva, nem artificial em sua belíssima elaboração literária. Na realidade, todos os diálogos e a própria estrutura dramatúrgica têm um quê de romanesco, então não surpreende verificar nos créditos finais que se trata de uma adaptação do livro homônimo de um escritor argentino.
Se a substância da história for acompanhada de cuidado no visual, melhor ainda - e é exatamente isso que o Marco Dutra faz, compondo planos magníficos, atentando para as cores e valorizando os inúmeros simbolismos do roteiro. Sob a aparente simplicidade, há muitas nuances em O Silêncio do Céu, como a maneira como as plantas são utilizadas na história, tanto de forma instrumental, para fazê-la avançar permitindo que o protagonista se aproxime da verdade, como no plano metafórico (o significado dos cactos na relação entre o casal e sua dificuldade de mútua compreensão, por exemplo); além disso, toda a narrativa principal - o protagonista buscando os agressores da esposa - é alimentada por estudos sobre afeto, distanciamento, medo e abnegação que a potencializam impedindo que seja apenas uma história investigativa
(e não é, pois o que importa não é descobrir o criminoso, algo de que o filme não faz segredo, e sim precisamente essa discussões).
Gostei tanto do desenrolar da trama que ter antecipado a única revelação mais substantiva (a personagem da C.D tivera um caso com o agressor) não diminui minha admiração por ela.
É admirável como o diretor e os roteiristas estabelecem a atmosfera de desconforto, tensão e melancolia, por meio de cenas curtas como a da leitura da fábula ou da música cantada no escuro. Também me chamou a atenção como todos os personagens são reais e não figuras mecânicas para dar suporte aos protagonistas - e seguindo a economia de meios que caracteriza esse filme de pouco mais de uma hora e e meia, às vezes essa humanidade é ilustrada por detalhes sutis, como o enfoque ao fato de a mãe dos agressores ter alguma deficiência física que a faz caminhar arrastando uma das pernas - o que basta para trazer à baila uma humanidade que se tornará mais pungente pouco adiante, quando percebe que o filho foi envenenado.
Maravilha de filme. Agora quero ver os outros do diretor.
Apreciei o final. O casal principal passa o filme tentando estabelecer uma conexão, desvendar os mistérios do outro. Agora estão unidos por um segredo, pois a arma aparecerá e ambos saberão em silêncio que conhecem a história toda e tudo que o outro fez. E que diálogo encerra a temática do medo: "ele me explicou que meu medo não é de avião. É do céu. E por isso não tem cura". Classe é isso.
"- Mostrar distintivo, empunhar arma. Fazer prisão. É isso o que fazemos.
- E...?
- E a identidade forjada e a realidade vão se chocar. Você está pronto pra isso?"
Miami Vice é o produto do encontro entre o roteirista Michael Mann, que não andava em seu momento mais inspirado, e o diretor Michael Mann, que na época já estava no mais pleno domínio de todas as artimanhas que fazem o bom filme policial.
Significa dizer: em momentos pontuais Miami Vice produz alguma tensão, alguma desorientação, alguma melancolia, alguma conspiração, alguma empatia, algum ceticismo, alguma sensação de mundo cão - segue a cartilha do gênero. Tiras, burocratas, bandidos, pessoas boas e ruins perdidas no entorno do império das drogas. E dá-lhe a fotografia saturada, contrapondo a escuridão da noite à iluminação artificial das cidades; dá-lhe cores que às vezes são foscas, dando um tom documental às cenas mais movimentadas (geralmente filmadas com câmera na mão), às vezes explodindo na tela em paisagens exuberantes; dá-lhe a simplicidade, digna de quem tem muitos coelhos na cartola, na escolha dos recursos artísticos (como na cena em que um personagem é filmado apenas de costas enquanto faz uma descoberta, apenas sugerindo-se sua reação).
Infelizmente, lá pelas tantas percebemos que a trama, embora elaborada, não nos levará a lugar nenhum que outros tantos filmes, mesmo os que contavam com gente menos badalada atrás das câmeras, já nos mostraram outras tantas vezes. Os esforços estéticos de Michael Mann seriam mais bem empregados se houvesse contratado para escrever Miami Vice um roteirista bem mais talentoso: o Michael Mann de Fogo Contra Fogo.
Gosto principalmente da melancolia, dos diálogos certeiros e de como as duas linhas temporais dialogam entre si, mas a principal qualidade talvez seja a concisão do roteiro em desenvolver diversos elementos (o surgimento do Batman, a relação Bruce Wayne-Andrea Beaumont, dois vilões interessantes, revelado o surgimento de um deles e diversas outras questões secundárias) em apenas 76 minutos. Esses atributos certamente transformam A Máscara do Fantasma em uma das melhores histórias do Batman já levadas ao Cinema.
Não considero o original um filme intocável. Tem o seu clima de horror lírico banhado por um show de cores, porém o roteiro é terrível, impossível de ignorar. Se houver algum acréscimo nisso, já se ganha alguma coisa.
Partindo da premissa (óbvia e bastante aceita) de que Filth é uma releitura de Vício Frenético na mesma linha da versão do Herzog, os dois até se estabelecem como complementares, já que o último Vicio Frenético começa muito bem e vai se diluindo até virar um filme de ação comum, ao passo que Filth começa meio sem propósito e vai ganhando corpo, proporcionando um terceiro ato notável.
Quando os diretores de John Wick tomaram caminhos diferentes na carreira (Chad Stahelski ficou encarregado da sequência e David Leitch assumiu Atômica), eu me perguntei se algum deles era o bom mesmo da dupla. Após ver os filmes seguintes de ambos, estou desconfiado de que os dois são o bom mesmo. Assim como John Wick 2, Atômica é ótimo: repagina todos os elementos do filme clássico de espionagem acrescentando ação plástica e vertiginosa, direção e montagem detalhistas e trilha sonora perfeita. Charlize Theron é a presença dominante (é admirável a dedicação dela nas cenas mais físicas), mas o elenco de apoio não deixa a desejar.
Não é uma boa época pra filmes de ação. A estética meio MTV com câmera esquizofrênica, edição incompreensível, roteiro genérico e o esquecimento premeditado de que tiros e pancadas fazem as pessoas sangrarem, mancarem e sofrerem fraturas são elementos que contribuíram para a pasteurização que tomou conta do gênero. Diretores como Leich e Stahelski dão uma espanada nessa mesmice. Vamos ver o que vem por aí desses dois.
Um troço que sempre me incomoda em filmes de herói de qualquer estúdio é que o terceiro ato geralmente é dominado por cenas de ação genéricas e tediosas, inclusive inferiores às outras cenas de ação dos mesmos filmes. Liga da Justiça, a julgar pelo trailer final, vai ser inteiro uma cena de ação genérica e tediosa. Tomara que seja algo melhor.
Fraquinho e superestimado. As poucas piadas engraçadas (como a que envolve o Liam Neeson e sua igualmente insossa franquia, Busca Implacável) ficam soterradas sob milhares de outras constrangedoras e não adianta nada ter liberdade para o gore se os tiroteios e lutas são tão formulaicos. Gostei de saber que a direção do segundo ficará a cargo do diretor do John Wick, talvez ele saiba injetar diversão na empreitada e entregar algo melhor do que essa quase bomba.
Espetáculo visual e sonoro a corporificar o interessante e competente roteiro do próprio Jarmusch. Curiosamente, entre as tantas referências eruditas, estertores de tédio patológico (dos personagens, não meus) e dramas existenciais não deixa de se fazer presente alguma espirituosidade sombria, o que o aproxima do estilo que tão bem marcava a obra do Tim Burton antes de ele perder a mão para o cinema de excelência.
Morro de rir com o esquadrão mimimi reclamando da "crítica" como se ela fosse algum tipo de entidade uniforme que resolveu malhar esse enlatado, algo tipo o Sindicato, terrivel agência de espionagem contra a qual Ethan Hunt luta em Missão Impossível, ou Spectre, a associação criminosa arqui-inimiga de James Bond. Na continuação, o estúdio já sabe como nos proporcionar toda a descarga de adrenalina que não está sendo despertada por esse primeiro: Coringa, Arlequina, Pistoleiro e outros vilões mequetrefes serão demitidos por justa causa e darão lugar ao único esquadrão realmente mau: a "crítica".
"Nada fará sentido para os seus ouvidos americanos. E você vai duvidar de tudo o que fazemos [...]"
Sicário é como se tudo o que Narcos e O Conselheiro do Crime (se bem que este último eu considero parcialmente injustiçado) têm de bom, e também o que não têm mas era de se esperar que tivessem, fossem encampados pela atmosfera de Apocalypse Now (a crescente imersão numa área onde a violência deixa de se parecer apenas com um produto da ação humana para adquirir contornos de surreal onipresença) e com o jogo de intrigas digno de um John le Carré, com todas as suas intrigas e os interesses acobertados que vão surgindo pelo caminho enquanto a protagonista percebe que não é mais possível voltar atrás na tarefa inglória que a atraiu.
Além da maestria no manejo da câmera e do todo o apuro estético que já é característica de sua filmografia, Villeneuve consegue, ainda, sucesso em criar um filme praticamente perfeito no ritmo: a tensão é permanente sem que precise lançar mão de cenas de ação a todo momento; os acontecimentos vão se desenrolando de forma a mostrar, gradativamente, o tipo de realidade com que os personagens estão lidando, e, com isso o fôlego da narrativa jamais se perde, apesar do peso que carrega. Além disso, merece consideração o fato de, ao tratar deste tema tão importante - os cartéis mexicanos, bem como os métodos transgressivos e diversas vezes monstruosos de que os agentes estadunidenses se valem para combatê-los -, o roteiro confere relevância aos habitantes do próprio México, tocando na ferida do sofrimento a que são submetidos por permanecerem reféns daquelas organizações criminosas.
A trilha é outro diferencial. Forte, dita o ritmo sem ser invasiva e tem momentos de brilhantismo, como quando vemos o personagem do del Toro se mexer durante o sono enquanto ouvimos ruídos que parecem gritos ao vento, ou quando, antes mesmo de certo tiroteio começar, já ouvimos, por baixo da música, um som assemelhado à percussão de tiros. Eis outro fator que contribui para atmosfera aterradora de Sicário.
Josh Brolin e del Toro estão brilhantes em seus papéis ambíguos. Quanto à Emily Blunt, eu não tinha visto nada de especial em nenhuma de suas atuações anteriores a que havia assistido, mas aqui ela aparece perfeita num papel difícil, visto que a protagonista passa a maior parte do tempo perdida na trama, sendo arrastada pelos companheiros para algo que não sabe o que é. É notável, em particular, a capacidade dela de mostrar um pavor incontrolável apenas pelo olhar, enquanto o resto da expressão permanece fria e comedida. Sem dizer nada, a atriz revela o desmoronamento interior daquela mulher dura ao presenciar a barbárie provocada não apenas pelos vilões mas também pelos "heróis".
Que estréia do Dan Gilroy. Já começa pelo eficiente e econômico roteiro, que condensa em duas horas toda a ascensão do protagonista em sua "carreira" ilustrando cada etapa de sua paulatina degeneração até atingir o limite da baixeza. Os diálogos, além de inteligentes e expressivos, carregam também um certo humor sombrio mesmo quando os personagens estão falando nas maiores atrocidades - basta ver a quantidade de cenas em que os personagens estão na sala de edição apreciando filmagens cheias de pessoas baleadas, acidentados no meio de ferragens, corpos sendo transportados em macas, e exaltam, emocionados, a "qualidade" daquele material. A intenção é a denúncia, claro, mas também é muito difícil não ver implícita ali uma certa espirituosidade corrosiva.
A direção é inventiva, cheia de belos planos, mas sempre a serviço da narrativa. Remontou-me, nisso e na temática, bastante ao cinema do Sidney Lumet, inclusive.
Quanto ao Jake Gyllenhaal, aqui como de hábito ele desaparece para que o personagem surja, numa atuação bastante detalhista (chamam a atenção, por exemplo, o olhar constantemente arregalado e a dicção articulada e ágil, porém fria, como se Lou Bloom tivesse decorado todas aquelas noções de marketing e gestão mas fosse incapaz de transmiti-las empaticamente).
Por fim, sobre o último diálogo entre ele e a personagem da Rene Russo
Causa espanto o desagrado que provocou em alguns espectadores, vide alguns comentários abaixo. A mensagem ali é clara: poder atrai, poder seduz, derruba as resistências mais férreas. Bloom comprou a Nina pelo poder e influência, pois monstros como ele não teriam nenhum sucesso se não agissem em um mundo que não os valorizasse, pessoal e profissionalmente. Além disso, há nessa cena uma sutileza interessante: eles começam a conversar após pausar o vídeo na cena em que o assistente dele está morrendo, então o Gilroy cria um plano em que ambos estão de perfil , trocando um olhar apaixonado, e o garoto ao fundo, olhos saltados, fitando-os com uma expressão de dor. Toque de gênio.
Os Suspeitos me lembrou um pouco Sobre Meninos e Lobos (outro filme que se estrutura apenas em aparência sobre uma trama policial básica, a qual na verdade é uma isca que atrai o espectador para uma verdade oculta ainda mais terrível, que exige a exumação de fatos do passado) e bastante o Zodíaco (principalmente porque, em ambos casos, os respectivos diretores não tiveram medo de enfrentar os detalhes técnicos da processualística e extrair deles seu potencial dramático, algo que requer muita habilidade quando não se está falando de um filme de tribunal, caso contrário a platéia que esperava suspense entra em coma).
Remeteu também ao Gone Girl, mas desta vez no mau sentido para este último. Incrível, é como se o filme do Fincher fosse feito para agradar os 9gaggers e o pessoal que faz memes com "personagens fodásticos" e Os Suspeitos fosse a versão para adultos.
Outro ponto de destaque é que o Vileneuve e seu roteirista não têm medo de apostar na inteligência do sujeito que resolveu gastar duas horas e meia de seu parco tempo para ver o filme deles. Trabalham com os vários elementos que fazem a complexidade de um suspense policial (questões procedurais como multiplicidade de suspeitos, pistas falsas, eventos de cronologia incerta e por ai vai, além de toda a problemática humana da coisa) sem ficar explicando toda hora o que está acontecendo. Efeito colateral disso é a quantidade de comentários abaixo dizendo que "muitos detalhes foram mal-explicados" (não foram, está tudo lá), mas faz parte. Que bom ver que certos diretores ainda sabem que a câmera é feita para mostrar fatos e às vezes isso dispensa muita exposição verbal.
Atraído pela temática e impressionado com a pouca repercussão, tive a felicidade de assistir a essa excelente cinebiografia. O que há salta aos olhos em Jersey Boys é que Clint Eastwood ainda tem pulso e no filme tudo funciona: 4 Seasons era uma boa e até certo ponto exótica banda, o elenco (em sua maioria desconhecido ou quase desconhecido pelo grande público) está afiadíssimo, esteticamente é um show e até aqueles recursos narrativos que podem descambar para a pura firula (ex: personagens quebrando a quarta parede) são utilizados de forma bastante segura - e nisso ajuda o fato de todos os protagonistas terem o seu momento de diálogo com o espectador, o que ajuda a consolidar a complexidade de cada uma daquelas pessoas perante nós.
Mas no final o que mais agrada mesmo é que Jersey Boys, para além de todo o apuro técnico e cuidado minucioso nos detalhes, é um filme com essência, com alma, que flui e mantém o interesse apesar de relativamente longo. Grande e subestimado produto.
P.s: e ainda começa com Christopher Walken de mafioso dialogando com Steve Schirripa (o Bobby Bacala de Sopranos). Esse Eastwood não seria melhor nem se não fosse membro do Partido Republicano.
É o típico "filme de roubo", com todas aquelas peripécias, mas um tanto mais tenso e com mais colhões do que a maioria de seus pares. Num mundo ideal, quem fosse ao cinema ver um thriller despretensioso encontraria, no minimo, um exemplar como este; como, porém, o cinema norte-americano é a indústria da terra arrasada e um deserto não digo nem do bom cinema mas até do entretenimento que não dá vergonha, então é preciso ir perscrutando até à Noruega para encontrar um Headhunters.
Policial puro-sangue, La Isla Mínima (apenas o amor à fidelidade me faz rejeitar o titulo em português, que é belíssimo e condizente com a proposta) realmente reverbera True Detective, não parasitariamente mas de maneira bastante referencial (da mesma forma como a brilhante série do Pizzolatto faz questão de espalhar ao longo da narrativa pistas de que não surgiu do nada) e afirma-se como um competente exercicio de estilo, que prende a atenção e impressiona pela magnifica utilização dos aspectos visuais a serviço da trama. Não reinventa a roda, o roteiro policial é aquele mesmo da década de 40, mas dá uma revitalizada no castigado gênero. E a dupla principal é ótima, ambos fizeram jus à complexidade e nuances dos respectivos personagens.
Já havia me surpreendido com a eficiência do primeiro, que soube contornar com habilidade a tosquice inerente ao Capitão América (um dos personagens mais cafonas e ufanistas que a Marvel criou), mas esse vai ainda mais longe. Sua maior virtude é ser um filme de herói ligeiramente menos esquemático do que a média (ao contrário, por exemplo, daquele lixo que é o reboot do homem-aranha) e, melhor ainda, não encher o saco a todo momento com piadas bazingueiras imbecis (como o igualmente péssimo Vingadores).. Em vez disso, introduz o conceito "filme de super-herói" num trama de espionagem mais do que decente, que apenas cede lugar no terceiro ato, nesse tipo de filme costumeiramente dedicado a acordar aquela parcela do público que estava dormindo até então. E, falando em cenas de ação, as que antecedem essa do final são espetaculares, muito bem filmadas. Enfim, bom filme, outra prova de que as limitações criativas que geralmente acompanham os blockbusters não são desculpa para a palermice completa e que é possivel fazer um mais do mesmo com qualidade.
Belo filme. Surpreendeu-me, pois eu esperava uma comédia com pinceladas dramáticas e vi um dramédia bem equilibrado e que sabe não ser ridículo quando fala sério (e saber quando falar sério já é muita coisa). E como manda bem a Irene Ravache & cia do elenco de apoio.
Sobre o pessoal que achou desnecessário o personagem do Marcos Veras, só digo uma coisa: cês gostam é de novela das seis, rapazeada. Entre Abelhas não é uma comédia debilóide do Leandro Hassum e sim se propõe a oferecer um retrato minimo da realidade, para inserir nessa realidade um elemento absurdo - as pessoas sumindo - e explorar o contraste. No mundo real os Davis estão por ai aos montes e filme nenhum tem a obrigação de fingir o contrário para não ferir a sensibilidade de vocês, os quais, se não enxergam a diferença entre a existência autônoma de um personagem e as opiniões de quem o cria, é porque estão num estado clínico pior do que o do personagem do Porchat.
Sempre via esse filme anos atrás, nunca mais assisti e cheguei a esquecer de sua existência até hoje, quando me ocorreu uma coisa (e quem é capaz de controlar o vertiginoso caos do pensamento....), uma leitura que eu não podia fazer naquela época, pois só o que eu pensava estar assistindo era mesmo a um filme de terror, mas que hoje me cismou. Não havia reparado até então em como o filme tem um viés político-ideológico acentuado.
É escancarada a alfinetada que se dá na história bélica norte-americana, basta ver que a projeção já abre sugerindo que os "malditos" são deformidades genéticas provocadas por armas quimicas, e a cena em que um deles é morto com uma bandeira norte-americana apenas esclarece isso pro mais tapado dos espectadores. Acontece que isso não são cenas pontuais e sim explicitações de todo o ideário do filme, basta ver quem morre e quem vive: Morre o "Big Carter", republicano estereotipado, aquele chavão em forma de gente tão comum na sociedade que certamente votou no Reagan, nos dois Bushs e, brasileiro fosse, votaria num Bolsonaro. Morre a mulher dele, a dona de casa igualmente tipica de um lar conservador, completamente devotada à familia. Morre a filha mais velha do casal, uma recém-parida a caminho de ficar igual à mãe, com a qual já se parece mais do que com os irmãos, por exemplo. Já os sobreviventes, todos eles fazem um perfil "novo progressista", encarnações da juventude contrariada com os antepassados quadrados, o Doug insinuado como um liberal que, nas palavras do sogro "é contra as armas". Aliás, quando a ação começa, ele próprio se transforma numa máquina assassina, algo que o filme ilustra muito claramente como uma subversão de sua natureza originária. (Além disso, vá lá, não falta nem uma cena em que toca Califórnia Dreaming para que a referência aos hábitos e costumes daquele povo fiquem mais óbvios, rs).
Enfim, certamente é uma forma inusitada de enxergar a idéia desse filme, mas não creio que seja um completo disparate. Fiquei com vontade de reassisti-lo pra ver se é por ai mesmo.
Detachment é um ato de resistência contra a morte do cinema, da arte, uma rara demonstração de que a ficção cinematográfica atual ainda tem algo a dizer. Pleno de sentido, profundíssimo, cheio de referências absolutamente condizentes com o conteúdo da cena - não funcionam como tentativas de embalar o clássico numa roupagem pop para entregá-las a quem, tomando conhecimento de frases célebres de autores famosos, jogam-nas entre aspas e metem-nas sem contexto nenhum em suas redes sociais; aqui há camadas, cada citação é uma camada menor dentro de uma camada maior de significados e mensagens.
Decupagem arrasadora, trilha sonora magistralmente utilizada, atuações poderosas, mesmo dos intérpretes dos papéis menores - e os atores famosos em participações discretas não são meros adornos para atrair atenção, pois todos brilham com o tempo de que dispõem em cena.
Respeita a inteligência do espectador, não entrega mastigadas todas as informação de que ele necessita para compreender o filme. É sutil, sabe quando verbalizar claramente e quando apenas sugerir. Não desconhece que um fotograma, uma imagem, um ângulo podem dizer mais do que linhas e linhas de texto escrito, o que provoca o efeito de oferecer diálogos brilhantes quando os personagens falam. Desprovido de cenas inúteis. Forte, não se esquiva dos temas difíceis mas dispensa a pretensão de oferecer respostas esquemáticas para os problemas que aborda. Vai da crítica sociológica ao sistema para a sondagem psicológica dos personagens e vice-versa de forma integrada e quase imperceptível, compreendendo sempre as nuances de cada pessoa em cena.
É um requiem a dream das mazelas interiores da juventude, sem soar sensacionalista ou gratuito e sádico mesmo quando pega pesado; entende que há formas e formas de pegar pesado mas mantém o respeito aos seus personagens enquanto seres humanos.
Peritamente fotografado, direção perfeita e história simples apenas na aparência, visto que aborda multilateralmente os conflitos que propõe, sobretudo quando discute se o justo é seguir as regras ou se às vezes é preciso violá-las para conseguir um bem maior (e, sobretudo, até que ponto uma pessoa pode ir para fazer o que considera justo, conflito que fica muito nítido principalmente nos personagens do Christopher Walken e do David Caruso). Gosto também da construção dos coadjuvantes, os quais nunca são meros suportes para os protagonistas, já que contam todos com uma certa elaboração e profundidade. Perfeitamente cabível aqui a afirmação recorrente de que o Abel Ferrara é um Scorsese mais marginal.
Fosse outro o final, uma continuação não seria apenas possível mas também necessária. O caráter solidário e benemerente do protagonista, com crescente prestígio social por conta disso, em contraposição aos crimes que comete e o legítimo desejo dos policiais, por sua vez honestos, em capturá-lo (que foi tão bem ilustrada) representam uma dualidade interessantíssima e que poderia ser levada a outro nível num segundo filme, pena que isso foi praticamente inviabilizado pelo desfecho (que talvez tenha até banalizado um pouco o resultado final), além de ter feito perder-se, quem sabe, uma franquia interessante.
Trilogias têm um problema: a necessidade de renovar o vigor demonstrado no primeiro filme obriga os roteiristas a criarem situações cada vez mais amplas e ambiciosas para mostrar ao espectador que há ali uma evolução, que cada filme é uma versão mais elaborada do anterior. Geralmente quando se chega ao terceiro esse modus operandi provoca dois efeitos colaterais igualmente deletérios mas que se manifestam em direções inversas: a idéia original se mostra cada vez mais desgastada pela repetição e as tentativas de renová-la simplesmente degeneram em banalização.
Mas esse não é o caso dessa trilogia (assim chamada por aproximação, na verdade, pois não é uma trilogia no sentido clássico da palavra) concebida pelo roteirista Guillermo Arriaga (também excelente ficcionista na literatura) e pelo diretor Alejandro González Iñárritu. A despeito de todos os filmes que a compõem tenham semelhanças em suas estruturas narrativas (destinos de pessoas muito díspares que se entrecruzam em razão de um evento calamitoso), cada um deles guarda uma saudável autonomia em relação aos outros, de modo a construírem todos sua própria identidade. Gosto mais do Amores Perros, mas admito que nesse pódio as posições são permutáveis e qualquer deles pode ocupar o topo na hierarquia das qualidade conforme o enfoque com que se os veja.
Babel, mais do que Amores Perros e 21 Gramas, tem seus problemas. Buscou-se ampliar a nível global a idéia de constante interação, de interconexão profunda e imprevisível que já era o centro dos outros dois, mas o objetivo não foi plenamente realizado. O núcleo passado no Japão, embora isoladamente considerado seja relevante, não se acopla organicamente aos demais. Ainda assim, trata-se de um ótimo filme, bem roteirizado, dirigido e editado, contando ainda com a qualidade uniforme do elenco.
(E foi durante a produção de Babel que surgiu a desavença entre o Guillermo Arriaga e o Alejandro Iñárritu; o primeiro queria co-autoria no filme e o segundo não permitiu. Seguiu-se o consequente rompimento na parceria e provavelmente não voltarão a trabalhar juntos. Uma pena.)
Melhor do que este filme de vingança que faz referência ao cinema asiático é qualquer um dentre os melhores filmes asiáticos de vingança. Aliás, Kill Bill também faz referência a outros nichos cinematográficos que o ultrapassam largamente em matéria de qualidade. Vale por conter as características habituais do cinema tarantinesco (sobretudo sua peculiar direção e diálogos), mas no fundo é uma bobagem bem-produzida que para mim não alcança sequer um TOP 3 do diretor (uma quarta posição, talvez, não sei se gosto menos dele ou do Django).
O Silêncio do Céu
3.5 225 Assista Agora"Medo da morte, do confinamento, da velocidade, da altura, de avião, de distância, da loucura. Medo das amputações. Medo de navios. Medo do mar. Medo de tubarões, jacarés, cobras, cachorros desconhecidos. De armas, dentistas, miséria, estádios de futebol, insetos, multidões, elevadores, doenças, médicos, tempestades de raio, eletricidade, panelas de pressão, bujões de gás, cidades muito grandes, ruas vazias, sangue, câncer, polícia, escorpiões, envelhecimento. Medo da impotência. Medo de que me deixem de amar. Medo de que me façam ridículo em público. Medo de não estar com a razão. Medo de ser enganado. Medo de ser preterido. Medo de parecer frágil. Medo de saber a verdade. Medo de não saber a verdade."
Dentre todas as virtudes, que são todas, destaca-se a aula de narração em off, bastante pontual, portanto nada intrusiva, nem artificial em sua belíssima elaboração literária. Na realidade, todos os diálogos e a própria estrutura dramatúrgica têm um quê de romanesco, então não surpreende verificar nos créditos finais que se trata de uma adaptação do livro homônimo de um escritor argentino.
Se a substância da história for acompanhada de cuidado no visual, melhor ainda - e é exatamente isso que o Marco Dutra faz, compondo planos magníficos, atentando para as cores e valorizando os inúmeros simbolismos do roteiro. Sob a aparente simplicidade, há muitas nuances em O Silêncio do Céu, como a maneira como as plantas são utilizadas na história, tanto de forma instrumental, para fazê-la avançar permitindo que o protagonista se aproxime da verdade, como no plano metafórico (o significado dos cactos na relação entre o casal e sua dificuldade de mútua compreensão, por exemplo); além disso, toda a narrativa principal - o protagonista buscando os agressores da esposa - é alimentada por estudos sobre afeto, distanciamento, medo e abnegação que a potencializam impedindo que seja apenas uma história investigativa
(e não é, pois o que importa não é descobrir o criminoso, algo de que o filme não faz segredo, e sim precisamente essa discussões).
Gostei tanto do desenrolar da trama que ter antecipado a única revelação mais substantiva (a personagem da C.D tivera um caso com o agressor) não diminui minha admiração por ela.
É admirável como o diretor e os roteiristas estabelecem a atmosfera de desconforto, tensão e melancolia, por meio de cenas curtas como a da leitura da fábula ou da música cantada no escuro. Também me chamou a atenção como todos os personagens são reais e não figuras mecânicas para dar suporte aos protagonistas - e seguindo a economia de meios que caracteriza esse filme de pouco mais de uma hora e e meia, às vezes essa humanidade é ilustrada por detalhes sutis, como o enfoque ao fato de a mãe dos agressores ter alguma deficiência física que a faz caminhar arrastando uma das pernas - o que basta para trazer à baila uma humanidade que se tornará mais pungente pouco adiante, quando percebe que o filho foi envenenado.
Maravilha de filme. Agora quero ver os outros do diretor.
Apreciei o final. O casal principal passa o filme tentando estabelecer uma conexão, desvendar os mistérios do outro. Agora estão unidos por um segredo, pois a arma aparecerá e ambos saberão em silêncio que conhecem a história toda e tudo que o outro fez. E que diálogo encerra a temática do medo: "ele me explicou que meu medo não é de avião. É do céu. E por isso não tem cura". Classe é isso.
Miami Vice
3.1 207 Assista Agora"- Mostrar distintivo, empunhar arma. Fazer prisão. É isso o que fazemos.
- E...?
- E a identidade forjada e a realidade vão se chocar. Você está pronto pra isso?"
Miami Vice é o produto do encontro entre o roteirista Michael Mann, que não andava em seu momento mais inspirado, e o diretor Michael Mann, que na época já estava no mais pleno domínio de todas as artimanhas que fazem o bom filme policial.
Significa dizer: em momentos pontuais Miami Vice produz alguma tensão, alguma desorientação, alguma melancolia, alguma conspiração, alguma empatia, algum ceticismo, alguma sensação de mundo cão - segue a cartilha do gênero. Tiras, burocratas, bandidos, pessoas boas e ruins perdidas no entorno do império das drogas. E dá-lhe a fotografia saturada, contrapondo a escuridão da noite à iluminação artificial das cidades; dá-lhe cores que às vezes são foscas, dando um tom documental às cenas mais movimentadas (geralmente filmadas com câmera na mão), às vezes explodindo na tela em paisagens exuberantes; dá-lhe a simplicidade, digna de quem tem muitos coelhos na cartola, na escolha dos recursos artísticos (como na cena em que um personagem é filmado apenas de costas enquanto faz uma descoberta, apenas sugerindo-se sua reação).
Infelizmente, lá pelas tantas percebemos que a trama, embora elaborada, não nos levará a lugar nenhum que outros tantos filmes, mesmo os que contavam com gente menos badalada atrás das câmeras, já nos mostraram outras tantas vezes. Os esforços estéticos de Michael Mann seriam mais bem empregados se houvesse contratado para escrever Miami Vice um roteirista bem mais talentoso: o Michael Mann de Fogo Contra Fogo.
Batman: A Máscara do Fantasma
3.7 143 Assista AgoraGosto principalmente da melancolia, dos diálogos certeiros e de como as duas linhas temporais dialogam entre si, mas a principal qualidade talvez seja a concisão do roteiro em desenvolver diversos elementos (o surgimento do Batman, a relação Bruce Wayne-Andrea Beaumont, dois vilões interessantes, revelado o surgimento de um deles e diversas outras questões secundárias) em apenas 76 minutos. Esses atributos certamente transformam A Máscara do Fantasma em uma das melhores histórias do Batman já levadas ao Cinema.
Suspíria: A Dança do Medo
3.7 1,2K Assista AgoraNão considero o original um filme intocável. Tem o seu clima de horror lírico banhado por um show de cores, porém o roteiro é terrível, impossível de ignorar. Se houver algum acréscimo nisso, já se ganha alguma coisa.
Filth: O Nome da Ambição
3.7 487 Assista AgoraPartindo da premissa (óbvia e bastante aceita) de que Filth é uma releitura de Vício Frenético na mesma linha da versão do Herzog, os dois até se estabelecem como complementares, já que o último Vicio Frenético começa muito bem e vai se diluindo até virar um filme de ação comum, ao passo que Filth começa meio sem propósito e vai ganhando corpo, proporcionando um terceiro ato notável.
Atômica
3.6 1,1K Assista AgoraQuando os diretores de John Wick tomaram caminhos diferentes na carreira (Chad Stahelski ficou encarregado da sequência e David Leitch assumiu Atômica), eu me perguntei se algum deles era o bom mesmo da dupla. Após ver os filmes seguintes de ambos, estou desconfiado de que os dois são o bom mesmo. Assim como John Wick 2, Atômica é ótimo: repagina todos os elementos do filme clássico de espionagem acrescentando ação plástica e vertiginosa, direção e montagem detalhistas e trilha sonora perfeita. Charlize Theron é a presença dominante (é admirável a dedicação dela nas cenas mais físicas), mas o elenco de apoio não deixa a desejar.
Não é uma boa época pra filmes de ação. A estética meio MTV com câmera esquizofrênica, edição incompreensível, roteiro genérico e o esquecimento premeditado de que tiros e pancadas fazem as pessoas sangrarem, mancarem e sofrerem fraturas são elementos que contribuíram para a pasteurização que tomou conta do gênero. Diretores como Leich e Stahelski dão uma espanada nessa mesmice. Vamos ver o que vem por aí desses dois.
Liga da Justiça
3.3 2,5K Assista AgoraUm troço que sempre me incomoda em filmes de herói de qualquer estúdio é que o terceiro ato geralmente é dominado por cenas de ação genéricas e tediosas, inclusive inferiores às outras cenas de ação dos mesmos filmes. Liga da Justiça, a julgar pelo trailer final, vai ser inteiro uma cena de ação genérica e tediosa. Tomara que seja algo melhor.
Deadpool
4.0 3,0K Assista AgoraFraquinho e superestimado. As poucas piadas engraçadas (como a que envolve o Liam Neeson e sua igualmente insossa franquia, Busca Implacável) ficam soterradas sob milhares de outras constrangedoras e não adianta nada ter liberdade para o gore se os tiroteios e lutas são tão formulaicos. Gostei de saber que a direção do segundo ficará a cargo do diretor do John Wick, talvez ele saiba injetar diversão na empreitada e entregar algo melhor do que essa quase bomba.
Amantes Eternos
3.8 782 Assista AgoraEspetáculo visual e sonoro a corporificar o interessante e competente roteiro do próprio Jarmusch. Curiosamente, entre as tantas referências eruditas, estertores de tédio patológico (dos personagens, não meus) e dramas existenciais não deixa de se fazer presente alguma espirituosidade sombria, o que o aproxima do estilo que tão bem marcava a obra do Tim Burton antes de ele perder a mão para o cinema de excelência.
Esquadrão Suicida
2.8 4,0K Assista AgoraMorro de rir com o esquadrão mimimi reclamando da "crítica" como se ela fosse algum tipo de entidade uniforme que resolveu malhar esse enlatado, algo tipo o Sindicato, terrivel agência de espionagem contra a qual Ethan Hunt luta em Missão Impossível, ou Spectre, a associação criminosa arqui-inimiga de James Bond.
Na continuação, o estúdio já sabe como nos proporcionar toda a descarga de adrenalina que não está sendo despertada por esse primeiro: Coringa, Arlequina, Pistoleiro e outros vilões mequetrefes serão demitidos por justa causa e darão lugar ao único esquadrão realmente mau: a "crítica".
Sicario: Terra de Ninguém
3.7 942 Assista Agora"Nada fará sentido para os seus ouvidos americanos. E você vai duvidar de tudo o que fazemos [...]"
Sicário é como se tudo o que Narcos e O Conselheiro do Crime (se bem que este último eu considero parcialmente injustiçado) têm de bom, e também o que não têm mas era de se esperar que tivessem, fossem encampados pela atmosfera de Apocalypse Now (a crescente imersão numa área onde a violência deixa de se parecer apenas com um produto da ação humana para adquirir contornos de surreal onipresença) e com o jogo de intrigas digno de um John le Carré, com todas as suas intrigas e os interesses acobertados que vão surgindo pelo caminho enquanto a protagonista percebe que não é mais possível voltar atrás na tarefa inglória que a atraiu.
Além da maestria no manejo da câmera e do todo o apuro estético que já é característica de sua filmografia, Villeneuve consegue, ainda, sucesso em criar um filme praticamente perfeito no ritmo: a tensão é permanente sem que precise lançar mão de cenas de ação a todo momento; os acontecimentos vão se desenrolando de forma a mostrar, gradativamente, o tipo de realidade com que os personagens estão lidando, e, com isso o fôlego da narrativa jamais se perde, apesar do peso que carrega. Além disso, merece consideração o fato de, ao tratar deste tema tão importante - os cartéis mexicanos, bem como os métodos transgressivos e diversas vezes monstruosos de que os agentes estadunidenses se valem para combatê-los -, o roteiro confere relevância aos habitantes do próprio México, tocando na ferida do sofrimento a que são submetidos por permanecerem reféns daquelas organizações criminosas.
A trilha é outro diferencial. Forte, dita o ritmo sem ser invasiva e tem momentos de brilhantismo, como quando vemos o personagem do del Toro se mexer durante o sono enquanto ouvimos ruídos que parecem gritos ao vento, ou quando, antes mesmo de certo tiroteio começar, já ouvimos, por baixo da música, um som assemelhado à percussão de tiros. Eis outro fator que contribui para atmosfera aterradora de Sicário.
Josh Brolin e del Toro estão brilhantes em seus papéis ambíguos.
Quanto à Emily Blunt, eu não tinha visto nada de especial em nenhuma de suas atuações anteriores a que havia assistido, mas aqui ela aparece perfeita num papel difícil, visto que a protagonista passa a maior parte do tempo perdida na trama, sendo arrastada pelos companheiros para algo que não sabe o que é. É notável, em particular, a capacidade dela de mostrar um pavor incontrolável apenas pelo olhar, enquanto o resto da expressão permanece fria e comedida. Sem dizer nada, a atriz revela o desmoronamento interior daquela mulher dura ao presenciar a barbárie provocada não apenas pelos vilões mas também pelos "heróis".
Outro filmaço do Villeneuve!
O Abutre
4.0 2,5K Assista AgoraQue estréia do Dan Gilroy. Já começa pelo eficiente e econômico roteiro, que condensa em duas horas toda a ascensão do protagonista em sua "carreira" ilustrando cada etapa de sua paulatina degeneração até atingir o limite da baixeza. Os diálogos, além de inteligentes e expressivos, carregam também um certo humor sombrio mesmo quando os personagens estão falando nas maiores atrocidades - basta ver a quantidade de cenas em que os personagens estão na sala de edição apreciando filmagens cheias de pessoas baleadas, acidentados no meio de ferragens, corpos sendo transportados em macas, e exaltam, emocionados, a "qualidade" daquele material. A intenção é a denúncia, claro, mas também é muito difícil não ver implícita ali uma certa espirituosidade corrosiva.
A direção é inventiva, cheia de belos planos, mas sempre a serviço da narrativa. Remontou-me, nisso e na temática, bastante ao cinema do Sidney Lumet, inclusive.
Quanto ao Jake Gyllenhaal, aqui como de hábito ele desaparece para que o personagem surja, numa atuação bastante detalhista (chamam a atenção, por exemplo, o olhar constantemente arregalado e a dicção articulada e ágil, porém fria, como se Lou Bloom tivesse decorado todas aquelas noções de marketing e gestão mas fosse incapaz de transmiti-las empaticamente).
Por fim, sobre o último diálogo entre ele e a personagem da Rene Russo
Causa espanto o desagrado que provocou em alguns espectadores, vide alguns comentários abaixo. A mensagem ali é clara: poder atrai, poder seduz, derruba as resistências mais férreas. Bloom comprou a Nina pelo poder e influência, pois monstros como ele não teriam nenhum sucesso se não agissem em um mundo que não os valorizasse, pessoal e profissionalmente. Além disso, há nessa cena uma sutileza interessante: eles começam a conversar após pausar o vídeo na cena em que o assistente dele está morrendo, então o Gilroy cria um plano em que ambos estão de perfil , trocando um olhar apaixonado, e o garoto ao fundo, olhos saltados, fitando-os com uma expressão de dor. Toque de gênio.
Os Suspeitos
4.1 2,7K Assista AgoraOs Suspeitos me lembrou um pouco Sobre Meninos e Lobos (outro filme que se estrutura apenas em aparência sobre uma trama policial básica, a qual na verdade é uma isca que atrai o espectador para uma verdade oculta ainda mais terrível, que exige a exumação de fatos do passado) e bastante o Zodíaco (principalmente porque, em ambos casos, os respectivos diretores não tiveram medo de enfrentar os detalhes técnicos da processualística e extrair deles seu potencial dramático, algo que requer muita habilidade quando não se está falando de um filme de tribunal, caso contrário a platéia que esperava suspense entra em coma).
Remeteu também ao Gone Girl, mas desta vez no mau sentido para este último. Incrível, é como se o filme do Fincher fosse feito para agradar os 9gaggers e o pessoal que faz memes com "personagens fodásticos" e Os Suspeitos fosse a versão para adultos.
Outro ponto de destaque é que o Vileneuve e seu roteirista não têm medo de apostar na inteligência do sujeito que resolveu gastar duas horas e meia de seu parco tempo para ver o filme deles. Trabalham com os vários elementos que fazem a complexidade de um suspense policial (questões procedurais como multiplicidade de suspeitos, pistas falsas, eventos de cronologia incerta e por ai vai, além de toda a problemática humana da coisa) sem ficar explicando toda hora o que está acontecendo. Efeito colateral disso é a quantidade de comentários abaixo dizendo que "muitos detalhes foram mal-explicados" (não foram, está tudo lá), mas faz parte. Que bom ver que certos diretores ainda sabem que a câmera é feita para mostrar fatos e às vezes isso dispensa muita exposição verbal.
Jersey Boys - Em Busca da Música
3.6 166 Assista AgoraAtraído pela temática e impressionado com a pouca repercussão, tive a felicidade de assistir a essa excelente cinebiografia. O que há salta aos olhos em Jersey Boys é que Clint Eastwood ainda tem pulso e no filme tudo funciona: 4 Seasons era uma boa e até certo ponto exótica banda, o elenco (em sua maioria desconhecido ou quase desconhecido pelo grande público) está afiadíssimo, esteticamente é um show e até aqueles recursos narrativos que podem descambar para a pura firula (ex: personagens quebrando a quarta parede) são utilizados de forma bastante segura - e nisso ajuda o fato de todos os protagonistas terem o seu momento de diálogo com o espectador, o que ajuda a consolidar a complexidade de cada uma daquelas pessoas perante nós.
Mas no final o que mais agrada mesmo é que Jersey Boys, para além de todo o apuro técnico e cuidado minucioso nos detalhes, é um filme com essência, com alma, que flui e mantém o interesse apesar de relativamente longo. Grande e subestimado produto.
P.s: e ainda começa com Christopher Walken de mafioso dialogando com Steve Schirripa (o Bobby Bacala de Sopranos). Esse Eastwood não seria melhor nem se não fosse membro do Partido Republicano.
Headhunters
3.9 355É o típico "filme de roubo", com todas aquelas peripécias, mas um tanto mais tenso e com mais colhões do que a maioria de seus pares. Num mundo ideal, quem fosse ao cinema ver um thriller despretensioso encontraria, no minimo, um exemplar como este; como, porém, o cinema norte-americano é a indústria da terra arrasada e um deserto não digo nem do bom cinema mas até do entretenimento que não dá vergonha, então é preciso ir perscrutando até à Noruega para encontrar um Headhunters.
Pecados Antigos, Longas Sombras
3.6 79 Assista AgoraPolicial puro-sangue, La Isla Mínima (apenas o amor à fidelidade me faz rejeitar o titulo em português, que é belíssimo e condizente com a proposta) realmente reverbera True Detective, não parasitariamente mas de maneira bastante referencial (da mesma forma como a brilhante série do Pizzolatto faz questão de espalhar ao longo da narrativa pistas de que não surgiu do nada) e afirma-se como um competente exercicio de estilo, que prende a atenção e impressiona pela magnifica utilização dos aspectos visuais a serviço da trama. Não reinventa a roda, o roteiro policial é aquele mesmo da década de 40, mas dá uma revitalizada no castigado gênero. E a dupla principal é ótima, ambos fizeram jus à complexidade e nuances dos respectivos personagens.
Capitão América 2: O Soldado Invernal
4.0 2,6K Assista AgoraJá havia me surpreendido com a eficiência do primeiro, que soube contornar com habilidade a tosquice inerente ao Capitão América (um dos personagens mais cafonas e ufanistas que a Marvel criou), mas esse vai ainda mais longe. Sua maior virtude é ser um filme de herói ligeiramente menos esquemático do que a média (ao contrário, por exemplo, daquele lixo que é o reboot do homem-aranha) e, melhor ainda, não encher o saco a todo momento com piadas bazingueiras imbecis (como o igualmente péssimo Vingadores).. Em vez disso, introduz o conceito "filme de super-herói" num trama de espionagem mais do que decente, que apenas cede lugar no terceiro ato, nesse tipo de filme costumeiramente dedicado a acordar aquela parcela do público que estava dormindo até então. E, falando em cenas de ação, as que antecedem essa do final são espetaculares, muito bem filmadas.
Enfim, bom filme, outra prova de que as limitações criativas que geralmente acompanham os blockbusters não são desculpa para a palermice completa e que é possivel fazer um mais do mesmo com qualidade.
Entre Abelhas
3.4 832Belo filme. Surpreendeu-me, pois eu esperava uma comédia com pinceladas dramáticas e vi um dramédia bem equilibrado e que sabe não ser ridículo quando fala sério (e saber quando falar sério já é muita coisa). E como manda bem a Irene Ravache & cia do elenco de apoio.
Sobre o pessoal que achou desnecessário o personagem do Marcos Veras, só digo uma coisa: cês gostam é de novela das seis, rapazeada. Entre Abelhas não é uma comédia debilóide do Leandro Hassum e sim se propõe a oferecer um retrato minimo da realidade, para inserir nessa realidade um elemento absurdo - as pessoas sumindo - e explorar o contraste. No mundo real os Davis estão por ai aos montes e filme nenhum tem a obrigação de fingir o contrário para não ferir a sensibilidade de vocês, os quais, se não enxergam a diferença entre a existência autônoma de um personagem e as opiniões de quem o cria, é porque estão num estado clínico pior do que o do personagem do Porchat.
Viagem Maldita
3.3 763Sempre via esse filme anos atrás, nunca mais assisti e cheguei a esquecer de sua existência até hoje, quando me ocorreu uma coisa (e quem é capaz de controlar o vertiginoso caos do pensamento....), uma leitura que eu não podia fazer naquela época, pois só o que eu pensava estar assistindo era mesmo a um filme de terror, mas que hoje me cismou. Não havia reparado até então em como o filme tem um viés político-ideológico acentuado.
É escancarada a alfinetada que se dá na história bélica norte-americana, basta ver que a projeção já abre sugerindo que os "malditos" são deformidades genéticas provocadas por armas quimicas, e a cena em que um deles é morto com uma bandeira norte-americana apenas esclarece isso pro mais tapado dos espectadores. Acontece que isso não são cenas pontuais e sim explicitações de todo o ideário do filme, basta ver quem morre e quem vive:
Morre o "Big Carter", republicano estereotipado, aquele chavão em forma de gente tão comum na sociedade que certamente votou no Reagan, nos dois Bushs e, brasileiro fosse, votaria num Bolsonaro.
Morre a mulher dele, a dona de casa igualmente tipica de um lar conservador, completamente devotada à familia.
Morre a filha mais velha do casal, uma recém-parida a caminho de ficar igual à mãe, com a qual já se parece mais do que com os irmãos, por exemplo.
Já os sobreviventes, todos eles fazem um perfil "novo progressista", encarnações da juventude contrariada com os antepassados quadrados, o Doug insinuado como um liberal que, nas palavras do sogro "é contra as armas". Aliás, quando a ação começa, ele próprio se transforma numa máquina assassina, algo que o filme ilustra muito claramente como uma subversão de sua natureza originária.
(Além disso, vá lá, não falta nem uma cena em que toca Califórnia Dreaming para que a referência aos hábitos e costumes daquele povo fiquem mais óbvios, rs).
Enfim, certamente é uma forma inusitada de enxergar a idéia desse filme, mas não creio que seja um completo disparate. Fiquei com vontade de reassisti-lo pra ver se é por ai mesmo.
O Substituto
4.4 1,7K Assista AgoraDetachment é um ato de resistência contra a morte do cinema, da arte, uma rara demonstração de que a ficção cinematográfica atual ainda tem algo a dizer. Pleno de sentido, profundíssimo, cheio de referências absolutamente condizentes com o conteúdo da cena - não funcionam como tentativas de embalar o clássico numa roupagem pop para entregá-las a quem, tomando conhecimento de frases célebres de autores famosos, jogam-nas entre aspas e metem-nas sem contexto nenhum em suas redes sociais; aqui há camadas, cada citação é uma camada menor dentro de uma camada maior de significados e mensagens.
Decupagem arrasadora, trilha sonora magistralmente utilizada, atuações poderosas, mesmo dos intérpretes dos papéis menores - e os atores famosos em participações discretas não são meros adornos para atrair atenção, pois todos brilham com o tempo de que dispõem em cena.
Respeita a inteligência do espectador, não entrega mastigadas todas as informação de que ele necessita para compreender o filme. É sutil, sabe quando verbalizar claramente e quando apenas sugerir. Não desconhece que um fotograma, uma imagem, um ângulo podem dizer mais do que linhas e linhas de texto escrito, o que provoca o efeito de oferecer diálogos brilhantes quando os personagens falam. Desprovido de cenas inúteis. Forte, não se esquiva dos temas difíceis mas dispensa a pretensão de oferecer respostas esquemáticas para os problemas que aborda. Vai da crítica sociológica ao sistema para a sondagem psicológica dos personagens e vice-versa de forma integrada e quase imperceptível, compreendendo sempre as nuances de cada pessoa em cena.
É um requiem a dream das mazelas interiores da juventude, sem soar sensacionalista ou gratuito e sádico mesmo quando pega pesado; entende que há formas e formas de pegar pesado mas mantém o respeito aos seus personagens enquanto seres humanos.
Sensivel em sua frieza, obra-prima.
O Rei de Nova York
3.7 87Peritamente fotografado, direção perfeita e história simples apenas na aparência, visto que aborda multilateralmente os conflitos que propõe, sobretudo quando discute se o justo é seguir as regras ou se às vezes é preciso violá-las para conseguir um bem maior (e, sobretudo, até que ponto uma pessoa pode ir para fazer o que considera justo, conflito que fica muito nítido principalmente nos personagens do Christopher Walken e do David Caruso). Gosto também da construção dos coadjuvantes, os quais nunca são meros suportes para os protagonistas, já que contam todos com uma certa elaboração e profundidade. Perfeitamente cabível aqui a afirmação recorrente de que o Abel Ferrara é um Scorsese mais marginal.
Mas uma coisa não pode deixar de ser observada
Fosse outro o final, uma continuação não seria apenas possível mas também necessária. O caráter solidário e benemerente do protagonista, com crescente prestígio social por conta disso, em contraposição aos crimes que comete e o legítimo desejo dos policiais, por sua vez honestos, em capturá-lo (que foi tão bem ilustrada) representam uma dualidade interessantíssima e que poderia ser levada a outro nível num segundo filme, pena que isso foi praticamente inviabilizado pelo desfecho (que talvez tenha até banalizado um pouco o resultado final), além de ter feito perder-se, quem sabe, uma franquia interessante.
Babel
3.9 996 Assista AgoraTrilogias têm um problema: a necessidade de renovar o vigor demonstrado no primeiro filme obriga os roteiristas a criarem situações cada vez mais amplas e ambiciosas para mostrar ao espectador que há ali uma evolução, que cada filme é uma versão mais elaborada do anterior. Geralmente quando se chega ao terceiro esse modus operandi provoca dois efeitos colaterais igualmente deletérios mas que se manifestam em direções inversas: a idéia original se mostra cada vez mais desgastada pela repetição e as tentativas de renová-la simplesmente degeneram em banalização.
Mas esse não é o caso dessa trilogia (assim chamada por aproximação, na verdade, pois não é uma trilogia no sentido clássico da palavra) concebida pelo roteirista Guillermo Arriaga (também excelente ficcionista na literatura) e pelo diretor Alejandro González Iñárritu. A despeito de todos os filmes que a compõem tenham semelhanças em suas estruturas narrativas (destinos de pessoas muito díspares que se entrecruzam em razão de um evento calamitoso), cada um deles guarda uma saudável autonomia em relação aos outros, de modo a construírem todos sua própria identidade. Gosto mais do Amores Perros, mas admito que nesse pódio as posições são permutáveis e qualquer deles pode ocupar o topo na hierarquia das qualidade conforme o enfoque com que se os veja.
Babel, mais do que Amores Perros e 21 Gramas, tem seus problemas. Buscou-se ampliar a nível global a idéia de constante interação, de interconexão profunda e imprevisível que já era o centro dos outros dois, mas o objetivo não foi plenamente realizado. O núcleo passado no Japão, embora isoladamente considerado seja relevante, não se acopla organicamente aos demais. Ainda assim, trata-se de um ótimo filme, bem roteirizado, dirigido e editado, contando ainda com a qualidade uniforme do elenco.
(E foi durante a produção de Babel que surgiu a desavença entre o Guillermo Arriaga e o Alejandro Iñárritu; o primeiro queria co-autoria no filme e o segundo não permitiu. Seguiu-se o consequente rompimento na parceria e provavelmente não voltarão a trabalhar juntos. Uma pena.)
O Escritor Fantasma
3.6 582 Assista AgoraRoteiro notável executado com precisão. Roman Polanski é um dos poucos (ou dos não tantos) diretores da velha guarda que mantêm o talento em forma.
Kill Bill: Volume 1
4.2 2,3K Assista AgoraMelhor do que este filme de vingança que faz referência ao cinema asiático é qualquer um dentre os melhores filmes asiáticos de vingança. Aliás, Kill Bill também faz referência a outros nichos cinematográficos que o ultrapassam largamente em matéria de qualidade. Vale por conter as características habituais do cinema tarantinesco (sobretudo sua peculiar direção e diálogos), mas no fundo é uma bobagem bem-produzida que para mim não alcança sequer um TOP 3 do diretor (uma quarta posição, talvez, não sei se gosto menos dele ou do Django).