Tragicomédia, basicamente. Qualquer tipo de regime político fanático pode enlouquecer uma pessoa, seja ele ditadura ou democracia. O filme coloca a arte quase como salvação. Apesar de não ser esse o papel da arte, ela torna a vida mais sublime. O artista pode ser visto como um louco que não pertence a esse mundo, quando na verdade ele é uma pessoa comum que apenas enxerga esse mundo de uma maneira diferente, ele vê um pouco mais. Acho que o filme nos faz refletir nesse sentido. E o Tchai na triha arrebenta né?
“O homem da capa preta”, dirigido por Sérgio Rezende, data de 1986 e pode parecer uma simples representação de drama biográfico. Seria apenas isso, se não tivesse tratado de um assunto interessante do ponto de vista histórico-jornalístico e se não contasse a história de um homem tão peculiar quanto Tenório Cavalcanti. A vida de Tenório envolve pobreza, política, luta social e comunicação popular. Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque nasceu em Alagoas, mais precisamente em Palmeira dos Índios, em 27 de setembro de 1906. Ainda menino viu o pai ser assassinado e teve uma infância pobre, mas nunca abandonou os estudos e isso fez toda diferença ao longo de sua vida. Anos mais tarde teve a oportunidade de vingar a morte do pai e assim o fez. Aos vinte anos mudou-se para o estado do Rio de Janeiro. Migrante nordestino como tantos outros, deixou sua terra em busca de melhores condições de vida e chegou a Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, com pouco dinheiro e quase sem nenhuma condição de sobrevivência. Trabalhou como porteiro, zelador, motorista de caminhão e nas horas vagas se empenhava em concluir os estudos. Sua fama de pistoleiro começou a surgir enquanto trabalhava como administrador de uma fazenda. Por ser mais novo que os homens a quem comandava, Tenório precisou encontrar uma maneira de exigir respeito. Esse respeito foi adquirido por meio da propagação do mito de que tinha o corpo fechado e com ameaças, evidentemente. Nasce então uma figura temida por sua coragem e determinação, que passa a ser admirada tanto quanto mais luta pelo povo. A fim de mistificar ainda mais essa figura, Tenório Cavalcanti não saía de casa sem sua capa e chapéu pretos. A capa, além de lhe conferir magia, escondia sua fiel e inseparável companheira Lurdinha, uma metralhadora alemã. Em 1936 Natalício Tenório Cavalcanti inicia sua carreira política. Foi eleito vereador pelo distrito de Caxias e seu carisma e visão política, usados sempre a favor do povo, o fizeram um líder da região. Ao mesmo tempo em que Tenório conquistava a simpatia popular, conquistava seus maiores inimigos, os “donos” do poder. A partir de então passou a sofrer inúmeras ameaças e tentativas de assassinato. A cada atentado que sofria, Tenório Cavalcanti saía às ruas com sua capa para pedir apoio popular e, cada vez mais, conquistava a simpatia de cariocas e nordestinos imigrantes. Dez anos mais tarde, com o fim do Estado Novo e filiado à UDN, o homem da capa preta já havia terminado seu curso de Direito e era eleito deputado estadual. Em fevereiro de 1954 Tenório criou um jornal intitulado Luta Democrática, veículo que foi determinante para a história da imprensa no Brasil. O jornal tinha caráter sensacionalista e popular, se auto denominava “defensor do povo”. No filme podemos ler, na parede da redação, “vox populi, vox dei”, a voz do povo é a voz de deus, e em várias cenas ouvimos diálogos em que o personagem principal, nosso homem da capa preta, defende a linha editorial de seu jornal. Os jornalistas e editores tinham total liberdade para escrever ou editar, mas somente aquilo que fosse justo. Segundo Tenório, o Luta Democrática era “um jornal que luta, feito por homens que lutam para os que não podem lutar”. Quando a edição nº 1 foi entregue a Tenório ele criticou o amontoado de letras e pediu que se enfeitasse mais um pouquinho o jornal. Mais do que uma questão mercadológica, esse sensacionalismo marcava o veículo como objeto de construção de apoio à carreira política de seu fundador. Tenório enaltecia seu assistencialismo à população a fim de penetrar nas camadas populares.
“Enquanto isso, Brasília é o sorvedouro da renda nacional, suor e sangue de um povo empobrecido para que resplenda esse reinado da encarnação republicana de Luís XIV." (Tenório Cavalcanti, no jornal Luta Democrática, em agosto de 1958)
O Luta Democrática tinha filiação partidária, e surgiu da necessidade política de reforçar a base de apoio (a Tenório) junto às massas populares. Tenório queria transformar os leitores em eleitores e utilizava o jornal para combater o governo Vargas. Israel Beloch explica, em Capa Preta e Lurdinha - Tenório e o povo da Baixada, que o jornal foi uma espécie de Tribuna da Imprensa do pobres. “Adotando uma linguagem popular e valendo-se de apelos sensacionalistas, como o recurso a chocantes fotografias de cadáveres, de preferência mutilados, que habitam a crônica policial, o Luta Democrática conquistou grande aceitação junto às camadas mais pobres da população carioca e fluminense, difundindo uma imagem positiva, muitas vezes gloriosa e quase mítica, de seu proprietário".
"Há dias, no Rio de Janeiro, com a providencial e altamente humana interferência do deputado Tenório Cavalcanti, cenas iguais às do Nordeste foram evitadas. Esperava-se o despejo do Morro São João e os seus moradores recorreram ao advogado do povo. O despejo foi evitado e as lágrimas vertidas pelos moradores do morro foram de alegria, de agradecimento, de perene gratidão ao homem providencial." (Luta Democrática, setembro de 1960)
Assim Tenório Cavalcanti seguiu com sua polêmica carreira política, sempre em prol de um pequeno grupo, os mais desfavorecidos, na base do clientelismo. O Luta Democrática, por mais que defendesse o povo do governo em questão, sempre serviu como veículo oficial em benefício de sua campanha política. Apesar de toda a campanha, o homem da capa preta foi enfraquecido politicamente quando perdeu a eleição para Carlos Lacerda. Em 1964, com o golpe militar, Tenório foi cassado e seu jornal não teve destino diferente. O Luta Democrática, que chegou possuir tiragem de 150 mil exemplares, foi perdendo força por diversos fatores, dentre eles a hostilidade do golpe militar, o aumento no preço do papel, a queda do poder aquisitivo da população e a invenção da televisão. O jornal foi arrendado sucessivas vezes até seu desaparecimento. Natalício Tenório Cavalcanti nunca desistiu de lutar pelo povo e nunca se acovardou. Apesar disso foi caindo no esquecimento e faleceu em 1987 em sua residência, vítima de pneumonia. O filme “O homem da capa preta”, a princípio, e para acadêmicos desatentos, parece sanguinário demais e desagradável, mas a quem entende a importância histórica de Tenório na política brasileira e tem capacidade de analisar o papel de um veículo de comunicação em uma época em que uma foto em um jornal podia acabar com uma carreira política ou que falsas notícias eram implantadas em jornais ‘inimigos’, a obra possui incontestável conteúdo relevante. É um pouco fantasiosa e sentimental, mas, afinal de contas, estamos falando de cinema.
“O homem que virou suco” (1979), de João Batista de Andrade é um filme ao mesmo tempo político e humano. O filme fala sobre a vida de Deraldo, um nordestino poeta e repentista que foi a São Paulo vender sua poesia e acabou sendo confundido com Severino, um operário que matou o patrão. Apesar de usar alguns clichês no texto, justamente a fim de criticar a estereotipação que sofre os nordestinos, João Batista não apresenta um personagem mergulhado em uma vida de mortes e sofrimentos. O personagem principal é bastante inteligente e encara seus problemas com muito senso de humor e, ao invés de reclamar e despertar pena, se apresenta como alguém que luta em busca de um trabalho digno e uma vida livre de falsas acusações. É importante lembrar que nas décadas de 60 e 70 a migração nordestina era intensa para a região sudeste do país. “O homem que virou suco” retrata a situação do migrante naquela época e mostra, como se ele fosse um Carlitos brasileiro, suas dificuldades em se adaptar à cidade grande e como o sistema fazia com que ele perdesse suas origens. Porém, mais do seguir a filosofia brechtiniana de que uma grande obra deve expor um problema ao expectador, João Batista propõe um resgate à memória cultural nacional. O que faz com que seu filme seja um instrumento de trabalho de cultura popular, que conscientiza e politiza, e parte de uma compreensão real da cultura de um povo, no caso, o povo nordestino. A obra de João Batista nos faz analisar o papel do cinema na sociedade enquanto permite que o espectador compreenda o reflexo da vida material na cultura. Há uma passagem no filme em que a poesia de Deraldo é comparada ao dinheiro e tratada com descaso e ironia, como se não possuísse valor algum. É a moeda e o lucro que se sobrepõem à arte e à intelectualidade. Deraldo passa todo o filme tentando encontrar um lugar pra sua poesia e acaba ilustrando o otimismo alienado (e, por que não, alienante?) por trás da idéia de modernização, industrialização e integração nacional que assombra o Brasil até hoje. O personagem conserva em si, até o final do filme, o sentimento de que defender a cultura de sua região é mais importante do que se render às condições de trabalho a que é exposto. Contradiz a idéia de que o quintal do vizinho é mais bonito, sentimento típico de sul matogrossenses que sentem vergonha por nascer em um estado conhecido como produtor de soja e carne e acreditam que possuir uma cultura bem definida é ser um estado industrial que esmaga o indivíduo pelo sistema e marginaliza o nível econômico primário. Outro aspecto relevante em “O homem que virou suco” é o posicionamento adotado pelo roteirista e diretor. João Batista de Andrade critica o sistema industrial e se coloca ao lado dos oprimidos. Bate na tecla do massacre biológico a que eram submetidos os retirantes em cima da desumanização do personagem principal. Cenas como a de um policial que diz que “todos os paus-de-arara são Silva”, ou em que um personagem afirma que “cearense, alagoano, paraibano, tudo é a mesma coisa” tiram risos do público. É o estereótipo que serve como piada mas que, na verdade, deveria ser visto como uma ruptura da identidade humana individual. Como disse, João Batista não foge dos clichês, mas os utiliza com sabedoria. Não pretende reproduzir o real, apenas concentrar parte desse real e exagerar ou caricaturar um pouco para tornar o problema mais evidente. É sua maneira de tentar reproduzir o todo e estabelecer um diálogo com seu público. O filme deixa claro a crítica do diretor contra o sistema que tenta transformar o retirante nordestino em uma massa liquefeita, um suco de laranja que após consumido só deixa bagaços. O fato de Deraldo possuir um sósia, convenientemente chamado de Severino (provável alusão à obra de João Cabral de Melo Neto) nos coloca diante o duelo artista-intectual versus operário. Esse operário que matou o patrão estava longe de ser um homem admirável. Severino era um fura-greve, delator e odiado por seus colegas que lutavam por melhores condições de trabalho. Estava solitário por causa de sua traição. Severino era o operário mais oprimido, delatou os colegas para benefício próprio e acabou sendo demitido pelo patrão. Tanta opressão levou o personagem à loucura. Ao encontrar seu sósia, Deraldo reconhece-o como pedaço de si mesmo. É uma metáfora do poeta indo atrás do seu eu operário. Desse encontro nasce a maior obra de Deraldo, cujo nome dá título ao filme. “É a história de todo nordestino. Do cara que chega em São Paulo, trabalha, luta e acaba passando fome, virando suco de laranja. Só custa 10 cruzeiros o livrinho. A melhor poesia nordestina”, garante o personagem. Ao lutar por condições mais dignas de sobrevivência Deraldo se afirma como o típico ser humano detentor da cultura popular em si mesmo. Ele é um poeta e intelectual, mas está totalmente integrado ao meio do qual ele fala e para o qual ele fala. É um intelectual do povo. Caracteriza o conceito de cultura como aquilo que é feito pelo homem.
O Concerto
4.1 278 Assista AgoraTragicomédia, basicamente.
Qualquer tipo de regime político fanático pode enlouquecer uma pessoa, seja ele ditadura ou democracia. O filme coloca a arte quase como salvação. Apesar de não ser esse o papel da arte, ela torna a vida mais sublime. O artista pode ser visto como um louco que não pertence a esse mundo, quando na verdade ele é uma pessoa comum que apenas enxerga esse mundo de uma maneira diferente, ele vê um pouco mais. Acho que o filme nos faz refletir nesse sentido. E o Tchai na triha arrebenta né?
O Homem da Capa Preta
3.6 59 Assista Agora“O homem da capa preta”, dirigido por Sérgio Rezende, data de 1986 e pode parecer uma simples representação de drama biográfico. Seria apenas isso, se não tivesse tratado de um assunto interessante do ponto de vista histórico-jornalístico e se não contasse a história de um homem tão peculiar quanto Tenório Cavalcanti. A vida de Tenório envolve pobreza, política, luta social e comunicação popular.
Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque nasceu em Alagoas, mais precisamente em Palmeira dos Índios, em 27 de setembro de 1906. Ainda menino viu o pai ser assassinado e teve uma infância pobre, mas nunca abandonou os estudos e isso fez toda diferença ao longo de sua vida. Anos mais tarde teve a oportunidade de vingar a morte do pai e assim o fez. Aos vinte anos mudou-se para o estado do Rio de Janeiro. Migrante nordestino como tantos outros, deixou sua terra em busca de melhores condições de vida e chegou a Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, com pouco dinheiro e quase sem nenhuma condição de sobrevivência.
Trabalhou como porteiro, zelador, motorista de caminhão e nas horas vagas se empenhava em concluir os estudos. Sua fama de pistoleiro começou a surgir enquanto trabalhava como administrador de uma fazenda. Por ser mais novo que os homens a quem comandava, Tenório precisou encontrar uma maneira de exigir respeito. Esse respeito foi adquirido por meio da propagação do mito de que tinha o corpo fechado e com ameaças, evidentemente. Nasce então uma figura temida por sua coragem e determinação, que passa a ser admirada tanto quanto mais luta pelo povo. A fim de mistificar ainda mais essa figura, Tenório Cavalcanti não saía de casa sem sua capa e chapéu pretos. A capa, além de lhe conferir magia, escondia sua fiel e inseparável companheira Lurdinha, uma metralhadora alemã.
Em 1936 Natalício Tenório Cavalcanti inicia sua carreira política. Foi eleito vereador pelo distrito de Caxias e seu carisma e visão política, usados sempre a favor do povo, o fizeram um líder da região. Ao mesmo tempo em que Tenório conquistava a simpatia popular, conquistava seus maiores inimigos, os “donos” do poder. A partir de então passou a sofrer inúmeras ameaças e tentativas de assassinato. A cada atentado que sofria, Tenório Cavalcanti saía às ruas com sua capa para pedir apoio popular e, cada vez mais, conquistava a simpatia de cariocas e nordestinos imigrantes. Dez anos mais tarde, com o fim do Estado Novo e filiado à UDN, o homem da capa preta já havia terminado seu curso de Direito e era eleito deputado estadual.
Em fevereiro de 1954 Tenório criou um jornal intitulado Luta Democrática, veículo que foi determinante para a história da imprensa no Brasil. O jornal tinha caráter sensacionalista e popular, se auto denominava “defensor do povo”. No filme podemos ler, na parede da redação, “vox populi, vox dei”, a voz do povo é a voz de deus, e em várias cenas ouvimos diálogos em que o personagem principal, nosso homem da capa preta, defende a linha editorial de seu jornal. Os jornalistas e editores tinham total liberdade para escrever ou editar, mas somente aquilo que fosse justo. Segundo Tenório, o Luta Democrática era “um jornal que luta, feito por homens que lutam para os que não podem lutar”. Quando a edição nº 1 foi entregue a Tenório ele criticou o amontoado de letras e pediu que se enfeitasse mais um pouquinho o jornal. Mais do que uma questão mercadológica, esse sensacionalismo marcava o veículo como objeto de construção de apoio à carreira política de seu fundador. Tenório enaltecia seu assistencialismo à população a fim de penetrar nas camadas populares.
“Enquanto isso, Brasília é o sorvedouro da renda nacional, suor e sangue de um povo empobrecido para que resplenda esse reinado da encarnação republicana de Luís XIV."
(Tenório Cavalcanti, no jornal Luta Democrática, em agosto de 1958)
O Luta Democrática tinha filiação partidária, e surgiu da necessidade política de reforçar a base de apoio (a Tenório) junto às massas populares. Tenório queria transformar os leitores em eleitores e utilizava o jornal para combater o governo Vargas.
Israel Beloch explica, em Capa Preta e Lurdinha - Tenório e o povo da Baixada, que o jornal foi uma espécie de Tribuna da Imprensa do pobres. “Adotando uma linguagem popular e valendo-se de apelos sensacionalistas, como o recurso a chocantes fotografias de cadáveres, de preferência mutilados, que habitam a crônica policial, o Luta Democrática conquistou grande aceitação junto às camadas mais pobres da população carioca e fluminense, difundindo uma imagem positiva, muitas vezes gloriosa e quase mítica, de seu proprietário".
"Há dias, no Rio de Janeiro, com a providencial e altamente humana interferência do deputado Tenório Cavalcanti, cenas iguais às do Nordeste foram evitadas. Esperava-se o despejo do Morro São João e os seus moradores recorreram ao advogado do povo. O despejo foi evitado e as lágrimas vertidas pelos moradores do morro foram de alegria, de agradecimento, de perene gratidão ao homem providencial."
(Luta Democrática, setembro de 1960)
Assim Tenório Cavalcanti seguiu com sua polêmica carreira política, sempre em prol de um pequeno grupo, os mais desfavorecidos, na base do clientelismo. O Luta Democrática, por mais que defendesse o povo do governo em questão, sempre serviu como veículo oficial em benefício de sua campanha política. Apesar de toda a campanha, o homem da capa preta foi enfraquecido politicamente quando perdeu a eleição para Carlos Lacerda. Em 1964, com o golpe militar, Tenório foi cassado e seu jornal não teve destino diferente. O Luta Democrática, que chegou possuir tiragem de 150 mil exemplares, foi perdendo força por diversos fatores, dentre eles a hostilidade do golpe militar, o aumento no preço do papel, a queda do poder aquisitivo da população e a invenção da televisão. O jornal foi arrendado sucessivas vezes até seu desaparecimento.
Natalício Tenório Cavalcanti nunca desistiu de lutar pelo povo e nunca se acovardou. Apesar disso foi caindo no esquecimento e faleceu em 1987 em sua residência, vítima de pneumonia.
O filme “O homem da capa preta”, a princípio, e para acadêmicos desatentos, parece sanguinário demais e desagradável, mas a quem entende a importância histórica de Tenório na política brasileira e tem capacidade de analisar o papel de um veículo de comunicação em uma época em que uma foto em um jornal podia acabar com uma carreira política ou que falsas notícias eram implantadas em jornais ‘inimigos’, a obra possui incontestável conteúdo relevante. É um pouco fantasiosa e sentimental, mas, afinal de contas, estamos falando de cinema.
O Homem que Virou Suco
4.1 185“O homem que virou suco” (1979), de João Batista de Andrade é um filme ao mesmo tempo político e humano. O filme fala sobre a vida de Deraldo, um nordestino poeta e repentista que foi a São Paulo vender sua poesia e acabou sendo confundido com Severino, um operário que matou o patrão. Apesar de usar alguns clichês no texto, justamente a fim de criticar a estereotipação que sofre os nordestinos, João Batista não apresenta um personagem mergulhado em uma vida de mortes e sofrimentos. O personagem principal é bastante inteligente e encara seus problemas com muito senso de humor e, ao invés de reclamar e despertar pena, se apresenta como alguém que luta em busca de um trabalho digno e uma vida livre de falsas acusações.
É importante lembrar que nas décadas de 60 e 70 a migração nordestina era intensa para a região sudeste do país. “O homem que virou suco” retrata a situação do migrante naquela época e mostra, como se ele fosse um Carlitos brasileiro, suas dificuldades em se adaptar à cidade grande e como o sistema fazia com que ele perdesse suas origens. Porém, mais do seguir a filosofia brechtiniana de que uma grande obra deve expor um problema ao expectador, João Batista propõe um resgate à memória cultural nacional. O que faz com que seu filme seja um instrumento de trabalho de cultura popular, que conscientiza e politiza, e parte de uma compreensão real da cultura de um povo, no caso, o povo nordestino.
A obra de João Batista nos faz analisar o papel do cinema na sociedade enquanto permite que o espectador compreenda o reflexo da vida material na cultura. Há uma passagem no filme em que a poesia de Deraldo é comparada ao dinheiro e tratada com descaso e ironia, como se não possuísse valor algum. É a moeda e o lucro que se sobrepõem à arte e à intelectualidade. Deraldo passa todo o filme tentando encontrar um lugar pra sua poesia e acaba ilustrando o otimismo alienado (e, por que não, alienante?) por trás da idéia de modernização, industrialização e integração nacional que assombra o Brasil até hoje. O personagem conserva em si, até o final do filme, o sentimento de que defender a cultura de sua região é mais importante do que se render às condições de trabalho a que é exposto. Contradiz a idéia de que o quintal do vizinho é mais bonito, sentimento típico de sul matogrossenses que sentem vergonha por nascer em um estado conhecido como produtor de soja e carne e acreditam que possuir uma cultura bem definida é ser um estado industrial que esmaga o indivíduo pelo sistema e marginaliza o nível econômico primário.
Outro aspecto relevante em “O homem que virou suco” é o posicionamento adotado pelo roteirista e diretor. João Batista de Andrade critica o sistema industrial e se coloca ao lado dos oprimidos. Bate na tecla do massacre biológico a que eram submetidos os retirantes em cima da desumanização do personagem principal. Cenas como a de um policial que diz que “todos os paus-de-arara são Silva”, ou em que um personagem afirma que “cearense, alagoano, paraibano, tudo é a mesma coisa” tiram risos do público. É o estereótipo que serve como piada mas que, na verdade, deveria ser visto como uma ruptura da identidade humana individual. Como disse, João Batista não foge dos clichês, mas os utiliza com sabedoria. Não pretende reproduzir o real, apenas concentrar parte desse real e exagerar ou caricaturar um pouco para tornar o problema mais evidente. É sua maneira de tentar reproduzir o todo e estabelecer um diálogo com seu público. O filme deixa claro a crítica do diretor contra o sistema que tenta transformar o retirante nordestino em uma massa liquefeita, um suco de laranja que após consumido só deixa bagaços.
O fato de Deraldo possuir um sósia, convenientemente chamado de Severino (provável alusão à obra de João Cabral de Melo Neto) nos coloca diante o duelo artista-intectual versus operário. Esse operário que matou o patrão estava longe de ser um homem admirável. Severino era um fura-greve, delator e odiado por seus colegas que lutavam por melhores condições de trabalho. Estava solitário por causa de sua traição. Severino era o operário mais oprimido, delatou os colegas para benefício próprio e acabou sendo demitido pelo patrão. Tanta opressão levou o personagem à loucura. Ao encontrar seu sósia, Deraldo reconhece-o como pedaço de si mesmo. É uma metáfora do poeta indo atrás do seu eu operário.
Desse encontro nasce a maior obra de Deraldo, cujo nome dá título ao filme. “É a história de todo nordestino. Do cara que chega em São Paulo, trabalha, luta e acaba passando fome, virando suco de laranja. Só custa 10 cruzeiros o livrinho. A melhor poesia nordestina”, garante o personagem. Ao lutar por condições mais dignas de sobrevivência Deraldo se afirma como o típico ser humano detentor da cultura popular em si mesmo. Ele é um poeta e intelectual, mas está totalmente integrado ao meio do qual ele fala e para o qual ele fala. É um intelectual do povo. Caracteriza o conceito de cultura como aquilo que é feito pelo homem.