Tudo em “Drive” é muito interessante, das lacunas inquietantes propostas pelo roteiro, por sua trilha sonora repleta de sintetizadores com mensagens descritivas das personagens, o estilo neo-noir (neon) adotada pela fotografia e pelos enquadramentos impecáveis que remetem ao estilo Tarantino.
“Drive” é um roteirizado adaptado por Hossein Amini, inspirado nos livros da série “Diver” do escritor americano James Sallis, tendo sido dirigido em 2011 pelo dinamarquês Nicolas Winding Refn. Uma curiosidade é que Ryan Gosling, protagonista do filme, indicou o diretor para os estúdios da FilmDistrict.
Em “Driver” Ryan Gosling vive o protagonista sem nome, que não é citado ou nomeado em momento algum do filme, isso já pontua a característica misteriosa da personagem, que possui hábitos noturnos e faz às vezes figura de vigilante das ruas da cidade de Los Angeles, que ele conhece muito bem, tão bem, que o filme inicia com Ryan deixando claro sua habilidade de conhecedor das ruas e de motorista, e que ele se resume naquele momento a isso, o serviço para qual ele está sendo contratado ou que virá depois desse serviço não lhe interessa. Todo esse discurso inicial do protagonista é capturado em cortes assimétricos de uma janela, com um jogo de sombra e luz característicos do filme noir e que colaboram para a construção de um prólogo que apresenta uma situação, não explica nada, o que o público pode contar é com aquele momento e aquela situação que ambienta e apresenta em uma pequena dose, uma das faces do protagonista. E essa será uma constante em todo o filme, não há explicações, há o recorte de um determinado momento na vida do personagem principal e que acompanharemos até o que podemos entender como desfecho, onde nesse ciclo, da mesma forma que esse homem se apresenta e se encerra enigmaticamente.
Destaca-se no prólogo uma concisa apresentação da proposta fílmica, sendo muito clara que pretende ser e a forma que utilizará para isso. Um trabalho magnífico de roteiro e direção que somado com a fotografia, edição, arte e trilha sonora promovem um trabalho excepcional e merecidamente figurando como no top 10 dos melhores filmes realizados em 2011, rendendo a Winding Refn o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes. Ainda sobre o prólogo, destaca-se entre outros, o recurso de unir a fuga dos assaltantes contra a polícia, onde no carro Ryan ouve a narração de um jogo de basquete, que servirá como narração da própria fuga e de auxiliador para os ladrões se dispersarem, no carro onde ocorre a fuga de dois bandidos sendo guiado por Ryan, temos uma câmera que registra todos os momentos de dentro do carro e que revela o motorista através do retrovisor e do reflexo no painel frontal do carro. Após a bem sucedida fuga, temos um letreiro estilizado com uma cor pink neon que intitula o filme e tendo como fundo musical a sugestiva “Night Call” (Kavinsky & Lovefoxxx), reparem que da escolha musical a inserção ao título, aos recortes e a fotografia neon, tudo é muito bem pensado e estruturado, colaborando ainda mais para preparar o terreno de “Drive” que não significa apenas dirigir, quer dizer também impulso, motivação, sendo essa última a característica primária da personagem de Ryan Gosling, ele é um herói que ronda a cidade em busca de motivação, de algo que impulsione sua vida e o faça ser um herói de verdade.
Ryan se vale da sua habilidade no volante para exercer as mais diferentes funções, ele é mecânico, piloto de Stock Car, dublê de motorista em filmes, vigilante noturno e entre outras, motorista de fuga em assaltos. Tendo Shannon (Bryan Cranston), como empresário, agenciador e a figura mais próximo de um amigo. Uma característica na apresentação das personagens, é que raramente elas se apresentam de uma forma convencional, sempre surgem de encontros casuais ou na medida que são necessárias para um serviço, por exemplo, o próprio Shannon aparece a primeira vez como alguém que aluga um carro para Ryan, já Irene (Carey Mulligan), por quem Ryan depois irá se apaixonar, aparece despretensiosamente em um encontro casual de elevador. Detalhe para o elevador, que dá mesma forma que apresenta e é ponto de encontro das personagens, será futuramente de separação e desfecho, em uma belíssima cena, capaz de inserir no mesmo ambiente romance e violência, utilizando luz, trilha e atuações perfeitas.
Irene é a responsável para conhecermos outras vertentes e facetas de Ryan, através da relação traçada e que assistimos ser desenvolvida ao longo do filme por Ryan, “Irene” e o seu filho “Benicio” (Kaden Leos), que podemos ter a dimensão humana desse herói, e é através dessa relação com a interseção do namorado de Irene que estava preso, que surge uma motivação para o herói presente em Ryan se apresentar, e isso é explicitado no filme em vários diálogos, principalmente quando Shannon diz a Ryan, que ele é o único homem que tenta salvar o marido da mulher por quem se está apaixonado.
Os diálogos em “Drive” são construídos por uma originalidade e pontualidade raríssima. Tanto que é um filme de poucas falas e vários momentos de silêncio que dizem muito, principalmente pelo jogo realizado pelos atores, onde a interpretação de um subtexto é muito mais importante e evocativa do que qualquer outra fala. Dentre as atuações Bryan Cranston - como Shannon - se destaca. A versatilidade desse ator, famoso por interpretar Walter White na série Breaking Bad, mostra mais uma vez sua capacidade em criar personagens diferenciados e com uma precisa atenção para os detalhes e sutilezas de um sorriso ou do desconforto de um mancar. O resto do elenco promove um trabalho preciso, mas Ryan Gosling como motorista, deixa em vários momentos uma inexatidão de propostas, são vários planos mostrando o ator com uma fisionomia neutra, que não expressa nada, nem tão pouco evocam qualquer diálogo ou colaboram para uma narrativa, sua inexpressividade transforma-se em momentos vazios e que geram certo incômodo diante de uma quebra na atuação que não diz nada.
“Drive” é um filme sombrio, com tomadas noturnas e que alterna com tomadas internas claras com um abuso de tons laranjas e amarelo, seus silêncios prolongados tomados por uma transmissão de sugestão dos atores/personagens que alternam o que se diz com o quê se quer dizer, uma história que apresenta um enredo inicialmente com viés romântico e se transforma em uma violência bruta, com cenas fortes e suas tomadas e planos que lembra muito os filmes de Tarantino, principalmente pelo uso plongée e contra plongée, a utilização de uma simbologia sugestiva, como a figura de um escorpião aliado ao personagem de Ryan e a conversa com a criança Benicio, onde um vilão é visto pela ótica de um desenho infantil, em que para ser do mal é uma condição inerente ao ser, em suma, nas dualidades que “Drive” se constrói temos um filme coerente, que se vale muito pela omissão de respostas e que fazem desse filme uma verdadeira obra.
O melhor da proposta apresentada por Guy Ritchie, está na total despretensão e despreocupação com os amantes ou idólatras dos contos clássicos ligados ao universo medieval do Rei Arthur, é evidente seu desejo de apresentar uma estória que dialogue com os tempos atuais, principalmente em criar um blockbuster que atenda aos desejos de um público jovem, despertando nesse mesmo público, o interesse em acompanhar uma nova franquia de filmes. Guy entrelaça ambiciosamente aos interesses de uma grande produção de estúdio, uma qualidade visual e de narrativa características ao estilo do diretor. Em resumo, um filme com pretensões artísticas e comerciais, e que consegue falhar em ambos aspectos, o que talvez tenha gerado tantas críticas negativas, mas que fazem de “King Arthur” um curioso caso a ser observado e que já vale dar aquela conferida no filme. Destaque para a "hip-hop montage" que retrata o avanço da infância até a fase adulta do Rei Arthur, um trabalho primoroso e característico da montagem acelerada de Guy Ritchie.
Guy Ritchie é um cineasta inglês que despertou a atenção de muitos em 1998, com o lançamento do seu segundo filme: “Lock, Stock and Two Smoking Barrels”. Evidencia-se neste trabalho, marcas que se tornaram singulares ao estilo de Guy, e que consequentemente estão presentes em “King Arthur: Legend of the Sword”, tal como uma edição de imagens abruptas, com cortes secos, rápidos o uso frenético das imagens e que se expressam pela utilização de uma câmera muito pontual cujos planos são regidos em grande parte pela edição e contando com uma movimentação de câmera e de planos na medida que as personagens avançam, isso é, uma perspectiva de acompanhamento, o seguir de um ponto ao outro. Uma linguagem arrojada, muito proximal ao dos videoclipes e dos videogames, que por vez gera uma dualidade contraditória em “King Arthur”, pois, ao mesmo tempo, que é interessante e diferenciado ter uma história medieval, que já contada e recontada tantas vezes e de modos tão próximos, aqui, no filme de Guy, ela é mais remodelada.
Para remodelar essa história, o diretor renuncia a qualquer preciosismo literário ou de caráter intocável diante uma história secular, ao contrário disso, ele a moderniza e expressa isso em vários âmbitos, no figurino, por exemplo, utiliza o recurso da moda atemporal, trazendo traços de modernização às vestimentas, gerando leveza e mobilidade para auxiliar nas cenas de ação, nosso Rei Arthur agora é um homem que exibe os traços de seu corpo, utilizando camisas que exibem o seu peitoral sarado. A trilha sonora é um show à parte, assinada por Daniel Pemberton e contando com músicas que vão de "Babe I'm Gonna Leave You", do Led Zeppelin, misturando estilos clássicos musicais da cultura nórdica, do trovadorismo, da música polifônica com seus órganon’s e com composições próprias e uma trilha incidental repleta de sons graves, de referências ao heavy metal que lembra algo de “Mad Max” e principalmente pela inserção de um som, que no filme se misturam ao bramido de elefantes e seu efeito de trompas e ao “BRAAAM”, criado por Mike Zarin para o filme “Inception” e que se tornou febre e recurso praticamente obrigatório para os filmes de ação, suspense e de traços épicos.
Claro que essa modernidade expressa em todas os setores que englobam um filme, se tornam ainda mais marcantes na direção e na fotografia, justamente em ambos setores onde o filme mais desliza e comete seus erros. Na busca de modernizar “Arthur”, Guy remodela essa história clássica ao estilo de games, mas esquece o apelo crucial dos jogos, onde o público é ao mesmo tempo, espectador mais jogador ativo do game, já no filme, somos com toda a carga que isso exerce, espectadores, por isso, em cenas como da fuga do Rei Arthur e de seus companheiros, na qual Ritchie insere uma câmera subjetiva e aos moldes daquelas mini-câmeras esportivas e acopladas na lateral (ombro), dos atores, captando uma imagem de fuga comum aos consoles e que também deram fama ao filme “The Hurt Locker”, 2008, porém, ao se apresentar nesse único momento do filme, explicitam o caráter de uso artificial e de excesso em “King Arthur”, ambos gerando momentos constrangedores como na sequência final, onde “Arthur” (Charlie Hunnam) luta contra o exército de seu tio “Vortigern” (Jude Law), ao invés de uma coreografia ou qualquer outra possibilidade de luta real, temos uma inserção barata de gráficos 2D muito mal realizadas e que geram vergonha, já que este é o grande momento de embate e o ápice que o roteiro incansavelmente aponta, principalmente pelas cenas de lutas nunca se realizarem efetivamente.
O filme já inicia com um prólogo interessante que une uma breve explicação de fatos importantes e necessários para o conhecimento e posterior entendimento do público, e também introduz alguns personagens, os mais conhecidos da mitologia Arturiana (Merlin, a Senhora do Lago e Mordred), que durante o filme são citados e reaparecem em piscadelas, no claro interesse da franquia do filme, já que ele originalmente a ideia é de contarmos com seis produções. Enfim, nesse prólogo onde é traçada a grande batalha de Uther Pendragon (Eric Bana), o pai de Arthur e o rei da Grã-Bretanha contra Mordred (Rob Knighton), o traidor do Rei e do povo, neste embate toda uma Mise-en-scène de grande confronto é estabelecida como ápice inicial, o problema é que ela não acontece, na boa vontade do público pode ser encarada como uma forma de sinalizar a grandiosidade do Rei Uther, que prefere se entregar ao confronto, poupando seu exército e povo, mas, essas interrupções de batalha ocorrem em todos os momentos do filme, elas são estrategicamente apresentadas, mas nunca encenadas por uma questão de direção, que sempre fica em uma negação, seja pela não realização física em detrimento de uma realização gráfica ou por outras questões que inviabilizariam esse momento, embora seja estranhas diante a dimensão orçamentária e das indicações do roteiro.
A computação gráfica é outro aspecto interessante em “King”, assumindo muitas vezes a direção do filme, pois, nas grandes cenas de luta ou combate, cenas importantes e esperadas com expectativas pelos fãs desse gênero, já que são elas características marcantes de filmes épicos e da ação, pois bem, elas são entregues a computação gráfica, que em grande parte é realizada de forma magistral, mas que questiona os limites e a capacidade de Guy como diretor, até na característica mais marcante de Guy, do virtuosismo técnico, são assumidos agora pelo recurso gráfico e explorados em demasia de tempo e de recurso narrativo que só geram confusão, cansaço e novamente a superficialidade marcantemente empregada ao filme, resultado até nas atuações regidas por construções estereotipadas. Jude Law como Vortigern, beira ao infantil de um vilão que não consegue ser justificado, sua ambição, suas motivações e vilanias são mais fracas, comparadas a um vilão de desenho, pois, tudo que Vortigern faz é sobre uma ação pontuada apenas pelo fazer, algo que tão pouco Charlie Hunnam consegue com o seu Rei Arthur, o carisma do ator é notório e seu esforço é visível, porém, inútil diante a superficialidade de um personagem e de uma estória que acaba por ser mais fantasia.
“King Arthur: Legend of the Sword” ao tentar ser moderno se perde em sua própria virtude fragmentada, gerando um filme fantasioso e sem traços de querer ser história, mesmo tendo como base uma (por sinal riquíssima), e acaba gerando um produto sem foco, mas que atira para todos os lados e colocando em dúvida o explícito desejo de seu fim, estimular o público a acompanhar as próximas histórias que virão dessa franquia, já que a incapacidade de se ater a ideia original, de contar a lenda da espada do Rei Arthur, que acaba sendo logo retratada, dando espaço para um roteiro que enrola diante uma missão encerrada que não precisa e nem quer contar mais nada.
"A verdade completa não está em um sonho, mas em vários”. Com essa citação que Pasolini, um dos mais idiossincráticos de todos os cineastas, inicia “Il Fiore delle mille e una notte”. A estranheza e a dificuldade de seu trabalhos decorrentes de seu compromisso com a contradição: A base desse compromisso foi a recusa de abandonar as influências diversas e parcialmente irreconciliáveis que determinaram a natureza de sua arte: o catolicismo, o marxismo, a homossexualidade, as favelas urbanas (cenários de seus primeiros romances), o campesinato, o neo-realismo, um apego ao fantástico e milagroso.
Enquanto “Il Fiore delle mille e una notte” parece estar tão distante das propostas do neo-realismo (na tentativa de capturar as realidades externas e internas do momento contemporâneo), o diretor ainda assim, consegue permanecer, incrivelmente, fiel à estética neo realista: O uso de atores não profissionais, cenas filmadas em locais externos e reais (sem a interferência de cenários artificiais ou construídos especificamente para o filme), e a espontaneidade do jogo.
Escrito (com a colaboração de Dacia Maraini) e dirigido por Pier Paolo Pasolini “Il Fiore delle mille e una notte” (1974), é o terceiro e último capítulo da " Trilogia da Vida " depois de “l Decameron” (1971) e “I racconti di Canterbury” (1972). Chama atenção a grandiosidade do trabalho de externas, tendo cenas rodadas no: Iêmen , Etiópia , Irã , Índia e Nepal, e tendo um pré-projeto muito mais complexa durante a elaboração do roteiro, sofrendo grandes modificações durante a fase de montagem. O filme foi premiado em 1974, no Festival de Cannes, tendo alcançado o Grande Prêmio.
“Il Fiore...” é baseado principalmente em uma história que atua interligada a outras, isto é, são mini-histórias ou episódios, que no final se interligam em uma grande fábula de um mundo onírico, sendo o protagonista desta história, o jovem casal de amantes, “Nur-ed-Din” (Franco Merli), jovem alegre e com ar de bobo e “Zumurrud” (Ines Pellegrini), uma escrava encantadora e muito esperta. Deste casal que marca a história inicial e principal como um fio unificador, Pasolini conta, seis outras histórias (organizadas em dois grupos de três), dentro de uma estrutura de cinco partes.
Cada trio de histórias tem seus próprios temas internos. Os três primeiros (anedotas breves), estão preocupados com a sexualidade e a igualdade, sendo o terceiro (mais desenvolvido) que acaba em um empate e na demonstração de que o desejo feminino e o desejo masculino são igualmente potentes. As histórias do segundo trio estão todas preocupadas com as noções do Destino: duas histórias em que o destino se mostra inescapável estando incluídas em uma trajetória em que o destino é superado. Além disso, a história de Aziz, Aziza e Badur está em contradição com a história do quadro de Nureddin e Zumurrud. Eles são ligados pela contradição de que "a fidelidade é linda, mas não mais do que infidelidade". No conto de Aziz, o conflito leva à morte e à castração, mas na história principal, a fidelidade e a infidelidade são reconciliadas: Nureddin, em busca de sua amada, pode ser levado a inúmeras diversões sexuais deliciosas, mas sua fidelidade a Zumurrud é sempre triunfante sobre eles, e finalmente recompensados em um final feliz que joga (a fim de repudiar) as relações de poder sexual.
O reconhecimento e a celebração da diversidade são um aspecto de um dos movimentos centrais do trabalho de Pasolini: o esforço para redescobrir um senso do maravilhoso, o mágico. De todos os filmes de Pasolini, “Il Fiore delle mille e una notte” se destaca por perceber o senso comum das relações sexuais, do seu prazer e divertimento, e promove isso, através de um erotismo purgado de toda a contaminação da pornografia. As relações que se estabelecem com favores sexuais ou no fim concretizado pelo sexo, muito mais do que gratuitas ou vulgares, se apresentam como algo humano e comum a todos, sem julgamento de valores, mas pelo prazer da auto-satisfação.
O roteiro ainda que construído sobre uma estrutura muito rígida e dividido em três atos, e cada um dos quais, no que lhe diz respeito, divididos em quatro partes, com a forte presença da estrutura como um elemento de ligação e de homogeneização entre as histórias escolhidas por Pasolini e baseadas nos contos “As mil e uma noites nas arábias”, em suma, o mesmo material narrativa é, em vez disso, apresentado na película numa forma rapsódica e contínua. Porém, podemos observar em vários momentos a marcante presença do autor (roteiro) e diretor, transmutado em discursos e defesas redundantes a Pasolini, no tocante ao posicionamento político, sua homossexualidade e afirmação óbvia da fé e da heresia.
O trabalho de movimentação de câmera é muito curioso, já que Pasolini optou pelo uso de câmera na mão (mais uma clara referência ao neo-realismo), o que gera uma movimentação intensa, quase documental e que associada a bela fotografia de Giuseppe Ruzzolini, resulta em um trabalho grandioso e que sabe tirar vantagem das inúmeras e belas locações, tendo registrado países que ao longo da história se fecharam por conflitos e guerras. Ruzzolini realiza também uma fotografia viva e que não diferencia o que é realidade de um sonho, algo que podemos compreender como uma posição assumida em não definir, dando liberdade ao espectador de entender tudo como um grande sonho ou conto, e de fazer suas próprias separações. Destaque também para o trabalho da Rank Film Labs, com efeitos especiais simples e praticamente artesanais e que dialogam com a ideia de um conto, de uma narrativa de fábula, ainda quê permeadas de crítica e senso político.
Pasolini expressa através do cinema: beleza, amor, verdade e justiça. Pasolini é essencial pelo seu caráter provocativo, jocoso e sem pudores em ir ao fundo de temas controversos e que a sociedade busca escamotear, tão pouco ainda, acompanhar em um filme. “Il Fiore delle mille e una notte” é um deslumbre de imagens que aludem ao sonho de um mundo imperfeito, mas essencialmente humano e por isso passível de erros que se assumem na tentativa de acertos.
Fellini consegue reunir em "La Doce Vita" um feito impecável. Sugere paralelamente e através da fábula, uma trajetória do jornalista Marcello Rubini que une e constrói a estória ao mesmo tempo, não apresenta e nem pretende ser uma narrativa concisa. Um filme estruturado na perspectiva de um cronista da vida, com reflexões, críticas e comentários elaborados através de uma linguagem poética, onde Fellini sabiamente utiliza do simbolismo, e apresenta claras referências ao expressionismo alemão e o cinema “noir”.
Nos créditos que iniciam essa obra realizada em 1960, já merece atenção o grupo responsável pelo roteiro, além do próprio Federico Fellini que dirigiu e co-roteirizou “La Dolce Vita”, figuram nomes expressivos na construção e expressividade da cinematografia italiana, tais como: Ennio Flaiano, Tullio Pinelli, Brunello Rondi e Pier Paolo Pasolini. Contado com um grupo tão diversificado de roteiristas que também eram pensadores, críticos, diretores, filósofos, professores e jornalistas, fica mais perceptível a opção de dividir o filme em prólogo, sete episódios com subdivisões e um epílogo. Ainda assim, contamos com um todo, isso é, todas as divisões e subdivisões se consolidam em um todo homogêneo e ainda que separadas conscientes e necessárias para a construção dessa crítica social, repleta de metáforas e simbologias para um futuro local (Roma), mas que é microcosmos de uma situação global, de um esvaziamento de nossas vidas, onde agimos mais como marionetes moldadas pelas influências de grande potências, em especial a norte-americana, e por instituições (religião, sociedade, política, família, educação…) que, ao mesmo tempo, sugam a doçura original da vida e ditam uma forma artificialmente adocicada, que deixam um sabor amargo no modo de viver.
Ao acompanharmos durante sete dias e noites a trajetória de Marcello Rubini (interpretado pelo excelente Marcello Mastroianni), um jornalista do mundo das celebridades que vive em Roma e que auto-questiona o seu ofício e sua vida, principalmente por não ter a sensação de felicidade, nem tão pouco de realização, quem ambos (vida e profissão), projetavam ou prometiam. Assim temos um protagonista que é movido basicamente pelo vazio e a busca em preenchê-lo, além disso, sua busca é atravessada pelo contato com diversas pessoas, que basicamente só expressam a mesma sensação de Marcello, e quando temos uma figura aparentemente de vida preenchida, logo, podemos visualizar a fachada dessa aparência, como na vida do milionário, pai e intelectual Steiner (Alain Cuny), uma figura à primeira vista invejável, mas que intimamente vive sob o desespero e angústias de não conseguir destacar-se, produzir e manter-se na posição e no nível que desperta tanta admiração.
Entre a cena inicial da película, um helicóptero que transporta a imagem de Cristo, sobrevoando a cidade de Roma até o seu destino que é o Vaticano, e que durante o trajeto temos Marcello tentando se comunicar e conquistar algumas moças que estavam tomando sol na cobertura de uma residência. A tentativa de comunicação é metaforicamente debilitada, não só pelo barulho do helicóptero, porém, por diversas condições e situações que refletem na incomunicabilidade da vida moderna. E esse caráter de não-comunicação, é algo presente e consequentemente característico à “La Dolce Vita”. Posso citar um outro exemplo marcante desse aspecto, a relação entre Marcello e milionária Maddalena (Anouk Aimée), com todas as diferenças de classe social e de estilos de vida, essas duas figuras se complementam no vazio e na busca de entender e preencher essas lacunas, porém, ao mesmo tempo, que se assemelham pelo traço da sensação de vazio, se individualizam de tal forma, que não se ouvem, não são capazes de perceberem as semelhanças de necessidades, e acabam tendo um para o outro, como objeto temporário para divertimento e utilização pontual.
A escolha de Fellini em realizar essa produção utilizando da imagem em preto e branco, de uma vida que inversamente ao que propaga o título é limitada em dois tons, e que entre tantos objetivos, tal como de criticar a forma arquetípica da influência norte americana (em especial dos filmes estadunidenses), em suma, colaboram (mérito pelo trabalho realizado por Otello Martellina), na metáfora e narrativa da estória. Utilizando uma fotografia de grossos contrastes entre luz e sombra, propiciando o jogo de uma vida entre aparências, principalmente em ambientes internos, versus o solar da vida externa que apresenta as durezas e a massa urbana, e que volta a se camuflar na noite sombria que é iluminada pela artificialidade de luzes, de bares e casas de festas que refletem néons e pelo flash insaciável das câmeras fotográficas ao registrar os vários momentos de figuras famosas, de celebridades, que entre tantos momentos captam até a ociosidade e a banalidade comum a qualquer ser, e ainda assim, alvo de interesse e curiosidade de pessoas não famosas, principalmente pelo desejo ludibriador de um estilo de vida invejável ou como objetivo, diante a insignificância da vida comum.
Esse tom ludibriador é muito bem representado nas diversas atuações, como também no trabalho de direção de arte e de figurino, que possuem em comum a dimensão da artificialidade escancarada e que tenta velar a realidade, como em grandes casarões e até castelos com belas fachadas, mas que por dentro são verdadeiras ruínas, tal como, a própria identidade de seus proprietários, que se escondem em maquiagens, luzes e figurinos de beleza externa e frágil diante a interioridade decadente dessas pessoas, essa diferença de exterior e interior foi motor estimulante para a criação de Fellini, já que o vestido utilizado pelas senhoras daquela época, cuja moda era de vestidos no estilo bolsa ou "vestido saco", despertou a curiosidade do diretor por sua moldura que pode apresentar e aparentar o corpo, e uma mulher muito linda, mas também pode esconder um ser esquelético de miséria e solidão. Algo que podemos identificar como comum a todos os personagens, sempre presos a uma bela fachada, tendo como destaque a personagem de Marcello Rubini, em mais um trabalho majestoso de Marcello Mastroianni, que consegue estabelecer muito bem as sutilezas e a curva dramática da personagem, bem como o traço nítido de oscilações gráficas de uma vida que oscila em momentos de picos de uma origem duvidosa tanto de felicidade quanto de angústia e tristeza.
Curiosamente a figura dos fotógrafos de celebridades, que posteriormente e por causa desse filme, passaram a ser chamados mundialmente de “paparazzi”, devido à personagem "Paparazzo", interpretado por Walter Santesso, enfim, esse grupo de fotógrafos do filme, parecem mais ocupar uma posição de parasita da vida alheia, não há reflexões sobre o seu trabalho, tão pouco sobre suas atitudes, só se revelam no sedento desejo de invadir a privacidade alheia e obter a melhor foto, o melhor momento que desperte a curiosidade do público que consumirá os jornais impressos ou televisivos, algo que como público de “La Doce Vita”, estamos em parte, iguais, já que somos colocados em um ponto de vista que tenta se aprofundar na curiosidade daquelas vidas, e pelo recorte em maior parte realizado por Fellini, já que neste filme, sua abordagem é dimensionada em vidas de uma classe em posição e condição muito mais favorável, comparado com a vida comum, até mesmo o fotógrafo Marcello Rubini, está em uma situação privilegiada economicamente, o que muitas vezes aparenta ser uma crise que oscila entre o discurso de uma classe privilegiada que vive momentos enfadonhos ao terem suas vidas como material de interesse colocando-os em um lugar de modelo ou se é mais uma crise de idade do jornalista diante sonhos e promessas de vida quando jovem, e que agora, na maturidade, se mostram inalcançáveis. Com isso temos na proposta realizada por Fellini, o registro e a utilização de uma forma (privilegiada), que confunde e gera momentos que inviabiliza seu discurso.
Tendo apenas essa ressalva, “La Dolce Vita” é um filme atemporal, de considerações pertinentes a vida contemporânea e com uma narrativa de estilo impecável, que são verdadeiras heranças para a história do cinema mundial, e que serão por várias gerações, como esquecer da famosa cena em que Marcello Mastroianni e Anita Ekberg se banham na Fontana di Trevi ou das crianças que parodiam e criticam a história das crianças de Fátima, alimentados pela busca dos adultos de uma saída, de uma solução diante a dureza da vida. “La doce Vida” é um filme excepcional em todos os aspectos, mas principalmente por afrontar o espectador com o vazio de nossas incertezas diante à vida.
O melhor de "Life" é a total despretensão de ser original, ao contrário disso, é evidente suas inúmeras referências e colagens revelando um filme feito sob medida, mas nem por isso preguiçoso ou previsível. Fiquei aliviado com, finalmente, uma narrativa que não acompanha apenas quem poderá -ou não- sobreviver e principalmente por um final desesperançoso.
OBS: trilha fraca! OBS2: Jake Gyllenhaal - ainda estamos na torcida, mas não foi dessa vez.
OBS3: Calvin possivelmente já tenha participado de outro filme, no caso, de um de herói que sobe pelas paredes e que beija de cabeça para baixo.
Raros são os casos onde uma literatura levada ao cinema consegue uma realização ou resultado, próxima da experiência do leitor. Talvez isso ocorra por se buscar uma aproximação reprodutiva de experiências diferentes, pois o roteiro deve se valer de méritos próprios, uma origem-fim que é também condição primordial: ser uma obra cinematográfica.
"Mort à Venise", dilui momentos de brilho próprio, mas que se perdem ao tentar reproduzir espaços para uma reflexão de leitores e não de espectadores, algo natural na literatura onde as pausas são decididas - consciente ou inconscientemente - pelo leitor. Já em seu filme, Visconti, força tal engrenagem abusando de pausas reflexivas, através de imagens tais como, paisagens (as águas de Veneza que o digam), olhares e observações. Também ao levar forçosamente ou por boa fé, que seus atores, seriam capazes de concretizar toda a demanda de sutilezas versus espessas ambiguidades de relações e sentimentos. Isso é evidente no trabalho de Dirk Bogarde (Aschenback), que tal e igualmente ao filme, se destaca em conta-gotas, doses homeopáticas de um trabalho profundo mas oscilante em traços caricaturais, claramente uma tentativa de expressar através de um psicologismo facial, os pensamentos, desejos, reflexões, angústias e outros da personagem.
Ainda assim, dá obra escrita originalmente por Gustav Aschenbach, e da obra dirigida por Visconti, chama atenção os méritos de não escamotear o jogo de uma relação proibida, que sem moralismos ou abatida pelo que hoje é a praga do "politicamente correto", revelam uma relação que só existe para Aschenback, algo imoral por ser de todas as formas, o desejo por um rapazote.
Porém, o fascinante desse jogo, é a mescla entre o desejo sexual e o da juventude, algo que não se vive novamente, e que se antes é até alvo de criticas por Aschenback, no fim sua repulsa passa a ser seu desejo, algo que lhe consome e o leva inversamente por uma caminho ao contrário da juventude, um caminho que leva ao fim.
Em um resumo direto e simplista, "Alien" é um filme sobre coisas que podem saltar do escuro e matá-lo. Partilha um parentesco com filmes como: tubarão, halloween e outros que envolvam aranhas variadas, cobras, tarântulas e perseguidores. Mas a parecenças terminam muitos antes disso.
Um dos grandes pontos fortes de "Alien" e consequentemente do diretor Ridley Scott, é o seu ritmo. "Alien" leva o seu tempo. Ele espera. Permite silêncios (os majestosos tiros de abertura são sublinhados por Jerry Goldsmith com apenas vibrações metálicas distantes). Isso sugere a enormidade da descoberta da equipe, construindo-se com pequenos passos: a intercepção de um sinal (é um aviso ou um SOS?). A descida para a superfície extraterrestre. O bitching por Brett e Parker, que se preocupam apenas com a coleta de suas ações. O golpe mestre da superfície escura através do qual os membros da tripulação se movem, suas luzes de capacete dificilmente penetram a sopa. O esboço sombrio do navio alienígena. A visão do piloto alienígena, congelada em sua cadeira de comando. A enormidade da descoberta dentro do navio.
"Alien" usa um dispositivo complicado para manter o alienígena fresco ao longo do filme: ele evolui a natureza e a aparência da criatura, então nunca sabemos exatamente o que parece e o que ele pode fazer. Assumimos que, em primeiro lugar, os ovos produzirão um humanoide, porque essa é a forma do piloto petrificado no navio alienígena há muito perdido. Mas é claro que nem sabemos se o piloto é da mesma raça que a carga de ovos coriáceos. Talvez ele também os considere como uma arma. A primeira vez que damos uma boa olhada no alienígena, quando ele explode no baú do pobre Kane ( John Hurt ). É inconfundivelmente de forma fálica, e o crítico Tim Dirks menciona sua "boca vaginal aberta e pingando".
Certamente, o personagem de Ripley, interpretado por Sigourney Weaver , teria atraído os leitores da Era de Ouro da Ficção Científica. Ela tem pouco interesse no romance de encontrar o alienígena, e ainda menos nas ordens do seu empregador de que ele seja trazido de volta para casa como uma arma potencial. Depois que ela vê o que pode fazer, sua resposta ao "Pedido Especial 24" ("Retornar a forma de vida alienígena, todas as outras prioridades rescindidas") é sucinta: "Como podemos matá-lo?" Seu ódio implacável para o alienígena é o fio comum que atravessa as três seqüências "Alien", que gradualmente desceram em qualidade, mas mantêm sua obsessão motivadora. Por último, fica a herança que "Alien" possibilitou ao gênero Sci-Fi e para além disso e muito mais além dos filmes de franquia que seguiram após o filme de 1979, vislumbra a relação artesanal de produzir um filme que poderia enveredar pelos anseios do cinema comercial e também pela relação de não abrir mão do embrião originário e não clichê entre suspense, terror e ficção.
Para Godard nada parece ser tão complicado quanto as coisas mais simples. Por isso, esperar que seu filme "King Lear", fosse uma passível adaptação cinematográfica típica da tragédia de Shakespeare, é no mínimo, por parte do público, um total desconhecimento sobre o diretor ou incoerência, por parte da crítica.
Embora algumas linhas da peça de Shakespeare, sejam usadas no filme, apenas três personagens (Lear, Cordelia e Edgar), são, digamos assim, "apresentados". King Lear é, sem confessionalismos algum, um filme difícil, e assim é, pois se considerarmos Godard um diretor insano (no sentido positivo disso), temos nesse seu experimento visual, o ápice da insanidade humana ao questionar a arte em mundo recém-saído de um grande desastre nuclear (em referência ao episódio de Chernobyl).
Encaro os filmes de Godard como uma louvável experimentação, o que lhe torna indiscutivelmente original a cada filme. Godard é um dos raros, quase único diretor que consegue afirma o cinema através da negação, assim mais do que apresentar ou afirmar o que é cinema, Godard discute sobre as várias possibilidade de ser e fazer cinema. E faz isso rindo e debochando do público, mas não em uma zombaria gratuita e desnecessária ao contrário disso, os risos são diante a nossa caretice em assimilar as narrativas de um filme, buscando compreensão e lógica para tudo, inclusive na arte, que historicamente buscou sempre romper com o convencional, levando em conta o própria incoerência que é a humanidade e sua desastrosa forma de viver.
Um filme sem a crise do drama, tão pouco pós-dramático e isso nem se cogita como problema.
"Actor's Revenge" só falha ao alargar tempos que não colaboram para a sua construção, gerando dois submundos. No primeiro temos as cenas de ação e de vingança em mundo cheio de frenesi, em outro, temos as oscilações de caráter, os questionamentos e toda uma inserção de imagens poéticas que tomam grande parte do filme e lhe dão um ritmo contemplativo e conseqüentemente arrastado, porém ambos submundos, estão ligados pela atuação precisa de Yukinojo (Kazuo Hasegawa), que se divide entre um ator especializado em papéis femininos do Teatro Kabuki e que deseja vingar a morte dos pais. E como segundo personagem, um batedor de carteiras, um ladrão.
Kon Ichikawa, famoso diretor japonês, conhecido por seus filmes meticulosamente perfeccionistas, mas comercialmente infrutíferos, foi encarregado da readaptação da novela Otokichi Mikami, e conseqüentemente, junto com sua esposa e colaboradora freqüente, a roteirista Natto Wada, transformaram o que seria um filme de melodrama banal em um espetáculo delirante, altamente estilizado e idiossincrático.
Desde o início, o humor irreverente e sarcástico de Ichikawa definiria o tom infecciosamente brincalhão, mas estilisticamente audacioso e auto-assegurado da fusão excêntrica do filme de kitsch de arte e cultura pop de alto nível. "Actor's Revenge" é uma sátira estilisticamente ousada e irreverente que busca reconciliar os elementos familiares e tradicionais da cultura nativa com a vitalidade moderna da influência ocidental no Japão contemporâneo. A fragmentação recorrente de imagens de Ichikawa reflete inatamente a relação voyeurística entre o espectador e o artista: cenas de luta obscurecidas e prolongadas, testemunhadas por telhados, transições visuais sem costura entre dramatização teatral e episódios estilizados, de "vida real", o enquadramento de atores através de portas ou outras oclusões visuais que parecem ressaltar a perspectiva intrusiva do público. O roteiro antiquado para o trágico melodrama ( shimpa ) popular no início do cinema japonês é infundido com ironia, sátira social, e subversivos visuais de duplo entendimento.
A fusão excêntrica das formas de arte japonesas tradicionais e modernas é exemplificada através de uma trilha sonora eclética que combina acompanhamento tradicional de kabuki , música folclórica, jazz e sons de ambiente de vanguarda.
Quando uma só vida é insuficiente ou quando os caminhos de uma vida são em demasia enfadonhos.
Entre as características marcantes do cinema produzido no final dos anos 90, está a marca de um período próspero em filmes de múltipla personificação psicológica, representados por figuras e "simbologias" de alter egos ou se utilizando de transtornos como borderline, bipolaridade e de personalidade. Não que isso fosse ou seja, uma novidade na história do cinema, mas filmes desse período como "Fight Club", "Raising Cain", "The Sixth Sense", "The Others" apenas para citar algumas películas que ainda são marcantes em um curso ascendente de construção fílmica que necessitam de um alinhamento específico, nos diversos âmbitos (roteiro, iluminação, direção, atores, sonoplastias, fotografia...).
Considerando o grau de complexidade desse estilo de filme, onde no final, o público está diante a uma multiplicidade de entendimentos e construções pessoais, creio, na importância de uma construção de trajetória que possamos acompanhar, e que nos possibilite contar com uma instrumentalização fornecida pelo roteiro, auxiliando no preenchimento de lacunas, e mesmo não tendo a pretensão (o que já é pretensioso por demais), de não auxiliar nisso, dando maior liberdade interpretativa ou até de desentendimento racional, em ambos aspectos, é necessário (haver) compreensão. Qual o sentido de fazer algo que não permite diálogos? que não quer ser entendido ou mesmo que seu entendimento seja pela negação disso?
Em “ Buster's Mal Heart” filme dirigido por Sarah Adina Smith, nos deparamos com uma história altamente fragmentada, e que necessita ser assim, pois, fragmentário também é a vida , ou melhor, as vidas do protagonista dessa fábula, Buster (Rami Malek). Assim temos a abordagem de um homem das montanhas, o ermitão; de um náufrago com analogias as histórias bíblicas (em especial de Jonas e a Baleia), e de Buster, um jovem pai que trabalha durante a madrugada como concierge de um hotel, e dentro da história de Buster é que teremos as ligações para as outras vidas e muitas outras que surgem durante o filme, entre elas a de um desconhecido sem nome (DJ Qualls), que aparenta ser um profeta da era cibernética e que por fim, está tão intimamente ligada à Buster.
Buster's Mal Heart é um filme que mesmo buscando romper com a estrutura de três atos, com a narrativa linear, mesmo sendo um mix ou copiado de vidas fragmentados, não compromete em nada a construção em busca de uma compreensão por parte do público, pois, em cada fragmento ou piscada de uma vida, somo instrumentalizados com pontos que colaboram com os momentos de virada, os "Plot twist's" do filme e na inserção do espectador na vida de Buster.
A atuação de Rami Malek, como Buster é impecável. Para os fãs desse promissor ator, premiado pela série de TV Mr. Robot, o filme serve também como um forte apreço ao trabalho de Rami, já que tanto no filme como na série, temos as similaridades de uma personagem deslocada do mundo real, a personificação de um alter-ego e com mil conspirações na cabeça.
Ingrid Bergman sempre deixou tão claro o alívio que lhe era poder viver outras vidas, que nem mesmo seus filhos ousaram lhe cobrar o papel de mãe.
Ingrid Bergman: In Her Own Words, deseja através do seu próprio título emitir a ideia principal do documentário, além de uma homenagem póstuma feita por quem ficou (de quem está vivo), seu desejo é que a figura central (Bergman), seja voz própria e imagens também. Imagens, pois, era essa, uma paixão confessável da atriz, que se manifestou logo na infância, quando seu pai, registrava a filha cotidianamente.
Após a morte do pai, Ingrid, continuou os registros por conta própria, alterando apenas a ordem de suas capturas, era ela, quem assumia agora os registros de vários momentos e das várias pessoas que conheceu em sua vida.
Dirigido pelo sueco Stig Björkman, o documentário cumpre parcialmente sua promessa, e o motivo é logo inatendível, já que sem a presença de Bergman para falar sobre sua vida e também pelo foco que a atriz direcionava suas cartas e o seu diário, quase pouco era sobre sua carreira, sobre seu trabalho e o que causa certo espanto, já que notoriamente era esse o seu maior prazer e onde se sentia mais feliz. Seus registros versavam em grande parte sobre a morte da mãe e dos seus irmãos logo muito cedo e da única figura que lhe restou, mas que também logo padeceu, o seu pai. Depois seus registros são focados na vida amorosa seguida pela vida dos quatro filhos, sendo estes, figuras que somam grande parte e tempo na escrita da atriz.
Assim as palavras de Bergman apresentadas através de um rico acervo de imagens e de filmes caseiros, é o elemento mais forte e mais interessante do documentário, que extrai através de entrevistas, de arquivos e diários da estrela de origem sueca, a voz (própria) da figura-personagem.
A falta de qualquer investigação significativa sobre os estilos de desempenho é sensivelmente sentida, particularmente devido aos métodos muito diferentes de seus principais diretores: George Cukor, Alfred Hitchcock, Roberto Rossellini, Jean Renoir, Stanley Donen, Ingmar Bergman. Há alguma análise leve da personalidade - ela foi conduzida, ela era tímida, "o amor veio através da lente da câmera", ela era corajosa - e às quatro crianças pintaram um retrato atraente de sua mãe em grande parte ausente. No entanto, a profundidade psicológica, Bjorkman, fabricante de documentários como "Ingmar Bergman" e "Lars von Trier", mal vai além do nível de um retrato do Canal Biografia. Como tal, Bergman é realmente muito difícil de ler, e somos atraídos por ela ainda mais por causa disso.
Com tanto material de referência à sua disposição, Björkman não consegue superar esse mistério inteiramente, mas o que ele faz de forma bastante elegante é explorar os sentimentos mistos dessas quatro crianças sobreviventes, todos os quais deixam claro o quanto ela era divertida e também dão a luz para a sentida ausência da mãe diante o desejo da atriz apaixonada pelo ofício.
Talvez não haja nada radicalmente novo para aqueles com algum conhecimento da história de Ingrid Bergman de muitos outros retratos de TV biográfica, mas isso ainda é uma digna porta-de-chamada para todos os curiosos sobre um dos maiores ícones do cinema.
Se uma mulher é naturalmente rival de outra, o que secretamente e mutuamente desejam mães e filhas?
"Autumn Sonata" (1978), foi o último filme realizado por Ingmar Bergman para o cinema, o que sucedeu após este foram vídeos para a TV. Porém, não se esboça nessa ultima película qualquer saudosismo, ao contrário, é um reencontro há diversas características que marcaram o célebre diretor sueco.
Tais como, sua forte relação com o teatro, com os atores, na utilização de símbolos e metáforas, na simplicidade de suas locações (que ele transforma em uma grande vantagem), o caráter psicológico na formação e nas relações humanas, mulheres marcantes e desafiadoras, a expressividade de um rosto em seus close's e big close's e o quanto fala ou até mesmo grita os momentos de silêncio, os momentos em que o não verbalizar sugere tantas coisas. Tal como na cena onde Eva (Liv Ullman) toca algumas notas no piano para a sua mãe, Charlotte (Ingrid Bergman), um momento magistral e antológica, na força e expressividade de duas atrizes que não dizem nada em cena, mas sugerem um universo de rivalidades, desconhecimentos e angústias numa (não) relação de mãe e filha.
Autumn Sonata" é um trágico fardo da emoção humana, e é em sua maior parte, um drama de confissões entre duas mulheres, que dialogam uma para a outra, o que acaba por gerar uma certo ruído monocórdio a produção, principalmente pelo sútil embate do jogo das aparências, dominarem grande parte do filme, o que talvez tenha sido elaborado na tentativa de gerar um frenesi no público para o momento ápice, o que não é necessário ou até mesmo não funciona, pois, na carta convite, escrita por Eva e no monólogo de abertura realizado pelo marido de Eva, já fica claro, que ali, será um local para acerto de contas.
Além de sua alusão musical, o título do filme mantém a pista de outro ponto central: a ideia de estações e ciclos. É nítido a referência dessa mudança de estações na fotografia de Sven Nykvist que colabora com sua paleta pálida e lavada e sem grandes dependências da luz artificial, lâmpadas e velas, chamam a atenção para o frio do inverno. No entanto, no que parece ser uma contradição, muitas das cenas de Nykvist são guirlandas com flores. Eles aparecem em dezenas de cenas. Normalmente associada à primavera, a presença das flores é uma lembrança clara da natureza cíclica da vida e das nossas relações com os outros. O frio passará, sugerem as flores, só precisamos suportar isso durante o inverno.
Cheio de emoção angustiante e visão agonizante, "Autumn Sonata" oferece um exame metodicamente potente da dor que escolhemos para manter dentro, e as cicatrizes que ficam conosco como resultado. Como a maioria dos filmes de Bergman, a imagem está repleta de questões existenciais e reflexões sombrias, investigando profundamente os mistérios dos desafios inerentes à vida, e dependendo da interpretação, o final pode oferecer algum nível de otimismo e catarse, o humor elegíaco do filme e confissões quase impossíveis de odiar e indiferença permanecem irrevogavelmente assombrando. Uma outra característica que Bergman sempre soube utilizar, foi a sua total compreensão de que ao final, um filme acaba sendo sempre dos atores, são eles que serão o rosto e a memória do filme e a eles cabem a capacidade de gerar ou não reciprocidades com o público. Assim, Bergman é sem dúvidas o diretor, mas no final, são Liv Ullman, Ingrid Bergman e Lena Nyman, que tocam essa sonata.
A última consideração que podemos fazer sobre "Waiting for Godot" é a de ser uma adaptação da peça de Samuel Beckett, talvez por questões que envolvam direitos autorais ou respeito e admiração seja pelo autor ou pelo texto, Michael Lindsay-Hogg, diretor do filme realizado em 2001, acaba apresentando uma produção que em grande parte é mais do mesmo, uma peça que foi filmada tendo raras oscilações e oportunidades de espaço para um possível rascunho de exercício audiovisual. Em suma, não se trata de uma adaptação na medida que busca mais ser e respeitar um registro teatral.
Tendo sido a primeira peça escrita pelo diretor, dramaturgo e cientista do teatro, Samuel Beckett (1906-1989), "Waiting for Godot" (1948-1949), já possui características do estilo diferenciado de Beckett, e também, marcas que figuram o Teatro do Absurdo desenvolvido pelo autor, tal como a questão do existencialismo e sua ótica da vida humana sem sentido ou propósito, marca facilmente identificável em "Waiting for Godot", onde dois senhores, Vladimir e Estragon, esperam todos os dias a chegada de alguém que nunca chega e que atende pelo nome de Godot.
No filme realizado em 2001 pelo diretor norte-americano Michael Lindsay-Hogg, nada do texto original é abandonado, ao contrário tudo é igualmente registrado tal como as indicações, marcas, falas, rubricas em resumo, toda a estrutura do texto da peça é apresentada no filme, temos até a divisão do filme em dois atos, igualmente a divisão da peça, mas, não é esse o ponto, que reduz as potencialidades do filme. Ainda que o diretor tenha passado por entraves com os direitos autorais da peça de Beckett, que possui rígido e preciso manual de como pode e deve ser montado, onde , por exemplo, todas as indicações do autor não podem ser modificadas, praticamente a peça é seguida de um manual de instruções que não permitem quaisquer alterações. Ainda com essa possível prerrogativa, não podemos encarar como limitação, tal como muitas vezes o filme se apresenta, já que a ferramenta cinematográfica conta com uma expressividade própria e que se incorporada a essa história, teria grande potencial.
Em grande parte temos um filme onde a câmera não assume a postura de um público, mas também, pouco se assume como marca de uma direção, ela se limita em registrar diálogos e realizar planos e contra planos, na sequência e mediada dos diálogos e contra-diálogos. Poucas vezes temos a utilização de outros planos ou de movimentação de câmera que permite uma gramática cinematográfica, e que quando surgem causam grande entusiasmo, como no "travelling" que passei pelo vazio de um belo trabalho de cenografia teatral, mas muito bem realizado e que apresenta uma estrada deserta, que não é possível descrever porque não se parece com coisa nenhuma, e onde há um esqueleto de uma árvore solitária, sem folhas, mas que na passagem do que seria um dia para o outro, ou quem sabe de muitos dias, se faz florir com algumas folhas. Além desse "travelling" pontual, temos dois ou três movimentos de "plongée", no demais temos um cadenciar de planos gerais, médios e fechados. Não quero dizer com isso que o diretor é limitado ou que a pouca exploração de uma gramática não faça disso uma possibilidade fílmica, o que quero dizer é que ao se prender em marcas teatrais, em um cenário único, inexpressividade de movimentos e na persistência do texto, temos um material lento e enfadonho que se quer mais ser teatro ou registro de teatro diante a possibilidade de ser cinema, o que é lastimável quando combinamos o texto de Beckett, as possibilidades da arte surrealista, de absurdo e a vasta experiência de Hogg na produção de vídeos musicais, onde dirigiu clipes dos Beatles e dos Rolling Stones e migrando depois para a TV, o teatro e o cinema.
Com as limitações de uma direção acarretando um filme inexpressivo e resultando na desfiguração das propostas de Beckett, e não gerando as pungências reflexivas e provocadoras originárias ao texto, das poucas amarras positivas ao filme, estão um preciso trabalho de arte e iluminação, muito fiéis à história e a construção de sua narrativa e também de um belo trabalho dos atores, que por sinal, tomam para si (completamente), o filme.
Barry McGoverr (como Vladimir) e Johnny Murphy (como Estragon) realizam um trabalho de extrema duplicidade, e que promove momentos únicos, tal como no jogo muito próximo ao campo do palhaço, com um andar estilizado e especialmente na cena de uma chapéu que vai de um passar de mãos lentas até a rapidez do gesto. Barry teve um grande sucesso internacional com o premiado programa de Beckett, "I'll Go On" , que o Gate Theatre apresentou no Festival de Teatro de Dublin em 1985. Já o jogo elaborado por Alan Stanford (como Pozzo) e Stephen Brennan (como Lucky) são igualmente de duplicidade e provocativos de momentos que vão do puro riso ao revoltante lugar entre o explorado e explorador, em um jogo muito próximo ao estilo do circo e da "commedia dell'arte". Por fim temos Sam McGovern, que surge como o garoto de recados de Godot, o menino que encerra os atos na promessa de uma chegada postergada, mas esperançosa, além disso, esse garoto é amplo de significados, de linguagens e metáforas.
Creio que toda experiência é válida e cabe a cada pessoa se valer por uma experiência pessoal, própria, pois, assim, pode surgir e visualizar pontos que lhe toquem, que lhe são mais importantes e urgentes, mas na minha experiência, não constante nada de relevante nessa realização de Hogg. Convido aos demais em enveredar mais na experiência de ler o livro ou de assistir à peça de Beckett, pois, o filme pode frustrar e até mesmo gerar falsas compreensões para aqueles que buscam um primeiro contato com o teatro de Beckett, e se for desejoso acompanhar o filme, que não o faça exclusivamente, mas se busque os outros e originais caminhos para a obra teatral que em nada consegue se assimilar com esse trabalho realizado no cinema.
O mais significante em "Aquarius" é a sua amplitude explicita de entendimentos e possibilidades. É um filme onde o público é convidado a ser também autor, assim, pode se ater e construir a história que lhe convém. Liberdade pouco vista no cinema brasileiro.
Inversamente contraditório ao que é apresentado na tela, "Aquarius" começa muito mais pelo fim do que realmente por um começo. Sua narrativa explora o estado cíclico da condição humana, onde até mesmo a crença de avanços contínuos, seja nas relações interpessoais ou com as tecnologias. Saltos que visam escamotear a falta de perspectivas para mazelas que se repetem geração após geração, só amplificando sua problemática e certificando de circundar classes específicas. Como , por exemplo: o cano de esgoto na praia de Boa Viagem, em Recife, que separa a parte rica da pobre. O crescimento habitacional e imobiliário é comum em ambas partes, assim como a mimese histórica de desigualdades e interesses particulares.
Realizado em 2016, o filme conta com o roteiro e direção de Kleber Mendonça Filho, que já havia despertado a atenção do público e da crítica com "O Som ao Redor", de 2013. Em "Aquarius" acompanhamos através de uma ótica testemunhal de momentos pontuais e oscilante entre significativos e insignificantes na vida de Clara (Sônia Braga), sendo o momento de maior dimensão a fase dos 65 anos, em que Clara é viúva e última moradora do edifício (Aquarius), na orla da praia de Boa Viagem, no Recife-PE.
Entre as iniciais investidas passando por jogos e pressões da construtora, com o sugestivo nome de Bonfim, e que a todo custo tenta expulsar Clara do edifício, para dar espaço a um novo e moderno empreendimento, enfim, entre a trama traçada pelas pressões da imobiliária, temos os reflexos e consequências disso, na vida de Clara, dos seus familiares e amigos e também momentos que auxiliam para conhecermos e entendermos mais a protagonista dessa história divida em três capítulos: "O cabelo de Clara"; "O amor de Clara"; e "O câncer de Clara".
Com tanta "Clara" nos capítulos e como motor propulsor da estória não restam dúvidas de quem é a protagonista do filme. Esse protagonismo acaba por gerar alguns deslizes e problemas de roteiro, a questão que ronda a especulação imobiliária e o próprio prédio Aquarius, por exemplo, perdem força e dinamismo diante de Clara, não recordo de um momento em que seja considerado a importância arquitetônica ou os problemas que um prédio maior pode causar a cidade, bem como a preservação histórica, tudo parece girar mais entre o capricho de Clara, em querer continuar morando ali, ou daquilo que lhe é de direito, pois, assim como os moradores tiverem e tem o direito de se desfazer dos seus apartamentos, Clara têm total direito de quer continuar morando naquele apartamento, que é seu há mais de trinta anos.
Essa divergência de opiniões gera um recurso interessante ao filme, mesmo com sua parcela de ótica e favoritismo à posição da personagem Clara. Os interesses da imobiliários e de um antigo morador, são explicitados em apenas uma cena, na qual um homem reivindica e faz uma ameaça "velada" para que Clara venda o apartamento, e assim os demais moradores possam receber o restante do dinheiro pela venda do imóvel. Ambos lados se apresentam e no fim temos um panorama de direitos que merecem ser respeitados, e que por esse mesmo motivo, não vislumbram uma solução, logo todos estão certos e, ao mesmo tempo, errados. Nisso não são tomadas medidas para solucionar o entrave, o que temos são ações questionáveis, pois, a ótica vai ao encontro de interesses pessoais e de defesas que são válidas para ambos lados, algo que Kleber Mendonça já havia trabalhado muito bem em "O som ao redor".
Porém, como mencionado a motivação de Clara em permanecer no prédio e ao receber maior destaque, acaba gerando uma defesa e consequentemente uma perspectiva de uma única visão, reforçada pela direção. Algo que considero como elemento enfraquecedor ao filme, por mais admirável que seja história de vida e superação de Clara, e por mais fascinante e carismática que seja a personagem, é massante ver uma pessoa posta quase que em um pedestal. As próprias curvas dramáticas que revelam as fraquezas e os defeitos de Clara, só se revelam nos diálogos em que a protagonista exalta suas conquistas. Clara, por exemplo, pode facilmente mudar para qualquer outro apartamento, ela inclusive possui cinco, tão pouco o motivo de não vender seu apartamento se dá por questões financeiras, o valor ofertado pela imobiliária é até interessante e a proprietária não passa por dificuldades financeiras, dinheiro ela tem até de sobra, o interesse em se manter ali é mais uma postura política e ideológica de poder dizer não, de se valer do seu direito de morrer naquele apartamento — casos queira — e de preservar suas histórias pessoais, suas memórias, os momentos vividos naquele lar. Porém, a forma adotada por Clara inviabiliza o seu discurso, uma forma que privilegia o egocentrismo, que é algo que a protagonista combate e repudia em outras personagens, tal como faz com a sua filha Ana Paula (Maeve Jinkings).
Essa característica de preservar memórias e histórias é algo marcante na protagonista, com um trocadilho que objetiva a personalidade dessa personagem: Clara é realmente clara. Ela é muito direta no que pensa, no que deseja, no seu modo de agir, não há rodeios em sua conversa e isso é expresso em vários diálogos que chocam pela postura clara e objetiva de se falar o que se quer. Em contrapartida, a essa característica franca de Clara, temos todo um mundo de objetos, lugares, fotos, memórias que possuem uma carácter mais simbólica e plural, e isso não é negativo, ao contrário, é excelente. O mais significante em "Aquarius" é a sua amplitude explicita de entendimentos e possibilidades. É um filme onde o público é convidado a ser também autor, assim, pode se ater e construir a história que lhe convém, liberdade pouco vista no cinema brasileiro. O próprio "móvel" apresentado no começo do filme, que pertencia à tia Lúcia, e que permanece naquele apartamento ao longo dos anos, dando um valor de memória e de história daquela família, é desconstruído pela própria tia, onde o "móvel" nada mais é do que a lembrança de uma bela transa que essa tia teve anos atrás,e anos depois, esse mesmo móvel testemunhará a transa de Clara com um garoto de programa, em resumo, nada daquilo que é muitas vezes atribuído com grande apreço, quase reverenciado como um móvel, um objeto que guardamos com orgulho em nossa casa e que ficam ao longo das gerações, esse virtuosismo dado aos objetos é efêmero, mas as recordações, as lembranças que eles resgatam, isso sim é único e especial, porém, assim é, a medida de quem o tem ou quer, ou seja, é uma construção individual que varia de acordo com as pessoas e as relações construídas.
Assim temos o mesmo efeito do "móvel" da Tia Lúcia, nos discos, nas fotos e nos prédio de Clara. Onde tais objetos matem viva sua história, suas memórias e que fazem de Clara, ser o que é. E isso não necessariamente significa que Clara seja uma pessoa saudosista ou melancólica, ela sabe aproveitar bem os dois mundos, do passado e do presente com seus avanços tecnológicos. Isso é explicitado em uma entrevista na qual Clara afirma que ouve música em MP3, assiste TV, todas essas modernidades ela sabe usar e utiliza, mas mantém as coisas antigas, em uma analogia como de uma mensagem presa em uma garrafa que é lançada no mar, analogia que a repórter parece não ter entendido, e que boa parte do público, talvez e também, não tenha compreendido, o que não causa dano algum, não compreender muitas vezes é até uma benção.
Particularmente não creio que a abordagem do diretor em utilizar o "zoom" tenha colaborado na narrativa do filme, é um recurso que parece ser primário quando utilizado no cinema e que rompe com uma visão naturalista ou realista, algo que não percebo que seja de interesse do diretor ou da narrativa fílmica. Com raras exceções, o "zoom" foi e é bem utilizado em qualquer filme, em "Aquarius" só recordo de um bom momento para essa utilização, na cena em que Clara está deitada em uma rede e numa sobreposição de imagens, o personagem Diego aparece ao fundo de Clara, tirando fotos do prédio, nesse mesmo plano seguimos para um leve zoom, algo manipulado em um jogo de espelho inverso, onde Diego com seu celular tira algumas fotos e invade a privacidade de Clara.
Quanto a montagem e o trabalho de edição promovido por Eduardo Serrano, que fragmenta e une tempos através do "Jump Cut", um corte seco feito em uma sequência de imagem do mesmo plano onde se avança no tempo, um corte dinâmico, cortando a “respiração” e pausas, que serve para transmitir urgência ou criar a sensação de avanço no tempo, esse estilo de montagem colabora indiscutivelmente para a construção narrativa do filme a medida que essa urgência e avanço do tempo, não resultam efetivamente em nada, só avança pela emergência de iniciar ou mudar de estado, mas que pela velocidade não se concretiza, só se realiza como obrigação de fechar um ciclo, para em seguida reiniciá-lo.
Destaque para a trilha sonora e pelo trabalho de diegética realizado pela edição e mixagem de som de Ricardo Cutz, que faz uma utilização impecável do som que participa da narrativa da película e que faz parte do universo dos personagens. Todas as músicas de "Aquarius" ao se utilizar do efeito (diegética) que se relaciona diretamente com o que as personagens estão ouvindo é o mesmo que o público, funcionam perfeitamente e não são gratuitos, e conta com uma trilha que basicamente se divide em ser descritiva da personalidade de Clara, ou evocativas de um estado, bem ao estilo: agora estou me sentido na fossa e ouvirei uma música de fossa. Porém, em todos os casos e mesmo com a diversidade da trilha que vai de Roberto Carlos a Queen, passando por Reginaldo Rossi a Villa Lobos, tudo é muito coerente e crível da personalidade e dos gostos de Clara. Criando uma trilha sonora de vida, o único ponto negativo, se dá pela captação de som direto realizado por Nicolas Hallet, em alguns momentos são inaudíveis as falas das personagens, exemplo, na cena do baile onde Clara dança com um senhor de origem "Capixaba", na qual ela já atenta ao fato da personagem falar "baixinho", e somado ao som da festa torna-se impossível entender o que esse homem fala, fica a dúvida se era uma proposta do filme, de ser mais uma das cenas vazias (não no sentido pejorativo), mas de cenas intimas e pessoais que constroem e modificam Clara, ou se foi uma falha de captação, já que aparenta ter ocorrido uma microfonação apenas da personagem principal.
Entre as atuações, fica apenas o desfalque sentido pela incoerência de sotaque, o que causa certa estranheza na atuação e convencimento no trabalho de Thaia Perez (Tia Lúcia), a sua tia, parece ter caído ali, naquela casa, do nada. O trabalho, em geral, é satisfatório e bem pontuado, embora aos que conhecem o trabalho de Irandhir Santos (como Roberval), fica um aparente débito diante a grandiosidade de outras realizações cinematográficas. Destaque para Sônia Braga (como Clara) e Humberto Carrão (como Diego), que sabem dosar muito bem o jogo de interesses e defesas pessoais, no começo o ar simpático e conciliador de Carrão são bem dosados, e que não se perdem quando ele revela o seu tom mais agressivo de jovem com MBA, e contra-balanceado com esses dois polos, temos uma Clara que se apresenta como uma senhora turrona e uma mulher que quer apenas viver em um lugar que é seu por direito.
Desconsiderado toda e qualquer polêmica ocasionada pelo lançamento do filme no festival de Cannes em 2016, e pela postura consciente dos artistas que buscaram naquele espaço, alertar para situação do Brasil após o processo de um questionável impeachment da Presidenta Dilma, "Aquarius" é um filme bem aos moldes da própria política brasileira, onde os interesses comuns rivalizam com os interesses de grandes empresas e daqueles que detêm o poder, o sistema que vigora em Recife, e que é criticado, mas, ao mesmo tempo, reproduzido por Clara, de interesses e apoios pessoais, serem concedidos na medida da proximidade das relações familiares ou afetivas, é tão comum na nossa política quanto em nossas vidas, como é bom ter aquela pessoa que por ser próxima a nós, desburocratiza um serviço. Entre tantas reflexões e possibilidades que "Aquarius" permite, está principalmente a de um cinema compromissado a dialogar muito mais com o seu país, do que com os interesses comerciais, embora bilheteria não faça mal algum.
"Bellissima" se estrutura em um enredo circular e efêmero. Seu conflito que se faz mais forte como situação, é mimese da realidade, de histórias tão próximas e comuns, porém, diversificadas. Em suma: o desejo humano de vencer a pobreza, nem que para isso estimulemos ainda mais a exploração.
O caráter atemporal desse filme realizado em 1951 por Luchino Visconti, é nítido já em sua sinopse: A história de Maddalena (uma enfermeira), que inscreve a sua filha Maria, em um concurso que visa eleger a menina mais bonita da Itália. O concurso representa um bilhete para dar à filha uma vida que oscila entre dignidade e luxo, estando essa mãe-protagonista, disposta a tudo para garantir a vitória da filha.
Histórias de pais que sacrificam tudo para garantir um futuro melhor aos filhos, decerto não são nenhuma novidade, ao contrário, das mais longínquas estórias orientais, passando pelo berço da história humana com a cultura grega, não nos faltam exemplos de enredos parecidos, e dos quais podemos presenciar até hoje, com "reality shows" do tipo, pequenas mísseis, para novos jogadores de futebol, concursos mirins para descobrir novos talentos… enfim, uma gama de ofertas onde temos a presença de crianças, mas na ausência de infância, e de progenitores que podem ser entendidos através das teorias do criador da psicanálise Sigmund Freud, especialmente na ideia de projeção, onde os desejos dos pais são empregados na figura de seus filhos. O desejo de se destacar em algo que muitas vezes os pais não conseguiram ou não tiveram oportunidade, mesmo que consciente ou inconscientemente, no qual, o reconhecimento dessa projeção dá-se através de vitória em concursos, posição social e também de um viés financeiro, sendo este último, o desejo defensível de Maddalena (Anna Magnani), já que parece ser a garantia de uma vida mais digna para a menina Maria Cecconi (Tina Apicella).
Em grande parte dessa estória que toma às vezes situações e momentos absurdos, diante um desejo que beira as limitações de visão, racionalidade e de absurdo ao mostrar os pontos que iniciam, desempenham e finalizam essa saga. Que é traçada por uma mãe motivada pelo futuro de sua filha, essa dimensão dramática que é característica ao filme, se diluí sabiamente em momentos de comicidade. As atitudes de Maddalena são risíveis, tanto mais quanto na falta de talento artístico de sua filha. Esse rir do outro, do papel de bobo que desempenha essa mãe ao não notar na filha que lhe faltam outros atributos, e a crença que a beleza da menina, somada a interferência dessa mãe, como ao tentar comprar os jurados ou conseguir alguém dentro da produção do filme que destaque o teste de Maria, que essa soma possa interferir no resultado e consagrar na vitória de Maddalena através da pequena filha.
A sabedoria desse riso está em apresentar uma fábula cuja moralidade não é apresentada de forma instruída, de forma didática, ao contrario, é uma fábula de caos e sutileza diante um desejo compreensível e até mesmo justificável, ao mesmo tempo, que é reflexo das poucas oportunidades aparentes de se vencer na vida, onde a falta de perspectivas de justiça e igualdade social e a descrença na educação projetada até na incapacidade da criança (pois, como sugere Maddalena, em pequenas confissões pessoais: vai que a filha é uma tonta), o que resta, a única possibilidade, é contar com as oportunidades de fuga que inserem aqueles que se destacam por características ou qualidades inerentes a sua pessoa, no caso de Maria, a beleza infantil. No caso de Maddalena, talvez, a perseverança.
Com todos os méritos de uma história atemporal, e sem pesar o fato do diretor ter em mãos um material muito próximo aos filmes neo-realista que lhe consagraram, isso é, ter algo muito próximo ao estilo que lhe era costumeiro fazer, mas que é recusado em "Bellissima", abordando essa estória através do viés realista, no qual, pessoalmente considero que foi desejoso aos produtores do filme e ao diretor apresentar um aspecto mais abrangente da fábula, considerando o caráter comum dessa estória, que acontece e repete-se na vida, e que é agora refletida na tela, mas que ao abandonar uma reflexão desse realismo pertencente a determinada realidade social, gera uma abordagem fílmica que iguala os desejos maternais, porém, desproporcionais e inválidos diante as diferenças de classe e consequentemente incapazes de gerar mudanças ou resultados, pois, como competir com uma família que já larga com ampla vantagem?
Essa desigualdade de classes é citada e tratada de forma muito superficial nas mínimas parcelas em que se apresentam, isso minimiza a força e potencialidade de Visconti e de "Bellissima", já que a abordagem na qual é apresentada (sua forma), inviabiliza o próprio discurso. A luta em vencer as diferenças de classes, através de métodos que reforçam e colaboram para essas divergências. Em verdade, a mãe não luta para vencer nada, ela quer apenas pertencer a algo, e no desfecho, quando percebe esse mundo de diferenças cruéis que ela admirava e na qual acabava colaborando, torna-se então, o momento de racionalidade e revolta de Maddalena. Ao retratar o cinema como microcosmo de um mundo próspero em possibilidades vantajosas, Visconti satiriza a própria indústria cinematográfica e a inocência humana diante sua crença de possibilidade e pertencimento. Essa crença que induz na capacidade de utilizar mecanismos, mas que já estão domados pelos interesses comerciais, que entre outros, resultam no fortalecimento de diferenças de classes e simulam um mundo fantasioso, tal como o do cinema e seus benefícios.
Essas fantasias estão tão próximas da vida de Maddalena, que ocupam até a parte externa de sua casa, da sacada é possível ver uma praça tomada pela projeção de filmes, e está é tomada por inúmeras pessoas assistindo aos filmes, mas quem são essas pessoas? Em uma Itália que buscava se modernizar e tornar-se expressão de avanço, abandonado o campo e domando máquinas, entre elas o cinema que versava entre o interesse de ser arte e ser propaganda dessa nova Itália aos olhos do mundo, temos o encontro desse público que oscila entre o desejo de vencer, igualmente ao de Maddalena, mas também de sentir-se parte dessa modernidade, uma identificação que por vezes produz efeito inverso, já que distancia diante de tantas diferenças, também igual ao desfecho de Maddalena e de sua filha, agora conscientes de sua utilização como massa, e da posição que ocupam em mundo que faz distinção entre os cidadãos.
O filme inteiro está ancorado pelo desempenho magnético e fascinante de Anna Magnani, que preenche toda tela com uma vitalidade e intensidade ardente que é quase impossível desviar o olhar. Em 1951, ela era uma das rainhas do cinema italiano e já ecoava por todo o mundo. Anna era a atriz favorita de Bette Davis, e Bette considerou a atuação de Anna em “Bellissima”, como: brilhante, desinibido e cheio de imenso poder. Não há praticamente um momento no filme em que ela está parada ou silenciosa. Visconti, quase que exclusivamente, registra Anna em planos médios e cheios, dando-lhe um amplo espaço para composições e que promovem costuras de uma extremidade do quadro para o outro.
Sabiamente perceptível da força do olhar e das fisionomias faciais da atriz, o diretor pontua momentos chaves e constrói parágrafos inteiros de silêncios. Utiliza-se de "close" e "big close" do rosto de Anna, para gerar expressividades máximas e que comunicam através da ausência de palavras, mas ocasionam em uma verborragia de estados que Magnani pode expressar. É necessário destacar o grande jogo que Anna possibilitou dentro das limitações de contracenação com Tina Apicella. Na época da realização de "Bellissima", Tina acabara de completar cinco anos, a descoberta e o convite para a atriz mirim, partiram de Visconti. Apesar de possuir belos momentos, sua grande marca nessa obra se dá pela facilidade (às vezes enfadonha), de chorar. Destaque para a cena em quê, ao chegar em casa e talvez por ordem da mãe, a menina não conta nada sobre o que fez naquele dia, ao ser posta para dormir pelo pai, e este ao informar que no dia seguinte irar leva-lá para tomar sorvete, ela responde que precisa estudar, o pai retira-se, apaga a luz e a pequena chora entre o susto e o desespero, pois, ainda tão nova, já possui a responsabilidade de apaziguar e salvar aquela família.
Entre várias cenas de fade in e fade out que costuram a montagem do filme, entre saltos de acontecimentos episódicos que colaboram para a construção e o desfecho do enredo, chama a proposta fotográfica de Piero Portalupi e Paul Ronald, que basicamente instauram um clima de vida obscura no apartamento de Maddalena, em contrapartida, os refletores e deslumbramentos de luzes do "Cinecittà", um direcionamento de luz que encaminha não só no desejo convicto de Maddalena, mas com único caminho iluminado que oferece uma perspectiva, uma saída diante aquela vida entre sombras. Outro grande momento de maestria dessa fotografia, está no jogo entre meia luz que ilumina rostos ou que destacam um entre tantos outros, uma clara alusão a perseguição de brilho e luz própria que dialogam e muito para a construção de “Belíssima”.
Mesmo nãos sendo o filme mais interessante de Visconti, e deixando de lado muitas das marcas que o consagraram, "Bellissima" é uma obra interessante e que dialoga com o mundo contemporâneo, e possivelmente dialogará com o mundo futuro, já que entre as diferenças sociais que tanto lutamos para vencer, muitas vezes são inconscientemente reforçadas através de uma luta egoísta, que visa apenas salvar alguns e não percebem que só resultará quando entendermos a necessidade de um todo. Luchino Visconti era capaz de escrever para os nossos olhos, um documento social e cultural importante que reflete sobre o ontem, analisa o hoje e possibilita caminhos para o amanhã.
Em "Uccellacci e Uccellini" temos verdade, naturalidade e autenticidade tão bem incorporados e estruturados, que é difícil crer na possibilidade da comicidade diante de realidades tão ásperas e de um mundo onde as pessoas usam a dureza de suas vidas, como materialidade para o riso. Uma obra particular em sua proposta e entre tantos motivos, uma obra rara.
Escrito e dirigido em 1966 por Pier Paolo Pasolini, "Uccellacci e Uccellini" é um daqueles filmes que geram divisão imediata, não há meio termos. Particularmente, considero como um filme especial, mas que já dispara em ampla largada para minha apreciação, pelo respeito e admiração que nutro pela Itália, por sua história no cinema e por diversos atores, entre eles Totò Innocenti.
"Uccellacci e Uccellini" possui todas as características chaves do estilo neorrealista, e lida com preocupações marxistas sobre pobreza e conflito de classes, mas sem perder o humor, o que, diga-se de passagem, gera grande potência e importância dessa obra, ao unir reflexões políticas, construção social e tendo como meio-campo, o humor, Pasolini alcança um dialogo abrangente e ativo, coloca o espectador em situação critica e reflexiva, entrega uma obra aberta ao riso, mas que não se limita apenas à isso. Para ultrapassar os limites de uma comédia comum ou simplista, lhe foi, mas do quê necessário contar com o apoio do ator italiano Totò Innocenti.
Este , foi o último filme de Totò Innocenti. Após a morte do ator, estrearam outros dois filmes, mas em ambas produções, as filmagens ocorreram muito antes de "Uccellacci e Uccellini". Totò em 1966 já era mais do quê um comediante consagrado, sua figura era marca e renome da Itália, tendo o reconhecimento de seu trabalho expandido para outros países e continentes, não é a toa que faz parte de um seleto grupo onde estão presentes os atores Charlie Chaplin e Buster Keaton. Podemos observar em "Uccellacci e Uccellini" um Totò mais contido, o que gera certo estranhamento para aqueles que já o conhecem de trabalhos anteriores, muito desse ar meio desengonçado, às vezes até engessado se originam pela direção de Pasolini, que limitou os improvisos, o jogo e até mesmo as máscaras faciais do ator, pedidos que negavam as características que fizeram de Totò um célebre comediante. É necessário compreender que os pedidos de Pasolini não eram formas de talhar ou diminuir o trabalho de Totò, ao contrário, conhecendo a qualidade artística do humorista, Pasolini buscou apresentar um trabalho pontual e que dialogasse com a proposta neorrealistas do filme, além de ser uma grande oportunidade que Pasolini oferece ao grande Totò.
Em "Uccellacci e Uccellini" temos verdade, naturalidade e autenticidade tão bem incorporados e estruturados, que é difícil crer na possibilidade da comicidade diante de realidades tão ásperas e de um mundo onde as pessoas usam a dureza de suas vidas, como materialidade para o riso. Uma obra particular em sua proposta e entre tantos motivos, uma obra rara. A alegoria criada por Pasolini, unifica aspectos de fábula filosófica marxista.
Como em todos os contos de fadas, há uma história definitiva neste filme: o pretexto narrativo é dada pelas considerações filosóficas (marxista) de um velho corvo que aborda dois homens, pai (Totò) e o seu filho (Davoli ). O corvo parece convencer, os dois homens, utilizando-se de sua sabedoria e de suas palavras, mas no momento em que o problema da fome aparece, o homem "razoável" se revela, e Totò acaba por comer o sábio corvo. A alegoria apresentada é clara e bem realizada.
Sobre as considerações neo-realistas apresentadas no filme, posso categoriza-las através de André Bazin, um teórico e crítico de cinema francês, argumentou que o neorrealismo retrata: verdade, naturalidade, autenticidade e é um cinema de duração. As características necessárias do cinema neo-realista incluem: Um contexto social definido; Um senso de realidade histórica e imediatismo; Compromisso político com a mudança social progressiva; Cenas e cenários autênticos com a sua localização, em oposição ao estúdio artificial; Uma rejeição dos estilos clássicos de Hollywood; Uso extensivo de atores não profissionais o máximo possível; Um estilo documentário de cinematografia.
"Uccellacci e Uccellini" é declaradamente o 'trabalho que Pier Paolo Pasolini mais amava, provavelmente porque é a síntese mais completa de seu ecletismo artístico. Trata-se de uma obra com grande poder poético, desde o início foi objeto de discussão e controvérsia. Obteve uma menção especial no Festival de Cannes e foi premiado com o prêmio de prata.
O receio de Chaplin e do seu vagabundo Carlitos, é o receio do homem comum. A incerteza de um mundo que na medida de sua modernidade, exclui o indivíduo e os espaços para o sentimento humano.
"Modern Times" utiliza a faceta da sátira e em certos momentos da paródia para resultar em uma comédia crítica e consciente. Promove um riso contido diante um mundo onde a população é comparável a um rebanho pastoreada por grandes empresas e corporações, e mesmo sendo um filme roteirizado e dirigido por Charlie Chaplin em 1936, possui forte caráter profético ou futurista, atemporal e decerto desamparo, quando refletirmos na posição do mundo contemporâneo.
Chaplin em "Modern Times" já filosofava sobre tantas questões importantíssimas, que ao rever seus filmes, ficamos abismados com sua visão futurista tanto no quesito tecnológico com sistemas de vigilância monitorados por câmeras, um misto de "reality show" com "face time", ligações por vídeo (tal com um Skype), o recurso de mensagens por voz (WhatsApp), gravação digital e na interferência de atividades banais do homem, tal como almoçar, sendo interferidas por máquinas e tudo para garantir mais rendimento no trabalho, otimizado o tempo desperdiçado com atividades humanas.
Para além dos avanços tecnológicos há no filme, ou ao menos em sua primeira parte, uma análise dos efeitos e reflexos da modernidade no homem e no mundo, expressado por relações de subordinação e poder, pelo totalitarismo dos grupos empresariais e pela inexpressividade de movimentos sindicais que resultam em míseros avanços e que são brutalmente reprimidos pela força policial. Um paradoxo bem-apresentado no filme é de como o homem soube avançar em modernidades tecnológicas que , em contrapartida só aumentam as diferenças de classes sociais, gerando grupos concentrados pelo poder industrial e toda uma massa que fica à mercê de uma oportunidade de emprego em grande parte exploratória e escravocrata. Vivendo em condições miseráveis, numa luta diária pela sobrevivência e sem a perspectiva de um futuro melhor, não resta nada mais do que uma posição passiva do povo, que preenche suas expectativas com sonhos e fantasias de consumo e de uma vida menos indigna.
O caráter crítico de "Modern Times" sabe dosar bem os momentos de comicidade, na verdade, eles se misturam em uma massa homogênea tão bem estruturada que permite ao público, se assim desejar, se ater apenas aos momentos de comicidade, mas caso queira, basta apenas um olhar mais atento e podemos nos ver e ver o nosso mundo através de uma ótica de humor crítico. Talvez o receio de Chaplin e do seu vagabundo Carlitos, é o receio do homem comum. A incerteza de um mundo que na medida de sua modernidade, exclui o indivíduo e os espaços para o sentimento humano.
Particularmente, creio em uma tentativa de Chaplin, suavizar sua postura crítica, pois, ao estruturar o roteiro de "Modern Times", a história é dividida em blocos que se assemelham a capítulos, e que podem como recurso de montagem fílmico, serem realocados sem grandes implicações, já que a dependência de um capítulo não interfere fortemente em outro. Essa estrutura que beira a esquete ou "sketch", são, na minha opinião, um recurso fraco e prejudiciais ao filme. Tanto que a resolução para isso é um passar de dias, não faltam cartelas que informam a próxima ação (capítulo), ocorre dez, sete, cinco, dois dias depois ou no prazo de semanas. Essa divisão é tão explicita que podemos estruturar o filme da seguinte forma:
Capítulo I - Fábrica; Capítulo II - A prisão do vagabundo Capítulo III - A vida da menina pobre;
Apenas na metade do filme, temos um desdobramento dessa comédia crítica e política para uma comédia romântica, que nada se assemelham a ideia inicial proposta ao filme. O único vestígio que resta desse traço está nas relações trabalhistas, na busca de um emprego e de mudança de vida.
Com a ressalva para o deslize de sua estrutura narrativa, tempos uma grande obra, e mais um trabalho impecável de Chaplin. Quando "Modern Times" foi realizado, o cinema já contava com o recurso sonoro, mas Chaplin, principalmente pelas suas ideologias de criar um cinema de arte universal, que não fosse prejudicado pelas diferenças de idiomas e outros motivos, permaneceu fiel à comicidade da mímica, que lhe fez merecidamente famoso e admirado em todo o mundo.
Inversamente aos que dizem de seu medo em utilizar a banda sonora, temos nesse filme um Chaplin consciente dos avanços do som e que sabe tirar proveito disso, seja apresentado o som como uma tecnologia que permite o envio de mensagens gravadas, nos jogos sonoros como batidas na porta que servem para confundir as ações, no uso de um rádio para inibir o som da gastrite e onde o locutor da rádio lembra justamente para tomar o remédio para sanar esse mal e principalmente o som, como match point da história. Se o vagabundo não consegue um emprego comum, que tal tentar a vida como artista? Mas para isso é necessário cantar, logo ele, que nunca fala. O resultado é uma das cenas memoráveis do cinema, Chaplin cantado "Jcherche après Titine", só que a versão do vagabundo é mais conhecida como "The Nonsense Song" , pois, seu personagem a canta em gibberish, uma mistura de francês, espanhol e italiano sem sentido algum e com sons em gromelô. Tanto a interpretação, quanto a canção do vagabundo é ovacionada pelo público.
Apesar da sua consciência social, o Modern Times não se transforma em um tratado ou drama político, mas continua a ser uma tragicomédia muito barulhenta na tradição Little Tramp. Chaplin aborda o desemprego e outras questões sociais, mas o faz obliquamente, com um toque leve, no contexto das desventuras cômicas de seu personagem.
Mesmo não sendo a história mais interessante (no quesito roteiro e de direção), contada pelo maestro Vittorio De Sica, “I girasoli” possui momentos singulares de poesia visual, interpretação, sonorização e indiscutivelmente da capacidade do De Sica em registrar e transmutar as simplicidades da vida.
Lembro dos primeiros filmes que assisti desse, que é , uma grande inspiração e a quem sempre devoto um favoritismo absoluto. Vittorio De Sica através das possibilidades de apresentar e não representar à vida, tal como desejava o movimento neo-realista italiano originando filmes muito próximos de um registro documental e que me fascinavam por sua costura às avessas, sem pudores de mostrar o frenesi volátil de um país e de seu povo, diante das novas relações que surgem, e na incerteza de sua durabilidade.
Decerto que um movimento cultural não pode ser amarras para um criador, ao contrário, deve ser dispositivo para novas construções, e isso é notório em "I girasoli". Produzido em 1970, com roteiro de Cesare Zavattini e argumento elaborado por Tonino Guerra, célebre poeta, escritor e cronista da guerra. Sendo uma co-produção ítalo-franco-soviético, o que permitiu um registro raro do antigo bloco comunista, em parte devido as boas relações do De Sica com o Partido Comunista Italiano.
Aos moldes de um resumo ultra simplista, me permito dizer quê, "I girasoli" é o retrato de uma felicidade breve diante a não concretude amorosa regida pelas adversidades de uma guerra e de razões nem sempre cercadas de sentido lógico ou possíveis de nominar. O filme sucede como um drama familiar em movimento, e de microcosmo da história social da Itália durante as décadas de 40 (período da segunda guerra), até o começo dos anos 70.
O peso da influência comercial determina perdas notórias ao filme, na qual seu enredo se constrói através de amarras que buscam estruturar e pontuar a trajetória das personagens aos moldes da estrutura melodramática dos filmes hollywoodianos daquela época, desfigurando o caráter original de drama que o filme propõe e as relações de crise do drama, elemento sempre próspero nas mãos do diretor De Sica. Essa desfiguração pode ser notada, por exemplo, no registro longo e desnecessário de Masha (Lyudmila Savelyeva) revelando para Giovanna (Sophia Loren), como encontrou e como salvou Antonio (Marcello Mastroianni) do frio e da guerra. Um recurso, creio, para pontuar ainda mais o melodrama da história e para balancear ainda mais o público na sua torcida amorosa e de desfecho final, com quem Antonio deve ficar? A mulher amada ou a mulher que lhe salvou?
Há vários momentos no filme que resultam nesse mesmo sentido, de prolongar o melodrama, balançar as decisões do público e exibir explicações, algo que torna o filme cansativo, explicativo em excesso e raso diante a dimensão de questões humanas e das possibilidades de reflexões sociais, políticas e de guerra que acabam sendo utilizadas apenas como plano de fundo, e que quando evocados, são tratados de forma superficial.
Ponto de destaque e que merece atenção especial, é a relação estabelecida pelos protagonistas Giovanna (Sophia Loren) e Antonio (Marcello Mastroianni). De Sica havia realizado alguns trabalhos, tendo Sophia e Antonio como casal de protagonistas, (exemplo: Ieri, oggi, domani -1963). Essa experiência anterior, colabora tanto para aqueles que já assistiram ou para aqueles que assistem pela primeira vez a parceria entre tais atores e o diretor. Essa total química, facilidade e intimidade para o jogo, colaboram certeiramente, onde não é preciso mais de três minutos, para o público torcer e "shipar" o casal Giovanna e Antonio. Algo muito importante e necessário para essa história, já que a felicidade entre esses dois é breve. Tal como em uma partida de futebol, o público vibra com a postura determinada, apaixonada de Giovanna - uma mulher italiana - que vai até à Rússia procurar Antonio, o marido dado como perdido durante a II Guerra. A travessia faz-se por paisagens urbanas e campos de girassóis, uma passagem bela, florida e poética que colaboram na perspectiva de um desfecho feliz.
O trabalho de Sophia Loren é árduo na tentativa de desvencilhar da musa e do apelo sexual comum ao histórico de suas personagens, e em muito momentos conseguem, mas para facilitar o desfecho de sua história, temos justamente o emprego da musa e do apelo sexual, mas claramente como recurso imposto pelo roteiro e acatado pela direção. Já Marcello Mastroianni impressiona pelo carisma e magnetismo, um simples retrato do ator ou personagem já são suficientes. Honestamente sabemos que não é de todo um trabalho difícil para ambos atores, já que as personagens não exigem durante o feito, durante o que é filmado ou captado, um esmiuçar de estados, sentimentos e conflitos. A carga melodramática já se encarrega disso, porém, em nenhum momento, assistimos um trabalho de menor, de escanteio ou que imprima desprestígio.
Destaques para a trilha de Henry Mancini, famoso por criar identidade musical nos filmes em que trabalha. Já a Fotografia de Giuseppe Rotunno, especialmente em todas as cenas de multidão, que somadas a direção de Vitoria imprimem um verdadeiro retrato de uma Itália. Entre tantos momentos de brilhantismo de direção e fotografia, destaco a primeira cena de guerra na Rússia. A forte e frutífera imagem de uma grande bandeira vermelha balançando no ar e oscilando entre projeções, plano de fundo e transparências de uma guerra na neve que é manchada pelo sangue de pessoas tão perdidas quanto o próprio destino de duas pátrias, que oscilam entre a mãe e o carrasco, oposição que , ao mesmo tempo, abraça e sentencia a vida do cidadão (homem comum), e o soldado da guerra.
"La femme publique" não permite traços de sutileza. Seja na realidade, na fantasia ou na mistura entre esses dois polos, tudo se diz ou se mostra em excessos.
Aos desavisados, cabe o aviso: a obra do diretor polonês Andrzej Żuławski não é descanso nem convite ao olhar contemplativo, tão pouco quer ser analítica. Permite, entretanto muitas reflexões e com momentos de pura poesia, mas sua caraterística principal está na figura inquietante, provocadora, revoltosa e crítica sobre a vida e consequentemente sobre o homem.
"La femme publique" foi realizado em 1984 tendo com inspiração a novela "Demons" de Dostoevsky. Cenas dessa mesma peça sano utilizadas em um filme que está sendo realizado dentro do próprio filme ou do que seria a história principal "La femme..." essa utilização de metalinguagem, que muitas vezes complica ainda mais o entendimento da obra, rende, em contrapartida, um jogo valioso que até equipara o público com a protagonista da história, a estonteante Ethel (Valérie Kaprisky).
Equipara no sentido que Ethel é uma jovem aspirante a atriz que não consegue diferenciar atuação e realidade, ao ponto de assumir a figura de uma mulher morta, cujo assassino é o abusivo e deslocado diretor Lucas Kesling (Francis Huster), acrescente a esse enredo a figura de Milão (Lambert Wilson), um imigrante checo que é manipulado pelo cineasta (Lucas) para cometer um assassinato político. Entre esses três personagens que formam um triângulo amoroso que nunca se realiza e nem se quer realizar, acompanhamos os medos, insanidades, desafios e impulsos como arquétipos de um mundo ficcional espelhado ao real.
Em vários momentos do filme, temos a sensação de estarmos tão perdidos quanto Ethel, e tão como sua personagem, não há ninguém que possa nos dar as mãos, ao contrário, sempre que surge alguém somos agredidos ou verbalmente ou fisicamente, o que estabelece um jogo muito louco e que nos deixa envergonhados, pois quando esse jogo é ficcional (que está sendo rodado durante o filme principal) tais agressões são até bem recebidas, mas quando se revelam na realidade da vida daqueles atores, seres humanos, é de uma agressão pavorosa, embora se apresente um respaldo marcante de que estamos assistindo uma encenação dentro da outra, mas novamente, como é espelhado na vida real, é uma loucura e agressividade comum a vida humana.
Tanto nos momentos que inserem um set de gravação, um dia de filmagem ou no final do filme, onde os atores tal como em um teatro reverenciam o aplauso do público. Em todos estes momentos que se misturam realidade e ficção, a paleta de tons usadas em "La femme publique" não permite traços de sutileza. Seja na realidade, na fantasia ou na mistura entre esses dois polos, tudo se diz ou se mostra em excessos. Por ter traços tão grosseiros, os momentos de quebra e a incerteza de qual mundo estamos, suavizam esse drama. É interessante notar as referências teatrais que acompanham o diretor Andrzej Żuławsk, não só dos autores teatrais, mas na referência a teatrólogos como Brecht, com seu teatro político com rupturas e fragmentação das cenas, além do "eu" narrador onde a figura do ator é às vezes o intermediário das ideias do autor. Outra referência teatral é de Antonin Artaud é o seu teatro da crueldade, onde os atores buscam em situações e emoções reais para trazê-las e revivê-las no palco, tal como a jovem atriz Ethel do filme, porém, que se perde ao misturar realidade e ficção.
Embora seja relativamente restrito, Zuławski tece seu próprio conto de violência política com Dostoyevsky. Kesling explica que ele quer adaptar o romance porque é "um conto profético sobre aqueles que tentam mudar o mundo através da violência", e de forma estranha ele se torna a encarnação de Stavrogin e Verkhovensky. Zuławski seleciona cenas-chave de "Demons" para incluir como o filme dentro de um filme e a maioria deles tem a ver com conteúdo político. A cena de uma das reuniões de Verkhovensky é brilhantemente filmada como uma partida suada em uma quadra de tênis interna, onde é declarado que "assassinato, chantagem, extorsão, bombas" serão adicionados à sua agenda, e uma lista de pessoas a serem mortas deve ser redigido imediatamente.
A câmera nos filmes de Żuławski se encadeza em cenas, avançando nos setas e buscando ativamente os atores, a maioria das cenas de "Femme Publique" é atingida por ângulos baixos e atrevidos que tornam Kaprisky uma espécie de deusa totêmica ou uma alma perdida em meio a edifícios europeus vertiginosos e cavernosos, escadas em espiral e colunas dilapidadas. Mas este é também o seu filme mais suntuoso em termos de iluminação, cortesia do célebre diretor de fotografia Sacha Vierny.
No mais a atuação dos atores está a altura do filme, mas Valérie Kaprisky com sua Ethel dominam a cena. Se no começo do filme temos a jovem atriz com montes de revistas de atores famosos, ao fim o mesmo acontece com a consagração, mesmo que fantasiosa de Ethel, estampando outro monte de revistas, tornando-se a atriz e mulher publica. O erotismo de Ethel, através do seu corpo, sua dança e sua beleza, que está eternizados nesse filme e decerto estarão durante muito tempo na memória do público.
“Monty Python” deixa claro que o destaque sempre será a piada, o riso, e nunca a vaidade de quem é ou não capaz de fazer rir, e por tamanha entrega e generosidade já temos um bom motivo para acompanhar essa história.
O filósofo Henri Bergson dedicou boa parte de seus estudos sobre a comicidade, como podemos verificar no livro de sua autoria (O RISO — ENSAIO SOBRE A SIGNIFICAÇÃO DO CÔMICO). Em tal obra, que esgarça a fundamentação do riso, Bergson pontua uma ideia na qual o grupo inglês de comédia "Monty Python", a utiliza quase como tese, no caso: O riso é a mecânica aplicada no ser vivo.
Em "Monty Python & the Holy Grail" (1975), temos toda a distribuição de uma mecânica aplicada de forma sútil, sem didatismos ou apresentados de forma obrigatória na tentativa de provocar o divertimento do público, apesar de ser uma comédia, não é realizada escancaradamente tal como convencionalmente outros filmes do gênero se propõem, algo que pode ser verificado no filme "The Meaning of Life", trabalho posterior desse mesmo grupo, que utiliza de "sketches", algo simplista e raso na construção de comicidade, principalmente se considerarmos a complexidade do efeito cômico empregado em um longa-metragem com história focal e linear.
A comédia cujo foco de sátira principal é sobre a lenda do Rei Artur, é um trabalho escrito e realizado pelo grupo Monty Python e que contou com a direção de Terry Gilliam e Terry Jones. A sátira empregada expande os seus limites ao mostrar um rei em uma missão sagrada, e que por ser crente demais da sua condição, provoca risos ao ter essa seriedade interrompida ao cavalgar em um animal imaginário, que só existe através das batidas de um coco, um efeito sonoro encarregado ao seu ajudante Patsy (Terry Gilliam), a sonoridade é suficiente para o Rei Arthur dos Bretões (Graham Chapman) crer ter de possse um cavalo que o acompanha pelas terras inglesas. Esse efeito não só do som, mas de um rei quase aos moldes do conto dinamarquês "A roupa nova do rei", onde um nobre desfila pelado, porém, acreditando trajar uma bela roupa, pois, assim lhe falou seu alfaiate, enfim, essa postura louca, imaginativa do Rei Artur somado ao som dos cocos serão cálculos resultantes de uma soma mecânica recorrente no filme, algo que Bergson identifica como mecânica da repetição para o riso.
“A repetição, uma combinação de circunstâncias que se repete exatamente em várias ocasiões, contrastando vivamente com o curso cambiante da vida - será tanto mais cômica a repetição (ou coincidência) quanto mais complexa for a cena repetida e quanto mais natural for representada (duas condições - complexidade e naturalidade que parece se excluírem, e que a habilidade do autor teatral deverá conciliar)”. Bergson, 1900.
O destaque dessa repetição característica em"Monty Python & the Holy Grail" é a sofisticação na qual ela é construída, e nos momentos em que é inserida, pois, é algo que corre o risco de ser cansativo ou batido, mas que no filme exerce um encanto ao ponto de queremos mais. O mesmo efeito ocorre em todas as circunstâncias nas quais o Rei Artur e seus companheiros tentam invadir castelos, porém, nunca conseguem. Já que as tentativas, essas diferentes, sempre fracassam, mesmo quando se mostram ser uma excelente ideia, como na tentativa aos moldes do cavalo de Troia, que no filme é substituído por um grande coelho de madeira entregue aos franceses.
Uma interessante divisão realizada para conhecermos em detalhe cada um dos cavaleiros da Távola Redonda, é justamente uma quebra aos moldes do teatrólogo Brecht, uma ruptura com a narrativa ficcional, apresentando um historiador (atual ao período em que a obra foi realizado), e aos molde de um programa televisivo, explica ou tenta explicar o que ocorreu com os cavaleiros, porém, um desfecho tragicômico é dado ao professor, essa quebra não utilizada de forma gratuita, ganha destaque permanente a medida que retroalimentar o enredo do filme, evocando momentos de risos através da repetição de interrupções da história medieval por uma investigação policial moderna.
Com a ruptura que permite conhecermos melhor figuras como o inteligente Sir Bedevere (Terry Jones), o bravo Sir Lancelot (John Cleese), o casto Sir Galahad (Michael Palin), e Sir Robin (Eric Idle), o público é agraciado com atuações impecáveis. Temos em cada ator um preciso "time" para o riso e um jogo de escadas entre o grupo "Python" deixando claro que o destaque sempre será a piada, nunca a vaidade de quem é ou não capaz de fazer rir, e por tamanha entrega e generosidade já temos um bom motivo para assisti-los.
A direção e a fotografia, cometem deslizes primários de registro, em algumas cenas, por exemplo, há desfoque de lente, e a utilização de planos abertos nem sempre conseguem comunicar a dimensão do que se deseja revelar, talvez isso ocorra por um limite de orçamento, já que muitas das cenas de planícies são achatadas em planos médios que não dão conta de registrar castelos e povoados (algo que necessita de investimentos para construção), já nas cenas sombrias ou de névoas, o uso de close's, big close's e planos abertos, ao invés de auxiliar em qualquer dialogação, só complica e diminuem o efeito cômico pretendido.
É válido ressaltar quem os momentos de inserção das animações são todos, muito bem inseridos, além da arte impecável que colabora e auxilia na construção de uma proposta cômica, e mesmo sendo desenhos inseridos em uma história de humanos, são empregados com naturalidade. Como Bergson explica, isso se dá quando certo efeito cômico derivar de certa causa, quanto mais natural a julgarmos tanto maior nos parecerá o efeito cômico: rimos já do desvio que se nos apresenta como simples fato. Mais risível será o desvio que virmos surgir e aumentar diante de nós, cuja origem conhecermos e cuja história pudermos reconstituir. A causa da inserção desses desenhos no filme são sempre resultados de um mundo e de uma ordem divina, que saem do plano terrestre e apresentam-se como mundo do extra-plano humano, e se registram tal como as ilustrações da igreja católica na idade média, porém, sem a seriedade do traço da igreja, mas sempre do traço cômico.
Por último, destaco que ao se apropriar de uma história medieval, o grupo britânico soube indiscutivelmente tratar da significação social, criando um trabalho atemporal. O enredo é fortalecido pela ideia de um riso em grupo, pois, não desfrutaríamos o cômico se nos sentíssemos isolados - o riso parece precisar de eco, de cumplicidade com outros galhofeiros, reais ou imaginários, algo que os "Python's" sabem bem.
Talvez a resposta de algum sentido, seja o próprio caminho da (eterna) procura.
Dirigido em 1983, por Terry Jones co-criador e membro da companhia de comédia Monty Python, o grupo inglês emprega ao filme uma divisão em "sketches" algo comum as séries de humor televisivas, e que durante ao filme é explicado através do humor ácido, sua divisão assim se dá pela incapacidade do público em acompanhar uma história longa e contínua sem intervalos comerciais ou que não insira ao longo da história violência, sexo explícito ou qualquer outra coisa estúpida ao ponto de ser censurada e provocar polêmica suficiente para tirar as pessoas da tela de uma tv e despertar o interesse de ir ver um filme no cinema.
Esse tom ácido, debochado, sagaz e jocoso estará presente em todos os divisões e sub-divisões de "The Meaning of Life" e ainda assim o roteiro será cuidadoso o suficiente para criar ligações entre as histórias o que é feito de forma muito simples e eficaz, e com muito humor.
O filme é dividido em cerca de oito capítulos: O milagre do nascimento; Crescimento e Aprendizagem; Lutando uns aos outros; Meia idade; Transplantes de órgãos de fígado; Os Anos do Outono; O significado da vida; A morte - e quando esses quadros se ligam o efeito é ainda mais divertido.
Ao mesmo tempo, que o uso de "sketches" possibilita uma dinâmica e propensão de estimular o público a ater-se com momentos e imagens que mais lhe interessam, o contrário a isso também ocorre, se temos uma brilhante abertura com metáforas e que hoje (2017), vislumbra traços de previsão desse nosso futuro, onde o mundo abole o sistema de trabalho através da mão de obra (tal como os escravos idosos do prédio que navega no mar econômico), para viver de uma economia financeira e de ações. Se esse quadro de abertura é feito com maestria e será dispositivo para o enlace com outro capítulo, histórias como do exército inglês, são ineficazes para qualquer análise do filme. Não corroboram em nada e a impressa que causa, é de ser um instrumento de alívio para uma piada anterior mais complexa, intelectualizada e consequentemente respiro para quem não entendeu ou para aqueles que ainda estão refletindo. Esse intervalo de espaços entre um riso intelectual e o riso raso, fácil será apresentando em outros momentos com o mesmo efeito.
Um momento memorável surge no capítulo, os anos de outono, especificamente na "sketche": "The Autumn Years", na qual um senhor monstruosamente gordo, o Sr. Creosote, come desenfreadamente e quando recebe um pequeno pedaço de chocolate, explode. Algo que para nós, brasileiros, é muito familiar quando recordamos da Sra. Redonda, personagem emblemática criada por Dias Gomes para a telenovela "Saramandaia", cujo final da personagem é igual ao do Sr. Creosote.
Há muitos bons momentos no filme de 1983, o meu favorito é o de um grupo de pomposos convidados para um jantar que são interrompidos pela visita da "Morte" (Grim Reaper), em suma, todos que estão ali morrerão e quando questionado do motivo de tantas morte em um jantar, eis que a resposta é devido a um singelo mousse de salmão, e o ponto ápice vem do comentário de uma senhora (Michael Palin), que com sua despretensiosidade diz: "Eu nem comi a mousse". Essa fala que supostamente foi improvisada, e que por ser tão bem utilizada provoca risos, carrega uma sutileza que auxilia na indagação não só do motivo da morte, mas também no sentido da vida, onde não há aparente sentido algum, tudo não passa de mera condições e que na maior parte são ocasionados inerentes ao desejo do homem.
Na busca de responder ao título filosófico que é também o argumento principal de "The Meaning of Life", percebemos que no final, a resposta é menos interessante se comparado ao prazeroso processo na tentativa de responde-la. Talvez a resposta de algum sentido, seja o próprio caminho da (eterna) procura.
"The King's Speech" é um filme bom mas não passa e não ultrapassa o limite de um vídeo, possui seus méritos, mas quando se pensa nas possibilidades e até mesmo na quebra de possibilidades do cinema, "the Kings" não acrescenta em nada.
É tudo feito em uma escala muito rasa de um vídeo direcionado para satisfazer e responder as encomendas de quem lhe solicitou ou até mesmo para seguir o rumo dos anos 2000. Ano próspero, que gerou uma linha de realizações biblio-cinematográficas sobre os reinados, em especial da Realeza Inglesa.
Até mesmo as atuações seguem o mesmo ritmo, Colin Firth está bom, mas sabemos de sua capacidade, e honestamente aqui não era o momento de receber seu oscar como melhor ator.Já Geoffrey Rush vai, além disso, o que é o grande alívio do filme, seu bom desempenho consegue seguir um ritmo próprio, mas nada para além de algo previsível, e sabemos que Rush é um ator excelente.
Talvez essa estranheza de ser apenas bom, se justifique pela direção de Tom Hooper que possui vastas realizações televisivas, e que refletem no filme "King...", não apenas por ser um roteiro fechado de locações internas, com uma iluminação muito clara e por vezes, artificial, mas principalmente por pontuar planos e contra planos, um trabalho simples, quase preguiçoso que a TV utiliza para simplificar ao máximo e deixar bem claro o que se conversa e com quem se conversa, não abrindo espaços para reflexões e possibilidades.
Fora isso os cenários, especialmente onde temos a presença da personagem "Lionel Logue", é nítida sua referência de velhice e decomposição que inversamente dão beleza ao filme, porém, Hopper (especificamente ao utilizar "close's" das personagens sentadas), abusa em querer apresentar tais cenários com recortes que até funcionam, mas que usados em demasia, cansam, e só mostram que estão ali como forma figurativa de um mundo pouco explorado, de uma história interessante mas registrada sem profundidade, superficial.
Casablanca é um mundo utópico, uma grande metáfora sobre a vida que é ao mesmo tempo, o limbo ligando o inferno ao paraíso.
Em "Adaptation" de Spike Jonze, "Casablanca" é referenciado como uma obra-prima para aqueles que querem estudar e criar um roteiro, a consideração é feita pelo professor de roteiros Robert McKee (Brian Cox), e sem dúvidas: é.
O clássico de 1942 dirigido por Michael Curtiz, atravessa os séculos como máxima referência da sétima arte, principalmente pelo desenvolvimento de sua história, um primoroso roteiro que segue a estrutura clássica linear (começo, meio e fim), e que sabe tirar partido disso ao provocar pequenas quebras da linearidade, ao desenvolver uma história dramática, cujo passado não conhecemos, mas que é peça fundamental e que interfere nas decisões e nas características de uma personagem, e um futuro incerto, mas com possibilidades claras. Sabemos os caminhos disponíveis para os protagonistas, mas qual será o escolhido e o motivo, isso só conheceremos ao término da película. O roteiro é baseado na peça "Everybody Comes To Rick's", sendo desenvolvido em três mãos, por Julius J. Epstein, Philip G. Epstein e Howard Koc. Uma curiosidade é que o texto da peça só chegou a ser montada (anos) depois, e os direitos para o cinema foi um dos maiores valores pagos na época.
Uma grande sacada do roteiro é justamente não se levar tão a sério, "Casablanca" inicia com uma narração irônica, próxima das comédias que parodiam guerras, e em diversos momentos temos esse ar jocoso nos diálogos das personagens, tal como Richard Blane (Humphrey Bogart) que satiriza sua condição de homem abandonado ou da condição transitória e de espera da grande sala de conexões que é o "aeroporto Casablanca". Porém, o roteiro comete o deslize justamente ao querer apresentar o mundo externo através de flash black, um recurso que não agrega nada de interessante ao filme, mas é uma saída fácil para tentar esclarecer fatos importantes do passado, ainda assim, algo que um roteiro tão brilhante e uma direção precisa, poderiam ter solucionado com outros meios.
Um recurso próspero utilizado para compor a iluminação do filme, é a ideia da lanterna de um farol, que reflete seu giro por toda aquela cidade, embora espacialmente falando, a luz desse farol revela que Casablanca é tão curta quanto a extensão entre dois braços abertos, porém, é clara a proposta do diretor Michael Curtiz que com a direção de fotografia de Arthur Edeson, criam uma atmosfera de ocultismo, e que tal como as personagens, só temos vestígios de sombras, não são claras, tal como os lapsos de iluminação, que pouco a pouco revela algo. Outro ponto que colabora na iluminação e fotografia adotada, é a total superficialidade empregada, estamos em uma cidade do Marrocos, onde a luz solar é forte e farta, mas como "Casablanca" foi rodado em estúdio, e também se propõe aos traços de uma cidade superficial, sua iluminação é composta por abajures, lustres, lamparinas, brilhos e faróis e raramente temos reflexos do sol. Essa artificialidade é sentida igualmente na direção de arte realizada por Carl Jules Weyl, que dentro do que seria cenários internos e externos, trabalha com oposições muito definidas, nos ambientes internos temos a riqueza de detalhes, como no bar "Ricks Café American" ou "Club Owner Signor Ferrari", nesses ambientes tudo é muito luxuoso e grandioso e bem explorados em planos abertos ou na minúcia de close's revelando um belo trabalho de composição de imagens e de Mise en scène.
A trilha sonora é marcada pelo clássico "Como o Time Goes By" e La Marseillaise, o hino nacional da França. Ambos ganham "status" para além de trilha sonora, tornam-se “leitmotiv”, e gerando certo incômodo, no terceiro dedilhar de La Marseillaise mais do que saber que ali estão os franceses ou que é uma busca de enaltecer a França, sabemos que é uma insegurança por parte do diretor de esclarecer pontos que já se estabelecem seja pele local frequentado ou pelo fardamento que as personagens utilizam (exemplo: diferenciar soldados alemães dos franceses). Porém, o ápice de exaltação do hino nacional da França, ocorre quando é utilizado para provocar os Alemães, capaz até de unir os franceses que estão no Rick café e sob domínio Alemão.
Humphrey Bogart como Richard Blane, Ingrid Bergman como Ilsa Lund Laszlo e Paul Henreid como Victor Laszlo, conseguem se destacar individualmente, e as origem estrangeira de cada ator favorecem o jogo clandestino e migratório inerente ao filme. Se separadamente cada ator se destaca, a combinação em um triângulo amoroso funciona ainda mais, e divide muito o espectador para o favoritismo amoroso da personagem de Ilsa, pois, tanto o charmoso Blane e o heróico Victor são carismáticos e com qualidades divergentes, mas que juntos só complicam ainda mais uma posição que colabore em determinar com quem Ilsa deve ficar. Nenhum destes personagens tombam em uma balança maniqueísta para o lado ruim. Alguns são cínicos, algumas mentiras, alguns matam, mas todos são resgatados e suas decisões, por mais que difíceis, são fáceis de entender.
Casablanca é um mundo em miniatura, em que desejos, pecados e impulsos básicos universais, para o bem e para o mal, estão envolvidos em “glamour”, “suspense” e estilo.
A incerteza de qualquer definição para “Caro Diario” é o que lhe faz tão especial. Um documentário? Um filme? Uma autobiografia? Um registro narcisista? Talvez um pouco de tudo, mas , ao mesmo tempo, negando ser tudo isso.
Falar sobre “Caro diario” só perde para o prazer de assistir ao filme realizado pelo italiano Nanni Moretti em 1993. Morreti já é referenciado há alguns anos como figura representativa da nova fase do cinema italiano. Confesso que só havia assistido anteriormente um filme de Morreti, sendo apresentado ao diretor através das aulas de italiano que cursava, e na qual assistimos ao "Habemus Papam" de 2011.
"Caro Diário" é uma obra ímpar que se faz através de três episódios com caráter autobiográfico e em diálogo com o documental. Ao transpor o seu diário para as telas, Moretti poderia correr o risco de realizar algo perigosamente narcisista, mas por ter um olhar, escrita e personalidade tão interessante, “Caro” se transforma em um jocoso filme livre para zombar do seu próprio autor, de sua pátria, seus amigos, do público… O mosaico do mundo que circula Moretti é tão verdadeiro que em vários momentos a reciprocidade e familiaridade das situações não apenas atravessam o protagonista dessa história, mas também aquele que assiste. Como, por exemplo, não se identificar com a incapacidade dos médicos de ouvirem seus pacientes, mas , em contrapartida a facilidade dos médicos em falar e recitar remédios que em nada ajuda nossas enfermidades, principalmente em projetar nos pacientes a culpa da doença bem como a responsabilidade para a cura.
Referências nem sempre são algo agradável, pois, geralmente tendem a reduzir o mérito das pessoas, no caso de Moretti, fica sincero quanto de Woddy Allen inspirou o diretor ou não passa de ligações pessoais do público, já que em diversos momentos do filme, temos memória e familiaridade de abordagens típicas dos filmes autobiográficos de Allen, tal como sua narrativa direta, sua inserção como homem e personagem, seus comentários sarcásticos, a divisão de capítulos com utilização de cartazes nominativo, a capacidade de rir de si e desfechos que sempre seguem o oposto do esperado ou desejado.
A utilização de uma trilha sonora quem em diversos momentos é algo que surge de forma externa, e que acaba por influenciar ou criar momentos próprios da música, um diálogo entre personagem e melodia, funcionam excelentemente e muito dizem da relação e influência de ritmos latinos ou de músicas antigas na formação de Moretti. Um dos momentos mais belos do filme, é a homenagem de Moretti ao cineasta italiano Paolo Pasolini, uma ida de moto (vespa) até o local onde o diretor foi assassinado ao som de Korn do concerto Keith Jarrett.
A vespa: veículo para apenas uma pessoa. A ilha: metáfora para indivíduo, solidão. O médico: profissional que cuida do corpo de cada indivíduo; cada corpo, muito particular, de cada pessoa. Os títulos de cada parte em que Caro Diário se divide tratam, de alguma forma, de uma noção do individual, do particular, como um diário também o faz. Aqui, contudo, não se trata de uma narrativa intimista: Moretti pode ser egocêntrico, mas isto não o faz ensimesmado. Seu jeito idiossincrático, peculiar, é, na verdade, um jeito que poderia ser de qualquer um; nós o notamos em Moretti simplesmente porque ele se expõe.
Tanto a fotografia quanto a iluminação são pontuais, não indo além do necessário tão pouco inovarias, no especifíco a iluminação é notório a utilização de luz natural, que muito colabora na criação de um caráter documental e biográfico muito próximo dos documentários de rua ou de programas vespertinos que registram os fatos de cidades ou bairros, a propósito, o primeiro capítulo, que utiliza um trabalho de câmera interessante, tanto pela movimentação quanto pela quebra de planos abertos e fechado, essa primeira parte, remete muito aos programa de tv, que costumam apresentar os bairros de uma grande cidade através de uma personalidade.
"Caro diario" é principalmente uma conversa entre o diretor com o público, o que cria uma oportunidade de intimidades que raramente podemos ter como experiência, seja através de documentários ou dos diversos gêneros cinematográficos. Um filme de sensibilidade mesmo quando morta suas costuras, mesmo quando se estabelece ao avesso. Um diário que ajudamos escrever e que com certeza, é prazeroso acompanhar. Parabéns Moretti!
Drive
3.9 3,5K Assista AgoraTudo em “Drive” é muito interessante, das lacunas inquietantes propostas pelo roteiro, por sua trilha sonora repleta de sintetizadores com mensagens descritivas das personagens, o estilo neo-noir (neon) adotada pela fotografia e pelos enquadramentos impecáveis que remetem ao estilo Tarantino.
“Drive” é um roteirizado adaptado por Hossein Amini, inspirado nos livros da série “Diver” do escritor americano James Sallis, tendo sido dirigido em 2011 pelo dinamarquês Nicolas Winding Refn. Uma curiosidade é que Ryan Gosling, protagonista do filme, indicou o diretor para os estúdios da FilmDistrict.
Em “Driver” Ryan Gosling vive o protagonista sem nome, que não é citado ou nomeado em momento algum do filme, isso já pontua a característica misteriosa da personagem, que possui hábitos noturnos e faz às vezes figura de vigilante das ruas da cidade de Los Angeles, que ele conhece muito bem, tão bem, que o filme inicia com Ryan deixando claro sua habilidade de conhecedor das ruas e de motorista, e que ele se resume naquele momento a isso, o serviço para qual ele está sendo contratado ou que virá depois desse serviço não lhe interessa. Todo esse discurso inicial do protagonista é capturado em cortes assimétricos de uma janela, com um jogo de sombra e luz característicos do filme noir e que colaboram para a construção de um prólogo que apresenta uma situação, não explica nada, o que o público pode contar é com aquele momento e aquela situação que ambienta e apresenta em uma pequena dose, uma das faces do protagonista. E essa será uma constante em todo o filme, não há explicações, há o recorte de um determinado momento na vida do personagem principal e que acompanharemos até o que podemos entender como desfecho, onde nesse ciclo, da mesma forma que esse homem se apresenta e se encerra enigmaticamente.
Destaca-se no prólogo uma concisa apresentação da proposta fílmica, sendo muito clara que pretende ser e a forma que utilizará para isso. Um trabalho magnífico de roteiro e direção que somado com a fotografia, edição, arte e trilha sonora promovem um trabalho excepcional e merecidamente figurando como no top 10 dos melhores filmes realizados em 2011, rendendo a Winding Refn o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes. Ainda sobre o prólogo, destaca-se entre outros, o recurso de unir a fuga dos assaltantes contra a polícia, onde no carro Ryan ouve a narração de um jogo de basquete, que servirá como narração da própria fuga e de auxiliador para os ladrões se dispersarem, no carro onde ocorre a fuga de dois bandidos sendo guiado por Ryan, temos uma câmera que registra todos os momentos de dentro do carro e que revela o motorista através do retrovisor e do reflexo no painel frontal do carro. Após a bem sucedida fuga, temos um letreiro estilizado com uma cor pink neon que intitula o filme e tendo como fundo musical a sugestiva “Night Call” (Kavinsky & Lovefoxxx), reparem que da escolha musical a inserção ao título, aos recortes e a fotografia neon, tudo é muito bem pensado e estruturado, colaborando ainda mais para preparar o terreno de “Drive” que não significa apenas dirigir, quer dizer também impulso, motivação, sendo essa última a característica primária da personagem de Ryan Gosling, ele é um herói que ronda a cidade em busca de motivação, de algo que impulsione sua vida e o faça ser um herói de verdade.
Ryan se vale da sua habilidade no volante para exercer as mais diferentes funções, ele é mecânico, piloto de Stock Car, dublê de motorista em filmes, vigilante noturno e entre outras, motorista de fuga em assaltos. Tendo Shannon (Bryan Cranston), como empresário, agenciador e a figura mais próximo de um amigo. Uma característica na apresentação das personagens, é que raramente elas se apresentam de uma forma convencional, sempre surgem de encontros casuais ou na medida que são necessárias para um serviço, por exemplo, o próprio Shannon aparece a primeira vez como alguém que aluga um carro para Ryan, já Irene (Carey Mulligan), por quem Ryan depois irá se apaixonar, aparece despretensiosamente em um encontro casual de elevador. Detalhe para o elevador, que dá mesma forma que apresenta e é ponto de encontro das personagens, será futuramente de separação e desfecho, em uma belíssima cena, capaz de inserir no mesmo ambiente romance e violência, utilizando luz, trilha e atuações perfeitas.
Irene é a responsável para conhecermos outras vertentes e facetas de Ryan, através da relação traçada e que assistimos ser desenvolvida ao longo do filme por Ryan, “Irene” e o seu filho “Benicio” (Kaden Leos), que podemos ter a dimensão humana desse herói, e é através dessa relação com a interseção do namorado de Irene que estava preso, que surge uma motivação para o herói presente em Ryan se apresentar, e isso é explicitado no filme em vários diálogos, principalmente quando Shannon diz a Ryan, que ele é o único homem que tenta salvar o marido da mulher por quem se está apaixonado.
Os diálogos em “Drive” são construídos por uma originalidade e pontualidade raríssima. Tanto que é um filme de poucas falas e vários momentos de silêncio que dizem muito, principalmente pelo jogo realizado pelos atores, onde a interpretação de um subtexto é muito mais importante e evocativa do que qualquer outra fala. Dentre as atuações Bryan Cranston - como Shannon - se destaca. A versatilidade desse ator, famoso por interpretar Walter White na série Breaking Bad, mostra mais uma vez sua capacidade em criar personagens diferenciados e com uma precisa atenção para os detalhes e sutilezas de um sorriso ou do desconforto de um mancar. O resto do elenco promove um trabalho preciso, mas Ryan Gosling como motorista, deixa em vários momentos uma inexatidão de propostas, são vários planos mostrando o ator com uma fisionomia neutra, que não expressa nada, nem tão pouco evocam qualquer diálogo ou colaboram para uma narrativa, sua inexpressividade transforma-se em momentos vazios e que geram certo incômodo diante de uma quebra na atuação que não diz nada.
“Drive” é um filme sombrio, com tomadas noturnas e que alterna com tomadas internas claras com um abuso de tons laranjas e amarelo, seus silêncios prolongados tomados por uma transmissão de sugestão dos atores/personagens que alternam o que se diz com o quê se quer dizer, uma história que apresenta um enredo inicialmente com viés romântico e se transforma em uma violência bruta, com cenas fortes e suas tomadas e planos que lembra muito os filmes de Tarantino, principalmente pelo uso plongée e contra plongée, a utilização de uma simbologia sugestiva, como a figura de um escorpião aliado ao personagem de Ryan e a conversa com a criança Benicio, onde um vilão é visto pela ótica de um desenho infantil, em que para ser do mal é uma condição inerente ao ser, em suma, nas dualidades que “Drive” se constrói temos um filme coerente, que se vale muito pela omissão de respostas e que fazem desse filme uma verdadeira obra.
Rei Arthur: A Lenda da Espada
3.2 622O melhor da proposta apresentada por Guy Ritchie, está na total despretensão e despreocupação com os amantes ou idólatras dos contos clássicos ligados ao universo medieval do Rei Arthur, é evidente seu desejo de apresentar uma estória que dialogue com os tempos atuais, principalmente em criar um blockbuster que atenda aos desejos de um público jovem, despertando nesse mesmo público, o interesse em acompanhar uma nova franquia de filmes. Guy entrelaça ambiciosamente aos interesses de uma grande produção de estúdio, uma qualidade visual e de narrativa características ao estilo do diretor. Em resumo, um filme com pretensões artísticas e comerciais, e que consegue falhar em ambos aspectos, o que talvez tenha gerado tantas críticas negativas, mas que fazem de “King Arthur” um curioso caso a ser observado e que já vale dar aquela conferida no filme. Destaque para a "hip-hop montage" que retrata o avanço da infância até a fase adulta do Rei Arthur, um trabalho primoroso e característico da montagem acelerada de Guy Ritchie.
Guy Ritchie é um cineasta inglês que despertou a atenção de muitos em 1998, com o lançamento do seu segundo filme: “Lock, Stock and Two Smoking Barrels”. Evidencia-se neste trabalho, marcas que se tornaram singulares ao estilo de Guy, e que consequentemente estão presentes em “King Arthur: Legend of the Sword”, tal como uma edição de imagens abruptas, com cortes secos, rápidos o uso frenético das imagens e que se expressam pela utilização de uma câmera muito pontual cujos planos são regidos em grande parte pela edição e contando com uma movimentação de câmera e de planos na medida que as personagens avançam, isso é, uma perspectiva de acompanhamento, o seguir de um ponto ao outro. Uma linguagem arrojada, muito proximal ao dos videoclipes e dos videogames, que por vez gera uma dualidade contraditória em “King Arthur”, pois, ao mesmo tempo, que é interessante e diferenciado ter uma história medieval, que já contada e recontada tantas vezes e de modos tão próximos, aqui, no filme de Guy, ela é mais remodelada.
Para remodelar essa história, o diretor renuncia a qualquer preciosismo literário ou de caráter intocável diante uma história secular, ao contrário disso, ele a moderniza e expressa isso em vários âmbitos, no figurino, por exemplo, utiliza o recurso da moda atemporal, trazendo traços de modernização às vestimentas, gerando leveza e mobilidade para auxiliar nas cenas de ação, nosso Rei Arthur agora é um homem que exibe os traços de seu corpo, utilizando camisas que exibem o seu peitoral sarado. A trilha sonora é um show à parte, assinada por Daniel Pemberton e contando com músicas que vão de "Babe I'm Gonna Leave You", do Led Zeppelin, misturando estilos clássicos musicais da cultura nórdica, do trovadorismo, da música polifônica com seus órganon’s e com composições próprias e uma trilha incidental repleta de sons graves, de referências ao heavy metal que lembra algo de “Mad Max” e principalmente pela inserção de um som, que no filme se misturam ao bramido de elefantes e seu efeito de trompas e ao “BRAAAM”, criado por Mike Zarin para o filme “Inception” e que se tornou febre e recurso praticamente obrigatório para os filmes de ação, suspense e de traços épicos.
Claro que essa modernidade expressa em todas os setores que englobam um filme, se tornam ainda mais marcantes na direção e na fotografia, justamente em ambos setores onde o filme mais desliza e comete seus erros. Na busca de modernizar “Arthur”, Guy remodela essa história clássica ao estilo de games, mas esquece o apelo crucial dos jogos, onde o público é ao mesmo tempo, espectador mais jogador ativo do game, já no filme, somos com toda a carga que isso exerce, espectadores, por isso, em cenas como da fuga do Rei Arthur e de seus companheiros, na qual Ritchie insere uma câmera subjetiva e aos moldes daquelas mini-câmeras esportivas e acopladas na lateral (ombro), dos atores, captando uma imagem de fuga comum aos consoles e que também deram fama ao filme “The Hurt Locker”, 2008, porém, ao se apresentar nesse único momento do filme, explicitam o caráter de uso artificial e de excesso em “King Arthur”, ambos gerando momentos constrangedores como na sequência final, onde “Arthur” (Charlie Hunnam) luta contra o exército de seu tio “Vortigern” (Jude Law), ao invés de uma coreografia ou qualquer outra possibilidade de luta real, temos uma inserção barata de gráficos 2D muito mal realizadas e que geram vergonha, já que este é o grande momento de embate e o ápice que o roteiro incansavelmente aponta, principalmente pelas cenas de lutas nunca se realizarem efetivamente.
O filme já inicia com um prólogo interessante que une uma breve explicação de fatos importantes e necessários para o conhecimento e posterior entendimento do público, e também introduz alguns personagens, os mais conhecidos da mitologia Arturiana (Merlin, a Senhora do Lago e Mordred), que durante o filme são citados e reaparecem em piscadelas, no claro interesse da franquia do filme, já que ele originalmente a ideia é de contarmos com seis produções. Enfim, nesse prólogo onde é traçada a grande batalha de Uther Pendragon (Eric Bana), o pai de Arthur e o rei da Grã-Bretanha contra Mordred (Rob Knighton), o traidor do Rei e do povo, neste embate toda uma Mise-en-scène de grande confronto é estabelecida como ápice inicial, o problema é que ela não acontece, na boa vontade do público pode ser encarada como uma forma de sinalizar a grandiosidade do Rei Uther, que prefere se entregar ao confronto, poupando seu exército e povo, mas, essas interrupções de batalha ocorrem em todos os momentos do filme, elas são estrategicamente apresentadas, mas nunca encenadas por uma questão de direção, que sempre fica em uma negação, seja pela não realização física em detrimento de uma realização gráfica ou por outras questões que inviabilizariam esse momento, embora seja estranhas diante a dimensão orçamentária e das indicações do roteiro.
A computação gráfica é outro aspecto interessante em “King”, assumindo muitas vezes a direção do filme, pois, nas grandes cenas de luta ou combate, cenas importantes e esperadas com expectativas pelos fãs desse gênero, já que são elas características marcantes de filmes épicos e da ação, pois bem, elas são entregues a computação gráfica, que em grande parte é realizada de forma magistral, mas que questiona os limites e a capacidade de Guy como diretor, até na característica mais marcante de Guy, do virtuosismo técnico, são assumidos agora pelo recurso gráfico e explorados em demasia de tempo e de recurso narrativo que só geram confusão, cansaço e novamente a superficialidade marcantemente empregada ao filme, resultado até nas atuações regidas por construções estereotipadas. Jude Law como Vortigern, beira ao infantil de um vilão que não consegue ser justificado, sua ambição, suas motivações e vilanias são mais fracas, comparadas a um vilão de desenho, pois, tudo que Vortigern faz é sobre uma ação pontuada apenas pelo fazer, algo que tão pouco Charlie Hunnam consegue com o seu Rei Arthur, o carisma do ator é notório e seu esforço é visível, porém, inútil diante a superficialidade de um personagem e de uma estória que acaba por ser mais fantasia.
“King Arthur: Legend of the Sword” ao tentar ser moderno se perde em sua própria virtude fragmentada, gerando um filme fantasioso e sem traços de querer ser história, mesmo tendo como base uma (por sinal riquíssima), e acaba gerando um produto sem foco, mas que atira para todos os lados e colocando em dúvida o explícito desejo de seu fim, estimular o público a acompanhar as próximas histórias que virão dessa franquia, já que a incapacidade de se ater a ideia original, de contar a lenda da espada do Rei Arthur, que acaba sendo logo retratada, dando espaço para um roteiro que enrola diante uma missão encerrada que não precisa e nem quer contar mais nada.
As Mil e Uma Noites
3.8 48"A verdade completa não está em um sonho, mas em vários”. Com essa citação que Pasolini, um dos mais idiossincráticos de todos os cineastas, inicia “Il Fiore delle mille e una notte”. A estranheza e a dificuldade de seu trabalhos decorrentes de seu compromisso com a contradição: A base desse compromisso foi a recusa de abandonar as influências diversas e parcialmente irreconciliáveis que determinaram a natureza de sua arte: o catolicismo, o marxismo, a homossexualidade, as favelas urbanas (cenários de seus primeiros romances), o campesinato, o neo-realismo, um apego ao fantástico e milagroso.
Enquanto “Il Fiore delle mille e una notte” parece estar tão distante das propostas do neo-realismo (na tentativa de capturar as realidades externas e internas do momento contemporâneo), o diretor ainda assim, consegue permanecer, incrivelmente, fiel à estética neo realista: O uso de atores não profissionais, cenas filmadas em locais externos e reais (sem a interferência de cenários artificiais ou construídos especificamente para o filme), e a espontaneidade do jogo.
Escrito (com a colaboração de Dacia Maraini) e dirigido por Pier Paolo Pasolini “Il Fiore delle mille e una notte” (1974), é o terceiro e último capítulo da " Trilogia da Vida " depois de “l Decameron” (1971) e “I racconti di Canterbury” (1972). Chama atenção a grandiosidade do trabalho de externas, tendo cenas rodadas no: Iêmen , Etiópia , Irã , Índia e Nepal, e tendo um pré-projeto muito mais complexa durante a elaboração do roteiro, sofrendo grandes modificações durante a fase de montagem. O filme foi premiado em 1974, no Festival de Cannes, tendo alcançado o Grande Prêmio.
“Il Fiore...” é baseado principalmente em uma história que atua interligada a outras, isto é, são mini-histórias ou episódios, que no final se interligam em uma grande fábula de um mundo onírico, sendo o protagonista desta história, o jovem casal de amantes, “Nur-ed-Din” (Franco Merli), jovem alegre e com ar de bobo e “Zumurrud” (Ines Pellegrini), uma escrava encantadora e muito esperta. Deste casal que marca a história inicial e principal como um fio unificador, Pasolini conta, seis outras histórias (organizadas em dois grupos de três), dentro de uma estrutura de cinco partes.
Cada trio de histórias tem seus próprios temas internos. Os três primeiros (anedotas breves), estão preocupados com a sexualidade e a igualdade, sendo o terceiro (mais desenvolvido) que acaba em um empate e na demonstração de que o desejo feminino e o desejo masculino são igualmente potentes. As histórias do segundo trio estão todas preocupadas com as noções do Destino: duas histórias em que o destino se mostra inescapável estando incluídas em uma trajetória em que o destino é superado. Além disso, a história de Aziz, Aziza e Badur está em contradição com a história do quadro de Nureddin e Zumurrud. Eles são ligados pela contradição de que "a fidelidade é linda, mas não mais do que infidelidade". No conto de Aziz, o conflito leva à morte e à castração, mas na história principal, a fidelidade e a infidelidade são reconciliadas: Nureddin, em busca de sua amada, pode ser levado a inúmeras diversões sexuais deliciosas, mas sua fidelidade a Zumurrud é sempre triunfante sobre eles, e finalmente recompensados em um final feliz que joga (a fim de repudiar) as relações de poder sexual.
O reconhecimento e a celebração da diversidade são um aspecto de um dos movimentos centrais do trabalho de Pasolini: o esforço para redescobrir um senso do maravilhoso, o mágico. De todos os filmes de Pasolini, “Il Fiore delle mille e una notte” se destaca por perceber o senso comum das relações sexuais, do seu prazer e divertimento, e promove isso, através de um erotismo purgado de toda a contaminação da pornografia. As relações que se estabelecem com favores sexuais ou no fim concretizado pelo sexo, muito mais do que gratuitas ou vulgares, se apresentam como algo humano e comum a todos, sem julgamento de valores, mas pelo prazer da auto-satisfação.
O roteiro ainda que construído sobre uma estrutura muito rígida e dividido em três atos, e cada um dos quais, no que lhe diz respeito, divididos em quatro partes, com a forte presença da estrutura como um elemento de ligação e de homogeneização entre as histórias escolhidas por Pasolini e baseadas nos contos “As mil e uma noites nas arábias”, em suma, o mesmo material narrativa é, em vez disso, apresentado na película numa forma rapsódica e contínua. Porém, podemos observar em vários momentos a marcante presença do autor (roteiro) e diretor, transmutado em discursos e defesas redundantes a Pasolini, no tocante ao posicionamento político, sua homossexualidade e afirmação óbvia da fé e da heresia.
O trabalho de movimentação de câmera é muito curioso, já que Pasolini optou pelo uso de câmera na mão (mais uma clara referência ao neo-realismo), o que gera uma movimentação intensa, quase documental e que associada a bela fotografia de Giuseppe Ruzzolini, resulta em um trabalho grandioso e que sabe tirar vantagem das inúmeras e belas locações, tendo registrado países que ao longo da história se fecharam por conflitos e guerras. Ruzzolini realiza também uma fotografia viva e que não diferencia o que é realidade de um sonho, algo que podemos compreender como uma posição assumida em não definir, dando liberdade ao espectador de entender tudo como um grande sonho ou conto, e de fazer suas próprias separações. Destaque também para o trabalho da Rank Film Labs, com efeitos especiais simples e praticamente artesanais e que dialogam com a ideia de um conto, de uma narrativa de fábula, ainda quê permeadas de crítica e senso político.
Pasolini expressa através do cinema: beleza, amor, verdade e justiça. Pasolini é essencial pelo seu caráter provocativo, jocoso e sem pudores em ir ao fundo de temas controversos e que a sociedade busca escamotear, tão pouco ainda, acompanhar em um filme. “Il Fiore delle mille e una notte” é um deslumbre de imagens que aludem ao sonho de um mundo imperfeito, mas essencialmente humano e por isso passível de erros que se assumem na tentativa de acertos.
A Doce Vida
4.2 316 Assista AgoraFellini consegue reunir em "La Doce Vita" um feito impecável. Sugere paralelamente e através da fábula, uma trajetória do jornalista Marcello Rubini que une e constrói a estória ao mesmo tempo, não apresenta e nem pretende ser uma narrativa concisa. Um filme estruturado na perspectiva de um cronista da vida, com reflexões, críticas e comentários elaborados através de uma linguagem poética, onde Fellini sabiamente utiliza do simbolismo, e apresenta claras referências ao expressionismo alemão e o cinema “noir”.
Nos créditos que iniciam essa obra realizada em 1960, já merece atenção o grupo responsável pelo roteiro, além do próprio Federico Fellini que dirigiu e co-roteirizou “La Dolce Vita”, figuram nomes expressivos na construção e expressividade da cinematografia italiana, tais como: Ennio Flaiano, Tullio Pinelli, Brunello Rondi e Pier Paolo Pasolini. Contado com um grupo tão diversificado de roteiristas que também eram pensadores, críticos, diretores, filósofos, professores e jornalistas, fica mais perceptível a opção de dividir o filme em prólogo, sete episódios com subdivisões e um epílogo. Ainda assim, contamos com um todo, isso é, todas as divisões e subdivisões se consolidam em um todo homogêneo e ainda que separadas conscientes e necessárias para a construção dessa crítica social, repleta de metáforas e simbologias para um futuro local (Roma), mas que é microcosmos de uma situação global, de um esvaziamento de nossas vidas, onde agimos mais como marionetes moldadas pelas influências de grande potências, em especial a norte-americana, e por instituições (religião, sociedade, política, família, educação…) que, ao mesmo tempo, sugam a doçura original da vida e ditam uma forma artificialmente adocicada, que deixam um sabor amargo no modo de viver.
Ao acompanharmos durante sete dias e noites a trajetória de Marcello Rubini (interpretado pelo excelente Marcello Mastroianni), um jornalista do mundo das celebridades que vive em Roma e que auto-questiona o seu ofício e sua vida, principalmente por não ter a sensação de felicidade, nem tão pouco de realização, quem ambos (vida e profissão), projetavam ou prometiam. Assim temos um protagonista que é movido basicamente pelo vazio e a busca em preenchê-lo, além disso, sua busca é atravessada pelo contato com diversas pessoas, que basicamente só expressam a mesma sensação de Marcello, e quando temos uma figura aparentemente de vida preenchida, logo, podemos visualizar a fachada dessa aparência, como na vida do milionário, pai e intelectual Steiner (Alain Cuny), uma figura à primeira vista invejável, mas que intimamente vive sob o desespero e angústias de não conseguir destacar-se, produzir e manter-se na posição e no nível que desperta tanta admiração.
Entre a cena inicial da película, um helicóptero que transporta a imagem de Cristo, sobrevoando a cidade de Roma até o seu destino que é o Vaticano, e que durante o trajeto temos Marcello tentando se comunicar e conquistar algumas moças que estavam tomando sol na cobertura de uma residência. A tentativa de comunicação é metaforicamente debilitada, não só pelo barulho do helicóptero, porém, por diversas condições e situações que refletem na incomunicabilidade da vida moderna. E esse caráter de não-comunicação, é algo presente e consequentemente característico à “La Dolce Vita”. Posso citar um outro exemplo marcante desse aspecto, a relação entre Marcello e milionária Maddalena (Anouk Aimée), com todas as diferenças de classe social e de estilos de vida, essas duas figuras se complementam no vazio e na busca de entender e preencher essas lacunas, porém, ao mesmo tempo, que se assemelham pelo traço da sensação de vazio, se individualizam de tal forma, que não se ouvem, não são capazes de perceberem as semelhanças de necessidades, e acabam tendo um para o outro, como objeto temporário para divertimento e utilização pontual.
A escolha de Fellini em realizar essa produção utilizando da imagem em preto e branco, de uma vida que inversamente ao que propaga o título é limitada em dois tons, e que entre tantos objetivos, tal como de criticar a forma arquetípica da influência norte americana (em especial dos filmes estadunidenses), em suma, colaboram (mérito pelo trabalho realizado por Otello Martellina), na metáfora e narrativa da estória. Utilizando uma fotografia de grossos contrastes entre luz e sombra, propiciando o jogo de uma vida entre aparências, principalmente em ambientes internos, versus o solar da vida externa que apresenta as durezas e a massa urbana, e que volta a se camuflar na noite sombria que é iluminada pela artificialidade de luzes, de bares e casas de festas que refletem néons e pelo flash insaciável das câmeras fotográficas ao registrar os vários momentos de figuras famosas, de celebridades, que entre tantos momentos captam até a ociosidade e a banalidade comum a qualquer ser, e ainda assim, alvo de interesse e curiosidade de pessoas não famosas, principalmente pelo desejo ludibriador de um estilo de vida invejável ou como objetivo, diante a insignificância da vida comum.
Esse tom ludibriador é muito bem representado nas diversas atuações, como também no trabalho de direção de arte e de figurino, que possuem em comum a dimensão da artificialidade escancarada e que tenta velar a realidade, como em grandes casarões e até castelos com belas fachadas, mas que por dentro são verdadeiras ruínas, tal como, a própria identidade de seus proprietários, que se escondem em maquiagens, luzes e figurinos de beleza externa e frágil diante a interioridade decadente dessas pessoas, essa diferença de exterior e interior foi motor estimulante para a criação de Fellini, já que o vestido utilizado pelas senhoras daquela época, cuja moda era de vestidos no estilo bolsa ou "vestido saco", despertou a curiosidade do diretor por sua moldura que pode apresentar e aparentar o corpo, e uma mulher muito linda, mas também pode esconder um ser esquelético de miséria e solidão. Algo que podemos identificar como comum a todos os personagens, sempre presos a uma bela fachada, tendo como destaque a personagem de Marcello Rubini, em mais um trabalho majestoso de Marcello Mastroianni, que consegue estabelecer muito bem as sutilezas e a curva dramática da personagem, bem como o traço nítido de oscilações gráficas de uma vida que oscila em momentos de picos de uma origem duvidosa tanto de felicidade quanto de angústia e tristeza.
Curiosamente a figura dos fotógrafos de celebridades, que posteriormente e por causa desse filme, passaram a ser chamados mundialmente de “paparazzi”, devido à personagem "Paparazzo", interpretado por Walter Santesso, enfim, esse grupo de fotógrafos do filme, parecem mais ocupar uma posição de parasita da vida alheia, não há reflexões sobre o seu trabalho, tão pouco sobre suas atitudes, só se revelam no sedento desejo de invadir a privacidade alheia e obter a melhor foto, o melhor momento que desperte a curiosidade do público que consumirá os jornais impressos ou televisivos, algo que como público de “La Doce Vita”, estamos em parte, iguais, já que somos colocados em um ponto de vista que tenta se aprofundar na curiosidade daquelas vidas, e pelo recorte em maior parte realizado por Fellini, já que neste filme, sua abordagem é dimensionada em vidas de uma classe em posição e condição muito mais favorável, comparado com a vida comum, até mesmo o fotógrafo Marcello Rubini, está em uma situação privilegiada economicamente, o que muitas vezes aparenta ser uma crise que oscila entre o discurso de uma classe privilegiada que vive momentos enfadonhos ao terem suas vidas como material de interesse colocando-os em um lugar de modelo ou se é mais uma crise de idade do jornalista diante sonhos e promessas de vida quando jovem, e que agora, na maturidade, se mostram inalcançáveis. Com isso temos na proposta realizada por Fellini, o registro e a utilização de uma forma (privilegiada), que confunde e gera momentos que inviabiliza seu discurso.
Tendo apenas essa ressalva, “La Dolce Vita” é um filme atemporal, de considerações pertinentes a vida contemporânea e com uma narrativa de estilo impecável, que são verdadeiras heranças para a história do cinema mundial, e que serão por várias gerações, como esquecer da famosa cena em que Marcello Mastroianni e Anita Ekberg se banham na Fontana di Trevi ou das crianças que parodiam e criticam a história das crianças de Fátima, alimentados pela busca dos adultos de uma saída, de uma solução diante a dureza da vida. “La doce Vida” é um filme excepcional em todos os aspectos, mas principalmente por afrontar o espectador com o vazio de nossas incertezas diante à vida.
Vida
3.4 1,2K Assista AgoraO melhor de "Life" é a total despretensão de ser original, ao contrário disso, é evidente suas inúmeras referências e colagens revelando um filme feito sob medida, mas nem por isso preguiçoso ou previsível. Fiquei aliviado com, finalmente, uma narrativa que não acompanha apenas quem poderá -ou não- sobreviver e principalmente por um final desesperançoso.
OBS: trilha fraca!
OBS2: Jake Gyllenhaal - ainda estamos na torcida, mas não foi dessa vez.
OBS3: Calvin possivelmente já tenha participado de outro filme, no caso, de um de herói que sobe pelas paredes e que beija de cabeça para baixo.
Morte em Veneza
4.0 210 Assista AgoraRaros são os casos onde uma literatura levada ao cinema consegue uma realização ou resultado, próxima da experiência do leitor. Talvez isso ocorra por se buscar uma aproximação reprodutiva de experiências diferentes, pois o roteiro deve se valer de méritos próprios, uma origem-fim que é também condição primordial: ser uma obra cinematográfica.
"Mort à Venise", dilui momentos de brilho próprio, mas que se perdem ao tentar reproduzir espaços para uma reflexão de leitores e não de espectadores, algo natural na literatura onde as pausas são decididas - consciente ou inconscientemente - pelo leitor.
Já em seu filme, Visconti, força tal engrenagem abusando de pausas reflexivas, através de imagens tais como, paisagens (as águas de Veneza que o digam), olhares e observações. Também ao levar forçosamente ou por boa fé, que seus atores, seriam capazes de concretizar toda a demanda de sutilezas versus espessas ambiguidades de relações e sentimentos. Isso é evidente no trabalho de Dirk Bogarde (Aschenback), que tal e igualmente ao filme, se destaca em conta-gotas, doses homeopáticas de um trabalho profundo mas oscilante em traços caricaturais, claramente uma tentativa de expressar através de um psicologismo facial, os pensamentos, desejos, reflexões, angústias e outros da personagem.
Ainda assim, dá obra escrita originalmente por Gustav Aschenbach, e da obra dirigida por Visconti, chama atenção os méritos de não escamotear o jogo de uma relação proibida, que sem moralismos ou abatida pelo que hoje é a praga do "politicamente correto", revelam uma relação que só existe para Aschenback, algo imoral por ser de todas as formas, o desejo por um rapazote.
Porém, o fascinante desse jogo, é a mescla entre o desejo sexual e o da juventude, algo que não se vive novamente, e que se antes é até alvo de criticas por Aschenback, no fim sua repulsa passa a ser seu desejo, algo que lhe consome e o leva inversamente por uma caminho ao contrário da juventude, um caminho que leva ao fim.
Alien: O Oitavo Passageiro
4.1 1,3K Assista AgoraUm Sci-Fi de raiz.
Em um resumo direto e simplista, "Alien" é um filme sobre coisas que podem saltar do escuro e matá-lo. Partilha um parentesco com filmes como: tubarão, halloween e outros que envolvam aranhas variadas, cobras, tarântulas e perseguidores. Mas a parecenças terminam muitos antes disso.
Um dos grandes pontos fortes de "Alien" e consequentemente do diretor Ridley Scott, é o seu ritmo. "Alien" leva o seu tempo. Ele espera. Permite silêncios (os majestosos tiros de abertura são sublinhados por Jerry Goldsmith com apenas vibrações metálicas distantes). Isso sugere a enormidade da descoberta da equipe, construindo-se com pequenos passos: a intercepção de um sinal (é um aviso ou um SOS?). A descida para a superfície extraterrestre. O bitching por Brett e Parker, que se preocupam apenas com a coleta de suas ações. O golpe mestre da superfície escura através do qual os membros da tripulação se movem, suas luzes de capacete dificilmente penetram a sopa. O esboço sombrio do navio alienígena. A visão do piloto alienígena, congelada em sua cadeira de comando. A enormidade da descoberta dentro do navio.
"Alien" usa um dispositivo complicado para manter o alienígena fresco ao longo do filme: ele evolui a natureza e a aparência da criatura, então nunca sabemos exatamente o que parece e o que ele pode fazer. Assumimos que, em primeiro lugar, os ovos produzirão um humanoide, porque essa é a forma do piloto petrificado no navio alienígena há muito perdido. Mas é claro que nem sabemos se o piloto é da mesma raça que a carga de ovos coriáceos. Talvez ele também os considere como uma arma. A primeira vez que damos uma boa olhada no alienígena, quando ele explode no baú do pobre Kane ( John Hurt ). É inconfundivelmente de forma fálica, e o crítico Tim Dirks menciona sua "boca vaginal aberta e pingando".
Certamente, o personagem de Ripley, interpretado por Sigourney Weaver , teria atraído os leitores da Era de Ouro da Ficção Científica. Ela tem pouco interesse no romance de encontrar o alienígena, e ainda menos nas ordens do seu empregador de que ele seja trazido de volta para casa como uma arma potencial. Depois que ela vê o que pode fazer, sua resposta ao "Pedido Especial 24" ("Retornar a forma de vida alienígena, todas as outras prioridades rescindidas") é sucinta: "Como podemos matá-lo?" Seu ódio implacável para o alienígena é o fio comum que atravessa as três seqüências "Alien", que gradualmente desceram em qualidade, mas mantêm sua obsessão motivadora.
Por último, fica a herança que "Alien" possibilitou ao gênero Sci-Fi e para além disso e muito mais além dos filmes de franquia que seguiram após o filme de 1979, vislumbra a relação artesanal de produzir um filme que poderia enveredar pelos anseios do cinema comercial e também pela relação de não abrir mão do embrião originário e não clichê entre suspense, terror e ficção.
King Lear
3.5 1Intrinsecamente contraditório.
Para Godard nada parece ser tão complicado quanto as coisas mais simples. Por isso, esperar que seu filme "King Lear", fosse uma passível adaptação cinematográfica típica da tragédia de Shakespeare, é no mínimo, por parte do público, um total desconhecimento sobre o diretor ou incoerência, por parte da crítica.
Embora algumas linhas da peça de Shakespeare, sejam usadas no filme, apenas três personagens (Lear, Cordelia e Edgar), são, digamos assim, "apresentados". King Lear é, sem confessionalismos algum, um filme difícil, e assim é, pois se considerarmos Godard um diretor insano (no sentido positivo disso), temos nesse seu experimento visual, o ápice da insanidade humana ao questionar a arte em mundo recém-saído de um grande desastre nuclear (em referência ao episódio de Chernobyl).
Encaro os filmes de Godard como uma louvável experimentação, o que lhe torna indiscutivelmente original a cada filme. Godard é um dos raros, quase único diretor que consegue afirma o cinema através da negação, assim mais do que apresentar ou afirmar o que é cinema, Godard discute sobre as várias possibilidade de ser e fazer cinema. E faz isso rindo e debochando do público, mas não em uma zombaria gratuita e desnecessária ao contrário disso, os risos são diante a nossa caretice em assimilar as narrativas de um filme, buscando compreensão e lógica para tudo, inclusive na arte, que historicamente buscou sempre romper com o convencional, levando em conta o própria incoerência que é a humanidade e sua desastrosa forma de viver.
A Vingança do Ator
3.7 10Um filme sem a crise do drama, tão pouco pós-dramático e isso nem se cogita como problema.
"Actor's Revenge" só falha ao alargar tempos que não colaboram para a sua construção, gerando dois submundos. No primeiro temos as cenas de ação e de vingança em mundo cheio de frenesi, em outro, temos as oscilações de caráter, os questionamentos e toda uma inserção de imagens poéticas que tomam grande parte do filme e lhe dão um ritmo contemplativo e conseqüentemente arrastado, porém ambos submundos, estão ligados pela atuação precisa de Yukinojo (Kazuo Hasegawa), que se divide entre um ator especializado em papéis femininos do Teatro Kabuki e que deseja vingar a morte dos pais. E como segundo personagem, um batedor de carteiras, um ladrão.
Kon Ichikawa, famoso diretor japonês, conhecido por seus filmes meticulosamente perfeccionistas, mas comercialmente infrutíferos, foi encarregado da readaptação da novela Otokichi Mikami, e conseqüentemente, junto com sua esposa e colaboradora freqüente, a roteirista Natto Wada, transformaram o que seria um filme de melodrama banal em um espetáculo delirante, altamente estilizado e idiossincrático.
Desde o início, o humor irreverente e sarcástico de Ichikawa definiria o tom infecciosamente brincalhão, mas estilisticamente audacioso e auto-assegurado da fusão excêntrica do filme de kitsch de arte e cultura pop de alto nível.
"Actor's Revenge" é uma sátira estilisticamente ousada e irreverente que busca reconciliar os elementos familiares e tradicionais da cultura nativa com a vitalidade moderna da influência ocidental no Japão contemporâneo. A fragmentação recorrente de imagens de Ichikawa reflete inatamente a relação voyeurística entre o espectador e o artista: cenas de luta obscurecidas e prolongadas, testemunhadas por telhados, transições visuais sem costura entre dramatização teatral e episódios estilizados, de "vida real", o enquadramento de atores através de portas ou outras oclusões visuais que parecem ressaltar a perspectiva intrusiva do público. O roteiro antiquado para o trágico melodrama ( shimpa ) popular no início do cinema japonês é infundido com ironia, sátira social, e subversivos visuais de duplo entendimento.
A fusão excêntrica das formas de arte japonesas tradicionais e modernas é exemplificada através de uma trilha sonora eclética que combina acompanhamento tradicional de kabuki , música folclórica, jazz e sons de ambiente de vanguarda.
Buster's Mal Heart
3.3 117Quando uma só vida é insuficiente ou quando os caminhos de uma vida são em demasia enfadonhos.
Entre as características marcantes do cinema produzido no final dos anos 90, está a marca de um período próspero em filmes de múltipla personificação psicológica, representados por figuras e "simbologias" de alter egos ou se utilizando de transtornos como borderline, bipolaridade e de personalidade. Não que isso fosse ou seja, uma novidade na história do cinema, mas filmes desse período como "Fight Club", "Raising Cain", "The Sixth Sense", "The Others" apenas para citar algumas películas que ainda são marcantes em um curso ascendente de construção fílmica que necessitam de um alinhamento específico, nos diversos âmbitos (roteiro, iluminação, direção, atores, sonoplastias, fotografia...).
Considerando o grau de complexidade desse estilo de filme, onde no final, o público está diante a uma multiplicidade de entendimentos e construções pessoais, creio, na importância de uma construção de trajetória que possamos acompanhar, e que nos possibilite contar com uma instrumentalização fornecida pelo roteiro, auxiliando no preenchimento de lacunas, e mesmo não tendo a pretensão (o que já é pretensioso por demais), de não auxiliar nisso, dando maior liberdade interpretativa ou até de desentendimento racional, em ambos aspectos, é necessário (haver) compreensão. Qual o sentido de fazer algo que não permite diálogos? que não quer ser entendido ou mesmo que seu entendimento seja pela negação disso?
Em “ Buster's Mal Heart” filme dirigido por Sarah Adina Smith, nos deparamos com uma história altamente fragmentada, e que necessita ser assim, pois, fragmentário também é a vida , ou melhor, as vidas do protagonista dessa fábula, Buster (Rami Malek). Assim temos a abordagem de um homem das montanhas, o ermitão; de um náufrago com analogias as histórias bíblicas (em especial de Jonas e a Baleia), e de Buster, um jovem pai que trabalha durante a madrugada como concierge de um hotel, e dentro da história de Buster é que teremos as ligações para as outras vidas e muitas outras que surgem durante o filme, entre elas a de um desconhecido sem nome (DJ Qualls), que aparenta ser um profeta da era cibernética e que por fim, está tão intimamente ligada à Buster.
Buster's Mal Heart é um filme que mesmo buscando romper com a estrutura de três atos, com a narrativa linear, mesmo sendo um mix ou copiado de vidas fragmentados, não compromete em nada a construção em busca de uma compreensão por parte do público, pois, em cada fragmento ou piscada de uma vida, somo instrumentalizados com pontos que colaboram com os momentos de virada, os "Plot twist's" do filme e na inserção do espectador na vida de Buster.
A atuação de Rami Malek, como Buster é impecável. Para os fãs desse promissor ator, premiado pela série de TV Mr. Robot, o filme serve também como um forte apreço ao trabalho de Rami, já que tanto no filme como na série, temos as similaridades de uma personagem deslocada do mundo real, a personificação de um alter-ego e com mil conspirações na cabeça.
Eu Sou Ingrid Bergman
4.2 27Ingrid Bergman sempre deixou tão claro o alívio que lhe era poder viver outras vidas, que nem mesmo seus filhos ousaram lhe cobrar o papel de mãe.
Ingrid Bergman: In Her Own Words, deseja através do seu próprio título emitir a ideia principal do documentário, além de uma homenagem póstuma feita por quem ficou (de quem está vivo), seu desejo é que a figura central (Bergman), seja voz própria e imagens também. Imagens, pois, era essa, uma paixão confessável da atriz, que se manifestou logo na infância, quando seu pai, registrava a filha cotidianamente.
Após a morte do pai, Ingrid, continuou os registros por conta própria, alterando apenas a ordem de suas capturas, era ela, quem assumia agora os registros de vários momentos e das várias pessoas que conheceu em sua vida.
Dirigido pelo sueco Stig Björkman, o documentário cumpre parcialmente sua promessa, e o motivo é logo inatendível, já que sem a presença de Bergman para falar sobre sua vida e também pelo foco que a atriz direcionava suas cartas e o seu diário, quase pouco era sobre sua carreira, sobre seu trabalho e o que causa certo espanto, já que notoriamente era esse o seu maior prazer e onde se sentia mais feliz. Seus registros versavam em grande parte sobre a morte da mãe e dos seus irmãos logo muito cedo e da única figura que lhe restou, mas que também logo padeceu, o seu pai. Depois seus registros são focados na vida amorosa seguida pela vida dos quatro filhos, sendo estes, figuras que somam grande parte e tempo na escrita da atriz.
Assim as palavras de Bergman apresentadas através de um rico acervo de imagens e de filmes caseiros, é o elemento mais forte e mais interessante do documentário, que extrai através de entrevistas, de arquivos e diários da estrela de origem sueca, a voz (própria) da figura-personagem.
A falta de qualquer investigação significativa sobre os estilos de desempenho é sensivelmente sentida, particularmente devido aos métodos muito diferentes de seus principais diretores: George Cukor, Alfred Hitchcock, Roberto Rossellini, Jean Renoir, Stanley Donen, Ingmar Bergman. Há alguma análise leve da personalidade - ela foi conduzida, ela era tímida, "o amor veio através da lente da câmera", ela era corajosa - e às quatro crianças pintaram um retrato atraente de sua mãe em grande parte ausente. No entanto, a profundidade psicológica, Bjorkman, fabricante de documentários como "Ingmar Bergman" e "Lars von Trier", mal vai além do nível de um retrato do Canal Biografia. Como tal, Bergman é realmente muito difícil de ler, e somos atraídos por ela ainda mais por causa disso.
Com tanto material de referência à sua disposição, Björkman não consegue superar esse mistério inteiramente, mas o que ele faz de forma bastante elegante é explorar os sentimentos mistos dessas quatro crianças sobreviventes, todos os quais deixam claro o quanto ela era divertida e também dão a luz para a sentida ausência da mãe diante o desejo da atriz apaixonada pelo ofício.
Talvez não haja nada radicalmente novo para aqueles com algum conhecimento da história de Ingrid Bergman de muitos outros retratos de TV biográfica, mas isso ainda é uma digna porta-de-chamada para todos os curiosos sobre um dos maiores ícones do cinema.
Sonata de Outono
4.5 491Se uma mulher é naturalmente rival de outra, o que secretamente e mutuamente desejam mães e filhas?
"Autumn Sonata" (1978), foi o último filme realizado por Ingmar Bergman para o cinema, o que sucedeu após este foram vídeos para a TV. Porém, não se esboça nessa ultima película qualquer saudosismo, ao contrário, é um reencontro há diversas características que marcaram o célebre diretor sueco.
Tais como, sua forte relação com o teatro, com os atores, na utilização de símbolos e metáforas, na simplicidade de suas locações (que ele transforma em uma grande vantagem), o caráter psicológico na formação e nas relações humanas, mulheres marcantes e desafiadoras, a expressividade de um rosto em seus close's e big close's e o quanto fala ou até mesmo grita os momentos de silêncio, os momentos em que o não verbalizar sugere tantas coisas. Tal como na cena onde Eva (Liv Ullman) toca algumas notas no piano para a sua mãe, Charlotte (Ingrid Bergman), um momento magistral e antológica, na força e expressividade de duas atrizes que não dizem nada em cena, mas sugerem um universo de rivalidades, desconhecimentos e angústias numa (não) relação de mãe e filha.
Autumn Sonata" é um trágico fardo da emoção humana, e é em sua maior parte, um drama de confissões entre duas mulheres, que dialogam uma para a outra, o que acaba por gerar uma certo ruído monocórdio a produção, principalmente pelo sútil embate do jogo das aparências, dominarem grande parte do filme, o que talvez tenha sido elaborado na tentativa de gerar um frenesi no público para o momento ápice, o que não é necessário ou até mesmo não funciona, pois, na carta convite, escrita por Eva e no monólogo de abertura realizado pelo marido de Eva, já fica claro, que ali, será um local para acerto de contas.
Além de sua alusão musical, o título do filme mantém a pista de outro ponto central: a ideia de estações e ciclos. É nítido a referência dessa mudança de estações na fotografia de Sven Nykvist que colabora com sua paleta pálida e lavada e sem grandes dependências da luz artificial, lâmpadas e velas, chamam a atenção para o frio do inverno. No entanto, no que parece ser uma contradição, muitas das cenas de Nykvist são guirlandas com flores. Eles aparecem em dezenas de cenas. Normalmente associada à primavera, a presença das flores é uma lembrança clara da natureza cíclica da vida e das nossas relações com os outros. O frio passará, sugerem as flores, só precisamos suportar isso durante o inverno.
Cheio de emoção angustiante e visão agonizante, "Autumn Sonata" oferece um exame metodicamente potente da dor que escolhemos para manter dentro, e as cicatrizes que ficam conosco como resultado. Como a maioria dos filmes de Bergman, a imagem está repleta de questões existenciais e reflexões sombrias, investigando profundamente os mistérios dos desafios inerentes à vida, e dependendo da interpretação, o final pode oferecer algum nível de otimismo e catarse, o humor elegíaco do filme e confissões quase impossíveis de odiar e indiferença permanecem irrevogavelmente assombrando.
Uma outra característica que Bergman sempre soube utilizar, foi a sua total compreensão de que ao final, um filme acaba sendo sempre dos atores, são eles que serão o rosto e a memória do filme e a eles cabem a capacidade de gerar ou não reciprocidades com o público. Assim, Bergman é sem dúvidas o diretor, mas no final, são Liv Ullman, Ingrid Bergman e Lena Nyman, que tocam essa sonata.
Esperando Godot
4.2 27A última consideração que podemos fazer sobre "Waiting for Godot" é a de ser uma adaptação da peça de Samuel Beckett, talvez por questões que envolvam direitos autorais ou respeito e admiração seja pelo autor ou pelo texto, Michael Lindsay-Hogg, diretor do filme realizado em 2001, acaba apresentando uma produção que em grande parte é mais do mesmo, uma peça que foi filmada tendo raras oscilações e oportunidades de espaço para um possível rascunho de exercício audiovisual. Em suma, não se trata de uma adaptação na medida que busca mais ser e respeitar um registro teatral.
Tendo sido a primeira peça escrita pelo diretor, dramaturgo e cientista do teatro, Samuel Beckett (1906-1989), "Waiting for Godot" (1948-1949), já possui características do estilo diferenciado de Beckett, e também, marcas que figuram o Teatro do Absurdo desenvolvido pelo autor, tal como a questão do existencialismo e sua ótica da vida humana sem sentido ou propósito, marca facilmente identificável em "Waiting for Godot", onde dois senhores, Vladimir e Estragon, esperam todos os dias a chegada de alguém que nunca chega e que atende pelo nome de Godot.
No filme realizado em 2001 pelo diretor norte-americano Michael Lindsay-Hogg, nada do texto original é abandonado, ao contrário tudo é igualmente registrado tal como as indicações, marcas, falas, rubricas em resumo, toda a estrutura do texto da peça é apresentada no filme, temos até a divisão do filme em dois atos, igualmente a divisão da peça, mas, não é esse o ponto, que reduz as potencialidades do filme. Ainda que o diretor tenha passado por entraves com os direitos autorais da peça de Beckett, que possui rígido e preciso manual de como pode e deve ser montado, onde , por exemplo, todas as indicações do autor não podem ser modificadas, praticamente a peça é seguida de um manual de instruções que não permitem quaisquer alterações. Ainda com essa possível prerrogativa, não podemos encarar como limitação, tal como muitas vezes o filme se apresenta, já que a ferramenta cinematográfica conta com uma expressividade própria e que se incorporada a essa história, teria grande potencial.
Em grande parte temos um filme onde a câmera não assume a postura de um público, mas também, pouco se assume como marca de uma direção, ela se limita em registrar diálogos e realizar planos e contra planos, na sequência e mediada dos diálogos e contra-diálogos. Poucas vezes temos a utilização de outros planos ou de movimentação de câmera que permite uma gramática cinematográfica, e que quando surgem causam grande entusiasmo, como no "travelling" que passei pelo vazio de um belo trabalho de cenografia teatral, mas muito bem realizado e que apresenta uma estrada deserta, que não é possível descrever porque não se parece com coisa nenhuma, e onde há um esqueleto de uma árvore solitária, sem folhas, mas que na passagem do que seria um dia para o outro, ou quem sabe de muitos dias, se faz florir com algumas folhas. Além desse "travelling" pontual, temos dois ou três movimentos de "plongée", no demais temos um cadenciar de planos gerais, médios e fechados. Não quero dizer com isso que o diretor é limitado ou que a pouca exploração de uma gramática não faça disso uma possibilidade fílmica, o que quero dizer é que ao se prender em marcas teatrais, em um cenário único, inexpressividade de movimentos e na persistência do texto, temos um material lento e enfadonho que se quer mais ser teatro ou registro de teatro diante a possibilidade de ser cinema, o que é lastimável quando combinamos o texto de Beckett, as possibilidades da arte surrealista, de absurdo e a vasta experiência de Hogg na produção de vídeos musicais, onde dirigiu clipes dos Beatles e dos Rolling Stones e migrando depois para a TV, o teatro e o cinema.
Com as limitações de uma direção acarretando um filme inexpressivo e resultando na desfiguração das propostas de Beckett, e não gerando as pungências reflexivas e provocadoras originárias ao texto, das poucas amarras positivas ao filme, estão um preciso trabalho de arte e iluminação, muito fiéis à história e a construção de sua narrativa e também de um belo trabalho dos atores, que por sinal, tomam para si (completamente), o filme.
Barry McGoverr (como Vladimir) e Johnny Murphy (como Estragon) realizam um trabalho de extrema duplicidade, e que promove momentos únicos, tal como no jogo muito próximo ao campo do palhaço, com um andar estilizado e especialmente na cena de uma chapéu que vai de um passar de mãos lentas até a rapidez do gesto. Barry teve um grande sucesso internacional com o premiado programa de Beckett, "I'll Go On" , que o Gate Theatre apresentou no Festival de Teatro de Dublin em 1985. Já o jogo elaborado por Alan Stanford (como Pozzo) e Stephen Brennan (como Lucky) são igualmente de duplicidade e provocativos de momentos que vão do puro riso ao revoltante lugar entre o explorado e explorador, em um jogo muito próximo ao estilo do circo e da "commedia dell'arte". Por fim temos Sam McGovern, que surge como o garoto de recados de Godot, o menino que encerra os atos na promessa de uma chegada postergada, mas esperançosa, além disso, esse garoto é amplo de significados, de linguagens e metáforas.
Creio que toda experiência é válida e cabe a cada pessoa se valer por uma experiência pessoal, própria, pois, assim, pode surgir e visualizar pontos que lhe toquem, que lhe são mais importantes e urgentes, mas na minha experiência, não constante nada de relevante nessa realização de Hogg. Convido aos demais em enveredar mais na experiência de ler o livro ou de assistir à peça de Beckett, pois, o filme pode frustrar e até mesmo gerar falsas compreensões para aqueles que buscam um primeiro contato com o teatro de Beckett, e se for desejoso acompanhar o filme, que não o faça exclusivamente, mas se busque os outros e originais caminhos para a obra teatral que em nada consegue se assimilar com esse trabalho realizado no cinema.
Aquarius
4.2 1,9K Assista AgoraO mais significante em "Aquarius" é a sua amplitude explicita de entendimentos e possibilidades. É um filme onde o público é convidado a ser também autor, assim, pode se ater e construir a história que lhe convém. Liberdade pouco vista no cinema brasileiro.
Inversamente contraditório ao que é apresentado na tela, "Aquarius" começa muito mais pelo fim do que realmente por um começo. Sua narrativa explora o estado cíclico da condição humana, onde até mesmo a crença de avanços contínuos, seja nas relações interpessoais ou com as tecnologias. Saltos que visam escamotear a falta de perspectivas para mazelas que se repetem geração após geração, só amplificando sua problemática e certificando de circundar classes específicas. Como , por exemplo: o cano de esgoto na praia de Boa Viagem, em Recife, que separa a parte rica da pobre. O crescimento habitacional e imobiliário é comum em ambas partes, assim como a mimese histórica de desigualdades e interesses particulares.
Realizado em 2016, o filme conta com o roteiro e direção de Kleber Mendonça Filho, que já havia despertado a atenção do público e da crítica com "O Som ao Redor", de 2013. Em "Aquarius" acompanhamos através de uma ótica testemunhal de momentos pontuais e oscilante entre significativos e insignificantes na vida de Clara (Sônia Braga), sendo o momento de maior dimensão a fase dos 65 anos, em que Clara é viúva e última moradora do edifício (Aquarius), na orla da praia de Boa Viagem, no Recife-PE.
Entre as iniciais investidas passando por jogos e pressões da construtora, com o sugestivo nome de Bonfim, e que a todo custo tenta expulsar Clara do edifício, para dar espaço a um novo e moderno empreendimento, enfim, entre a trama traçada pelas pressões da imobiliária, temos os reflexos e consequências disso, na vida de Clara, dos seus familiares e amigos e também momentos que auxiliam para conhecermos e entendermos mais a protagonista dessa história divida em três capítulos: "O cabelo de Clara"; "O amor de Clara"; e "O câncer de Clara".
Com tanta "Clara" nos capítulos e como motor propulsor da estória não restam dúvidas de quem é a protagonista do filme. Esse protagonismo acaba por gerar alguns deslizes e problemas de roteiro, a questão que ronda a especulação imobiliária e o próprio prédio Aquarius, por exemplo, perdem força e dinamismo diante de Clara, não recordo de um momento em que seja considerado a importância arquitetônica ou os problemas que um prédio maior pode causar a cidade, bem como a preservação histórica, tudo parece girar mais entre o capricho de Clara, em querer continuar morando ali, ou daquilo que lhe é de direito, pois, assim como os moradores tiverem e tem o direito de se desfazer dos seus apartamentos, Clara têm total direito de quer continuar morando naquele apartamento, que é seu há mais de trinta anos.
Essa divergência de opiniões gera um recurso interessante ao filme, mesmo com sua parcela de ótica e favoritismo à posição da personagem Clara. Os interesses da imobiliários e de um antigo morador, são explicitados em apenas uma cena, na qual um homem reivindica e faz uma ameaça "velada" para que Clara venda o apartamento, e assim os demais moradores possam receber o restante do dinheiro pela venda do imóvel. Ambos lados se apresentam e no fim temos um panorama de direitos que merecem ser respeitados, e que por esse mesmo motivo, não vislumbram uma solução, logo todos estão certos e, ao mesmo tempo, errados. Nisso não são tomadas medidas para solucionar o entrave, o que temos são ações questionáveis, pois, a ótica vai ao encontro de interesses pessoais e de defesas que são válidas para ambos lados, algo que Kleber Mendonça já havia trabalhado muito bem em "O som ao redor".
Porém, como mencionado a motivação de Clara em permanecer no prédio e ao receber maior destaque, acaba gerando uma defesa e consequentemente uma perspectiva de uma única visão, reforçada pela direção. Algo que considero como elemento enfraquecedor ao filme, por mais admirável que seja história de vida e superação de Clara, e por mais fascinante e carismática que seja a personagem, é massante ver uma pessoa posta quase que em um pedestal. As próprias curvas dramáticas que revelam as fraquezas e os defeitos de Clara, só se revelam nos diálogos em que a protagonista exalta suas conquistas. Clara, por exemplo, pode facilmente mudar para qualquer outro apartamento, ela inclusive possui cinco, tão pouco o motivo de não vender seu apartamento se dá por questões financeiras, o valor ofertado pela imobiliária é até interessante e a proprietária não passa por dificuldades financeiras, dinheiro ela tem até de sobra, o interesse em se manter ali é mais uma postura política e ideológica de poder dizer não, de se valer do seu direito de morrer naquele apartamento — casos queira — e de preservar suas histórias pessoais, suas memórias, os momentos vividos naquele lar. Porém, a forma adotada por Clara inviabiliza o seu discurso, uma forma que privilegia o egocentrismo, que é algo que a protagonista combate e repudia em outras personagens, tal como faz com a sua filha Ana Paula (Maeve Jinkings).
Essa característica de preservar memórias e histórias é algo marcante na protagonista, com um trocadilho que objetiva a personalidade dessa personagem: Clara é realmente clara. Ela é muito direta no que pensa, no que deseja, no seu modo de agir, não há rodeios em sua conversa e isso é expresso em vários diálogos que chocam pela postura clara e objetiva de se falar o que se quer. Em contrapartida, a essa característica franca de Clara, temos todo um mundo de objetos, lugares, fotos, memórias que possuem uma carácter mais simbólica e plural, e isso não é negativo, ao contrário, é excelente. O mais significante em "Aquarius" é a sua amplitude explicita de entendimentos e possibilidades. É um filme onde o público é convidado a ser também autor, assim, pode se ater e construir a história que lhe convém, liberdade pouco vista no cinema brasileiro. O próprio "móvel" apresentado no começo do filme, que pertencia à tia Lúcia, e que permanece naquele apartamento ao longo dos anos, dando um valor de memória e de história daquela família, é desconstruído pela própria tia, onde o "móvel" nada mais é do que a lembrança de uma bela transa que essa tia teve anos atrás,e anos depois, esse mesmo móvel testemunhará a transa de Clara com um garoto de programa, em resumo, nada daquilo que é muitas vezes atribuído com grande apreço, quase reverenciado como um móvel, um objeto que guardamos com orgulho em nossa casa e que ficam ao longo das gerações, esse virtuosismo dado aos objetos é efêmero, mas as recordações, as lembranças que eles resgatam, isso sim é único e especial, porém, assim é, a medida de quem o tem ou quer, ou seja, é uma construção individual que varia de acordo com as pessoas e as relações construídas.
Assim temos o mesmo efeito do "móvel" da Tia Lúcia, nos discos, nas fotos e nos prédio de Clara. Onde tais objetos matem viva sua história, suas memórias e que fazem de Clara, ser o que é. E isso não necessariamente significa que Clara seja uma pessoa saudosista ou melancólica, ela sabe aproveitar bem os dois mundos, do passado e do presente com seus avanços tecnológicos. Isso é explicitado em uma entrevista na qual Clara afirma que ouve música em MP3, assiste TV, todas essas modernidades ela sabe usar e utiliza, mas mantém as coisas antigas, em uma analogia como de uma mensagem presa em uma garrafa que é lançada no mar, analogia que a repórter parece não ter entendido, e que boa parte do público, talvez e também, não tenha compreendido, o que não causa dano algum, não compreender muitas vezes é até uma benção.
Particularmente não creio que a abordagem do diretor em utilizar o "zoom" tenha colaborado na narrativa do filme, é um recurso que parece ser primário quando utilizado no cinema e que rompe com uma visão naturalista ou realista, algo que não percebo que seja de interesse do diretor ou da narrativa fílmica. Com raras exceções, o "zoom" foi e é bem utilizado em qualquer filme, em "Aquarius" só recordo de um bom momento para essa utilização, na cena em que Clara está deitada em uma rede e numa sobreposição de imagens, o personagem Diego aparece ao fundo de Clara, tirando fotos do prédio, nesse mesmo plano seguimos para um leve zoom, algo manipulado em um jogo de espelho inverso, onde Diego com seu celular tira algumas fotos e invade a privacidade de Clara.
Quanto a montagem e o trabalho de edição promovido por Eduardo Serrano, que fragmenta e une tempos através do "Jump Cut", um corte seco feito em uma sequência de imagem do mesmo plano onde se avança no tempo, um corte dinâmico, cortando a “respiração” e pausas, que serve para transmitir urgência ou criar a sensação de avanço no tempo, esse estilo de montagem colabora indiscutivelmente para a construção narrativa do filme a medida que essa urgência e avanço do tempo, não resultam efetivamente em nada, só avança pela emergência de iniciar ou mudar de estado, mas que pela velocidade não se concretiza, só se realiza como obrigação de fechar um ciclo, para em seguida reiniciá-lo.
Destaque para a trilha sonora e pelo trabalho de diegética realizado pela edição e mixagem de som de Ricardo Cutz, que faz uma utilização impecável do som que participa da narrativa da película e que faz parte do universo dos personagens. Todas as músicas de "Aquarius" ao se utilizar do efeito (diegética) que se relaciona diretamente com o que as personagens estão ouvindo é o mesmo que o público, funcionam perfeitamente e não são gratuitos, e conta com uma trilha que basicamente se divide em ser descritiva da personalidade de Clara, ou evocativas de um estado, bem ao estilo: agora estou me sentido na fossa e ouvirei uma música de fossa. Porém, em todos os casos e mesmo com a diversidade da trilha que vai de Roberto Carlos a Queen, passando por Reginaldo Rossi a Villa Lobos, tudo é muito coerente e crível da personalidade e dos gostos de Clara. Criando uma trilha sonora de vida, o único ponto negativo, se dá pela captação de som direto realizado por Nicolas Hallet, em alguns momentos são inaudíveis as falas das personagens, exemplo, na cena do baile onde Clara dança com um senhor de origem "Capixaba", na qual ela já atenta ao fato da personagem falar "baixinho", e somado ao som da festa torna-se impossível entender o que esse homem fala, fica a dúvida se era uma proposta do filme, de ser mais uma das cenas vazias (não no sentido pejorativo), mas de cenas intimas e pessoais que constroem e modificam Clara, ou se foi uma falha de captação, já que aparenta ter ocorrido uma microfonação apenas da personagem principal.
Entre as atuações, fica apenas o desfalque sentido pela incoerência de sotaque, o que causa certa estranheza na atuação e convencimento no trabalho de Thaia Perez (Tia Lúcia), a sua tia, parece ter caído ali, naquela casa, do nada. O trabalho, em geral, é satisfatório e bem pontuado, embora aos que conhecem o trabalho de Irandhir Santos (como Roberval), fica um aparente débito diante a grandiosidade de outras realizações cinematográficas. Destaque para Sônia Braga (como Clara) e Humberto Carrão (como Diego), que sabem dosar muito bem o jogo de interesses e defesas pessoais, no começo o ar simpático e conciliador de Carrão são bem dosados, e que não se perdem quando ele revela o seu tom mais agressivo de jovem com MBA, e contra-balanceado com esses dois polos, temos uma Clara que se apresenta como uma senhora turrona e uma mulher que quer apenas viver em um lugar que é seu por direito.
Desconsiderado toda e qualquer polêmica ocasionada pelo lançamento do filme no festival de Cannes em 2016, e pela postura consciente dos artistas que buscaram naquele espaço, alertar para situação do Brasil após o processo de um questionável impeachment da Presidenta Dilma, "Aquarius" é um filme bem aos moldes da própria política brasileira, onde os interesses comuns rivalizam com os interesses de grandes empresas e daqueles que detêm o poder, o sistema que vigora em Recife, e que é criticado, mas, ao mesmo tempo, reproduzido por Clara, de interesses e apoios pessoais, serem concedidos na medida da proximidade das relações familiares ou afetivas, é tão comum na nossa política quanto em nossas vidas, como é bom ter aquela pessoa que por ser próxima a nós, desburocratiza um serviço. Entre tantas reflexões e possibilidades que "Aquarius" permite, está principalmente a de um cinema compromissado a dialogar muito mais com o seu país, do que com os interesses comerciais, embora bilheteria não faça mal algum.
Belíssima
4.0 31 Assista Agora"Bellissima" se estrutura em um enredo circular e efêmero. Seu conflito que se faz mais forte como situação, é mimese da realidade, de histórias tão próximas e comuns, porém, diversificadas. Em suma: o desejo humano de vencer a pobreza, nem que para isso estimulemos ainda mais a exploração.
O caráter atemporal desse filme realizado em 1951 por Luchino Visconti, é nítido já em sua sinopse: A história de Maddalena (uma enfermeira), que inscreve a sua filha Maria, em um concurso que visa eleger a menina mais bonita da Itália. O concurso representa um bilhete para dar à filha uma vida que oscila entre dignidade e luxo, estando essa mãe-protagonista, disposta a tudo para garantir a vitória da filha.
Histórias de pais que sacrificam tudo para garantir um futuro melhor aos filhos, decerto não são nenhuma novidade, ao contrário, das mais longínquas estórias orientais, passando pelo berço da história humana com a cultura grega, não nos faltam exemplos de enredos parecidos, e dos quais podemos presenciar até hoje, com "reality shows" do tipo, pequenas mísseis, para novos jogadores de futebol, concursos mirins para descobrir novos talentos… enfim, uma gama de ofertas onde temos a presença de crianças, mas na ausência de infância, e de progenitores que podem ser entendidos através das teorias do criador da psicanálise Sigmund Freud, especialmente na ideia de projeção, onde os desejos dos pais são empregados na figura de seus filhos. O desejo de se destacar em algo que muitas vezes os pais não conseguiram ou não tiveram oportunidade, mesmo que consciente ou inconscientemente, no qual, o reconhecimento dessa projeção dá-se através de vitória em concursos, posição social e também de um viés financeiro, sendo este último, o desejo defensível de Maddalena (Anna Magnani), já que parece ser a garantia de uma vida mais digna para a menina Maria Cecconi (Tina Apicella).
Em grande parte dessa estória que toma às vezes situações e momentos absurdos, diante um desejo que beira as limitações de visão, racionalidade e de absurdo ao mostrar os pontos que iniciam, desempenham e finalizam essa saga. Que é traçada por uma mãe motivada pelo futuro de sua filha, essa dimensão dramática que é característica ao filme, se diluí sabiamente em momentos de comicidade. As atitudes de Maddalena são risíveis, tanto mais quanto na falta de talento artístico de sua filha. Esse rir do outro, do papel de bobo que desempenha essa mãe ao não notar na filha que lhe faltam outros atributos, e a crença que a beleza da menina, somada a interferência dessa mãe, como ao tentar comprar os jurados ou conseguir alguém dentro da produção do filme que destaque o teste de Maria, que essa soma possa interferir no resultado e consagrar na vitória de Maddalena através da pequena filha.
A sabedoria desse riso está em apresentar uma fábula cuja moralidade não é apresentada de forma instruída, de forma didática, ao contrario, é uma fábula de caos e sutileza diante um desejo compreensível e até mesmo justificável, ao mesmo tempo, que é reflexo das poucas oportunidades aparentes de se vencer na vida, onde a falta de perspectivas de justiça e igualdade social e a descrença na educação projetada até na incapacidade da criança (pois, como sugere Maddalena, em pequenas confissões pessoais: vai que a filha é uma tonta), o que resta, a única possibilidade, é contar com as oportunidades de fuga que inserem aqueles que se destacam por características ou qualidades inerentes a sua pessoa, no caso de Maria, a beleza infantil. No caso de Maddalena, talvez, a perseverança.
Com todos os méritos de uma história atemporal, e sem pesar o fato do diretor ter em mãos um material muito próximo aos filmes neo-realista que lhe consagraram, isso é, ter algo muito próximo ao estilo que lhe era costumeiro fazer, mas que é recusado em "Bellissima", abordando essa estória através do viés realista, no qual, pessoalmente considero que foi desejoso aos produtores do filme e ao diretor apresentar um aspecto mais abrangente da fábula, considerando o caráter comum dessa estória, que acontece e repete-se na vida, e que é agora refletida na tela, mas que ao abandonar uma reflexão desse realismo pertencente a determinada realidade social, gera uma abordagem fílmica que iguala os desejos maternais, porém, desproporcionais e inválidos diante as diferenças de classe e consequentemente incapazes de gerar mudanças ou resultados, pois, como competir com uma família que já larga com ampla vantagem?
Essa desigualdade de classes é citada e tratada de forma muito superficial nas mínimas parcelas em que se apresentam, isso minimiza a força e potencialidade de Visconti e de "Bellissima", já que a abordagem na qual é apresentada (sua forma), inviabiliza o próprio discurso. A luta em vencer as diferenças de classes, através de métodos que reforçam e colaboram para essas divergências. Em verdade, a mãe não luta para vencer nada, ela quer apenas pertencer a algo, e no desfecho, quando percebe esse mundo de diferenças cruéis que ela admirava e na qual acabava colaborando, torna-se então, o momento de racionalidade e revolta de Maddalena. Ao retratar o cinema como microcosmo de um mundo próspero em possibilidades vantajosas, Visconti satiriza a própria indústria cinematográfica e a inocência humana diante sua crença de possibilidade e pertencimento. Essa crença que induz na capacidade de utilizar mecanismos, mas que já estão domados pelos interesses comerciais, que entre outros, resultam no fortalecimento de diferenças de classes e simulam um mundo fantasioso, tal como o do cinema e seus benefícios.
Essas fantasias estão tão próximas da vida de Maddalena, que ocupam até a parte externa de sua casa, da sacada é possível ver uma praça tomada pela projeção de filmes, e está é tomada por inúmeras pessoas assistindo aos filmes, mas quem são essas pessoas? Em uma Itália que buscava se modernizar e tornar-se expressão de avanço, abandonado o campo e domando máquinas, entre elas o cinema que versava entre o interesse de ser arte e ser propaganda dessa nova Itália aos olhos do mundo, temos o encontro desse público que oscila entre o desejo de vencer, igualmente ao de Maddalena, mas também de sentir-se parte dessa modernidade, uma identificação que por vezes produz efeito inverso, já que distancia diante de tantas diferenças, também igual ao desfecho de Maddalena e de sua filha, agora conscientes de sua utilização como massa, e da posição que ocupam em mundo que faz distinção entre os cidadãos.
O filme inteiro está ancorado pelo desempenho magnético e fascinante de Anna Magnani, que preenche toda tela com uma vitalidade e intensidade ardente que é quase impossível desviar o olhar. Em 1951, ela era uma das rainhas do cinema italiano e já ecoava por todo o mundo. Anna era a atriz favorita de Bette Davis, e Bette considerou a atuação de Anna em “Bellissima”, como: brilhante, desinibido e cheio de imenso poder. Não há praticamente um momento no filme em que ela está parada ou silenciosa. Visconti, quase que exclusivamente, registra Anna em planos médios e cheios, dando-lhe um amplo espaço para composições e que promovem costuras de uma extremidade do quadro para o outro.
Sabiamente perceptível da força do olhar e das fisionomias faciais da atriz, o diretor pontua momentos chaves e constrói parágrafos inteiros de silêncios. Utiliza-se de "close" e "big close" do rosto de Anna, para gerar expressividades máximas e que comunicam através da ausência de palavras, mas ocasionam em uma verborragia de estados que Magnani pode expressar. É necessário destacar o grande jogo que Anna possibilitou dentro das limitações de contracenação com Tina Apicella. Na época da realização de "Bellissima", Tina acabara de completar cinco anos, a descoberta e o convite para a atriz mirim, partiram de Visconti. Apesar de possuir belos momentos, sua grande marca nessa obra se dá pela facilidade (às vezes enfadonha), de chorar. Destaque para a cena em quê, ao chegar em casa e talvez por ordem da mãe, a menina não conta nada sobre o que fez naquele dia, ao ser posta para dormir pelo pai, e este ao informar que no dia seguinte irar leva-lá para tomar sorvete, ela responde que precisa estudar, o pai retira-se, apaga a luz e a pequena chora entre o susto e o desespero, pois, ainda tão nova, já possui a responsabilidade de apaziguar e salvar aquela família.
Entre várias cenas de fade in e fade out que costuram a montagem do filme, entre saltos de acontecimentos episódicos que colaboram para a construção e o desfecho do enredo, chama a proposta fotográfica de Piero Portalupi e Paul Ronald, que basicamente instauram um clima de vida obscura no apartamento de Maddalena, em contrapartida, os refletores e deslumbramentos de luzes do "Cinecittà", um direcionamento de luz que encaminha não só no desejo convicto de Maddalena, mas com único caminho iluminado que oferece uma perspectiva, uma saída diante aquela vida entre sombras. Outro grande momento de maestria dessa fotografia, está no jogo entre meia luz que ilumina rostos ou que destacam um entre tantos outros, uma clara alusão a perseguição de brilho e luz própria que dialogam e muito para a construção de “Belíssima”.
Mesmo nãos sendo o filme mais interessante de Visconti, e deixando de lado muitas das marcas que o consagraram, "Bellissima" é uma obra interessante e que dialoga com o mundo contemporâneo, e possivelmente dialogará com o mundo futuro, já que entre as diferenças sociais que tanto lutamos para vencer, muitas vezes são inconscientemente reforçadas através de uma luta egoísta, que visa apenas salvar alguns e não percebem que só resultará quando entendermos a necessidade de um todo. Luchino Visconti era capaz de escrever para os nossos olhos, um documento social e cultural importante que reflete sobre o ontem, analisa o hoje e possibilita caminhos para o amanhã.
Gaviões e Passarinhos
3.9 31Em "Uccellacci e Uccellini" temos verdade, naturalidade e autenticidade tão bem incorporados e estruturados, que é difícil crer na possibilidade da comicidade diante de realidades tão ásperas e de um mundo onde as pessoas usam a dureza de suas vidas, como materialidade para o riso. Uma obra particular em sua proposta e entre tantos motivos, uma obra rara.
Escrito e dirigido em 1966 por Pier Paolo Pasolini, "Uccellacci e Uccellini" é um daqueles filmes que geram divisão imediata, não há meio termos. Particularmente, considero como um filme especial, mas que já dispara em ampla largada para minha apreciação, pelo respeito e admiração que nutro pela Itália, por sua história no cinema e por diversos atores, entre eles Totò Innocenti.
"Uccellacci e Uccellini" possui todas as características chaves do estilo neorrealista, e lida com preocupações marxistas sobre pobreza e conflito de classes, mas sem perder o humor, o que, diga-se de passagem, gera grande potência e importância dessa obra, ao unir reflexões políticas, construção social e tendo como meio-campo, o humor, Pasolini alcança um dialogo abrangente e ativo, coloca o espectador em situação critica e reflexiva, entrega uma obra aberta ao riso, mas que não se limita apenas à isso. Para ultrapassar os limites de uma comédia comum ou simplista, lhe foi, mas do quê necessário contar com o apoio do ator italiano Totò Innocenti.
Este , foi o último filme de Totò Innocenti. Após a morte do ator, estrearam outros dois filmes, mas em ambas produções, as filmagens ocorreram muito antes de "Uccellacci e Uccellini". Totò em 1966 já era mais do quê um comediante consagrado, sua figura era marca e renome da Itália, tendo o reconhecimento de seu trabalho expandido para outros países e continentes, não é a toa que faz parte de um seleto grupo onde estão presentes os atores Charlie Chaplin e Buster Keaton. Podemos observar em "Uccellacci e Uccellini" um Totò mais contido, o que gera certo estranhamento para aqueles que já o conhecem de trabalhos anteriores, muito desse ar meio desengonçado, às vezes até engessado se originam pela direção de Pasolini, que limitou os improvisos, o jogo e até mesmo as máscaras faciais do ator, pedidos que negavam as características que fizeram de Totò um célebre comediante. É necessário compreender que os pedidos de Pasolini não eram formas de talhar ou diminuir o trabalho de Totò, ao contrário, conhecendo a qualidade artística do humorista, Pasolini buscou apresentar um trabalho pontual e que dialogasse com a proposta neorrealistas do filme, além de ser uma grande oportunidade que Pasolini oferece ao grande Totò.
Em "Uccellacci e Uccellini" temos verdade, naturalidade e autenticidade tão bem incorporados e estruturados, que é difícil crer na possibilidade da comicidade diante de realidades tão ásperas e de um mundo onde as pessoas usam a dureza de suas vidas, como materialidade para o riso. Uma obra particular em sua proposta e entre tantos motivos, uma obra rara. A alegoria criada por Pasolini, unifica aspectos de fábula filosófica marxista.
Como em todos os contos de fadas, há uma história definitiva neste filme: o pretexto narrativo é dada pelas considerações filosóficas (marxista) de um velho corvo que aborda dois homens, pai (Totò) e o seu filho (Davoli ). O corvo parece convencer, os dois homens, utilizando-se de sua sabedoria e de suas palavras, mas no momento em que o problema da fome aparece, o homem "razoável" se revela, e Totò acaba por comer o sábio corvo. A alegoria apresentada é clara e bem realizada.
Sobre as considerações neo-realistas apresentadas no filme, posso categoriza-las através de André Bazin, um teórico e crítico de cinema francês, argumentou que o neorrealismo retrata: verdade, naturalidade, autenticidade e é um cinema de duração. As características necessárias do cinema neo-realista incluem:
Um contexto social definido; Um senso de realidade histórica e imediatismo; Compromisso político com a mudança social progressiva; Cenas e cenários autênticos com a sua localização, em oposição ao estúdio artificial; Uma rejeição dos estilos clássicos de Hollywood; Uso extensivo de atores não profissionais o máximo possível; Um estilo documentário de cinematografia.
"Uccellacci e Uccellini" é declaradamente o 'trabalho que Pier Paolo Pasolini mais amava, provavelmente porque é a síntese mais completa de seu ecletismo artístico. Trata-se de uma obra com grande poder poético, desde o início foi objeto de discussão e controvérsia. Obteve uma menção especial no Festival de Cannes e foi premiado com o prêmio de prata.
Tempos Modernos
4.4 1,1K Assista AgoraO receio de Chaplin e do seu vagabundo Carlitos, é o receio do homem comum. A incerteza de um mundo que na medida de sua modernidade, exclui o indivíduo e os espaços para o sentimento humano.
"Modern Times" utiliza a faceta da sátira e em certos momentos da paródia para resultar em uma comédia crítica e consciente. Promove um riso contido diante um mundo onde a população é comparável a um rebanho pastoreada por grandes empresas e corporações, e mesmo sendo um filme roteirizado e dirigido por Charlie Chaplin em 1936, possui forte caráter profético ou futurista, atemporal e decerto desamparo, quando refletirmos na posição do mundo contemporâneo.
Chaplin em "Modern Times" já filosofava sobre tantas questões importantíssimas, que ao rever seus filmes, ficamos abismados com sua visão futurista tanto no quesito tecnológico com sistemas de vigilância monitorados por câmeras, um misto de "reality show" com "face time", ligações por vídeo (tal com um Skype), o recurso de mensagens por voz (WhatsApp), gravação digital e na interferência de atividades banais do homem, tal como almoçar, sendo interferidas por máquinas e tudo para garantir mais rendimento no trabalho, otimizado o tempo desperdiçado com atividades humanas.
Para além dos avanços tecnológicos há no filme, ou ao menos em sua primeira parte, uma análise dos efeitos e reflexos da modernidade no homem e no mundo, expressado por relações de subordinação e poder, pelo totalitarismo dos grupos empresariais e pela inexpressividade de movimentos sindicais que resultam em míseros avanços e que são brutalmente reprimidos pela força policial. Um paradoxo bem-apresentado no filme é de como o homem soube avançar em modernidades tecnológicas que , em contrapartida só aumentam as diferenças de classes sociais, gerando grupos concentrados pelo poder industrial e toda uma massa que fica à mercê de uma oportunidade de emprego em grande parte exploratória e escravocrata. Vivendo em condições miseráveis, numa luta diária pela sobrevivência e sem a perspectiva de um futuro melhor, não resta nada mais do que uma posição passiva do povo, que preenche suas expectativas com sonhos e fantasias de consumo e de uma vida menos indigna.
O caráter crítico de "Modern Times" sabe dosar bem os momentos de comicidade, na verdade, eles se misturam em uma massa homogênea tão bem estruturada que permite ao público, se assim desejar, se ater apenas aos momentos de comicidade, mas caso queira, basta apenas um olhar mais atento e podemos nos ver e ver o nosso mundo através de uma ótica de humor crítico. Talvez o receio de Chaplin e do seu vagabundo Carlitos, é o receio do homem comum. A incerteza de um mundo que na medida de sua modernidade, exclui o indivíduo e os espaços para o sentimento humano.
Particularmente, creio em uma tentativa de Chaplin, suavizar sua postura crítica, pois, ao estruturar o roteiro de "Modern Times", a história é dividida em blocos que se assemelham a capítulos, e que podem como recurso de montagem fílmico, serem realocados sem grandes implicações, já que a dependência de um capítulo não interfere fortemente em outro. Essa estrutura que beira a esquete ou "sketch", são, na minha opinião, um recurso fraco e prejudiciais ao filme. Tanto que a resolução para isso é um passar de dias, não faltam cartelas que informam a próxima ação (capítulo), ocorre dez, sete, cinco, dois dias depois ou no prazo de semanas. Essa divisão é tão explicita que podemos estruturar o filme da seguinte forma:
Capítulo I - Fábrica;
Capítulo II - A prisão do vagabundo
Capítulo III - A vida da menina pobre;
Apenas na metade do filme, temos um desdobramento dessa comédia crítica e política para uma comédia romântica, que nada se assemelham a ideia inicial proposta ao filme. O único vestígio que resta desse traço está nas relações trabalhistas, na busca de um emprego e de mudança de vida.
Com a ressalva para o deslize de sua estrutura narrativa, tempos uma grande obra, e mais um trabalho impecável de Chaplin. Quando "Modern Times" foi realizado, o cinema já contava com o recurso sonoro, mas Chaplin, principalmente pelas suas ideologias de criar um cinema de arte universal, que não fosse prejudicado pelas diferenças de idiomas e outros motivos, permaneceu fiel à comicidade da mímica, que lhe fez merecidamente famoso e admirado em todo o mundo.
Inversamente aos que dizem de seu medo em utilizar a banda sonora, temos nesse filme um Chaplin consciente dos avanços do som e que sabe tirar proveito disso, seja apresentado o som como uma tecnologia que permite o envio de mensagens gravadas, nos jogos sonoros como batidas na porta que servem para confundir as ações, no uso de um rádio para inibir o som da gastrite e onde o locutor da rádio lembra justamente para tomar o remédio para sanar esse mal e principalmente o som, como match point da história. Se o vagabundo não consegue um emprego comum, que tal tentar a vida como artista? Mas para isso é necessário cantar, logo ele, que nunca fala. O resultado é uma das cenas memoráveis do cinema, Chaplin cantado "Jcherche après Titine", só que a versão do vagabundo é mais conhecida como "The Nonsense Song" , pois, seu personagem a canta em gibberish, uma mistura de francês, espanhol e italiano sem sentido algum e com sons em gromelô. Tanto a interpretação, quanto a canção do vagabundo é ovacionada pelo público.
Apesar da sua consciência social, o Modern Times não se transforma em um tratado ou drama político, mas continua a ser uma tragicomédia muito barulhenta na tradição Little Tramp. Chaplin aborda o desemprego e outras questões sociais, mas o faz obliquamente, com um toque leve, no contexto das desventuras cômicas de seu personagem.
Os Girassóis da Rússia
4.1 106Mesmo não sendo a história mais interessante (no quesito roteiro e de direção), contada pelo maestro Vittorio De Sica, “I girasoli” possui momentos singulares de poesia visual, interpretação, sonorização e indiscutivelmente da capacidade do De Sica em registrar e transmutar as simplicidades da vida.
Lembro dos primeiros filmes que assisti desse, que é , uma grande inspiração e a quem sempre devoto um favoritismo absoluto. Vittorio De Sica através das possibilidades de apresentar e não representar à vida, tal como desejava o movimento neo-realista italiano originando filmes muito próximos de um registro documental e que me fascinavam por sua costura às avessas, sem pudores de mostrar o frenesi volátil de um país e de seu povo, diante das novas relações que surgem, e na incerteza de sua durabilidade.
Decerto que um movimento cultural não pode ser amarras para um criador, ao contrário, deve ser dispositivo para novas construções, e isso é notório em "I girasoli". Produzido em 1970, com roteiro de Cesare Zavattini e argumento elaborado por Tonino Guerra, célebre poeta, escritor e cronista da guerra. Sendo uma co-produção ítalo-franco-soviético, o que permitiu um registro raro do antigo bloco comunista, em parte devido as boas relações do De Sica com o Partido Comunista Italiano.
Aos moldes de um resumo ultra simplista, me permito dizer quê, "I girasoli" é o retrato de uma felicidade breve diante a não concretude amorosa regida pelas adversidades de uma guerra e de razões nem sempre cercadas de sentido lógico ou possíveis de nominar. O filme sucede como um drama familiar em movimento, e de microcosmo da história social da Itália durante as décadas de 40 (período da segunda guerra), até o começo dos anos 70.
O peso da influência comercial determina perdas notórias ao filme, na qual seu enredo se constrói através de amarras que buscam estruturar e pontuar a trajetória das personagens aos moldes da estrutura melodramática dos filmes hollywoodianos daquela época, desfigurando o caráter original de drama que o filme propõe e as relações de crise do drama, elemento sempre próspero nas mãos do diretor De Sica. Essa desfiguração pode ser notada, por exemplo, no registro longo e desnecessário de Masha (Lyudmila Savelyeva) revelando para Giovanna (Sophia Loren), como encontrou e como salvou Antonio (Marcello Mastroianni) do frio e da guerra. Um recurso, creio, para pontuar ainda mais o melodrama da história e para balancear ainda mais o público na sua torcida amorosa e de desfecho final, com quem Antonio deve ficar? A mulher amada ou a mulher que lhe salvou?
Há vários momentos no filme que resultam nesse mesmo sentido, de prolongar o melodrama, balançar as decisões do público e exibir explicações, algo que torna o filme cansativo, explicativo em excesso e raso diante a dimensão de questões humanas e das possibilidades de reflexões sociais, políticas e de guerra que acabam sendo utilizadas apenas como plano de fundo, e que quando evocados, são tratados de forma superficial.
Ponto de destaque e que merece atenção especial, é a relação estabelecida pelos protagonistas Giovanna (Sophia Loren) e Antonio (Marcello Mastroianni). De Sica havia realizado alguns trabalhos, tendo Sophia e Antonio como casal de protagonistas, (exemplo: Ieri, oggi, domani -1963). Essa experiência anterior, colabora tanto para aqueles que já assistiram ou para aqueles que assistem pela primeira vez a parceria entre tais atores e o diretor. Essa total química, facilidade e intimidade para o jogo, colaboram certeiramente, onde não é preciso mais de três minutos, para o público torcer e "shipar" o casal Giovanna e Antonio. Algo muito importante e necessário para essa história, já que a felicidade entre esses dois é breve. Tal como em uma partida de futebol, o público vibra com a postura determinada, apaixonada de Giovanna - uma mulher italiana - que vai até à Rússia procurar Antonio, o marido dado como perdido durante a II Guerra. A travessia faz-se por paisagens urbanas e campos de girassóis, uma passagem bela, florida e poética que colaboram na perspectiva de um desfecho feliz.
O trabalho de Sophia Loren é árduo na tentativa de desvencilhar da musa e do apelo sexual comum ao histórico de suas personagens, e em muito momentos conseguem, mas para facilitar o desfecho de sua história, temos justamente o emprego da musa e do apelo sexual, mas claramente como recurso imposto pelo roteiro e acatado pela direção. Já Marcello Mastroianni impressiona pelo carisma e magnetismo, um simples retrato do ator ou personagem já são suficientes. Honestamente sabemos que não é de todo um trabalho difícil para ambos atores, já que as personagens não exigem durante o feito, durante o que é filmado ou captado, um esmiuçar de estados, sentimentos e conflitos. A carga melodramática já se encarrega disso, porém, em nenhum momento, assistimos um trabalho de menor, de escanteio ou que imprima desprestígio.
Destaques para a trilha de Henry Mancini, famoso por criar identidade musical nos filmes em que trabalha. Já a Fotografia de Giuseppe Rotunno, especialmente em todas as cenas de multidão, que somadas a direção de Vitoria imprimem um verdadeiro retrato de uma Itália. Entre tantos momentos de brilhantismo de direção e fotografia, destaco a primeira cena de guerra na Rússia. A forte e frutífera imagem de uma grande bandeira vermelha balançando no ar e oscilando entre projeções, plano de fundo e transparências de uma guerra na neve que é manchada pelo sangue de pessoas tão perdidas quanto o próprio destino de duas pátrias, que oscilam entre a mãe e o carrasco, oposição que , ao mesmo tempo, abraça e sentencia a vida do cidadão (homem comum), e o soldado da guerra.
A Mulher Pública
3.8 20"La femme publique" não permite traços de sutileza. Seja na realidade, na fantasia ou na mistura entre esses dois polos, tudo se diz ou se mostra em excessos.
Aos desavisados, cabe o aviso: a obra do diretor polonês Andrzej Żuławski não é descanso nem convite ao olhar contemplativo, tão pouco quer ser analítica. Permite, entretanto muitas reflexões e com momentos de pura poesia, mas sua caraterística principal está na figura inquietante, provocadora, revoltosa e crítica sobre a vida e consequentemente sobre o homem.
"La femme publique" foi realizado em 1984 tendo com inspiração a novela "Demons" de Dostoevsky. Cenas dessa mesma peça sano utilizadas em um filme que está sendo realizado dentro do próprio filme ou do que seria a história principal "La femme..." essa utilização de metalinguagem, que muitas vezes complica ainda mais o entendimento da obra, rende, em contrapartida, um jogo valioso que até equipara o público com a protagonista da história, a estonteante Ethel (Valérie Kaprisky).
Equipara no sentido que Ethel é uma jovem aspirante a atriz que não consegue diferenciar atuação e realidade, ao ponto de assumir a figura de uma mulher morta, cujo assassino é o abusivo e deslocado diretor Lucas Kesling (Francis Huster), acrescente a esse enredo a figura de Milão (Lambert Wilson), um imigrante checo que é manipulado pelo cineasta (Lucas) para cometer um assassinato político. Entre esses três personagens que formam um triângulo amoroso que nunca se realiza e nem se quer realizar, acompanhamos os medos, insanidades, desafios e impulsos como arquétipos de um mundo ficcional espelhado ao real.
Em vários momentos do filme, temos a sensação de estarmos tão perdidos quanto Ethel, e tão como sua personagem, não há ninguém que possa nos dar as mãos, ao contrário, sempre que surge alguém somos agredidos ou verbalmente ou fisicamente, o que estabelece um jogo muito louco e que nos deixa envergonhados, pois quando esse jogo é ficcional (que está sendo rodado durante o filme principal) tais agressões são até bem recebidas, mas quando se revelam na realidade da vida daqueles atores, seres humanos, é de uma agressão pavorosa, embora se apresente um respaldo marcante de que estamos assistindo uma encenação dentro da outra, mas novamente, como é espelhado na vida real, é uma loucura e agressividade comum a vida humana.
Tanto nos momentos que inserem um set de gravação, um dia de filmagem ou no final do filme, onde os atores tal como em um teatro reverenciam o aplauso do público. Em todos estes momentos que se misturam realidade e ficção, a paleta de tons usadas em "La femme publique" não permite traços de sutileza. Seja na realidade, na fantasia ou na mistura entre esses dois polos, tudo se diz ou se mostra em excessos. Por ter traços tão grosseiros, os momentos de quebra e a incerteza de qual mundo estamos, suavizam esse drama. É interessante notar as referências teatrais que acompanham o diretor Andrzej Żuławsk, não só dos autores teatrais, mas na referência a teatrólogos como Brecht, com seu teatro político com rupturas e fragmentação das cenas, além do "eu" narrador onde a figura do ator é às vezes o intermediário das ideias do autor. Outra referência teatral é de Antonin Artaud é o seu teatro da crueldade, onde os atores buscam em situações e emoções reais para trazê-las e revivê-las no palco, tal como a jovem atriz Ethel do filme, porém, que se perde ao misturar realidade e ficção.
Embora seja relativamente restrito, Zuławski tece seu próprio conto de violência política com Dostoyevsky. Kesling explica que ele quer adaptar o romance porque é "um conto profético sobre aqueles que tentam mudar o mundo através da violência", e de forma estranha ele se torna a encarnação de Stavrogin e Verkhovensky. Zuławski seleciona cenas-chave de "Demons" para incluir como o filme dentro de um filme e a maioria deles tem a ver com conteúdo político. A cena de uma das reuniões de Verkhovensky é brilhantemente filmada como uma partida suada em uma quadra de tênis interna, onde é declarado que "assassinato, chantagem, extorsão, bombas" serão adicionados à sua agenda, e uma lista de pessoas a serem mortas deve ser redigido imediatamente.
A câmera nos filmes de Żuławski se encadeza em cenas, avançando nos setas e buscando ativamente os atores, a maioria das cenas de "Femme Publique" é atingida por ângulos baixos e atrevidos que tornam Kaprisky uma espécie de deusa totêmica ou uma alma perdida em meio a edifícios europeus vertiginosos e cavernosos, escadas em espiral e colunas dilapidadas. Mas este é também o seu filme mais suntuoso em termos de iluminação, cortesia do célebre diretor de fotografia Sacha Vierny.
No mais a atuação dos atores está a altura do filme, mas Valérie Kaprisky com sua Ethel dominam a cena. Se no começo do filme temos a jovem atriz com montes de revistas de atores famosos, ao fim o mesmo acontece com a consagração, mesmo que fantasiosa de Ethel, estampando outro monte de revistas, tornando-se a atriz e mulher publica. O erotismo de Ethel, através do seu corpo, sua dança e sua beleza, que está eternizados nesse filme e decerto estarão durante muito tempo na memória do público.
Monty Python em Busca do Cálice Sagrado
4.2 740 Assista Agora“Monty Python” deixa claro que o destaque sempre será a piada, o riso, e nunca a vaidade de quem é ou não capaz de fazer rir, e por tamanha entrega e generosidade já temos um bom motivo para acompanhar essa história.
O filósofo Henri Bergson dedicou boa parte de seus estudos sobre a comicidade, como podemos verificar no livro de sua autoria (O RISO — ENSAIO SOBRE A SIGNIFICAÇÃO DO CÔMICO). Em tal obra, que esgarça a fundamentação do riso, Bergson pontua uma ideia na qual o grupo inglês de comédia "Monty Python", a utiliza quase como tese, no caso: O riso é a mecânica aplicada no ser vivo.
Em "Monty Python & the Holy Grail" (1975), temos toda a distribuição de uma mecânica aplicada de forma sútil, sem didatismos ou apresentados de forma obrigatória na tentativa de provocar o divertimento do público, apesar de ser uma comédia, não é realizada escancaradamente tal como convencionalmente outros filmes do gênero se propõem, algo que pode ser verificado no filme "The Meaning of Life", trabalho posterior desse mesmo grupo, que utiliza de "sketches", algo simplista e raso na construção de comicidade, principalmente se considerarmos a complexidade do efeito cômico empregado em um longa-metragem com história focal e linear.
A comédia cujo foco de sátira principal é sobre a lenda do Rei Artur, é um trabalho escrito e realizado pelo grupo Monty Python e que contou com a direção de Terry Gilliam e Terry Jones. A sátira empregada expande os seus limites ao mostrar um rei em uma missão sagrada, e que por ser crente demais da sua condição, provoca risos ao ter essa seriedade interrompida ao cavalgar em um animal imaginário, que só existe através das batidas de um coco, um efeito sonoro encarregado ao seu ajudante Patsy (Terry Gilliam), a sonoridade é suficiente para o Rei Arthur dos Bretões (Graham Chapman) crer ter de possse um cavalo que o acompanha pelas terras inglesas. Esse efeito não só do som, mas de um rei quase aos moldes do conto dinamarquês "A roupa nova do rei", onde um nobre desfila pelado, porém, acreditando trajar uma bela roupa, pois, assim lhe falou seu alfaiate, enfim, essa postura louca, imaginativa do Rei Artur somado ao som dos cocos serão cálculos resultantes de uma soma mecânica recorrente no filme, algo que Bergson identifica como mecânica da repetição para o riso.
“A repetição, uma combinação de circunstâncias que se repete exatamente em várias ocasiões, contrastando vivamente com o curso cambiante da vida - será tanto mais cômica a repetição (ou coincidência) quanto mais complexa for a cena repetida e quanto mais natural for representada (duas condições - complexidade e naturalidade que parece se excluírem, e que a habilidade do autor teatral deverá conciliar)”. Bergson, 1900.
O destaque dessa repetição característica em"Monty Python & the Holy Grail" é a sofisticação na qual ela é construída, e nos momentos em que é inserida, pois, é algo que corre o risco de ser cansativo ou batido, mas que no filme exerce um encanto ao ponto de queremos mais. O mesmo efeito ocorre em todas as circunstâncias nas quais o Rei Artur e seus companheiros tentam invadir castelos, porém, nunca conseguem. Já que as tentativas, essas diferentes, sempre fracassam, mesmo quando se mostram ser uma excelente ideia, como na tentativa aos moldes do cavalo de Troia, que no filme é substituído por um grande coelho de madeira entregue aos franceses.
Uma interessante divisão realizada para conhecermos em detalhe cada um dos cavaleiros da Távola Redonda, é justamente uma quebra aos moldes do teatrólogo Brecht, uma ruptura com a narrativa ficcional, apresentando um historiador (atual ao período em que a obra foi realizado), e aos molde de um programa televisivo, explica ou tenta explicar o que ocorreu com os cavaleiros, porém, um desfecho tragicômico é dado ao professor, essa quebra não utilizada de forma gratuita, ganha destaque permanente a medida que retroalimentar o enredo do filme, evocando momentos de risos através da repetição de interrupções da história medieval por uma investigação policial moderna.
Com a ruptura que permite conhecermos melhor figuras como o inteligente Sir Bedevere (Terry Jones), o bravo Sir Lancelot (John Cleese), o casto Sir Galahad (Michael Palin), e Sir Robin (Eric Idle), o público é agraciado com atuações impecáveis. Temos em cada ator um preciso "time" para o riso e um jogo de escadas entre o grupo "Python" deixando claro que o destaque sempre será a piada, nunca a vaidade de quem é ou não capaz de fazer rir, e por tamanha entrega e generosidade já temos um bom motivo para assisti-los.
A direção e a fotografia, cometem deslizes primários de registro, em algumas cenas, por exemplo, há desfoque de lente, e a utilização de planos abertos nem sempre conseguem comunicar a dimensão do que se deseja revelar, talvez isso ocorra por um limite de orçamento, já que muitas das cenas de planícies são achatadas em planos médios que não dão conta de registrar castelos e povoados (algo que necessita de investimentos para construção), já nas cenas sombrias ou de névoas, o uso de close's, big close's e planos abertos, ao invés de auxiliar em qualquer dialogação, só complica e diminuem o efeito cômico pretendido.
É válido ressaltar quem os momentos de inserção das animações são todos, muito bem inseridos, além da arte impecável que colabora e auxilia na construção de uma proposta cômica, e mesmo sendo desenhos inseridos em uma história de humanos, são empregados com naturalidade. Como Bergson explica, isso se dá quando certo efeito cômico derivar de certa causa, quanto mais natural a julgarmos tanto maior nos parecerá o efeito cômico: rimos já do desvio que se nos apresenta como simples fato. Mais risível será o desvio que virmos surgir e aumentar diante de nós, cuja origem conhecermos e cuja história pudermos reconstituir. A causa da inserção desses desenhos no filme são sempre resultados de um mundo e de uma ordem divina, que saem do plano terrestre e apresentam-se como mundo do extra-plano humano, e se registram tal como as ilustrações da igreja católica na idade média, porém, sem a seriedade do traço da igreja, mas sempre do traço cômico.
Por último, destaco que ao se apropriar de uma história medieval, o grupo britânico soube indiscutivelmente tratar da significação social, criando um trabalho atemporal. O enredo é fortalecido pela ideia de um riso em grupo, pois, não desfrutaríamos o cômico se nos sentíssemos isolados - o riso parece precisar de eco, de cumplicidade com outros galhofeiros, reais ou imaginários, algo que os "Python's" sabem bem.
O Sentido da Vida
4.0 327 Assista AgoraTalvez a resposta de algum sentido, seja o próprio caminho da (eterna) procura.
Dirigido em 1983, por Terry Jones co-criador e membro da companhia de comédia Monty Python, o grupo inglês emprega ao filme uma divisão em "sketches" algo comum as séries de humor televisivas, e que durante ao filme é explicado através do humor ácido, sua divisão assim se dá pela incapacidade do público em acompanhar uma história longa e contínua sem intervalos comerciais ou que não insira ao longo da história violência, sexo explícito ou qualquer outra coisa estúpida ao ponto de ser censurada e provocar polêmica suficiente para tirar as pessoas da tela de uma tv e despertar o interesse de ir ver um filme no cinema.
Esse tom ácido, debochado, sagaz e jocoso estará presente em todos os divisões e sub-divisões de "The Meaning of Life" e ainda assim o roteiro será cuidadoso o suficiente para criar ligações entre as histórias o que é feito de forma muito simples e eficaz, e com muito humor.
O filme é dividido em cerca de oito capítulos: O milagre do nascimento; Crescimento e Aprendizagem; Lutando uns aos outros; Meia idade; Transplantes de órgãos de fígado; Os Anos do Outono; O significado da vida; A morte - e quando esses quadros se ligam o efeito é ainda mais divertido.
Ao mesmo tempo, que o uso de "sketches" possibilita uma dinâmica e propensão de estimular o público a ater-se com momentos e imagens que mais lhe interessam, o contrário a isso também ocorre, se temos uma brilhante abertura com metáforas e que hoje (2017), vislumbra traços de previsão desse nosso futuro, onde o mundo abole o sistema de trabalho através da mão de obra (tal como os escravos idosos do prédio que navega no mar econômico), para viver de uma economia financeira e de ações. Se esse quadro de abertura é feito com maestria e será dispositivo para o enlace com outro capítulo, histórias como do exército inglês, são ineficazes para qualquer análise do filme. Não corroboram em nada e a impressa que causa, é de ser um instrumento de alívio para uma piada anterior mais complexa, intelectualizada e consequentemente respiro para quem não entendeu ou para aqueles que ainda estão refletindo. Esse intervalo de espaços entre um riso intelectual e o riso raso, fácil será apresentando em outros momentos com o mesmo efeito.
Um momento memorável surge no capítulo, os anos de outono, especificamente na "sketche": "The Autumn Years", na qual um senhor monstruosamente gordo, o Sr. Creosote, come desenfreadamente e quando recebe um pequeno pedaço de chocolate, explode. Algo que para nós, brasileiros, é muito familiar quando recordamos da Sra. Redonda, personagem emblemática criada por Dias Gomes para a telenovela "Saramandaia", cujo final da personagem é igual ao do Sr. Creosote.
Há muitos bons momentos no filme de 1983, o meu favorito é o de um grupo de pomposos convidados para um jantar que são interrompidos pela visita da "Morte" (Grim Reaper), em suma, todos que estão ali morrerão e quando questionado do motivo de tantas morte em um jantar, eis que a resposta é devido a um singelo mousse de salmão, e o ponto ápice vem do comentário de uma senhora (Michael Palin), que com sua despretensiosidade diz: "Eu nem comi a mousse". Essa fala que supostamente foi improvisada, e que por ser tão bem utilizada provoca risos, carrega uma sutileza que auxilia na indagação não só do motivo da morte, mas também no sentido da vida, onde não há aparente sentido algum, tudo não passa de mera condições e que na maior parte são ocasionados inerentes ao desejo do homem.
Na busca de responder ao título filosófico que é também o argumento principal de "The Meaning of Life", percebemos que no final, a resposta é menos interessante se comparado ao prazeroso processo na tentativa de responde-la. Talvez a resposta de algum sentido, seja o próprio caminho da (eterna) procura.
O Discurso do Rei
4.0 2,6K Assista Agora"The King's Speech" é um filme bom mas não passa e não ultrapassa o limite de um vídeo, possui seus méritos, mas quando se pensa nas possibilidades e até mesmo na quebra de possibilidades do cinema, "the Kings" não acrescenta em nada.
É tudo feito em uma escala muito rasa de um vídeo direcionado para satisfazer e responder as encomendas de quem lhe solicitou ou até mesmo para seguir o rumo dos anos 2000. Ano próspero, que gerou uma linha de realizações biblio-cinematográficas sobre os reinados, em especial da Realeza Inglesa.
Até mesmo as atuações seguem o mesmo ritmo, Colin Firth está bom, mas sabemos de sua capacidade, e honestamente aqui não era o momento de receber seu oscar como melhor ator.Já Geoffrey Rush vai, além disso, o que é o grande alívio do filme, seu bom desempenho consegue seguir um ritmo próprio, mas nada para além de algo previsível, e sabemos que Rush é um ator excelente.
Talvez essa estranheza de ser apenas bom, se justifique pela direção de Tom Hooper que possui vastas realizações televisivas, e que refletem no filme "King...", não apenas por ser um roteiro fechado de locações internas, com uma iluminação muito clara e por vezes, artificial, mas principalmente por pontuar planos e contra planos, um trabalho simples, quase preguiçoso que a TV utiliza para simplificar ao máximo e deixar bem claro o que se conversa e com quem se conversa, não abrindo espaços para reflexões e possibilidades.
Fora isso os cenários, especialmente onde temos a presença da personagem "Lionel Logue", é nítida sua referência de velhice e decomposição que inversamente dão beleza ao filme, porém, Hopper (especificamente ao utilizar "close's" das personagens sentadas), abusa em querer apresentar tais cenários com recortes que até funcionam, mas que usados em demasia, cansam, e só mostram que estão ali como forma figurativa de um mundo pouco explorado, de uma história interessante mas registrada sem profundidade, superficial.
Casablanca
4.3 1,0K Assista AgoraCasablanca é um mundo utópico, uma grande metáfora sobre a vida que é ao mesmo tempo, o limbo ligando o inferno ao paraíso.
Em "Adaptation" de Spike Jonze, "Casablanca" é referenciado como uma obra-prima para aqueles que querem estudar e criar um roteiro, a consideração é feita pelo professor de roteiros Robert McKee (Brian Cox), e sem dúvidas: é.
O clássico de 1942 dirigido por Michael Curtiz, atravessa os séculos como máxima referência da sétima arte, principalmente pelo desenvolvimento de sua história, um primoroso roteiro que segue a estrutura clássica linear (começo, meio e fim), e que sabe tirar partido disso ao provocar pequenas quebras da linearidade, ao desenvolver uma história dramática, cujo passado não conhecemos, mas que é peça fundamental e que interfere nas decisões e nas características de uma personagem, e um futuro incerto, mas com possibilidades claras. Sabemos os caminhos disponíveis para os protagonistas, mas qual será o escolhido e o motivo, isso só conheceremos ao término da película. O roteiro é baseado na peça "Everybody Comes To Rick's", sendo desenvolvido em três mãos, por Julius J. Epstein, Philip G. Epstein e Howard Koc. Uma curiosidade é que o texto da peça só chegou a ser montada (anos) depois, e os direitos para o cinema foi um dos maiores valores pagos na época.
Uma grande sacada do roteiro é justamente não se levar tão a sério, "Casablanca" inicia com uma narração irônica, próxima das comédias que parodiam guerras, e em diversos momentos temos esse ar jocoso nos diálogos das personagens, tal como Richard Blane (Humphrey Bogart) que satiriza sua condição de homem abandonado ou da condição transitória e de espera da grande sala de conexões que é o "aeroporto Casablanca". Porém, o roteiro comete o deslize justamente ao querer apresentar o mundo externo através de flash black, um recurso que não agrega nada de interessante ao filme, mas é uma saída fácil para tentar esclarecer fatos importantes do passado, ainda assim, algo que um roteiro tão brilhante e uma direção precisa, poderiam ter solucionado com outros meios.
Um recurso próspero utilizado para compor a iluminação do filme, é a ideia da lanterna de um farol, que reflete seu giro por toda aquela cidade, embora espacialmente falando, a luz desse farol revela que Casablanca é tão curta quanto a extensão entre dois braços abertos, porém, é clara a proposta do diretor Michael Curtiz que com a direção de fotografia de Arthur Edeson, criam uma atmosfera de ocultismo, e que tal como as personagens, só temos vestígios de sombras, não são claras, tal como os lapsos de iluminação, que pouco a pouco revela algo. Outro ponto que colabora na iluminação e fotografia adotada, é a total superficialidade empregada, estamos em uma cidade do Marrocos, onde a luz solar é forte e farta, mas como "Casablanca" foi rodado em estúdio, e também se propõe aos traços de uma cidade superficial, sua iluminação é composta por abajures, lustres, lamparinas, brilhos e faróis e raramente temos reflexos do sol. Essa artificialidade é sentida igualmente na direção de arte realizada por Carl Jules Weyl, que dentro do que seria cenários internos e externos, trabalha com oposições muito definidas, nos ambientes internos temos a riqueza de detalhes, como no bar "Ricks Café American" ou "Club Owner Signor Ferrari", nesses ambientes tudo é muito luxuoso e grandioso e bem explorados em planos abertos ou na minúcia de close's revelando um belo trabalho de composição de imagens e de Mise en scène.
A trilha sonora é marcada pelo clássico "Como o Time Goes By" e La Marseillaise, o hino nacional da França. Ambos ganham "status" para além de trilha sonora, tornam-se “leitmotiv”, e gerando certo incômodo, no terceiro dedilhar de La Marseillaise mais do que saber que ali estão os franceses ou que é uma busca de enaltecer a França, sabemos que é uma insegurança por parte do diretor de esclarecer pontos que já se estabelecem seja pele local frequentado ou pelo fardamento que as personagens utilizam (exemplo: diferenciar soldados alemães dos franceses). Porém, o ápice de exaltação do hino nacional da França, ocorre quando é utilizado para provocar os Alemães, capaz até de unir os franceses que estão no Rick café e sob domínio Alemão.
Humphrey Bogart como Richard Blane, Ingrid Bergman como Ilsa Lund Laszlo e Paul Henreid como Victor Laszlo, conseguem se destacar individualmente, e as origem estrangeira de cada ator favorecem o jogo clandestino e migratório inerente ao filme. Se separadamente cada ator se destaca, a combinação em um triângulo amoroso funciona ainda mais, e divide muito o espectador para o favoritismo amoroso da personagem de Ilsa, pois, tanto o charmoso Blane e o heróico Victor são carismáticos e com qualidades divergentes, mas que juntos só complicam ainda mais uma posição que colabore em determinar com quem Ilsa deve ficar. Nenhum destes personagens tombam em uma balança maniqueísta para o lado ruim. Alguns são cínicos, algumas mentiras, alguns matam, mas todos são resgatados e suas decisões, por mais que difíceis, são fáceis de entender.
Casablanca é um mundo em miniatura, em que desejos, pecados e impulsos básicos universais, para o bem e para o mal, estão envolvidos em “glamour”, “suspense” e estilo.
Caro Diário
3.7 38A incerteza de qualquer definição para “Caro Diario” é o que lhe faz tão especial. Um documentário? Um filme? Uma autobiografia? Um registro narcisista? Talvez um pouco de tudo, mas , ao mesmo tempo, negando ser tudo isso.
Falar sobre “Caro diario” só perde para o prazer de assistir ao filme realizado pelo italiano Nanni Moretti em 1993. Morreti já é referenciado há alguns anos como figura representativa da nova fase do cinema italiano. Confesso que só havia assistido anteriormente um filme de Morreti, sendo apresentado ao diretor através das aulas de italiano que cursava, e na qual assistimos ao "Habemus Papam" de 2011.
"Caro Diário" é uma obra ímpar que se faz através de três episódios com caráter autobiográfico e em diálogo com o documental. Ao transpor o seu diário para as telas, Moretti poderia correr o risco de realizar algo perigosamente narcisista, mas por ter um olhar, escrita e personalidade tão interessante, “Caro” se transforma em um jocoso filme livre para zombar do seu próprio autor, de sua pátria, seus amigos, do público… O mosaico do mundo que circula Moretti é tão verdadeiro que em vários momentos a reciprocidade e familiaridade das situações não apenas atravessam o protagonista dessa história, mas também aquele que assiste. Como, por exemplo, não se identificar com a incapacidade dos médicos de ouvirem seus pacientes, mas , em contrapartida a facilidade dos médicos em falar e recitar remédios que em nada ajuda nossas enfermidades, principalmente em projetar nos pacientes a culpa da doença bem como a responsabilidade para a cura.
Referências nem sempre são algo agradável, pois, geralmente tendem a reduzir o mérito das pessoas, no caso de Moretti, fica sincero quanto de Woddy Allen inspirou o diretor ou não passa de ligações pessoais do público, já que em diversos momentos do filme, temos memória e familiaridade de abordagens típicas dos filmes autobiográficos de Allen, tal como sua narrativa direta, sua inserção como homem e personagem, seus comentários sarcásticos, a divisão de capítulos com utilização de cartazes nominativo, a capacidade de rir de si e desfechos que sempre seguem o oposto do esperado ou desejado.
A utilização de uma trilha sonora quem em diversos momentos é algo que surge de forma externa, e que acaba por influenciar ou criar momentos próprios da música, um diálogo entre personagem e melodia, funcionam excelentemente e muito dizem da relação e influência de ritmos latinos ou de músicas antigas na formação de Moretti. Um dos momentos mais belos do filme, é a homenagem de Moretti ao cineasta italiano Paolo Pasolini, uma ida de moto (vespa) até o local onde o diretor foi assassinado ao som de Korn do concerto Keith Jarrett.
A vespa: veículo para apenas uma pessoa. A ilha: metáfora para indivíduo, solidão. O médico: profissional que cuida do corpo de cada indivíduo; cada corpo, muito particular, de cada pessoa. Os títulos de cada parte em que Caro Diário se divide tratam, de alguma forma, de uma noção do individual, do particular, como um diário também o faz. Aqui, contudo, não se trata de uma narrativa intimista: Moretti pode ser egocêntrico, mas isto não o faz ensimesmado. Seu jeito idiossincrático, peculiar, é, na verdade, um jeito que poderia ser de qualquer um; nós o notamos em Moretti simplesmente porque ele se expõe.
Tanto a fotografia quanto a iluminação são pontuais, não indo além do necessário tão pouco inovarias, no especifíco a iluminação é notório a utilização de luz natural, que muito colabora na criação de um caráter documental e biográfico muito próximo dos documentários de rua ou de programas vespertinos que registram os fatos de cidades ou bairros, a propósito, o primeiro capítulo, que utiliza um trabalho de câmera interessante, tanto pela movimentação quanto pela quebra de planos abertos e fechado, essa primeira parte, remete muito aos programa de tv, que costumam apresentar os bairros de uma grande cidade através de uma personalidade.
"Caro diario" é principalmente uma conversa entre o diretor com o público, o que cria uma oportunidade de intimidades que raramente podemos ter como experiência, seja através de documentários ou dos diversos gêneros cinematográficos. Um filme de sensibilidade mesmo quando morta suas costuras, mesmo quando se estabelece ao avesso. Um diário que ajudamos escrever e que com certeza, é prazeroso acompanhar. Parabéns Moretti!