Espero que não seja lembrada somente pelo falecimento de seu protagonista. Velho Chico já era emblemática antes do ocorrido. Eu desafio qualquer fã de teledramaturgia a encontrar uma novela no cenário nacional nos últimos, sei lá, 20 anos com a mesma competência da obra de Benedito Ruy Barbosa.
Velho Chico nos fez sair da zona de conforto, estávamos praticamente presos à mediocridade e incompetência das novelas globais (nem falarei das outras emissoras). Não que tenha sido um mar de originalidade (todo tema aqui apresentado é mais antigo que o próprio mundo), porém, soube conviver durante seis meses com a capacidade de reconhecer todo clichê existente e trabalhar da melhor maneira possível.
Benedito e Bruno Luperi (autor) entenderam de forma até surpreendente a necessidade de questionar questões sociais. Primeiramente conhecemos aquele que dá nome à novela, o mítico São Francisco, ou Velho Chico, guerreiro e abundante rio. Tendo-o como plano de fundo, de forma objetiva, criticou-se todo um sistema que diariamente mata o acervo de água. O pescador que já não mais encontra seu peixe devido à escassez d'água, os jovens revolucionários que choram a degradação de rios e terras, os políticos e coronéis que não medem forças para enriquecer a custa do povo. Povo pobre, sofrido, marginalizado (entendam aqui o cenário mostrado). Distante de nós?! Nenhum pouco.
Governantes aproveitadores, usurpadores. Vejam a conjuntura das ocorrências. Discute-se, também, e isso tão propício e necessário diante do que a cada dia testemunhamos, a importância de debater preconceitos. Racismo, claro, impressionante quando Dalva (Mariene de Castro) enfrenta Carlos Eduardo (Marcelo Serrado) e condena à atitude de discriminação dele. "Tenho sangue de reis e rainhas", ela afirma. Ele, sagaz e ridículo, começa a rir, ameaçando-a, ainda, de morte. Mas firme e bela atitude da empregada.
Ainda pontual o debate sobre crenças e religiões. Em diversos capítulos fomos apreciados com rituais e práticas culturais que elevaram ao máximo meu prazer de acompanhar a novela. Quão bonito os costumes indígenas, a fé da Dona Ceci (Luci Pereira), os sermões sábios e não panfletários dos padres Romão (Umberto Magnani) e Benício (Carlos Vereza), o amor de Miguel (Gabriel Leone) pela Mãe Natureza, o credo de Iolanda (Christiane Torloni) por Santa Sara, a santa dos ciganos. Vejam as misturas, as diferentes convicções. A firmeza de Afrânio (Antônio Fagundes) em não acreditar em um Deus. Toda verdade subjetiva foi aqui trabalhada e desenvolvida. Laico o Brasil, certo? Enfim, muita demanda, muito argumento. A novela não foi nenhum sucesso de público (disse acima que o espectador brasileiro está mal acostumado), mas foi, essencialmente, especial.
O enredo base é a história de um amor proibido (sim, uma saga shakespeariana), Santo (Domingos Montagner) e Teresa (Camila Pitanga) sofrem de amores um pelo outro. Seres impossibilitados de viverem aquilo que realmente acreditam. Nada novo, né, mas de uma beleza e honestidade todo desenvolvimento.
Luiz Fernando Carvalho (diretor artístico) foi talvez o principal nome dessa magnitude audiovisual. Não sou nenhum expert em quesitos técnicos, cênicos ou estéticos, mas posso afirmar que não há nada em nossa TV que se assemelha ao que foi exposto aqui. Velho Chico foi tão bem fotografado que, juro por Deus, Emmanuel Lubezki (somente o cara que levou os últimos 3 Oscars® de fotografia), aplaudiria de pé. A trilha sonora instrumental composta por Tim Rescala trouxe temas tão singelos aos nossos ouvidos. A trilha musical, então, selecionada a dedo pelo diretor artístico, foi absurdamente bem empregada. Em suma, um deslumbre da nossa teledramaturgia.
Nomes como Irandhir Santos, Lee Taylor, Selma Egrei, Lucy Alves, Marcos Palmeira, Giullia Buscacio, Gésio Amadeu, Rodrigo Santoro, Rodrigo Lombardi, Fabiula Nascimento, Chico Díaz, entre outros, fizeram desse elenco enxuto, o mais relevante da TV em vários anos.
Foram interessantes, belos e emocionantes meses. Sentirei falta de poder chegar em casa e sentar em meu sofá para dar um respiro. Um respiro em meio à demasiada pobreza e falta de criatividade dos realizadores da TV aberta. Sentirei falta do vigoroso drama, das intrigas e das críticas sociais. Da ousadia do texto, do espetacular emolduramento. Sentirei falta desses certos, desses errados, desses tão humanos personagens. Já com quase um mês de seu término, o sentimento é similar àquele do fim de setembro. Como nas letras da inconfundível Maria Bethânia: "Adeus, Velho Chico, diz o povo nas margens..."
Adeus!
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Velho Chico
3.7 66 Assista AgoraEspero que não seja lembrada somente pelo falecimento de seu protagonista. Velho Chico já era emblemática antes do ocorrido. Eu desafio qualquer fã de teledramaturgia a encontrar uma novela no cenário nacional nos últimos, sei lá, 20 anos com a mesma competência da obra de Benedito Ruy Barbosa.
Velho Chico nos fez sair da zona de conforto, estávamos praticamente presos à mediocridade e incompetência das novelas globais (nem falarei das outras emissoras). Não que tenha sido um mar de originalidade (todo tema aqui apresentado é mais antigo que o próprio mundo), porém, soube conviver durante seis meses com a capacidade de reconhecer todo clichê existente e trabalhar da melhor maneira possível.
Benedito e Bruno Luperi (autor) entenderam de forma até surpreendente a necessidade de questionar questões sociais. Primeiramente conhecemos aquele que dá nome à novela, o mítico São Francisco, ou Velho Chico, guerreiro e abundante rio. Tendo-o como plano de fundo, de forma objetiva, criticou-se todo um sistema que diariamente mata o acervo de água. O pescador que já não mais encontra seu peixe devido à escassez d'água, os jovens revolucionários que choram a degradação de rios e terras, os políticos e coronéis que não medem forças para enriquecer a custa do povo. Povo pobre, sofrido, marginalizado (entendam aqui o cenário mostrado). Distante de nós?! Nenhum pouco.
Governantes aproveitadores, usurpadores. Vejam a conjuntura das ocorrências. Discute-se, também, e isso tão propício e necessário diante do que a cada dia testemunhamos, a importância de debater preconceitos. Racismo, claro, impressionante quando Dalva (Mariene de Castro) enfrenta Carlos Eduardo (Marcelo Serrado) e condena à atitude de discriminação dele. "Tenho sangue de reis e rainhas", ela afirma. Ele, sagaz e ridículo, começa a rir, ameaçando-a, ainda, de morte. Mas firme e bela atitude da empregada.
Ainda pontual o debate sobre crenças e religiões. Em diversos capítulos fomos apreciados com rituais e práticas culturais que elevaram ao máximo meu prazer de acompanhar a novela. Quão bonito os costumes indígenas, a fé da Dona Ceci (Luci Pereira), os sermões sábios e não panfletários dos padres Romão (Umberto Magnani) e Benício (Carlos Vereza), o amor de Miguel (Gabriel Leone) pela Mãe Natureza, o credo de Iolanda (Christiane Torloni) por Santa Sara, a santa dos ciganos. Vejam as misturas, as diferentes convicções. A firmeza de Afrânio (Antônio Fagundes) em não acreditar em um Deus. Toda verdade subjetiva foi aqui trabalhada e desenvolvida. Laico o Brasil, certo? Enfim, muita demanda, muito argumento. A novela não foi nenhum sucesso de público (disse acima que o espectador brasileiro está mal acostumado), mas foi, essencialmente, especial.
O enredo base é a história de um amor proibido (sim, uma saga shakespeariana), Santo (Domingos Montagner) e Teresa (Camila Pitanga) sofrem de amores um pelo outro. Seres impossibilitados de viverem aquilo que realmente acreditam. Nada novo, né, mas de uma beleza e honestidade todo desenvolvimento.
Luiz Fernando Carvalho (diretor artístico) foi talvez o principal nome dessa magnitude audiovisual. Não sou nenhum expert em quesitos técnicos, cênicos ou estéticos, mas posso afirmar que não há nada em nossa TV que se assemelha ao que foi exposto aqui. Velho Chico foi tão bem fotografado que, juro por Deus, Emmanuel Lubezki (somente o cara que levou os últimos 3 Oscars® de fotografia), aplaudiria de pé. A trilha sonora instrumental composta por Tim Rescala trouxe temas tão singelos aos nossos ouvidos. A trilha musical, então, selecionada a dedo pelo diretor artístico, foi absurdamente bem empregada. Em suma, um deslumbre da nossa teledramaturgia.
Nomes como Irandhir Santos, Lee Taylor, Selma Egrei, Lucy Alves, Marcos Palmeira, Giullia Buscacio, Gésio Amadeu, Rodrigo Santoro, Rodrigo Lombardi, Fabiula Nascimento, Chico Díaz, entre outros, fizeram desse elenco enxuto, o mais relevante da TV em vários anos.
Foram interessantes, belos e emocionantes meses. Sentirei falta de poder chegar em casa e sentar em meu sofá para dar um respiro. Um respiro em meio à demasiada pobreza e falta de criatividade dos realizadores da TV aberta. Sentirei falta do vigoroso drama, das intrigas e das críticas sociais. Da ousadia do texto, do espetacular emolduramento. Sentirei falta desses certos, desses errados, desses tão humanos personagens. Já com quase um mês de seu término, o sentimento é similar àquele do fim de setembro. Como nas letras da inconfundível Maria Bethânia: "Adeus, Velho Chico, diz o povo nas margens..."
Adeus!