Quando, André Bazin, num dos textos mais referenciais sobre o western, escreve sobre o metawestern, ele está catalogando filmes que não mais se contentam em apenas fazer parte do gênero, em ter como mote os dramas daquele universo tão próprio. Eles precisam de algo a mais, normalmente, o psicologismo, o revisionismo ou qualquer "mensagem" mais intelectualizada. Antes disso, falando sobre westerns clássicos, anteriores a esta onda intelectual que o crítico não vê com bons olhos, o próprio Bazin cita aqueles que ele considera o auge do classicismo, é dentre os citados que está Destry Rides Again. Uma escolha curiosa e questionável que acredito estar mais vinculada a sua data do que ao filme em si, pois, mesmo fazendo parte do pré-guerra, a obra possui diversas características que flertam, ou ao menos antecipam, os ditos metawesterns.
Há, aqui, uma vontade de subverter os princípios mitológicos à respeito da instauração da justiça e, consequentemente, da masculinidade do herói, mas que, nitidamente, acontecem em prol de um objetivo modesto: a comédia. Juntando isto aos diversos elementos mais tradicionais que rondam o herói e a história, a discussão dessa possibilidade de subversão do gênero se torna mais complexa.
Por enquanto, deixemos de lado esta questão e vamos nos ater a um outro auto que prova com maior facilidade este apelo além-western do filme, isto é: Marlene Dietrich.
Para Bazin, no mesmo texto citado, o erotismo, por vezes, era motivo suficiente para servir de anexo aos novos filmes justificarem seu gênero. Nisto, ele usa o polêmico The Outlaw como exemplo. Porém, comparando o faroeste de Jane Russell com o de Dietrich, as proporções de apelo erótico me parecem desiguais entre a musa loira e a morena.
É verdade, o filme de Howard Hughes possui cenas picantes bem alienígenas à época que fazem entender a desaprovação dos censores vigentes e a sua consequente popularidade entre o público, todavia, a essência do longa ou mesmo do que ele se trata está longe de ser devidamente representado por toda a publicidade sensacionalista que Hughes criou em torno dos seios da atriz. Quem conhece o filme apenas pelo pôster, com uma Russell quase nua, certamente está longe de pensar que a atriz só exerce papel secundário à trama, mais distante ainda, então, está de pensar que a história central é sobre Billy The Kid e Pat Garret, personagens tradicionalíssimos. Jane só aparece para locupletar a jornada de amadurecimento masculina, o papel usualmente relegado às personagens femininas dos westerns clássicos, e por mais que possua momentos lascivos (que até acabam, devido sua intensidade/ousadia, por influir de modo peculiar na construção do protagonista, sendo um conflito primal à evolução do cowboy) eles só estão lá como a mesma jogada de marketing que o pôster ou os infâmes balões imitando seios, presos a aviões para promover The Outlaw, na época. O erótico está longe de ser um dos motes centrais.
Por outro lado, Marlene Dietrich é quase que instantaneamente a melhor pin-up do Oeste. Não pela atriz combinar com a paisagem árida ou qualquer coisa do tipo, mas por, antes disso, ser a melhor pin-up de sua década. A partir daí só foi necessário deixar a atriz fazer o mesmo que a tornou famosa: ser a dançarina bad girl de roupas extravagantes que vez ou outra imobiliza toda a trama só para cantar uma música.
Há uma concessão muito clara posta para a figura loira adentrar no filme. Frenchy não pode ser colocada no mesmo patamar de outras western girls, isto, porque a personagem está ali menos para ser uma figura romântica do que para ser Marlene Dietrich. Seus exclusivos primeiros-planos, inundados de luz suficiente para sempre transformar seus lábios em refletores luminosos, reiteram a idéia. Está aí um intuito além-western da obra de Marshall, assimilar a musa como um gênero complementar. Tal qual uma obsessão sternberguiana, temos um western e um filme de Marlene Dietrich.
Não que a obra se resuma a este fetiche, assim como Sternberg o faria. Na mais simples das análises, Destry Rides Again é singular apenas pelo seu modo de lidar com um dos temas centrais do universo western: a (in)justiça. Bottleneck é mais selvagem do que a Tombstone de My Darling Clementine ou da cidade de Rio Bravo, e, mesmo assim, possui uma espirituosidade inigualável. Mais surpreendente ainda é como tais propósitos cômicos não desbalanceiam a tensão dramática da cidade à beira da barbárie. A nomeação de um xerife bêbado é um grande momento cômico do filme, mas que não macula a tragédia que o evento representa.
No paroxismo deste tom ambíguo que surge a principal figura da trama (e da defesa da minha tese): Tom Destry Jr., o auge cômico que acaba por trespassar intenções despretensiosas do autor.
O personagem de James Stewart carrega um nome mítico, entretanto, ele está ali, justamente, para apresentar um inesperado contraste à figura de seu pai através de seu cowboy de idéias pacifistas (uma particularidade cômica exclusiva, que não está presente nem em adaptações anteriores da obra nem no romance original). O que, talvez, ocorre mais pela surpresa, que inevitavelmente traz diversas gags, do que pela desconstrução em si. Mas, como citei, o filme nunca desiste de sua tensão dramática o que acarreta em todo um questionamento subjacente sobre a usual "Ética do Xerife do Oeste", que, como na maioria dos casos, "nem sempre vale mais do que aqueles que manda enforcar", como Bazin bem analisa. A cena em que Tom conta o porquê de ter abandonado o revólver, recordando a morte do pai, ilustra bem o corolário desenvolvido a partir da figura de Destry Jr., uma personalidade de efeitos cômicos, mas que tem suas causas e ideologias investigadas com peso, a fim de refleti-las em seu universo mitológico.
Contudo, perguntar se o tal discurso subjacente se locupleta é uma outra questão, não tão simples como identifica-lo. Isso, porque parece haver condições específicas para o discurso cômico-pacifista existir, condições que talvez façam retroceder alguns passos toda a articulação temática.
Por exemplo, apesar da indubitável diplomacia do protagonista (relembrando outra figura de Stewart do mesmo ano, incansavelmente otimista e confiante na existência da justiça) Marshall parece só conseguir delegar autonomia e confiança, a esse cowboy diferente, após confirmar que ele tem as competências brutais de qualquer Billy The Kid. Numa cena bem marcante, em que Tom dissuade um baderneiro mostrando sua mira superhumana, fica a dúvida: é a habilidade retórica ou a verve de um pistoleiro mitológico que o dão forças?
Acredito que o filme quer tentar nos convencer desse herói diplomata, apontar para ele como seu discurso ousado, porém, um pouco envergonhado de sua própria ousadia. O que o arrefece nolens volens.
As últimas cenas do filme são a maior mostra dessa ousadia incompleta. Apesar do epílogo, com uma Bottleneck pacata que conseguiu trocar os revólveres pelo artesanato, que até zomba da violência (agora) distante, a cidade só se tornou assim após uma conclusão violenta. E a conclusão que me refiro não é apenas a de um problema diegético, mas, também, a de um clímax narrativo que é tradicional por excelência: a troca de tiros do bandido e do mocinho, o sacrifício redentor da prostituta e a morte do antagonista como concessão advinda da "vingança justa". Nítida contradição.
Logo, a pura retórica de Destry Jr não parece ter sido a chave mestra para a conclusão. O que, novamente, demonstra um recuo do autor com o próprio discurso. Principalmente quando um outro importante evento da conclusão foi deixado à sombra do duelo final. Me refiro ao caos da multidão feminina que vai à guerra e impede uma saraivada de balas, como se a cidade tivesse aprendido a tomar as soluções alternativas do jovem ajudante de xerife, num mesmo calibre pacífico e cômico. Pena que o momento é menos exaltado do que deveria, Marshall o reduz a uma gag efêmera.
Apesar de ameaçar muitas vezes, Destry Rides Again nunca chega próximo de um completo discurso de não-agressão, tal qual um Forty Guns o faria quase 20 anos mais tarde, num momento de inundação dos metawesterns. Uma comparação até injusta, a que proponho, mas que a explícita diferença de décadas já elucida. É uma distância de épocas que, passado os anos, torna mais fácil responder o porquê dessa ousadia moderna não ter atingindo o pico de suas forças, provavelmente por pertencer a uma década de elegia clássica, que pareceu suficiente para intimidar o discurso de George Marshall ou, ao menos, não tê-lo permitido entrever saídas diferentes das já conhecidas pelo gênero.
Importante assinalar que essa essa audácia "quase moderna" não é um completo defeito, mas, possívelmente, um dos primeiros sinais do tal metawestern. Um ponto bem interessante a adicionar ao filme, junto de uma Dietrich em pleno auge e de todo um ar espirituoso sobre a ética mitológica. Pontos suficientes para torná-lo distinto, mesmo num ano tão poderoso para o western.
Há uma grande força exemplar dos cinemas novos rondando essa obra, que para muitos é um dos pontos de virada da carreira de Godard e, talvez, da própria situação do cinema francês. Mas sendo ou não sendo um dos estertores da nouvelle vague, Masculin Feminin possui a específica potência de liberdade dos "novos autores". Um experimentalismo sem fim de estilos, que antes de poder ser adjetivado, por qualquer um que não goste do filme, como pretensioso, força o espectador considerar todo sua irreverência e bom humor.
É engraçado como o que se costuma exaltar de um Godard, e da nouvelle vague em geral, se limita às desconstruções advindas desse novo poderio da política de autores. Desconstrução normalmente relacionada a "quebra de transparência", "revelação da imagem" e todos outros argumentos que limitam os elogios de neófitos, que acabaram de assistir Acossado pela primeira vez, ao seu amontoado de jump cuts. O que inegavelmente negligencia toda a nova energia documental desses mesmos filmes. Para continuar em Acossado, além da quebra da quarta parede ou dos cortes incômodos, há também toda uma captura de espontaneidade que confunde o que é do ator e do personagem, criando uma nova persona através dessas indissociações. Não à toa, Acossado, já guardava em Michel Poiccard pensamentos que o próprio Jean Paul-Belmondo ainda replica sobre si mesmo mais de 50 anos depois, sua certeza sobre seu charme advir de seu nariz de pugilista.
Se há muitas pontes para serem traçadas entre Godard e as vanguardas americanas, também sobram algumas ligações entre ele e um Rossellini há serem feitas. Masculin Feminin leva essa ideia a um exercício maior, uma dicotomia mais contrastante, tal qual seu título representa.
Jean Pierre-Léaud, num papel tão icônico que merece estar na mesma lista de um Antoine Doinel, é um dos alicerces dessa energia documental. A mostra mais nítida está na câmera que, por vezes, descansa de suas piruetas e estabiliza em simples primeiros planos, articulando a cena toda somente no campo-contracampo de mesmos enquadramentos onde presenciamos a conversa com todas suas pausas, silêncios e incômodos de olhares. Mas, para além disso, o mais belo da "energia espontânea" se encontra na simultaneidade, no momento que o diretor enforma a cena num movimento inegavelmente calculado, mas que mesmo assim possui um Léaud agitado, impulsivo, tipicamente Godardiano. Na sequência que Paul grava um disco para Madeleine há toda uma série de acontecimentos bem absurda (indo de uma garota oferecendo exibir seus seios na cabine fotográfica a um homem que inusitadamente se suicida com um faca, tudo em poucos minutos) que é coberta por um travelling continuo, ensaiado. Todavia, a série de acontecimentos flui como diversas esporas para a performance de Léaud, eleva seu corpo a uma espontaneidade amalucada, que (literalmente) grita na tela quando ele faz toda uma poesia improvisada para sua amada, na cabine de disco. Nisso, o filme de Godard parece um dos maiores reforços às ideias pacifistas sobre o cinema ser um paradoxo de verdades e mentiras, uma equalização.
Não terminando em Pierre-Léaud, essa dualidade artificial-documental vai a extremos maiores do que os que citei. Tentando encontrar a oposição máxima, talvez pudéssemos contrastar os inúmeros intertítulos de Godard (o autor como interlocutor mais do que direto) aos planos a la Louis Lumière que permeiam toda a história. Apenas viventes de 1965 andando, trabalhando, comprando, ou melhor, existindo, pela Paris de então.
A partir daí há como repensar a "máxima do cinema moderno", ou seja, o filme como documentário de si próprio. Aliás, se para revelar seu próprio registro, Godard, anteriormente, necessita de um pretexto, tal qual um romance noir farsesco, para aí sim se focar no seu olhar de autor, no como ele molda o mundo de sua história e como a revela como história propriamente cinematográfica, aqui o "pretexto" é justamente um registro de época. Filmar o rosto da Chantal Goya interpretando Madeleine é o mesmo que filmar o rosto de um operário na rua. Abre-se um espelho duplo que suplanta a câmera e o objeto filmado, ambos refletem os objetivos um do outro: registrar Goya é registrar um período e registrar a rua é registrar as próprias possibilidades de produção e seu contexto, localizado num momento bem específico do cinema.
Contudo, a bem da verdade, Godard não está tão interessado assim nesse possível paradoxo que citei. Em todo seu esticamento/esgarçamento da forma, típico da nouvelle vague, (que, sendo redundante, vai pra mais de um extremo do que o da desconstrução), o diretor explicita bem seu time, sua confiança na "imagem", contrária à "verdade". Quando Paul dá seu monólogo final, sobre seu desapontamento com suas próprias entrevistas, ali também está o próprio diretor desconfiando da capacidade das imagens diretas, estas que aparecem simultaneamente ao monólogo. O que se completa num depoimento final de Elizabeth e Madeleine, depoimento totalmente ficcional, bem diferente do longo e belo momento de entrevista à "Garota 19", e que está lá, indiretamente, como uma análise comportamental (tal qual Paul cita no monólogo) expondo um cinismo consumista da cantora, que tem como primeiro objetivo para o futuro, agora que seu namorado está morto, comprar um novo produto para a casa.
Além disso, é bom esclarecer que esses polos "imagem-verdade", que cito, não ocorrem num degradê estético, num acabamento da mise en scène ou através de todo um cálculo do diretor que transforma essas ontologias em algo linear. É como disse, Masculin Feminin é um espelho de seu tempo, o que significa um período de liberdade da mão do autor, de um experimentalismo de estilos,"uma ideia por plano", como diz o próprio JLG. Logo, seria incoerente pensar numa linearidade desses aspectos. O filme é mais como diversos blocos surtados e extremamente irreverentes, uma saravaida de balas para todos os lados a fim de captar a geração dos "filhos de Marx e da Coca-Cola". A discussão sobre imagem e a verdade estão lá como consequência dessa nova possiblidade de cinema.
É certo que a obra possui um princípio temático interessantíssimo, mas foram outras obras que o tornaram o assunto principal a destrinchar (penso em O Funeral das Rosas). Nenhum demérito, o filme de Godard estava mais interessado em perpassar a farsa, o virtuoso, o ensaio, o documental... resumindo: usufruir de toda uma liberdade específica (que não durou muito), um momento do cinema que não podia mais ser aquele dos filmes da Marilyn Monroe, que Paul e Madeleine se decepcionam e invejam. Era um outro momento, o de um cinema juvenil, nas suas mais diversas acepções.
Um dos poucos planos (senão o único) que soa mais fake, até um pouco tosco, é a melhor exemplificação da herança clássica que ronda Dois Papas, um antiquíssimo projeto de ilusão bem específico. Me refiro a um Anthony Hopkins e um Jonathan Pryce sentados num banco, frente ao fundo chapado de uma Itália construída por chroma key. Procedimento de cenário parecido com os fundos projetados de qualquer cena de carro da era de ouro de Hollywood ou de mil outros momentos e filmes.
Tal comparação pode parecer simplória, mas didatiza muito bem o que é a encenação "tradicional": um processo de cálculo em busca da exatidão. É sobre a fórmula geradora de um corolário que, num tempo de descontrucionismo, já foi muito acusado de ser mentiroso e manipulador. O que se intensifica em filmes como o de Meirelles, aqueles que decidem encenar fatos, algo que o roteirista do longa, Anthony McCarten, (O Destino de Uma Nação, Bohemian Rapsody, A Teoria de Tudo...), aparentemente, decidiu se especializar na indústria. Um efeito parecido com o de "... E o Vento Levou", que foi capaz de fazer com que seus espectadores de 1939 saíssem da sala escura com um sentimento maior do que o de ter compreendido a guerra civil americana: o sentimento de ter a presenciado!
Claro, esse testemunho só se cumpre no sentimento, um filme é um filme e mesmo o espectador mais emotivo não se esquece disso. O que acontece, é que algumas obras preferem esconder essa qualidade intrínseca de "ser filme", na hora de se criar a história de luz e movimento. Apenas um modo de se filmar, aliás, gerar, através deste mesmo estilo, uma alienação, depende de uma combinação específica: o discurso mal caráter (o que pode não ter nada a ver com qualquer tipo de intenção do diretor em si, o que conta é o resultado final a despeito de qualquer boa ou má intenção) e o espectador mal formado. Combinação que também pode muito bem ocorrer com obras que desde seus primeiros frames já revelam a mão de seu autor, mas, aqui, através da fascinação de um insistente discurso direto que para cada evento mostrado tece uma análise pronta, engessando um modo de pensar. Males griffithianos, males eiseinsteinianos...
Dito isto, é importante notar como Meirelles, no auge das poucas qualidades do filme, mantém total consciência da característica "fatídica" de sua obra, esta, que nem mesmo rostos conhecidos podem pausar, pelo contrário, servem de material para o processo de exatidão. Assim, dessa condição consciente, surge toda uma reiteração documental da câmera que dá zooms, treme e filme pelas metades, como se seu cinegrafista espiasse tudo escondido. Aí está a potência da realidade construída pelo filme, ele transforma um evento fatídico em uma narrativa de olhares oniscientes, torna público os bastidores papais com total ciência da credibilidade de seu ineditismo.
Certo, e para qual finalidade se reconstrói todo esse evento em filme?
Bem, primeiramente, diria que a pura arbitrariedade de se querer filmar qualquer evento já pode ser motivo suficiente, sendo importante notar que, mesmo sem motivos outros, isto já implicaria num discurso e numa parcialidade, por mais que a obra portasse o maior dos classicismos. Entretanto, esse tipo de arbitrariedade citada com certeza não cabe aqui. Seu intuito é descarado: ele se propõe a humanizar símbolos.
A partir daqui há uma pergunta mais difícil a ser feita: essa humanização desemboca em propaganda? Ou melhor, essa desconstrução de símbolos se relaciona com o discurso fílmico ignóbil que citei?
Sem dúvidas são questionamentos essenciais para se pensar sobre o filme, porém, suas conclusões culminam em valores éticos que, felizmente ou não, independem de seus valores artísticos, além do mais: o travelling é moral, não ético. A qualidade de um filme não depende de seu tema ou de sua visão de mundo, por mais abjeta que essa seja. Entretanto, pelo contrário, a força dessa moral, dessa visão de mundo, se faz justamente pela sua qualidade artística, pois depende dos aparatos cinematográficos para se consolidar e criar qualquer tipo de potência. Logo, se o valor de um filme não se dá por qual é sua moral, definitivamente se dá por como ele a constrói.
Aqui, todo seu projeto de humanização que acarreta numa "construção de personagens" se utiliza muito de uma comédia não muito dosada. Sempre é engraçado ver as piadas e banalidades dos personagens, mas a consecutividade das gags quase cartuniza os dois, transborda o tom fazendo este apelo banal soar forçado.
Por outro lado, todos os diálogos burocráticos, teológicos e memoriais que fluem através de um dos processos de exatidão, a torre de babel do filme (é uma coprodução de 3 países onde muitos idiomas são falados ao longo da história, um esforço de verossimilhança), pertencem a este respaldo "fatídico" e os humaniza muito mais do que todas as gags, pois quando ouvimos os argumentos de discordância de ambos, por exemplo, sobre a homossexualidade, o filme não abre, a partir daí, reflexão sobre a pauta, ele só se utiliza da situação para explicitar duas vertentes, a conservadora e a progressista, dicotomia deveras humana se enfiando no hall das santidades. Um ponto do filme que acaba por fecundar essa propaganda papal quase que naturalmente, de modo secundário, sem mãos arbitrárias, prestando muito mais atenção em quem diz do que no que se diz.
Contudo, a despeito dessa complexidade no jogo de diálogos, não demora para o filme querer fragilizar Ratzinger perante Bergoglio, criar princípios maniqueístas que fogem dessa proposta humanizador, aí sim parecendo propaganda barata, principalmente através de seus flashbacks horrendos, piegas, destoantes e gratuitos (parecem pertencer a outro filme, como se Meirelles só tivesse interrompido as informações vindas de diálogos, uma característica mãe do filme, por ter a possibilidade orçamentária de construir cenários de época, pura ostentação) que tomam de vez um partido na história, escolhe o time argentino, o "papa do bem", para preconizar, muito além de só preferir.
O que é curioso, pois os flashbacks ornamentais do diretor interrompem justamente a guinada contrária que o filme daria, quando Ratzinger informa o então cardeal argentino sobre suas pretensões com o cargo. É justamente ali que ambos começam inverter posições, um aderindo ao renunciamento e o outro não, mostrando posições conservadoras e progressistas de modo contrário. Só que a troca não é verdadeiramente concretizada, no lugar disso, e dali pro resto do filme, é posto todo o panfleto e admiração diante de tudo sobre o papa atual, seus feitos e ideais. É quando a obra escolhe definir seu time que ela trai seu projeto de desalegorização, até então complexo. O flashback meloso que de repente pausa a informação sobre a vida do jovem Bergoglio para mostrar uma fronteira pichada com frases de amor, o maior exemplo disso.
Enfim, se o filme panfleta algo não parece ser importante, já que ele o faz da mesma forma que um comercial de algum político no meio do povo, comendo pastel e segurando bebês. Paradoxal, toda sua capacidade de preconizar o papa só é potente quando é justamente mais secundária e preocupada no seu cálculo de verossimilhança, quando seus esforços artísticos estão preocupados em sua construção, nesse caso, nos seus alicerces clássicos.
Se o início da obra me cativou bastante, foi por ter me mostrado uma das cenas de suicídio mais horripilantes que já vi. E através deste momento tão gráfico, tão intenso, Ari Aster transforma os poucos minutos de primeiro ato num terror interpessoal, todo germinado pelo drama do luto e seu corolário (continuar vivendo, interagindo com os outros). Um tom específico que o diretor executou nos melhores momento de seu filme anterior e já fazia desde seu curta. É no meio deste tom que, ao contrário do que em muito rotularam o filme, todas as firulas e complexidades estéticas não resultam em puro virtuosismo, pois cada cor ou movimento extravagante externa aquele terror tão subjetivo e incubado na protagonista.
Entretanto, esse segmento parece um detalhe esquecível, perante o todo que a obra é de verdade. Seus primeiros segundos já anunciavam a verdadeira intenção, com o "tríptico" auto-referencial, sobre todo o porvir. Ou seja, a possibilidade de se ter um universo, uma religião, uma comunidade, e, principalmente, uma iconografia própria.
É aí que se mantém todos os objetivos do filme, num figurativismo, numa originalidade, mas se nada a partir daí funciona é por bons motivos.
Primeiro: porque o ritmo começa declinar graças a uma auto-indulgência.
A partir da chegada à comunidade pagã não há mais nenhum interesse em continuar com a atmosfera enervante proposta. Só há uma falsa confiança (que melhor podia ser explicada como desleixo) na "originalidade". Nisso, o diretor não tem nenhum pudor em mostrar cada evento, cada ritual, no seu tempo integral, independente da ausência de um clímax, de uma informação ou da continuidade de uma atmosfera, como se apenas contemplar a iconografia bastasse.
Depois: porque não demora para o terror buscar respaldo em apelos.
Como disse, a confiança do realizador nessa autossuficiência da pura contemplação do universo pagão é falsa. Isso se mostra quando a estrutura da obra se baseia em intercalar os momentos ritualísticos com algum gore brusco. Passa-se grande tempo apenas contemplando a cultura pagã e de repente algum sangue voa na tela. Um recurso desesperado em busca do horror, prova da atmosfera desgastada.
Finalmente: porque há toda uma tentativa falha de buscar um tom absurdo do seu filme referencial: O Homem de Palha.
O que quero dizer com absurdo é sobre a junção do estranho e do ridículo para desembocar no aterrorizante. Uma tonalidade bem difícil no cinema, que falha miseravelmente pra Aster. Pois, se no filme referencial até os momentos mais cômicos, como seus musicais, estavam canalizados em se criar uma religião diametralmente oposta à moralidade cristã, aqui, a estranheza e o exotismo são apenas risíveis. Falta canalizar a intenção, achar por qual caminho esse estranhamento quer atingir. Por exemplo, em certa hora descobre-se que um deficiente quem escreve as "escrituras sagradas", mas tal informação é dada de supetão, de modo improvisado (só havia aparecido um único plano, curto, com foco no personagem até então) e cria um fato apenas engraçado. O mesmo com uma cena de sexo em coro e numa outra com uma fantasia a la Nicolas Cage.
Ingrata surpresa ver um filme que tinha me cativado tanto em seu início tomar um rumo infeliz. Pior ainda perceber como esta era sua intenção desde o princípio
É uma daquelas obras metalinguísticas que talvez devam ser usadas de contraexemplo, para se entender como nem toda história sobre a história vira um 8½. Todavia, o resultado é paradoxal: é a pior obra de Martin McDonagh, mas a que mais representa seu autor na tela.
Todo o fracasso do filme é, ironicamente, bem autoconsciente. Seu diretor estava numa etapa de transição, querendo pensar em filmes como Três Anúncios Para Um Crime, mas ainda preso em Na Mira do Chefe. É dessa jornada de transição, de um espetacularismo cômico para um drama meditativo, que surge a anomalia que é Sete Psicopatas e Um Shitzu, um autor que quer conciliar seus polos criativos neste meio termo absoluto, que quer fazer um filme de sete psicopatas, mas, ao mesmo tempo, quer que seja um filme sobre otimismo.
O resultado, infelizmente, é muito mais uma glossolalia do que qualquer autocrítica, se torna um quebra-cabeça megalomaníaco, muito mais lógico para o autor que para o espectador. Uma junção a todo custo de seus fantasmas, seus mafiosos, o humor negro, os plot twists, somados ao discurso meditativo, à jornada de redenção e toda a parte que quer se fazer "séria".
Uma pena, pois, no final, soa como se seu diretor tivesse lapidado apenas os elementos que já usara no seu filme anterior. Ele junta toda as histórias estapafúrdias de seus assassinos muito habilmente com seu tom cômico único e reviravoltas bem particulares, o que, funciona justamente por como a metalinguagem estava sendo utilizada até então, para assumir o estapafúrdio da narrativa, sobre uma história de psicopatas que necessita criar um bom roteiro de psicopatas a qualquer custo. É assumindo a qualidade absurda da narrativa que ele se aproveita do omelete incongruente de personagens.
Disso, gera-se uma comédia que continua funcionando mesmo quando o filme começa a falhar, a virar auto-indulgência. Mas que, talvez por isso, decepciona mais ainda, por acabar subjugando suas qualidades nesse projeto esquizofrênico de expurgação. A cena pós-créditos é o melhor exemplo do que digo: era uma ótima sacada, uma piada ressurgida justamente no momento que ela se referia (os créditos), mas o diretor a desmonta de sua qualidade de gag em prol de toda uma "mensagem séria", desfaz o que funciona em prol de seu projeto pessoal.
Soa como uma duplicata chamativa de um Lynch. Não apenas por ser onírico, mas por tentar seguir a especificidade da obra do americano. A cena de um criminoso dublando uma música, a la Veludo Azul, parece a insinuação direta a esta influência. Entretanto, finalmente, a obra é apenas um pastiche.
Em sua primeira metade, até há bons resultados com toda a trama enigmática construída em cima de um pseudo noir. Mesmo com a tautologia da "estética surreal", de verdes berrantes e contemplações infinitas. Mesmo com a grande exposição da sua condição de filme-sonho. Pois a elipse dos eventos, as informações não ditas, através de sua não-linearidade, que tornam tudo digno desse fantástico tão almejado. O continuar procurando algo nebuloso (muito mais para o espectador que para o protagonista), tornando palpável a dúvida sobre a figura feminina dada a confusão.
Só que logo tudo piora, o "mistério onírico" abandona sua qualidade detetivesca para se assumir de vez como sonho. É quando a obra começa seguir de vez um princípio Lynchiano (além do pseudo noir): o sonho como um universo paralelo e reverso da realidade. Porém, executando a idéia do modo mais formulaico e desinteressante possível, principalmente se comparado a um Mulholland Drive, o melhor uso do conceito.
O diretor subjuga e transforma toda a primeira metade em pura informação para criar conexõezinhas com a segunda parte do filme. A água vira fogo, o verde vira vermelho, ideias mencionadas se concretizam, nomes viram e reviram de lugar. Nada mais que a velha dança das cadeiras da concepção citada, mas que se torna desgastada justamente pela ordem das coisas, por transformar todo um sonho em puro cálculo de autorreferências, bem cínico.
Claro, tudo isso é acompanhado pelo chamariz do longuíssimo plano-sequência que em muito tornou o filme mais popular. Mas ainda bem que exibicionismo nunca extrairá qualquer filosofia de obras tão insossas.
Jojo Rabbit é como um livro de auto-ajuda de 50 páginas endereçado para aqueles que sofreram com o nazismo, ou seja, uma besteira.
Logo de cara, no seu primeiro seguimento, me preocupei com a forma que o discurso estava sendo levado, se, talvez, levar toda a situação sob um humor infantil apenas dourava a pílula sobre os problemas do nazismo e afastava qualquer reflexão inteligente. Pelo contrário, a primeira sequência do filme é a única coisa que ele possui de interessante. É quando se usa do humor infantil para representar uma alienação e até chegar numa espécie de humor negro, pois todas atrocidades (de queimar livros a treinar crianças com bombas) estão ali.
O ruim mesmo está no desinteresse ou pura falta de coragem desse tipo de humor pro resto do filme, que, posteriormente, só aparece difusamente com o Hitler que nunca nega um cigarro a alguém. O real problema é que Waititi parece ter algum parentesco com os mesmos criadores de "por que as nações não param de guerrear e viram amigas?", ou ainda, " por que não paramos com o racismo e percebemos que somos todos seres humanos?".
No mundo do diretor há 3 tipos de pessoas: os idiotas, os que não são nazistas e as crianças. E nesse caso, todo humor só serve para isso, mostrar como nazistas são idiotas, como o Sam Rockwell caolho tem sua pose facilmente desmontada pela Scarlet Johansson revolucionária ou como as frases de efeito sobre amor (também de Johansson) nos fazem perceber como somos todos iguais. Mesmo toda espécie de complexidade moral na figura de Rockwell é muito mais em prol de uma dramaticidade para o casal protagonista em vez de um real interesse em seu particular uso da ética.
Pura simploriedade que escolhe pasteurizar a densa problemática do nazismo através da trama de amizade infantil. Basta acreditar que o separatismo é algo inventado pelos adultos para todos horrores da guerra sumirem. De resto, a miséria se faz por gags, os tiroteios por câmeras lentas, e momentos fúnebres por elipses de sapatos que substituem rostos (o momento mais simbólico de como Waititi esconde a abjeção da guerra pra debaixo do tapete).
Finalmente, após todas suas tolices, a comemoração das crianças (e do filme), perante um fim de guerra, me faz concluir que Taika deveria ter visto um certo filme do Rossellini antes de realizar o seu.
Se em Heaven Knows What há a energia de um consumo, prazer e risco extremados, advindos de seus personagens jovens marginalizados, se em Good Time há a frenesi da pressão do tempo que desemboca numa espécie de alegoria do escambo (sobre trocas infinitas que nunca conseguem resolver a intenção inicial), e se, agora, em Uncut Gems há todo um conflito entre apostas e o fluxo do dinheiro, um paradoxo de se endividar para conseguir lucro, é apenas por um bom e único motivo: Os Irmãos Safdie são os diretores mais empenhados em capturar formalmente a energia de seu tempo, nada mais que estetas jornalistas.
Toda uma maneira de se fazer filmes que flerta com o cinema de fluxo, mas que só se define como tal no primeiro longa citado. De resto, a narrativa não se dilui, pelo contrário, ela ganha tanta importância quanto todos os procedimentos da mise en scène, é o caso do complexo roteiro em forma de cascata de Good Time ou mesmo aqui. A câmera frenética ganha todo um papel de acompanhar um conteúdo igualmente alvoroçado (não é mais tempo de negligenciar a trama para presenciar as tentativas falhas de se colocar uma linha na agulha), o que beira a excelência com Pattinson, mas nem tanto com Sandler.
A lógica do universo de Howard é regida tal como a bolsa de valores, não só graças ao neon, à trilha sintetizada, aos enquadramentos sujos/fragmentários e ao seu ritmo, mas, também, pelo que há de mais objetivo na trama, a loja de jóias do protagonista. Ali, no coração da ostentação, que toda essa temática de rapidez e virtualização também se faz presente, quando a problemática dessa flutuação do dinheiro urge no questionamento, "ter uma jóia de 1 milhão de dólares significa que tenho 1 milhão de dólares?", e se conclui na resposta, "você só tem 1 milhão de dólares caso alguém a compre por 1 milhão de dólares".
Disso, dá pra se considerar um certo didatismo, aliás, o tema é mais direto do que nunca. O que continua no modo explícito que o filme divide os momentos pessoais e profissionais de Ratner, uma exposição, agora, meio incômoda, com fim de se perceber as complicações desse ritmo profissional em seu âmbito pessoal. Sobre como ele lida com a tentativa de retomar com a esposa tal qual uma especulação de aposta, a de que já conseguiu se livrar de sua amante.
Acontece que se for para defender uma distanciação dos Irmãos Safdie da estética de fluxo, talvez, Uncut Gems seja o melhor indício. Isso, graças à todas essas cenas familiares citadas, que fazem surgir uma pausa, cada vez maior, em todo esse deslizamento de energias inquietas, sendo a reunião judaica o maior exemplo.
O que resulta numa pressão bem inconstante de toda essa dívida que persegue o protagonista, hora parece um perigo de morte, hora algo que só causará uns machucados. E, por consequência, começa-se a induzir diversos novos gatilhos na narrativa para tentar retornar ao tal frenesi. Começa pelo leilão, mas culmina (aí sim de modo ruim) na última sequência, que está muito mais interessada em criar uma nova situaçãozinha de correria do que em se prender a decisão amalucada do protagonista, mais interessada em ver o tempo do jogo correr paralelamente as escolhas de Julia em vez de estudar Howard Ratner. Soa como uma indução gratuita.
Por outro lado, uma boa novidade dos autores está no tom dado pela figura principal, como se o Adam Sandler já carregasse uma presença de personagem só por ser quem é. Ele dá vida a uma figura caricata, rocambolesca, o que, positivamente, dá todo um tom cômico para a situação presenciada, ressaltando o absurdo do ritmo atropelado.
Parece certo concluir que a trajetória dos Safdie está passando por uma "desformalização" de seus temas, tornando cada vez mais direta essa captura do contemporâneo. O que não é necessariamente ruim, visto que Uncut Gems, querendo ou não, possui uma força, uma pulsação, muitíssimo autêntica, um dos melhores retratos estéticos de seu tempo, mesmo que um retrato de potência menor do que outros que seus realizadores já mostraram.
Um dos corações da obra, o mesmo motivo que divide aqueles que gostaram ou desgostaram, está todo presente nos seus elementos de filme B que, aqui, realmente carregam os estereótipos que costumam circundar esses longas (indevidamente, na maioria dos casos), isso é, acreditar que o baixo orçamento seja sinônimo de amadorismo e ineficácia. Uma característica de consequências bem paradoxais, pois, muitas vezes, os "erros" que acabam por corroborar com a estupenda atmosfera enigmática em torno da organista refém de forças irrefreáveis.
A montagem inapta, totalmente reversa a qualquer maestria, é um dos pontos que mais salta aos olhos. Seja na corrida de carros, que abre o filme de supetão, meio confusa e sem ritmo, fazendo uma bagunça aos intercalar planos internos e externos que vão pulando locações, ou mesmo nas continuidades falhas em momentos chaves, como quando vemos a protagonista tomar duas vezes o mesmo susto com a falsa aparição em seu quarto, o amadorismo é evidente. Todavia, aí reside a contradição, pois essa mesma montagem de momentos escabrosos é que vai proporcionar umas ousadias quase experimentais, muito competentes, em diversas de suas cenas oníricas.
Além disso, o mais curioso é como até suas falhas, por fim, transformam-se em benesses à experiência. Acontece que a força de um filme sempre está em seu todo, nunca em fragmentos, e cada cena com a montagem estranha, atuações meia boca (muitas vezes da própria protagonista) ou diálogos toscos, querendo ou não, traz um quê de bizarrice pra trama já muito insólita, solidifica os outros esforços de se construir o suspense enigmático. Por exemplo, na sequência literalmente onírica, em que Mary dorme ao volante, há um continuum de diversas ceninhas disfuncionais, mas, ao final, não importa muito se a "surpresa" no psicólogo é bem previsível, pois no instante seguinte, quando se deflagra o sonho, o que acabamos de presenciar foram diversas cenas descontínuas, estranhamente fantásticas. Todo um acréscimo à aura de "o que caralhos está acontecendo?".
Ao contrário do que possa parecer, o sucesso final da obra não se dá apenas por efeitos involuntários do diretor, o filme não depende do acaso das cenas meio mancas, elas apenas corroboram com o que já estava sendo feito. Se o acidente de carro possui imagens desastradas, a verdadeira abertura, com seus créditos e tudo o mais, é apresentada logo em seguida, com a enorme força da visão de um rio que parece querer irromper algum simbolismo na tela enquanto ouvimos a trilha composta pelo profundo som saído dos tubos de um órgão (sua melhor particularidade técnica). Daí, surge todo um empenho que orquestra mui bem toda a energia que o filme suspende, uma dualidade psíquica-metafísica.
Por um lado, permitindo-me o anacronismo, parece haver um esforço para o filme reprovar no teste de Bechdel, logo que, apesar do protagonismo feminino, todas figuras que rodeiam Mary são homens, desde o padre até a figura fantasmagórica (curiosamente interpretada pelo diretor), e mesmo quando há uma conversa com a dona do hotel elas se referem ao estranho vizinho. Uma proeminência da figura masculina que resulta em questionamentos psicossexuais entorno aos delírios então vistos, didaticamente exposto pelos dialógos com o psicólogo e corroborado com a estranha predileção à solidão da mulher. Por outro, além da incrível sequência de quase possessão que culmina na expulsão da igreja, toda uma sugestão evidente do pós-morte também a ronda, da trilha sonora citada às fixações da câmera nas pinturas sacras.
Entretanto, subjugar a atmosfera a essa dualidade de interpretações é algo simplório, existe uma densidade maior no mistério, uma aura mais hermética que torna uma besteira tentar reduzir objetivamente os acontecimentos à alguma interpretação (tolice que a própria sinopse do letterboxd faz). Aliás, o parque, o carnaval do título e, por fim, um incrível enquadramento final da incompreensão de dois homens, bem simbólico, solidificam o quão hermética é a assustadora atmosfera que presenciamos.
Um Villeuneuve iniciante (apesar de não ser seu primeiro longa) que, infelizmente, parece seguir o estereótipo máximo dos cineastas estreantes: dê a chance pra um novato contar sua visão de mundo e ele não vai mais calar a boca.
Ao contrário do que o primeiro intertítulo sugere, mencionando o "processo criativo do roteiro", sua história não é lá tão experimental assim. Na verdade, suas experimentações estão muito mais em toda forma de conta-la, toda uma miríade de diferentes resoluções imagéticas em prol de assinalar sua insistente visão de escárnio sobre a vida. O que, por si só, não é problemático, isso é, se seu discurso fosse bem montado.
Não é o caso. O diretor vai fundo nas liberdades da história, mas, desde o peixe narrador até as mil musiquinhas irônicas, o comentário é sempre o mesmo, a alegoria da vida humana igualada à dignidade das criaturas marinhas. Alegoria gritada, que quer se fazer perceber antes mesmo de estabelecer seu ponto na história, mostrar de onde ela surge. A criatura narradora é um bom exemplo, não basta sua inesperada apresentação como o dono da trama, há de se fazer com que ela apareça mais trocentas outras vezes para significar a mesmíssima coisa: a ironia da história "bela", "importante" e "essencial" para se entender a vida. Do que adianta tantas experimentações se todas são sinônimas?
Uma tautologia gigante que consegue levar a um patamar próprio de redundância o uso do leitmotiv, com os infinitos usos intercalados da água agitada que nomeia o filme. Tal como todo o resto da obra que nunca vai se cansar de enfiar em todas oportunidades possíveis a "simbologia inteligente" do mar e suas criaturas. Um grande assassínio da ideia da metáfora como uma sutileza de uma história.
História que nunca ganhou confiança pelas mãos do autor, nunca obteve importância genuína em presenciar os eventos da estranha derrocada daquela mulher. De um homem que morre num acidente se aproveita para colocar uma trilha que signifique o discurso e para se enfiar uma simbologia do mesmo. Uma importância somente aos eventos isolados da trama, fazendo com que cada um gere mais um pouco de seu comentário pessimista. A imagem do aborto, a imagem do assassinato, a imagem da tentativa de suicídio e assim por diante.
O que fica até meio destoante com o último segmento que quer, subitamente, transformar as coisas num "evento irônico do destino", prestar mais atenção na cadência dos eventos e presenciar essa ironia com piadas mais diretas na trama. Mas, mesmo que aí ele fique mais próximo de um acerto, estou convencido de que tal guinada só continua fazendo parte do tal "experimentalismo assumido", mais uma peça da sua pose de ousadia. Além do mais, a última cena, com o peixe que morre prestes a nos revelar o porquê da vida não possuir muita lógica, é o auge de toda essa constante de imaturidade discursiva.
Lembro-me de certa vez ter lido um comentário negativo sobre You Were Never Really Here vindo de alguém que ficou muito descontente com suas cenas de tentativa de suicídio. O argumento era de que o filme romantizava o ato em questão e fazia isso devido a ausência da violência, recorrendo à elipses. O curioso do pensamento era como a autora usava de contraponto Sam Peckinpah, preconizando a ética de suas imagens por abrigarem uma violência visceral, pra ela, provavelmente, o horror em sua plenitude.
Disso, dá pra evidenciar uma falácia óbvia que o filme de Bresson consegue confrontar muito bem: a generalização involuntária de que toda elipse desemboca numa higienização. Realmente, há muitos exemplos monstruosos, até recentes, que confirmam parte da afirmação, porém, os grandes artistas sabem que uma elipse de pés mortos em Bresson é o antípoda dos pés mortos de um Jojo Rabbit.
Toda uma reflexão que me foi rememorada graças à particularidade da encenação bressoniana conseguir mostrar, especialmente aqui, a ascese como excelente par da tragédia. Novamente, não através da romantização, mas, em seu lugar, a crueza das ações dramáticas.
Particularidade dramatúrgica já mui ouvida por qualquer um que conheça, mesmo que pouco, o autor, mas que deve ter sua reflexão redobrada neste seu primeiro filme colorido, visto que (em mais de uma cena) o questionamento, ou ao menos a elucidação, do tal método idiossincrático, é invocado através dos contrastes das famosas atuações robóticas em torno aos intertextos da dramaturgia clássica, que se iniciam numa ida do casal ao cinema e percrustam mais fundo até a longa cena da peça de Shakespeare, esta última, com conclusão muito interessante, que justifica o devotamento da câmera sobre ela. É quando a mulher que nomeia a obra chega em casa descontente, pegando seu livro da peça, constatando que suprimiram uma passagem, aparentemente, essencial, a que Hamlet aconselha o ator, "sê moderado nos gestos, por que até mesmo na torrente e na tempestade, direi melhor, no turbilhão das paixões, você deve sempre manter a medida, e adquirir inclusive uma certa doçura".
Daí, desta "certa doçura", que está o trunfo de se lidar com essa história que já começa pela fatalidade, a objetivação incisiva do drama que culmina numa dose de desolação perante um relacionamento destinado a chafurdar. O que ocorre muito antes de um impactante plano final onde, simplesmente, se fecha um caixão. Um salto de cenas do apelo do protagonista ao pedido de casamento para o fim da cerimônia em si é um grande exemplo, é uma elipse que comumente seria usada para fins cômicos, mas, aqui, não é nada mais que o discorrer da história através deste efeito super redutor. Um afastamento radical do drama que evoca o paradoxo ao atrai-lo de volta.
Assim, cria-se aos poucos um discurso determinista muito coeso sobre o relacionamento, o casamento e o amor em si. Pode-se até argumentar que o estopim do declínio do casal se dá por uma diferença de classes ou por uma natural opressão masculina, mas, ao meu ver, tais ideias nunca sairão do campo das sugestões. Há, logo de início, um estranho flerte ou, sugestão de flerte, no cinema, sem explicação, em seguida, uma revolta com a condição de casal, expressa num inesperado abandono do buquê de flores e, até mesmo, um flagrante de traição onde, simplesmente, o marido tira sua mulher do outro e vai embora. É uma recusa de porquês que resulta numa pura presenciação da derrocada, não há o que se falar sobre as atitudes, só é possivel contemplar o declínio.
A narração expressa pelo marido é grande agente do tal determinismo em torno da história. É uma constante de explicações onde, obviamente, só se elucida a visão de um lado, só que isso não traz ironia ou absurdo numa espécie de jogo em que "ouvimos a mentira e vemos a verdade", o que acontece é que assistimos o vazio das motivações e escutamos a tentativa de preenche-lo. Aí que surge esse sentimento de irreversibilidade, através de toda uma condição de um relacionamento incomunicável que nunca deu chance do contrário, sendo a mise en scène reducionista chave mestra do processo, por, como já dito, nunca dar chance de aprofundar os porquês devido sua insistente objetivação das ações.
Por fim, é um retrato melancólico e determinante sobre relacionamento(s) que não quer se expressar como um épico poético, tal qual um Bergman iria esmiuçar com grandiloquência poucos anos depois. É muito mais que isso, é um haikai acachapante. Trágico e sábio.
É o exotismo extremo como força geradora, em via de engolir o espectador para seu universo localizado numa estranha intersecção da sociedade com a barbárie. Um esforço contínuo de transformar o vislumbre daquele épico bizarro num discorrer de baques, tal como o jovem romano que, da noite pro dia, acorda de sonhos amorosos descobrindo que virou um escravo.
“Este filme será uma ficção científica. Você está surpreso? Mas uma ficção científica pode se passar tanto no passado como no futuro". Assim que Fellini, numa de suas típicas descrições estranhas, denota seu filme, porém, aqui, ela é bem elucidativa. Uma "viagem" mesmo, nas suas diversas acepções, mas que tem seu ponto nevrálgico na "trip" sensorial, se aproveitando dos elementos específicos cinematográficos, isso é, a imagem, para criar seu jogo de fascínio e conflito. É onde tudo reluz, brilha, chama a atenção, mas, ao mesmo tempo, não te deixa processar muito bem o que se vê, devido sua inundação de elementos.
Sua mise en scène parte de tudo aquilo que é indigesto como engrenagem principal de seu mecanismo. Engrenagem presente nos cortes secos que trocam de sequência e, abruptamente, nos passam de um terremoto a uma galeria de arte, de um assassinato a uma luta contra o minotauro (sendo interessante pensar aqui que o diretor até utiliza fades em algumas passagens, mas os renega nas mudanças de capítulo). Presente na total dramatização de desconhecidos, que exalam urgência nos semblantes das crianças, aparentemente devido a troca de César, mas que nos põe no escuro, sem conhecer a real motivação, possivelmente política, por detrás daqueles personagens, sendo que até os créditos perpetuam o enigma, nomeando-os apenas como "suicidas". E, no que talvez mais chame a atenção, presente no hiperestilo de Fellini, que de sua possibilidade de enfiar mil figurantes, elefantes e pavões nos quadros, brinca com a capacidade de inundação, ocasionando uma overdose plástica ao espectador.
Daí, se mostra bem desonesto o usual rótulo de “A Doce Vida de sandálias” normalmente entregue à obra. Isso, porque, se desvinculando da racionalização do cinema moderno, do mundo discurso destes filmes, através do amontoado de incompreensões dadas, o filme segue por um caminho argumentativo (se é que pode ser chamado assim) totalmente diferente. É um flerte com o infraintelectual, a experiência urgindo pela sua condição básica de sensorialidade, usando toda aquela confecção extravagante para renegar uma retórica sobre o universo de decadência, apenas fazer com que o espectador experiencie, vivencie aquele quase mundo apocalíptico. A cena de ménage do filme é bem exemplificadora nesse ponto, há os dois jovens numa aventura casual com uma mulher estrangeira, em cima da cama a mulher seminua continua a falar em sua língua alienígena, assim como falava desde que conheceu os dois, é quando Encolpio e Ascilto se olham e começam a se acariciar. Pouco importa compreender a linguagem, o importante da cena é o sexo, o gozo, a imersão do sentir.
Então, tendo toda esta força lisérgica do filme em mente, poderíamos dizer que Satyricon possui certa relação com um cinema contemporâneo, de suspensão atmosférica e negação retórica?
Bem, na verdade não, pois há uma característica essencial para que aquela chuva plástica do filme funcione: seu alicerce é a falsidade assumida. Talvez um paradoxo, entretanto, o que permite que o diretor consiga fazer pulsar seu insólito universo é seguir a mesma máxima de um Godard, sobre a violência de Weekend, "é tudo tinta vermelha". É a mesma tônica de opacidade do mestre francês, aqui, através dos esticamentos da já artificial dublagem italiana, dos rostos romanos indiscriminadamente pintados de azul e verde, de um Encolpio, bem teatral, que se prosta como uma estátua expressando seu desolamento, apenas para posar pro enquadramento.
Uma necessidade de consciência, anterior ao núcleo psicodélico da sua mise en scène que implica em dois elementos cruciais.
O primeiro, a concessão para Fellini transformar o filme no seu pináculo de estilo. Ele começa por usufruir dessa necessidade de overdose (que faz com que ele triplique seu estilo já extravagante) e termina sem fazer com que o mundo de figurinos bizarros soem ridículos, afinal, eles nasceram pra serem escrotos, extravagantes ante a qualquer figurativismo. A autenticidade do universo jamais é ameaçada por já ter surgido sem a preocupação de ser imagem e semelhança da Roma de Nero. O segundo é que através dessa despreocupação, desse não figurativismo, que o diretor mantém uma relação direta com aquele mundo. Aliás, se tudo é inegavelmente regado de autorismo é porque tudo o que vislumbramos sempre foi UMA Roma Antiga em vez de A Roma Antiga, nada mais que a paisagem que o italiano entreviu perante o universo de Petrônio.
Assim sendo, o estranho caminho argumentativo que o filme faz se consolida, principalmente, pela experiência de hipnose ter sido confeccionada a partir de um olhar específico, logo, se surge alguma dor de retorno à consciência durante a projeção ela se realiza pelas conexões com o mundo real, quando conseguimos enxergar romanos canibais no asfalto das cidades. O que, certamente, não é nada difícil, principalmente para os espectadores de 60, ademais, não coincidentemente, Satyricon compartilhou seu ano de lançamento com o famoso festival de Woodstock. Vivemos aquele mundo e entendemos seus horrores, comparamos com nossas experiências e o apreendemos.
E mesmo que até a identificação do discurso seja um pouco mais obnubilada, até por ele se realizar de forma muitíssimo direta, na presenciação em si do tal mundo e nem tanto por argumentos colocados, as últimas imagens da obra talvez sejam o único lugar que encontremos um estado sóbrio. Um belíssimo chamamento à consciência que encerra a jornada lisérgica constatando o destino atual de todas aquelas figuras marcianas na contemporaneidade: apenas fragmentos de afrescos outrora vivos.
É um filme muito singular que me trouxe a escrever devido oportunidade de reassisti-lo na tela do cinema. O curioso é que dessa terceira experiência com a projeção percebi como sinto certa inveja de certos espectadores. É verdade, assistir Satyricon numa sala de cinema, por si só, já é incrível, é quando toda a capacidade de hipnose se intensifica pela sala escura e o imperativo da tela e do som. Entretanto, sortudos mesmo são aqueles que têm a oportunidade de assistir pela primeira vez.
É uma trama de intenções inegavelmente corajosas, transformar o típico filme de romance entre desconhecidos num horror psicológico. Mas todo o potencial da premissa, infelizmente, desemboca em pura confusão, desarmonia e até mesmo hipocrisia, considerando que seu diretor não sabe se quer extrair um psicodrama, um thriller hitchcockiano ou um romance moralista.
A figura da Marilyn Monroe vinculada a esse prototerror, por si só, já é um grande trunfo à obra. Aliás, nela que está contido este potencial de subversão do tom. É o choque de ver aqueles primeiros planos da loira de olhos brilhantes e feições humildes se tornarem a personificação da psicose. Porém, desse princípio nuclear que dá para começar a enxergar as disfunções de seu autor, logo que, antes mesmo da sua salada de tons, um dos seus primeiros pecados é não se aperceber de seu trunfo, desprotagonizar sua estrela fazendo-a dividir importância com aqueles que descentralizam o tal tom sombrio.
Uma falta básica de concisão, de manter a lente da câmera naquilo que há de mais importante (ou melhor, enxugar os momentos que a câmera não faz isso) que, consequentemente, custam para a experiência. Aliás, para além de decidir se uma montagem alternada com fins de tensão é adequada para sua estória, é estritamente necessário que se saiba fazer tal montagem. Coisa dos primórdios do cinema, que Griffith usava e abusava, mas que, aqui, Baker se atrapalha todo, não conseguindo se ater ao essencial, no caso, a vítima e seu salvador (isso é, a filha amarrada em perigo e a mãe impossibilitada de subir ao apartamento por causa de um cachorro), ele adiciona mais outros núcleos (a telefonista e o casal) para correrem junto, estraga o simples.
É um exemplo micro, mas que sintetiza muito bem toda essa desorientação rítmica que acaba trazendo conflitos de coesão para a mise en scène.
Tal como Nell, que possui cicatrizes reveladoras em seus pulsos, mas, a partir daí, como isso deve ser encarado? Através da análise absurda da câmera que anuncia o detalhe de antemão? Através da surpresa no meio de uma discussão? Ou através do olhar do homem cínico que "deve aprender a ter empatia"? Bem, o filme escolhe o omelete...
Incongruência fatal, até mesmo se víssemos o casal em via de se separar como coração da obra, pois, hipocritamente, seu discurso de apelo a empatia logo se vira contra ele mesmo e demonstra a inutilidade de tantas imagens que aprofundam o "galã cínico". Hipocrisia de construção mesmo que, num primeiro momento, chora de empatia pela mulher desatinada para, no instante seguinte, sorrir pelo casal ter apreendido a lição as custas da outra. Claro, desconsiderando toda metamorfose de tons que poucos minutos antes se divertia com o espetacularismo que o horror gerava.
Não é impossível fazer um bom omelete de tons, toda uma história do cinema, anterior a própria Marilyn Monroe (Murnau, Ford, Renoir...), provam bem o ponto. O ruim mesmo é quando isso ocorre de forma involuntária, escapando das mãos de seu autor e negando seus melhores dotes.
Ao contrário de toda uma futura produção de formas exacerbadas e sofisticadas que a dupla Cuarón-Lubezki ainda ficaria conhecida, Y Tu Mamá También tem como alma o obsceno, a câmera de mão e os seios à mostra.
Imagens viscerais que, inesperadamente, querem falar justamente daquilo que seu amontoado de sexo rouba a atenção. Um pseudoroad movie adolescente que tem como maior intuito olhar para aquilo que não é protagonizado, contrapor os viajantes com os figurantes da estrada. Daí, se cria uma trama alegórica: os playboys motoristas que têm sua aventura sexual por cima de um povo que está sempre do outro lado do para-brisa. Uma premissa interessantíssima que certamente não é executada de modo lá tão sutil, porém, quando é, consegue usar de sua futilidade matriz para criar contrastes potentes. E desses mesmos momentos, de grosseria e delicadeza, todos embutidos nessa viagem alegórica, que se encontra as maiores afasias e eloquências do discurso.
Dos seus malogros, com certeza, temos a narração como uma grande baixa, o que, de forma alguma, ocorre por qualquer função do áudio como portador da estória, na verdade, o maior problema está em designar esse texto direto como mecanismo principal do discurso. É a fala de seu autor dirigida unilateralmente para o espectador, criando uma dialética fácil, senão preguiçosa, ao abolir o jogo de contrastes imagéticos para superdramatizar os acontecimentos através da onisciência do diretor e da voz monotônica do ator, vomitar argumentos sobre a tela.
O que possui uma posição ainda pior ao considerarmos que esse “viés literário” se justifica justamente pela brecha de um protagonista que almeja fazer literatura, “contar histórias de meninos ricos”, como ironiza seu primo. A obra por si só já conta uma estória de meninos ricos, entretanto, a locução também estaria na posição de Tenoch, isso é, narrando um status que ela pertence? Parece que sim, quando o texto faz questão de higienizar os eventos, abdicando da vulgaridade das palavras que tanto ouvimos de seus personagens e, ao mesmo tempo, sendo mais que direto sobre sua moral. Soa como uma tentativa manca de se colocar nessa condição de “literatura”, nada mais do que um tiro no próprio pé, logo que, ao introjetar uma retórica sofisticada, excluindo a vulgaridade nuclear da história, acaba por vulgarizar o discurso da narração em si.
Todavia, felizmente, seus sucessos são bem maiores que sua gagueira e, ao contrário do que se possa pensar, não me refiro a esse jogo de imagens do povo marginalizado que rodeia o ménage. São cenas que realmente tem momentos ilustres, tendo o plano do sossegado pé feminino sobre o painel do carro em seu auge, mas que não tardam a se tornarem tautológicas, esgotando a inventividade e, lamentavelmente, deixando a narração ocupar esse papel. O verdadeiro pináculo do discurso está no trio em si, no lento desvelamento desse prefixo de falsidade que acoberta o “filme adolescente” e que progride até sua admirável conclusão.
O que ocorre é uma genuína implosão dessa aventura hedônica. Se a narração falha em sustentar seu problema social, tentando chocar quando conta os meandros das vidas alheias à trama, as imagens têm sucesso dobrado levando os impulsos dos seus jovens às últimas consequências por meio da figura de outsider que é Luisa, são essas pulsões sexuais dos dois jovens esticadas ao limite, trazendo ao palco toda a relação egoísta e imatura implícita por ali. Uma continuidade dessa obscenidade mesma, tão base da experiência, como revelar os assuntos que um aliena para o outro (tal como, num dos poucos bons momentos da locução, sabemos o que os jovens fazem escondido no banheiro um do outro), tendo seu ápice no beijo gay de sentido quase canibalesco de tão egóico, a reiteração do insulto da mulher mais velha, sobre eles serem apenas "cães que gostariam de foder um ao outro”.
Logo, dada a revelação máxima, o tal plot twist, a aventura acaba por revelar mais sobre si mesma do que sobre Luisa. É quando se assume que aquela jornada de desvelamento foi apenas uma exceção possibilitada pela condição terminal da mulher. Agora, apenas um sonho longínquo que urge por certas dores de consciência ao ser lembrado. É dessa condição que se retorna ao processo de recalque, uma volta ao natural estado de melancolia e estagnação da vida dos "meninos ricos". Não existe mais a possibilidade das verdades do mundo afora ou das verdades que residem no âmago de seus corpos, o que resta é o insosso encontro formal dos dois, apenas olhares apáticos em torno a um cafézinho aceito por educação.
Uma obra que inegavelmente acomete deslizes, mas logra a potência embrionária da premissa ao retornar e reforçar as bases de sua mise en scène: a pornografia.
Com ímpetos desafiadores, a obra tem como base o uso direto dos símbolos de sua contemporaneidade, ou seja, começar com o retrato de Fidel Castro e terminar com a “Pepsi-Cola”, partindo disto para tentar conquistar o ineditismo através desses símbolos quase agressivos de tão despudorados. Uma ousadia que inevitavelmente se torna chamativa, aliás, ela materializa a Coca-Cola lutando contra a foice e o martelo em sua tela! Entretanto, de todo o espetáculo circense de Wilder, cabe ao espectador distinguir a eficácia do discurso, o que, por sua vez, independe de chamarizes.
Dito isso, devo assumir que possuo uma relação bem ambígua com o longa. Por um lado, o diretor acha o par romântico perfeito dessa inundação de bandeiras, marcas e logos através de seu passado, a herança da comédia screwball que ele já realizou bastante. Por outro, quando ele deixa de falar das intersecções e cai num jogo de demarcar as polaridades, satirizando primeiro X pra depois satirizar Y e vice-versa, sua experiência torna-se mais simplória e expõe fragilidades absurdas. E digo “absurdas” não por serem defeitos exagerados, mas por alcançarem uns feitos excepcionais de tão irônicos, aliás, me parece a única obra do mundo que consegue transformar o fato do James Cagney ser um puta ator numa característica negativa.
O que tão somente pode acontecer quando o autor adota essa postura esquemática no discurso, começar pelo desfile comunista, passar para o polo da Coca-Cola, seguir para o trio Russo etc. É um sistema que implica num olhar imparcial (que obviamente não existe), mas, pior que isso, cria um compromisso implícito de equilibrar a sátira para os dois times da Guerra Fria. Daí a figura do Cagney simplesmente arruína tudo. É só comparar como nesse toma lá dá cá do discurso o ator que antagoniza a figura ilustre do protagonista americano capitalista (que de forma inteligente e sutil rememora o seu premiado papel de propaganda americana) é um ator bem menos conhecido como Horst Buchholz (que tinha acabado de começar seu período de fama em Hollywood no ano anterior com The Magnificent Seven), ou como o contraste perante as gags inteligentes, que conotam uma analogia entre um empresário poderoso e Hitler, fica incubido à piada excessiva que não basta acabar no policial socialista que vai “confiscar” o fardo de Coca, mas necessita que a câmera ainda o veja bebendo o líquido e devolvendo as garrafas para MacNamara mais tarde. Nada mais que outro absurdo, pois, justamente, ao realizar uma crítica mais sofisticada ao país que pertence que a obra acaba complexificando o lado da Coca-Cola e reduzindo o lado Bolchevique, as sutilezas em torno de MacNamara versus o estereótipo da menina rica e burra que solta disparates sobre o pessoal do Sputnik. Do modo mais nítido e óbvio possível, o que acontece é que o realizador parece não largar o osso de todo seu passado de filmes com uma jornada dramática, de um nome e um olhar para protagonizar uma história e através do drama desse empresário, entre o refrigerante e a família, que o discurso dualista se mostra disforme.
Só que não dá pra sair chamando o filme de ruim. Não mesmo, e tá aí a ambiguidade, porque desse mesmo pendor à suas obras passadas que o Wilder vai conseguir alcançar momentos áureos, metamorfoseando sua posição discursiva para a do sádico que visita o manicômio. Esse retorno a um certo gosto pelo caos que está todo presente na confecção de uma comédia screwball ou mesmo de um nonsense. É o momento que ele revela a demência de seu tempo, quando aquele amontoado de símbolos não significa mais nada, são impossíveis de se acompanhar, a hiper-racionalização que entrou em parafuso e encontrou a esquizofrenia. Daí a mise en scène encontra sua genuinidade e eleva ao limite as cenas, suprime os espaços de transições (não há mais tempo de refletir), adere a loucura e fabrica uma sequência de quase 40 minutos!
E até poderia se argumentar que nesse gosto pela balbúrdia o diretor ainda se apoiaria numa pretensa imparcialidade, mas estou longe de concordar com isso. O imparcial busca a justiça utópica, a “equidade mais que necessária”. O caótico busca a histeria do riso, sobreviver ao dilúvio para boiar pelas ruínas escrevendo anedotas ácidas sobre o que restou.
Quando ouvir a língua alemã remete instantaneamente ao comunismo, ao capitalismo ou, antes de tudo isso, ao nazismo. Quando no Oriente do Ocidente se encontra a ideologia de esquerda espalhada pelo canto direito do mapa. Quando o discurso do jovem Abraham Lincoln se confunde com o de um jovem metido a Bolchevique. Quando todos os símbolos de todas as ideologias e de todas as famílias podem ser custeados pelo símbolo do dólar. Quando as imagens enlouquecem a ponto de começarem a brincar com fogo, enquanto dançam em cima da mesa do hotel comunista... aí Billy Wilder pode adentrar na orgia e encontrar os melhores momentos de seu filme. Do contrário, quando ele não acha estes momentos, ele só se parece com um esboço do filme que o Kubrick faria poucos anos depois.
László Benedek confeccionou algo maravilhoso: o nascimento e o sepultamento de um novo gênero em uma obra só. O filme da tribo de motocicletas que, através da nova moda anárquica juvenil, desvela certos medos e segredos da sociedade de sua época. Certamente, um tipo de imagem que se arrastou bastante no cinema, mas ao contrário de um Mad Max, aqui, não há a deformação e o exagero, há a limpidez de um sentimento, a filmagem de um Zeitgeist que se transformou em gestos e máquinas. O zênite e o ocaso nos mesmos 79 minutos.
Um tipo de filme que começa no mesmo tom moralista do cinema de gângster, um intertítulo a la Scarface que anuncia de prontidão sua tônica de censura para, em seguida, criar uma pose através das boinas e jaquetas de couro. Uma velha ideia de preencher os espaços do filme com o estilo daquilo que se criticará (algo também muito presente no cinema de gângster), mas, em vez de se aprofundar num mundo já existente (o do submundo do crime, por exemplo), a criação de László está mais interessada em confeccionar algo novo, um universo próprio e exótico que encontra nas motocicletas, nas vestimentas agressivas e nas siglas estampadas os símbolos de seu mito, muito antes das indumentárias sexuais de qualquer Kubrick.
Desse tal mito, o autor só encontra a possibilidade de realização da história na multiplicação desses símbolos, a necessidade da grande quantidade de figurantes que faz com que cada locação se torne lotada, um tumulto em todos os cantos do quadro que quer transformar os trocentos jovens numa massa de jaquetas de couro indivisível. O que é muito bem expresso no seu chamativo plano inicial, com as mil motos em direção à câmera, ou seja, a força de um bando.
Nisso que reside a problemática do intertítulo inicial, o “desafio público” estopim da tal “história chocante”. Uma questão que torna mais complexa e, por isso, mais perigosa, a condição dos motoqueiros. Aliás, eles não são gângsteres ou mafiosos, não há crime concreto nas suas atitudes, pior ainda, seriam só jovens? Dessa mistura de infração com molecagem que surge a indagação do policial que reluta a prender algum dos jovens após um pequeno acidente de trânsito. Logo, o problema da trupe subversiva está muito menos no crime em si do que na capacidade de realiza-lo a qualquer momento. É sobre estar no limiar das barreiras de liberdade o tempo todo, sempre esticando-as aqui e acolá em prol de seus impulsos.
Assim, o assédio é o grande símbolo exemplificador da tal condição e, nele, que todos outros símbolos também se desvelam, quando fica explícito que os rivais das armas de fogo dos civis são as motocicletas dos desordeiros. Uma máquina muito mais potente do que uma pistola, um instrumento que, além de maximizar o ir e vir de seus donos, permite que eles incidam na liberdade alheia, façam da garçonete protagonista uma presa rodeada por animais adornados de botas e anéis.
Entretanto, de toda a miscelânia de signos o maior deles situa-se no contrapeso, o motor entre todos os mecanismos: Marlon Brando. Ele quem supre o papel de dar um nome e um olhar para a tribo, encarna nos seus gestos todas as energias que rondam seus homens e contrasta a massa despersonalizada com sua figura. É seu marcante método de atuação que quebra o formalismo rimando com a temática, mas, além disso é sobre o cara que parece conseguir transformar todas as suas sinapses em gestos corporais. Ele nem precisa de palavras pra flertar, só precisa da espontaneidade momentânea: a brincadeira com a moeda no balcão, o empurrar o troféu para a garota e seu semblante relaxado e fixo. No final, o mesmo princípio que rege os outros motoqueiros, a gratuidade dos gestos originados pelos impulsos, o mesmo caso de Chino que nomeia aleatoriamente a garçonete para entregar o troféu roubado como prêmio, a diferença é que com Johnny toda essa impulsividade não se reduz a uma cena, a um evento, ela coagula todo o drama do filme em seu corpo, na criação de uma persona, uma profundidade psicológica para aquele homem hermético. Brando talvez seja o maior trunfo da obra.
E é bem interessante perceber como esta construção da persona do protagonista desemboca num movimento contrário a todo o resto do filme. Surpreendentemente, o perigo que o autor tanto alarma sobre a gangue das motos não recai numa dominação da cidade, numa série de crimes hediondos ou qualquer coisa do tipo. É mais profundo, o perigo está na evocação que os jovens trouxeram para a cidadezinha, reencarnaram a barbárie sobre o asfalto, reacenderam a lei do mais forte nos homens de terno que preferem quatro rodas à duas. Daí que vem esse confronto do núcleo de Johnny a todo o resto, em torno dele há todo um desmantelamento da civilização, do contrário, com ele, há o aprendizado civil, a desbestialização do líder da gangue possibilitada pelo romance. E dessa mesma dualidade, que resulta em Johnny sentindo a ética (ou a falta dela) na pele, surgem momentos que demonstram como Marlon Brando é o símbolo motor de toda esta mitologia, uma cena que o motoqueiro machão é invadido pelo medo e que, ao contrário do que a jovem apaixonada diz, não está no encontro do casal, mas no reencontro do homem com sua máquina, o verdadeiro momento do semblante desesperado.
Ao final, parece que o que restou de The Wild One foi muito mais a sua pose, as imagens de Brando de boina e jaqueta. Só que a obra é muito mais do que um divulgador de moda, é uma experiência única que contém um Zeitgeist: o medo de um atentado contra Montesquieu. Por esse lado, muito mais um precursor de Straw Dogs do que de qualquer filme de motoqueiros.
Ele tem como melhor característica um esquema que flerta com o metalinguístico, o que se parece em muito com o que o Fellini só faria mais de 10 anos depois, no seu famoso magnum opus, o diretor fictício que vê ao mesmo tempo que o diretor verdadeiro mostra. Só que a comparação com o filme italiano deve acabar aí mesmo, em elucidar essa base de complexidade, porque de resto a obra se faz justamente pelo afastamento do que é estrangeiro e pela procura da sua identidade nacional.
Uma negação em tom de paródia que, nos seus melhores momentos, utiliza das formas do tão citado cinema americano apenas para desconstruí-las: de Cecílio que faz surgir uma habitual transição em fusão para mostrar o vislumbre do desejo, passamos para a paródia do mesmo momento que transforma o desejo num número carnavalesco. Mais do que uma piada de contrastes de visões, uma formulação discursiva, enquanto o homem rico vislumbra aquilo que ele quer chutar de seu estúdio, o próprio filme que ele está contido já se apropriou daquela cena e a colocou para correr ao seu lado. O que se vê até mesmo de forma mais simples e óbvia, aliás, o personagem que clama por solenidade cinematográfica já se chama Cecílio B. de Milho.
O que pode soar de algum modo como uma inevitabilidade colocada pelo brasileiro, a impossibilidade de se fazer um filme nacional que queira ser sério. Mas seria uma besteira pensar dessa forma. É sobre a “aventura no Texas” escondida debaixo da Grécia, sobre querer se escorar num tal “cinema de qualidade”, ademais, o sinônimo de superespetáculo para o diretor, provavelmente, é Sansão e Dalila ou Cleópatra. Daí que Carlos Manga quer ressignificar, ou melhor, assumir o espetáculo brasileiro, desfazendo o blasé da festa burguesa com pulgas à solta.
Claro, além de toda retórica, a verdade é que o diretor está muito menos interessado em todo esse dilema do que na sua solução, o que significa que ele quer ser muito mais o filme brasileiro do que a reflexão sobre a herança do americano. Dado seu pensamento, as sequências se concentram cada vez mais no samba e nas anedotas, o que sugere um grande otimismo por de trás da câmera, uma confiança de que o convencimento não precisa se fazer por sermões, só é necessário um beijinho pra que se comece a cantar marchinhas de carnaval por aí. Todo um sentimento muito bonito, mas que, talvez, devido a toda essa confiança que acabe, poucas vezes, enfraquecendo sua mise en scène, isso é, essa dicotomia contrastante, a fulguração do espetáculo brasileiro versus os restos do cinema americano.
Dualidade que certamente não necessita de qualquer continuidade do discurso de paródia, como disse, ele quer muito mais apenas reproduzir o espetáculo sincero e identitário que encontrou, o “Eureka!” do Carlos Manga. Só que confeccionando o auge de seu espetáculo nacional que ele encontra a expulsão do “outro cinema”, o que está muito mais nas suas moças rebolando do que no Oscarito lutando (mesmo que sejam momentos bem cômicos).
Toda uma reprodução dessa “excelência do espetáculo brasileiro” que realmente emanta a obra quase que por completo. Como as cenas de sonho que vêm despudoramente uma atrás da outra ao final do filme. O que é ótimo, pois nesses shows oníricos e lúdicos que a experiência se reafirma mais do que nunca, o momento que se exclui de vez a tentativa de equilíbrio entre forma e conteúdo através da ilusão, adere ao caos da extravagância, negando enquanto se autoafirma. Nada mais que o plano final que escolhe acabar com a pegação tosca entre Xenofontes e a cubana pronta pro desfile.
Um filme sobre filmar Homero. Um filme sobre as diferentes visões de filmar essa mesma história. Um filme sobre um diretor pensando na sua visão de cinema no processo. Ou seja: O Desprezo brasileiro? Porra nenhuma! Godard que filmou o Carnaval Atlântida francês.
Boa parte do trabalho do Kubrick em Hollywood me soa muito como a história de um espírito preso num corpo que não lhe pertence. Um autor rodeado por formas clássicas e que, vergonhosamente, procura migalhas, brechas, pra poder consumar seu sonho de estilização. No pior dos casos temos um Killer's Kiss, um puta precursor da fotografia inventiva de Instagram.
Aqui há a ambiguidade: por um lado, a alma atrofiada, por outro, momentos genuínos de expressão estilística.
Num primeiro momento é tudo sobre esse jogo ignóbil de querer aparecer através de uma idiossincrasia barata. Quando o autor estica a duração de cada plano, reduz os cortes para se manter na sua decupagem de moldura. Fazer com que a cena se transforme em quadros sonorizados, seja botando os amantes para reproduzirem o texto num plano único em que eles sempre dividem o quadro ou criando outras estátuas aqui e acolá, que não podem mover muito a cabeça pra não saírem de seu esquema de posições e luzes. Claro, tudo feito na medida do possível, sem extrapolar muito, sem se assumir muito. Ou seja: um plano-tableaux, só que brocha.
Entretanto, o que o afasta de um filme ruim é o seu encontro com a verdadeira estilização, a que realmente traz algum efeito. Um esmero nas formas internas, diegéticas, ligadas ao drama pelas ações, ao contrário das metáforas ou sugestões bobas, como uma ferradura da "sorte" que reaparece ao lado do corpo morto só pra ser o plano final da cena. É a força imagética trazida pelo brutamontes que, de repente, tem sua camisa arrancada ao ser rasgada exatamente em dois (uma performance, assumida pelo público que se afasta para abrir um palco) ou por um rosto furado de balas que possibilita a câmera solta olhando pros corpos mortos. Daí que os investigadores do "discurso de carreira" do Kubrick podem encontrar aqui um exemplar potente do tal pessimismo do diretor: num belo esvoaçar do dinheiro pelo aeroporto.
Claro, disso tudo, dá pra denotar essa ambiguidade nada coesiva. E pra isso nem é necessário demarcar todas as piruetas estilísticas (ou as tentativas disso), basta se atentar a toda a narração, um par indissociável da carreira do diretor, nos seus piores e melhores momentos.
Nos primeiríssimos instantes de locução, ela já cospe a poética do "o único entre as 100.00 pessoas na corrida que não sentia nenhuma emoção" na voz de locutor de futebol. Depois, no melhor momento, ela assume uma simplicidade didática, uma necessidade puramente informacional de guiar o espectador. Contudo, logo em seguida, ela some, deixa seu autor contradizer sua necessidade de simplificar a não-linearidade quando repete inúmeras vezes as mesmas imagens dos cavalos rodeando a pista e dos megafones anunciando o mesmo momento. Quer avultar sua ousadia ao mesmo tempo que quer torna-la palatável e, ainda sim, por vezes, quer extrair alguma poesia. Pura confusão, falta de assertividade presente no todo.
Longe, muito longe, de ser uma das melhores coisas do Kubrick, pelo contrário. Porém, querendo ou não, ainda tem o belo esvoaçar do dinheiro pelo aeroporto.
É sobre retratar a melhor personificação e, consequentemente, a maior literalidade do termo “patriarcal”. Quando existe uma super obviedade da problemática de gênero impregnada em cada acontecimento, uma condição base de protagonizar a história da 4ª esposa de um Lorde 70 anos depois de seu tempo. O que resulta em todo um perigo de se cair na redundância e na hiperdramatização, principalmente numa obra que quer designar o discurso como motor.
Num primeiro encontro de Song Lian com a 1ª esposa que a jovem ouve o conselho, “é bom que você seja educada, precisará disso para viver aqui”. De tal frase, logo se conclui que a “educação” falada é muito menos sobre uma gentileza do que um eufemismo para “saber seguir as regras” do amontoado de tradições e rituais que presenciamos em seguida. Exatamente desse princípio que a mise em scène têm seus melhores momentos, na rima com a austereza das formalidades.
A partir disso, a solução para escapar de todas as baratezas melodramáticas através do imperativo das formas calculistas e frias daquele universo extremamente particular, o que gera um diminuendo dramático. Tal, surge de maneira explícita na constante de enquadramentos geométricos e no fortalecimento da arquitetura monumental que rodeia a trama, atingindo certas potências quando essa energia impassível bloqueia o drama e se torna um puro contemplar dos gestos subservientes às tradições. Daí, melhor do que os planos gerais que somem com os semblantes tristes, há os momentos que engolem os conflitos na cena, petrificam-no sem o deixar explodir: um momento tenso como a exposição de Yan’er frente à todas esposas que nunca vira expurgação ou enervamento, pelo contrário, o drama é obrigado a ser mediado pela câmera ritualística, primeiro ouve-se a 4ª esposa, passa-se para a opinião da 3ª e assim por diante. O que alcança o auge na morte da serva fora de quadro.
Claro, não é um sistema formal de grandes magnitudes, no final é o velho conceito da sujeira debaixo do carpete lustroso (o filme mesmo se exemplifica numa cena em que a protagonista encontra o adultério abaixo do seu jogo de mahjong), porém, é aquilo que há de melhor no longa: as vezes que seu autor se concentra mais nas aparências do que na abjeção nem tão oculta assim.
Entretanto, mesmo diante dessas benesses propostas, há uma certa dubiedade contida no jogo de solenidade. Uma dúvida se toda aquela frieza está se configurando como um afastamento inteligente do drama ou uma solução maniqueísta para ampliar uma vitimização. É como a figura do todo poderoso marido, ele nunca é focado pela câmera, ver seu rosto, que só aparece em planos gerais, é uma tarefa difícil, mas, esse autorismo evidente, teria o efeito de dar continuidade a tal rigidez da mise en scène ou apenas vilanizar o homem? Provavelmente os dois, o que já é bem ruim. Vê-lo na mesa com as esposas, conversando com seu filho, falando com os servos, sob essa distância, parece um artifício inteligente, mas basta que o diretor decida fazer um close, se apegar ao rosto de sua protagonista chorando enquanto ele fala fora de quadro que as imagens passam a exercer uma vilanização tosca. Nisso, que retornamos ao primeiro plano do filme, se as últimas palavras de Song Lian pra câmera soarão como uma frase de efeito superficial pro porvir é porque a extrema fragilidade temática torna qualquer explicitação uma verdadeira redundância. Não é preciso dizer que “se tornar uma concubina é o destino de toda mulher”, quando presenciar qualquer gesto do tal universo já diz o mesmo, de modo muito mais forte.
Logo, o filme sempre se manterá nesta bifurcação, continuar no seu jogo de solenidade e complexificação dramática ou recair num sentimentalismo fácil. De certa forma, o que, por vezes, parece ocorrer quase como uma luta interna, como se dependesse puramente dos impulsos de seu diretor quebrar ou não a energia das formalidades, o que acaba significando chafurdar ou não num melodrama idiota, basicamente: contemplar se o autor vai conseguir apenas cortar de um plano frio para outro ou se não resistirá em cambalear a câmera para se aproximar da pele de seus personagens.
São nos momentos de revelação e paroxismo que surgem as tentações à mão de Yimou. Como no momento em que a 3ª esposa aparece para contar sobre sua gravidez, dali urge toda uma dúvida “ele conseguirá manter as mesmas escalas a cena toda?”. Bem, consegue, porém, numa cena de maiores exigências, de um assassinato, ele decai com força, trai todos os enquadramentos inteligentes que mantinham o crime ao longe, tão distante a ponto de se dissipar um grito até torna-lo puramente numa estatística, ao final, opta por uma tola subjetiva cambaleante a fim de reproduzir temores. Talvez a maior traição, liquefazer a rigidez de seu formalismo.
Toda uma encenação bem singular que, mesmo que nada excepcional, possui momentos potentes aqui e acolá e, talvez, por isso mesmo, seja decepcionante contemplar constantes autossabotagens. Afinal, torna-se difícil lembrar do belo momento de libertação e loucura solitária, com a protagonista acendendo todas as luzes e sentando-se sozinha, quando a obra opta pelo excesso, em adicionar mais cenas apenas para escandalizar seu ensandecimento. Falta integridade nas imagens de Yimou.
Até começaria elogiando o fato de a obra entender bem onde ela se encaixa, saber que um filme político é diferente de um filme que fala de política — o seu caso —, entretanto, esta autoconsciência só parece originar um vazio dramático absurdo no seu cerne; como se a pura retratação de personas históricas na pele de atores hollywoodianos já fosse o suficiente para a experiência inteira.
A única coisa que Shaka King confecciona é uma série de cenas manjadas (todo o romance hipergenérico), burocráticas (todo o falatório de planejamentos internos dos Panteras) ou redundantes (toda a mesma caracterização malvada facílima em qualquer cena com o FBI). Um monte de retalhos tão enorme que fica até difícil de chamar qualquer sequência de “preenchimento”, pois toda sua estrutura é por si só um carrossel de desconjunturas; ações episódicas que nunca se assumem como tal.
Logo, um paralelismo tão rápido quanto despropositado, como Fred e Deborah discutindo sobre seu filho ao mesmo tempo que vemos Jake Winters num tiroteio, é prova de toda essa inabilidade de condução: não sabendo como conectar essas cenas tão esparsas e infrequentes, utiliza-se de um artificio de fluidez na marra — mesmo que totalmente desprovido de um significado além do óbvio. Algo que também poderia ser exemplificado pelo próprio conflito do “Judas”, já que seu drama de traição é sempre executado em ilhotas, isto é, bem marginalizado de outros núcleos, sempre necessitando de uma sequência isolada para manifestar-se (como um sonho deslocado ou os entretempos de janta) e nunca conseguindo se conciliar efetivamente com os momentos de Kaluuya — e só por isso já descarto qualquer espécie de comparação com filmes de “policiais infiltrados” a la White Heat, considerando que seus trunfos são as tensões entre as duas personas principais nesse jogo de alienação, o que não ocorre aqui.
Assim, quem dera este fosse um longa posudo, falsamente discursivo, ignorante da dicotomia do filme político, mas que ao menos soubesse conduzir a sua própria dramaturgia. Não me interessa a arte tão cuidadosa com a história e a política que retrata que esquece de si mesma; só me interessa a arte que cuida de si própria (o que não é ligar no automático seus atores renomados). Mil vezes um Hércules católico (como o de Bava ou Cottafavi) do que um Judas and the Black Messiah.
“Aaron Sorkin, grande roteirista” tentando virar o “Aaron Sorkin, grande diretor” na base de muita gritaria — como já se faz com o roteiro, afinal.
Basta olhar para a montagem, aquela mesma que muito disseram que seria uma das mais promissoras a ganhar a estatueta da categoria, e não levar nem 2 segundos para perceber a farsa de Sorkin: tudo não se passa de mero chamariz de baixíssima qualidade. Ritmo corrido, megafluidinho que nunca cria algo de substancial para a experiência, permanecendo na superficialidade de se contentar com a velocidade pela velocidade (e com as trocentas gags de uma cena à outra, claro).
Coisa de diretor estreante, utilizar de um artificio espertinho que, desresponsabilizando-se de se atrelar à construção narrativa, só está lá para clamar pela “complexidade” de sua feitura. Afinal, se tentarmos encontrar os momentos que essa montagem escandalosa é usada efetivamente no drama, apenas nos depararemos com a pobreza de contrastes sem-vergonhas, da violência à frase impactante (com o “stand-up” de Abbie) ou da violência encenada à sua “seríssima” importância documental (com as imagens de arquivo preenchendo as cenas).
O que acaba por rimar com todo seu conteudismo fácil. Isso é, para o diretor encontrar o jogo de diálogos típicos de filmes judiciais (e o drama que provém deles), não se instaura nenhuma grande construção em cada cena, apenas se fabrica os personagens mais caricaturais possíveis e se dá vazão a uma dramaturgia binária previsível, em que suas estrelas berram o que já estava escancarado. Daí aquela cena risível do David Dellinger, o homem que nunca bateu em ninguém na vida, dando seu primeiro soco em pleno tribunal (com direito a contraplano da carinha triste do filho observando tudo).
O curioso é que diante de toda essa patifaria, entre um respiro e outro, até penso que a obra consegue encetar centelhas de momentos mais engajantes. E, mais curioso ainda, é que isso parece surgir justamente do que há de mais maquinal desse tipo de filme — como num conhecido momento em que o advogado acelera as perguntas para a datilógrafa registrar tudo ou em mais uma de suas sofisticadas perguntas sorrateiras. A questão é que são momentos marginalizados dentro de seu espetáculo calculado que, na verdade, só funcionam justamente por isso: apenas regem velhos clichês eficientes e não uma farsa engessada, fogem das frases de efeitos declamadas aos montes pelos personagens estereotipados através de uma direiteza mais sincera.
Mas, claro, isto é só um desvio do percurso que não se quer comentar muito. Sorkin não está nem um pouco interessado em estudar as contribuições logradas que Preminger, Capra ou Kramer já fizeram. Não. Ele apenas quer clamar pela “autoralíssima” narrativa de facilidade escandalosa. Afinal, qual das atuações o filme mais se concentra, na eficiência de Mark Rylance ou na miríade de bordões hippies de Sacha Baron Cohen? Não é de se espantar qual tenha recebido aclamação do Oscar...
No fundo, até há alguma tentativa de retornar ao antiquíssimo filme de tribunal de Hollywood, mas, antes que se possa chegar lá, afunda-se no meio de um caminho rodeado por diversos vícios e vaidades contemporâneas.
Mesmo pegando os melhores momentos de Minari, é uma tarefa difícil extrair qualquer coisa de muito especial do filme. Isto, porque seu auge parece ficar tão somente entre o clichê genérico e o clichê minimante eficiente — para, depois, só rolar ladeira abaixo.
Sobre seus quês mais genéricos, eles pertencem a toda uma seara semiformalista desenfreada ou, dizendo de outra maneira, a todo um apelo muito superficial do “filme bem filmado” (concorrendo à diversas categoriazinhas elogiosas do Oscar) que muitos têm comentado. Elementos que querem arrancar alguma “sensibilidade” de todo esse filme-memória a fórceps. Uma ansiedade de instaurar logo em seus primeiros minutos o gramado que desaba verde por toda a tela, a trilha sonora “evocativa” e o flare aos montes; mal conhecemos os personagens ou habitamos seus universos e quer-se demarcar através do grito a beleza dessa biografia, que, basicamente, só exerce de modo mais imediato os clichês de qualquer filme que lide com reminiscências — desde um bem recente Moonlight até um pai desse tipo de narrativa como I Vitelloni —, mas esquecendo-se de criar um drama próprio antes de escandalizar seus cenários pifiamente “peculiares”.
Entretanto, se há algum momento em que se encosta numa possível unicidade verdadeira — sua eficiência —, isso ocorre quando se entende que sua peculiaridade biográfica pode advir de seu difícil estado de transição e indefinição próprio dos imigrantes. Muito mais “único” do que se escorar num pictorialismo fácil é nos mostrar essa intersecção de culturas dentro de uma igreja. Mais significativo do que a poesia musical forçada — num primeiríssimo instante que Yeun afunda as mãos na terra — é presenciar a comunicação desengonçada entre duas garotas: metralhando um vocabulário coreano inventado e persistindo nele até se encontrar, ao acaso, algum ponto em comum.
Daí que vejo alguma potência na relação tão comentada entre avó e neto. Não por pura “boa atuação” (como se decai posteriormente), mas porque é justamente através dessa nova figura familiar que se tem o auge da tal unicidade verdadeira. Afinal, se o próprio entremeio linguístico é uma das coisas que mais simbolizam a situação daquela família, é com a personagem que menos fala inglês que isso se eleva. A mulher que força um escambo cultural com as todas suas comidas e hábitos longínquos até, por fim, culminar no “cheiro de Coréia” que passará a impregnar o quarto do caçula.
Só que, infelizmente, todos esses lampejos de bons momentos, além de disputarem lugar com os clamores de “peculiaridade” simplória de sua primeira metade (como já citei), apenas se extinguem ao rumar para o final do filme. Atingem uma decadência que tomba de vez para os vícios do “filme bem filmado”. Abole-se o resquício de identidade que se tinha e conduz tudo num jogo de dramaturgia instantânea, que não angaria um peso por desenrolar a história, pelo contrário, cria-se cenas mais intensas que se justificam imediatamente em si mesmas, no puro showcase dramático da coisa — é daí que surge o injustificável “Steven Yeun, uma das melhores performances do ano”, com suas cenas de briga pela briga e desespero pelo desespero (na sequência mega calculada de incêndio).
Ironicamente, o desastre máximo de toda essa derrocada é simbolizado pelo próprio trunfo anterior: Youn Yuh-jung. Afinal, é simplesmente vergonhosa a transformação que se escolhe para a personagem. Censura a sua posição anterior como símbolo fértil de uma ligação mais visceral com suas raízes (e os choques que isso ocasiona) e a torna mera muleta de atuação escandalosa. Não olhamos mais para a avó como outsider do solo americano causador de conflitos, mas como pura exibição de “atuação difícil” — mas um tanto quanto fácil para a obra clamar suas qualidades.
O pior caminho para o filme, mas, aparentemente, o melhor para as premiações. Até porque seria ingênuo acreditar que o nome em alta da atriz veterana se dá por qualquer outra coisa senão esse ponto óbvio de demonstração da performance. Assim, o que acaba por acontecer é que, se a tal “Minari” que intitula a obra já possuiu qualquer indício de profundidade biográfica, até o final do filme a planta será mera ferramenta de chororô preguiçoso.
Dentre esses filmes-teatro próprios do Oscar, em alguma medida, este foi um dos que mais me surpreendeu. Uma obra que, diferente da grande maioria desse “gênero”, até que sabe articular bem seus artifícios primos de uma outra arte. Bem, ao menos antes de perder seu gás e tornar tudo cada vez mais limitado.
Se todo seu início é, aparentemente, bem morno, com o que há de mais clichê nessa transposição teatral para o cinema — como o diálogo entre Colman e Hopkins feito para dar vazão à interpretação de personalidades fortes ou como o espaço de locação única, pretexto para fulgurar ainda mais seus atores (esquema próprio de palco) —, isso acaba sendo estranhamente benéfico, quando, numa cena seguinte, toda essa concepção retilínea é desmontada por uma desorientação instantânea.
Disso, o que mais me parece divertido da sua série de choques é como eles são compostos justamente por mecanismos oriundos do teatro. É aquele velho jogo de estabelecer a locação, mas trocar os atores e insistir que eles tenham os mesmos nomes de personagens já conhecidos. A diferença, aqui, é como, em certa medida, Florian Zeller angaria propriedades muito cinematográficas nesse jogo simples. Anthony e o apartamento sob seus pés continuam a ter a mesma concretude de sempre, o mesmo reconhecimento imediato a nós — afinal, no cinema, tanto o apartamento, quanto a passagem de tempo possuem impressão de verossimilhança muito maior —, mas quando “novos” personagens entram em cena, toda a lógica destes elementos, que em nossa cabeça eram tão óbvios e estabelecidos, entram em curto-circuito. Uma simples ida da cozinha à sala nos faz questionar todo um espaço-tempo que parecia tão simples de entender. O que acontece justamente pela armadilha deste ponto de gravidade. Hopkins continua em seu personagem o tempo inteiro, mas, inesperadamente, todo o terreno que ele pisa parece se transmutar tal qual um cubo mágico... mesmo que seja apenas uma mesma locação.
O lado ruim de tudo isso é como, infelizmente, nunca mais se replica esse choque inicial da mesma maneira. Pelo contrário, todo o filme parece rumar progressivamente numa didatização cada vez maior, numa cautela que nunca entra completamente de cabeça na visão opaca dessa mente desbotada, procurando cada vez mais por pontos de claridade dentro da narrativa obnubilada.
Em algum nível, algo que parece estar estritamente ligado a um ato de subestimar o espectador: pesa-se a mão no didatismo com medo que o espectador não perca o drama familiar ali contido.
O que ocorre, por exemplo, nas vezes em que a câmera precisa navegar pelos bastidores e dar certa prioridade as feições de Olivia Colman, a fim de que tenhamos certeza sobre a concretude da sua preocupação e da doença de seu pai (c.f. a cena em que Laura é apresentada). Por esse lado, diferente de Hopkins, a protagonização da atriz atrapalha um pouco toda a configuração da experiência, pois parece que, de alguma forma, Colman teria que aparecer uma certa porcentagem fixa no filme (para ter o selo de atriz principal?) e, por isso mesmo, seu diretor realiza isso na marra. O que acaba soando como uma grande destoação dentre este cubo mágico, um ponto bizarramente fixo dentro de um espaço disforme.
Mas, de outro modo, até seu senso de onirismo (ou demência) progride em constante escassez. Uma cena literalmente de sonho (em tese, a oportunidade de confeccionar um auge para o desnorteamento), deixa de possuir qualquer teor de confusão e vira mera carga dramática fácil. Anthony vislumbra a filha no hospital e esclarece, mais uma vez, uma informação que nem era tão confusa.
Assim, basta ver a sequência final para encontrar o ponto em que essa escassez, finalmente, atinge o seu ponto 0. Uma cena excessivamente longa, montada apenas como explicação de todas as pontas soltas ou, pior ainda, o tal onirismo transformado em mera conexão lógica de fatos. Mais uma vez subestima-se o espectador: explica-se tudo para ter certeza que ele compreenda a carga dramática em questão — além de soar como aquele tipo de prazer tosco de certos finais de filme (a la Nolan), faz-se à fórceps o espectador entender toda a complexidade anterior a fim de que ele admire alguma “genialidade”.
Logo, talvez desse pra retornar aquela primeiríssima cena e dizer que são todos motes teatrais que rebaixam ou elevam o filme. De forma inteligente, traduz-se a concepção teatral em mecanismos peculiares de desorientação. De modo preguiçoso, acaba desmanchando todos esses mesmos mecanismos graças a uma necessidade despropositada de gritar o drama de seus atores.
Um cubo mágico muito mais divertido quando não se tem a intenção de completá-lo.
A fim de uma explicação fácil, de forma bem rude, pode-se reduzir Sleep Has Her House àquele velho jogo infantil de contemplar as nuvens para encontrar animais e objetos. Sua essência parte justamente dessa mesma tônica de abolição de contornos e preservação de incertezas, porém, elevada a um outro nível de seriedade. Um projeto de hipersensorialidade que só pôde ser executado devido toda uma possibilidade derivada das imagens contemporâneas, essas que, por sua vez, seu autor possui domínio pleno.
Não parece difícil designar o medo como um dos principais efeitos do filme, o que, antes mesmo de aparecer de forma explícita nos únicos elementos definitivamente inteligíveis da obra, isso é, suas frases poéticas e sombrias sobre gritos e colinas, já se mostra no seu primeiro plano: duas criaturas incognoscíveis que parecem estar numa pintura, num esquema imóvel, praticamente desenhado, mas que, de repente, uma delas move sua cabeça do modo mais orgânico possível. Aí está seu principal jogo, que se complexificará progressivamente, uma desfiguração das formas que gera uma constante confusão da percepção. Uma indissociação do mar com o céu, das árvores com as pedras, proporções e movimentos muito nebulosos, em tal nível que os temores primitivos começam se aflorar. Esquema muito inteligente que busca tais temores no momento que a segurança da percepção é perdida, no momento que nada mais é sólido e as formas mais anômalas surgem justamente das formas mais universais: os desenhos da natureza.
Me lembra os planos mais visualmente expressivos de um Sombre, do Grandrieux, e, principalmente, de um Brakhage, mais especificamente de Anticipation of the Night, a obra que melhor merece um paralelo com a de Scott Barley.
É quando ambos utilizam o anoitecer como o grande signo de libertação de todos os outros signos, a transição da visão humana de fotópica para escotópica, a hora que as cores murcham, a acuidade baixa e o olho demora mais para se adaptar, a intersecção de ambiguidade ótica encontrada pelos cineastas para usufruir da liberdade/imersão da consciência. Entretanto, de tal paralelo, o mais interessante reside nas suas oposições.
O vanguardista americano utilizava sua câmera para retirar, primeiramente, um registro mesmo dos contornos (uma necessidade de se reconhecer que um bebê no gramado é um bebê no gramado, por exemplo) para, depois disso, poder movimentar a câmera até que o tal objeto se desfigure, ou no seu trabalho mais hercúleo, combinar as diversas imagens nos seus níveis mais minuciosos, amontoando as desfigurações para que resultem em transformações. Do contrário, a laboração de Barley não encontra seu ponto nevrálgico numa determinada escolha de registros que serão “desencantados” na mesa de montagem, primeiramente, porque a “mesa” de montagem não existe mais, ela possui uma outra dinâmica. É a pós-produção/finalização de duração megalomaníaca, o verdadeiro momento da criação da experiência, o lugar que se pode violar as imagens ao seu bel-prazer, mais, o lugar que sequer necessita do registro de qualquer câmera para iniciar qualquer criação: o preto e o branco surgem de pixels clicados pelo mouse. Daí que se percebe como essas árvores, riachos e estrelas pertencem estritamente a sua contemporaneidade, a uma imagem digital, aqui, uma bela imagem digital.
Para além de todas suas benesses, tenho que assumir que possuo certo desgosto da última e extravagante parte final, o que me parece acarretar de forma ainda mais negativa no longa justamente por ser escolhida como desfecho da obra. É um esquema de contraste na construção da estrutura, só que um esquema bem rude devido sua simploriedade. Imagens visualmente bem agressivas pra qualquer um (o que sem dúvidas é autoconsciente) que estão lá por um aguçamento meio barato, de ocasionar um despertar a partir da contraposição com o todo anterior. Nada mais que descobrir que o oposto das fixas paisagens cinzas são luzinhas piscando. É um pequeno momento final, mas que me soa ainda mais bobo quando comparado aos outros aguçamentos da obra, as vezes que a quebra daquela hipnose imagética está nos raios no céu ou no fogaréu repentino, aliás, o quão ilustre é a capacidade de um diretor conseguir que seu espectador sinta-se assustado puramente por contemplar o fogo, sem contexto algum?
Talvez, para alguns, possa soar idiota minha crítica à tal destoação numa experiência que é tão diferente, tão experimental, porém, na realidade, a situação é a mesmíssima de qualquer filme de ficção mais convencional, são apenas ícones e símbolos reduzidos ao seu nível abstrato, o que está contido em qualquer coisa que se chame de arte. É uma escolha parecida (inclusive em qualidade) a de um filme narrativo recente como The Invitation. Lá, escolhe-se o constraste de construção através duma tonalidade de gênero que passa do suspense sugestivo e subjetivo para o survival explícito e objetivo. Aqui, passa-se da ausência de cor para a sua presença, dos planos longos para a descontinuidade dos frames. No fundo, tudo é feito de barro.
Tudo bem, afinal, o que o autor nos apresentou é uma jóia intrincada de seu tempo, um mundo que se conecta com os espaços contemporâneos: líquidos, multiformes, em constante mutação. Um lugar muito mais virtual do que físico, mesmo que fosse posto numa instalação e, provavelmente, daí que encontra seu maior poder de ambiguidade das formas, ou seja, nas imagens que estão sempre desafiando a consciência contemporânea. Um sincretismo do abstrato com o concreto, quando atingimos a clareza, reconhecemos a imagem e semelhança das formas, elas se desfiguram no instante seguinte. Mas, ainda sim, uma metamorfose sempre bela.
Enfim, temos aqui uma boa provação pra qualquer purista que insiste em separar e elitizar “gravação” de “filmagem” em pleno 2020. Ademais, como não ficar tentado a conhecer mais da carreira de Scott Barley?
Atire a Primeira Pedra
4.0 30Quando, André Bazin, num dos textos mais referenciais sobre o western, escreve sobre o metawestern, ele está catalogando filmes que não mais se contentam em apenas fazer parte do gênero, em ter como mote os dramas daquele universo tão próprio. Eles precisam de algo a mais, normalmente, o psicologismo, o revisionismo ou qualquer "mensagem" mais intelectualizada. Antes disso, falando sobre westerns clássicos, anteriores a esta onda intelectual que o crítico não vê com bons olhos, o próprio Bazin cita aqueles que ele considera o auge do classicismo, é dentre os citados que está Destry Rides Again. Uma escolha curiosa e questionável que acredito estar mais vinculada a sua data do que ao filme em si, pois, mesmo fazendo parte do pré-guerra, a obra possui diversas características que flertam, ou ao menos antecipam, os ditos metawesterns.
Há, aqui, uma vontade de subverter os princípios mitológicos à respeito da instauração da justiça e, consequentemente, da masculinidade do herói, mas que, nitidamente, acontecem em prol de um objetivo modesto: a comédia. Juntando isto aos diversos elementos mais tradicionais que rondam o herói e a história, a discussão dessa possibilidade de subversão do gênero se torna mais complexa.
Por enquanto, deixemos de lado esta questão e vamos nos ater a um outro auto que prova com maior facilidade este apelo além-western do filme, isto é: Marlene Dietrich.
Para Bazin, no mesmo texto citado, o erotismo, por vezes, era motivo suficiente para servir de anexo aos novos filmes justificarem seu gênero. Nisto, ele usa o polêmico The Outlaw como exemplo. Porém, comparando o faroeste de Jane Russell com o de Dietrich, as proporções de apelo erótico me parecem desiguais entre a musa loira e a morena.
É verdade, o filme de Howard Hughes possui cenas picantes bem alienígenas à época que fazem entender a desaprovação dos censores vigentes e a sua consequente popularidade entre o público, todavia, a essência do longa ou mesmo do que ele se trata está longe de ser devidamente representado por toda a publicidade sensacionalista que Hughes criou em torno dos seios da atriz. Quem conhece o filme apenas pelo pôster, com uma Russell quase nua, certamente está longe de pensar que a atriz só exerce papel secundário à trama, mais distante ainda, então, está de pensar que a história central é sobre Billy The Kid e Pat Garret, personagens tradicionalíssimos. Jane só aparece para locupletar a jornada de amadurecimento masculina, o papel usualmente relegado às personagens femininas dos westerns clássicos, e por mais que possua momentos lascivos (que até acabam, devido sua intensidade/ousadia, por influir de modo peculiar na construção do protagonista, sendo um conflito primal à evolução do cowboy) eles só estão lá como a mesma jogada de marketing que o pôster ou os infâmes balões imitando seios, presos a aviões para promover The Outlaw, na época. O erótico está longe de ser um dos motes centrais.
Por outro lado, Marlene Dietrich é quase que instantaneamente a melhor pin-up do Oeste. Não pela atriz combinar com a paisagem árida ou qualquer coisa do tipo, mas por, antes disso, ser a melhor pin-up de sua década. A partir daí só foi necessário deixar a atriz fazer o mesmo que a tornou famosa: ser a dançarina bad girl de roupas extravagantes que vez ou outra imobiliza toda a trama só para cantar uma música.
Há uma concessão muito clara posta para a figura loira adentrar no filme. Frenchy não pode ser colocada no mesmo patamar de outras western girls, isto, porque a personagem está ali menos para ser uma figura romântica do que para ser Marlene Dietrich. Seus exclusivos primeiros-planos, inundados de luz suficiente para sempre transformar seus lábios em refletores luminosos, reiteram a idéia. Está aí um intuito além-western da obra de Marshall, assimilar a musa como um gênero complementar. Tal qual uma obsessão sternberguiana, temos um western e um filme de Marlene Dietrich.
Não que a obra se resuma a este fetiche, assim como Sternberg o faria. Na mais simples das análises, Destry Rides Again é singular apenas pelo seu modo de lidar com um dos temas centrais do universo western: a (in)justiça. Bottleneck é mais selvagem do que a Tombstone de My Darling Clementine ou da cidade de Rio Bravo, e, mesmo assim, possui uma espirituosidade inigualável. Mais surpreendente ainda é como tais propósitos cômicos não desbalanceiam a tensão dramática da cidade à beira da barbárie. A nomeação de um xerife bêbado é um grande momento cômico do filme, mas que não macula a tragédia que o evento representa.
No paroxismo deste tom ambíguo que surge a principal figura da trama (e da defesa da minha tese): Tom Destry Jr., o auge cômico que acaba por trespassar intenções despretensiosas do autor.
O personagem de James Stewart carrega um nome mítico, entretanto, ele está ali, justamente, para apresentar um inesperado contraste à figura de seu pai através de seu cowboy de idéias pacifistas (uma particularidade cômica exclusiva, que não está presente nem em adaptações anteriores da obra nem no romance original). O que, talvez, ocorre mais pela surpresa, que inevitavelmente traz diversas gags, do que pela desconstrução em si. Mas, como citei, o filme nunca desiste de sua tensão dramática o que acarreta em todo um questionamento subjacente sobre a usual "Ética do Xerife do Oeste", que, como na maioria dos casos, "nem sempre vale mais do que aqueles que manda enforcar", como Bazin bem analisa. A cena em que Tom conta o porquê de ter abandonado o revólver, recordando a morte do pai, ilustra bem o corolário desenvolvido a partir da figura de Destry Jr., uma personalidade de efeitos cômicos, mas que tem suas causas e ideologias investigadas com peso, a fim de refleti-las em seu universo mitológico.
Contudo, perguntar se o tal discurso subjacente se locupleta é uma outra questão, não tão simples como identifica-lo. Isso, porque parece haver condições específicas para o discurso cômico-pacifista existir, condições que talvez façam retroceder alguns passos toda a articulação temática.
Por exemplo, apesar da indubitável diplomacia do protagonista (relembrando outra figura de Stewart do mesmo ano, incansavelmente otimista e confiante na existência da justiça) Marshall parece só conseguir delegar autonomia e confiança, a esse cowboy diferente, após confirmar que ele tem as competências brutais de qualquer Billy The Kid. Numa cena bem marcante, em que Tom dissuade um baderneiro mostrando sua mira superhumana, fica a dúvida: é a habilidade retórica ou a verve de um pistoleiro mitológico que o dão forças?
Acredito que o filme quer tentar nos convencer desse herói diplomata, apontar para ele como seu discurso ousado, porém, um pouco envergonhado de sua própria ousadia. O que o arrefece nolens volens.
As últimas cenas do filme são a maior mostra dessa ousadia incompleta. Apesar do epílogo, com uma Bottleneck pacata que conseguiu trocar os revólveres pelo artesanato, que até zomba da violência (agora) distante, a cidade só se tornou assim após uma conclusão violenta. E a conclusão que me refiro não é apenas a de um problema diegético, mas, também, a de um clímax narrativo que é tradicional por excelência: a troca de tiros do bandido e do mocinho, o sacrifício redentor da prostituta e a morte do antagonista como concessão advinda da "vingança justa". Nítida contradição.
Logo, a pura retórica de Destry Jr não parece ter sido a chave mestra para a conclusão. O que, novamente, demonstra um recuo do autor com o próprio discurso. Principalmente quando um outro importante evento da conclusão foi deixado à sombra do duelo final. Me refiro ao caos da multidão feminina que vai à guerra e impede uma saraivada de balas, como se a cidade tivesse aprendido a tomar as soluções alternativas do jovem ajudante de xerife, num mesmo calibre pacífico e cômico. Pena que o momento é menos exaltado do que deveria, Marshall o reduz a uma gag efêmera.
Apesar de ameaçar muitas vezes, Destry Rides Again nunca chega próximo de um completo discurso de não-agressão, tal qual um Forty Guns o faria quase 20 anos mais tarde, num momento de inundação dos metawesterns. Uma comparação até injusta, a que proponho, mas que a explícita diferença de décadas já elucida. É uma distância de épocas que, passado os anos, torna mais fácil responder o porquê dessa ousadia moderna não ter atingindo o pico de suas forças, provavelmente por pertencer a uma década de elegia clássica, que pareceu suficiente para intimidar o discurso de George Marshall ou, ao menos, não tê-lo permitido entrever saídas diferentes das já conhecidas pelo gênero.
Importante assinalar que essa essa audácia "quase moderna" não é um completo defeito, mas, possívelmente, um dos primeiros sinais do tal metawestern. Um ponto bem interessante a adicionar ao filme, junto de uma Dietrich em pleno auge e de todo um ar espirituoso sobre a ética mitológica. Pontos suficientes para torná-lo distinto, mesmo num ano tão poderoso para o western.
Masculino-Feminino
3.9 159 Assista AgoraHá uma grande força exemplar dos cinemas novos rondando essa obra, que para muitos é um dos pontos de virada da carreira de Godard e, talvez, da própria situação do cinema francês. Mas sendo ou não sendo um dos estertores da nouvelle vague, Masculin Feminin possui a específica potência de liberdade dos "novos autores". Um experimentalismo sem fim de estilos, que antes de poder ser adjetivado, por qualquer um que não goste do filme, como pretensioso, força o espectador considerar todo sua irreverência e bom humor.
É engraçado como o que se costuma exaltar de um Godard, e da nouvelle vague em geral, se limita às desconstruções advindas desse novo poderio da política de autores. Desconstrução normalmente relacionada a "quebra de transparência", "revelação da imagem" e todos outros argumentos que limitam os elogios de neófitos, que acabaram de assistir Acossado pela primeira vez, ao seu amontoado de jump cuts. O que inegavelmente negligencia toda a nova energia documental desses mesmos filmes. Para continuar em Acossado, além da quebra da quarta parede ou dos cortes incômodos, há também toda uma captura de espontaneidade que confunde o que é do ator e do personagem, criando uma nova persona através dessas indissociações. Não à toa, Acossado, já guardava em Michel Poiccard pensamentos que o próprio Jean Paul-Belmondo ainda replica sobre si mesmo mais de 50 anos depois, sua certeza sobre seu charme advir de seu nariz de pugilista.
Se há muitas pontes para serem traçadas entre Godard e as vanguardas americanas, também sobram algumas ligações entre ele e um Rossellini há serem feitas. Masculin Feminin leva essa ideia a um exercício maior, uma dicotomia mais contrastante, tal qual seu título representa.
Jean Pierre-Léaud, num papel tão icônico que merece estar na mesma lista de um Antoine Doinel, é um dos alicerces dessa energia documental. A mostra mais nítida está na câmera que, por vezes, descansa de suas piruetas e estabiliza em simples primeiros planos, articulando a cena toda somente no campo-contracampo de mesmos enquadramentos onde presenciamos a conversa com todas suas pausas, silêncios e incômodos de olhares. Mas, para além disso, o mais belo da "energia espontânea" se encontra na simultaneidade, no momento que o diretor enforma a cena num movimento inegavelmente calculado, mas que mesmo assim possui um Léaud agitado, impulsivo, tipicamente Godardiano. Na sequência que Paul grava um disco para Madeleine há toda uma série de acontecimentos bem absurda (indo de uma garota oferecendo exibir seus seios na cabine fotográfica a um homem que inusitadamente se suicida com um faca, tudo em poucos minutos) que é coberta por um travelling continuo, ensaiado. Todavia, a série de acontecimentos flui como diversas esporas para a performance de Léaud, eleva seu corpo a uma espontaneidade amalucada, que (literalmente) grita na tela quando ele faz toda uma poesia improvisada para sua amada, na cabine de disco. Nisso, o filme de Godard parece um dos maiores reforços às ideias pacifistas sobre o cinema ser um paradoxo de verdades e mentiras, uma equalização.
Não terminando em Pierre-Léaud, essa dualidade artificial-documental vai a extremos maiores do que os que citei. Tentando encontrar a oposição máxima, talvez pudéssemos contrastar os inúmeros intertítulos de Godard (o autor como interlocutor mais do que direto) aos planos a la Louis Lumière que permeiam toda a história. Apenas viventes de 1965 andando, trabalhando, comprando, ou melhor, existindo, pela Paris de então.
A partir daí há como repensar a "máxima do cinema moderno", ou seja, o filme como documentário de si próprio. Aliás, se para revelar seu próprio registro, Godard, anteriormente, necessita de um pretexto, tal qual um romance noir farsesco, para aí sim se focar no seu olhar de autor, no como ele molda o mundo de sua história e como a revela como história propriamente cinematográfica, aqui o "pretexto" é justamente um registro de época. Filmar o rosto da Chantal Goya interpretando Madeleine é o mesmo que filmar o rosto de um operário na rua. Abre-se um espelho duplo que suplanta a câmera e o objeto filmado, ambos refletem os objetivos um do outro: registrar Goya é registrar um período e registrar a rua é registrar as próprias possibilidades de produção e seu contexto, localizado num momento bem específico do cinema.
Contudo, a bem da verdade, Godard não está tão interessado assim nesse possível paradoxo que citei. Em todo seu esticamento/esgarçamento da forma, típico da nouvelle vague, (que, sendo redundante, vai pra mais de um extremo do que o da desconstrução), o diretor explicita bem seu time, sua confiança na "imagem", contrária à "verdade". Quando Paul dá seu monólogo final, sobre seu desapontamento com suas próprias entrevistas, ali também está o próprio diretor desconfiando da capacidade das imagens diretas, estas que aparecem simultaneamente ao monólogo. O que se completa num depoimento final de Elizabeth e Madeleine, depoimento totalmente ficcional, bem diferente do longo e belo momento de entrevista à "Garota 19", e que está lá, indiretamente, como uma análise comportamental (tal qual Paul cita no monólogo) expondo um cinismo consumista da cantora, que tem como primeiro objetivo para o futuro, agora que seu namorado está morto, comprar um novo produto para a casa.
Além disso, é bom esclarecer que esses polos "imagem-verdade", que cito, não ocorrem num degradê estético, num acabamento da mise en scène ou através de todo um cálculo do diretor que transforma essas ontologias em algo linear. É como disse, Masculin Feminin é um espelho de seu tempo, o que significa um período de liberdade da mão do autor, de um experimentalismo de estilos,"uma ideia por plano", como diz o próprio JLG. Logo, seria incoerente pensar numa linearidade desses aspectos. O filme é mais como diversos blocos surtados e extremamente irreverentes, uma saravaida de balas para todos os lados a fim de captar a geração dos "filhos de Marx e da Coca-Cola". A discussão sobre imagem e a verdade estão lá como consequência dessa nova possiblidade de cinema.
É certo que a obra possui um princípio temático interessantíssimo, mas foram outras obras que o tornaram o assunto principal a destrinchar (penso em O Funeral das Rosas). Nenhum demérito, o filme de Godard estava mais interessado em perpassar a farsa, o virtuoso, o ensaio, o documental... resumindo: usufruir de toda uma liberdade específica (que não durou muito), um momento do cinema que não podia mais ser aquele dos filmes da Marilyn Monroe, que Paul e Madeleine se decepcionam e invejam. Era um outro momento, o de um cinema juvenil, nas suas mais diversas acepções.
Dois Papas
4.1 962 Assista AgoraUm dos poucos planos (senão o único) que soa mais fake, até um pouco tosco, é a melhor exemplificação da herança clássica que ronda Dois Papas, um antiquíssimo projeto de ilusão bem específico. Me refiro a um Anthony Hopkins e um Jonathan Pryce sentados num banco, frente ao fundo chapado de uma Itália construída por chroma key. Procedimento de cenário parecido com os fundos projetados de qualquer cena de carro da era de ouro de Hollywood ou de mil outros momentos e filmes.
Tal comparação pode parecer simplória, mas didatiza muito bem o que é a encenação "tradicional": um processo de cálculo em busca da exatidão. É sobre a fórmula geradora de um corolário que, num tempo de descontrucionismo, já foi muito acusado de ser mentiroso e manipulador. O que se intensifica em filmes como o de Meirelles, aqueles que decidem encenar fatos, algo que o roteirista do longa, Anthony McCarten, (O Destino de Uma Nação, Bohemian Rapsody, A Teoria de Tudo...), aparentemente, decidiu se especializar na indústria. Um efeito parecido com o de "... E o Vento Levou", que foi capaz de fazer com que seus espectadores de 1939 saíssem da sala escura com um sentimento maior do que o de ter compreendido a guerra civil americana: o sentimento de ter a presenciado!
Claro, esse testemunho só se cumpre no sentimento, um filme é um filme e mesmo o espectador mais emotivo não se esquece disso. O que acontece, é que algumas obras preferem esconder essa qualidade intrínseca de "ser filme", na hora de se criar a história de luz e movimento. Apenas um modo de se filmar, aliás, gerar, através deste mesmo estilo, uma alienação, depende de uma combinação específica: o discurso mal caráter (o que pode não ter nada a ver com qualquer tipo de intenção do diretor em si, o que conta é o resultado final a despeito de qualquer boa ou má intenção) e o espectador mal formado. Combinação que também pode muito bem ocorrer com obras que desde seus primeiros frames já revelam a mão de seu autor, mas, aqui, através da fascinação de um insistente discurso direto que para cada evento mostrado tece uma análise pronta, engessando um modo de pensar. Males griffithianos, males eiseinsteinianos...
Dito isto, é importante notar como Meirelles, no auge das poucas qualidades do filme, mantém total consciência da característica "fatídica" de sua obra, esta, que nem mesmo rostos conhecidos podem pausar, pelo contrário, servem de material para o processo de exatidão. Assim, dessa condição consciente, surge toda uma reiteração documental da câmera que dá zooms, treme e filme pelas metades, como se seu cinegrafista espiasse tudo escondido. Aí está a potência da realidade construída pelo filme, ele transforma um evento fatídico em uma narrativa de olhares oniscientes, torna público os bastidores papais com total ciência da credibilidade de seu ineditismo.
Certo, e para qual finalidade se reconstrói todo esse evento em filme?
Bem, primeiramente, diria que a pura arbitrariedade de se querer filmar qualquer evento já pode ser motivo suficiente, sendo importante notar que, mesmo sem motivos outros, isto já implicaria num discurso e numa parcialidade, por mais que a obra portasse o maior dos classicismos. Entretanto, esse tipo de arbitrariedade citada com certeza não cabe aqui. Seu intuito é descarado: ele se propõe a humanizar símbolos.
A partir daqui há uma pergunta mais difícil a ser feita: essa humanização desemboca em propaganda? Ou melhor, essa desconstrução de símbolos se relaciona com o discurso fílmico ignóbil que citei?
Sem dúvidas são questionamentos essenciais para se pensar sobre o filme, porém, suas conclusões culminam em valores éticos que, felizmente ou não, independem de seus valores artísticos, além do mais: o travelling é moral, não ético. A qualidade de um filme não depende de seu tema ou de sua visão de mundo, por mais abjeta que essa seja. Entretanto, pelo contrário, a força dessa moral, dessa visão de mundo, se faz justamente pela sua qualidade artística, pois depende dos aparatos cinematográficos para se consolidar e criar qualquer tipo de potência. Logo, se o valor de um filme não se dá por qual é sua moral, definitivamente se dá por como ele a constrói.
Aqui, todo seu projeto de humanização que acarreta numa "construção de personagens" se utiliza muito de uma comédia não muito dosada. Sempre é engraçado ver as piadas e banalidades dos personagens, mas a consecutividade das gags quase cartuniza os dois, transborda o tom fazendo este apelo banal soar forçado.
Por outro lado, todos os diálogos burocráticos, teológicos e memoriais que fluem através de um dos processos de exatidão, a torre de babel do filme (é uma coprodução de 3 países onde muitos idiomas são falados ao longo da história, um esforço de verossimilhança), pertencem a este respaldo "fatídico" e os humaniza muito mais do que todas as gags, pois quando ouvimos os argumentos de discordância de ambos, por exemplo, sobre a homossexualidade, o filme não abre, a partir daí, reflexão sobre a pauta, ele só se utiliza da situação para explicitar duas vertentes, a conservadora e a progressista, dicotomia deveras humana se enfiando no hall das santidades. Um ponto do filme que acaba por fecundar essa propaganda papal quase que naturalmente, de modo secundário, sem mãos arbitrárias, prestando muito mais atenção em quem diz do que no que se diz.
Contudo, a despeito dessa complexidade no jogo de diálogos, não demora para o filme querer fragilizar Ratzinger perante Bergoglio, criar princípios maniqueístas que fogem dessa proposta humanizador, aí sim parecendo propaganda barata, principalmente através de seus flashbacks horrendos, piegas, destoantes e gratuitos (parecem pertencer a outro filme, como se Meirelles só tivesse interrompido as informações vindas de diálogos, uma característica mãe do filme, por ter a possibilidade orçamentária de construir cenários de época, pura ostentação) que tomam de vez um partido na história, escolhe o time argentino, o "papa do bem", para preconizar, muito além de só preferir.
O que é curioso, pois os flashbacks ornamentais do diretor interrompem justamente a guinada contrária que o filme daria, quando Ratzinger informa o então cardeal argentino sobre suas pretensões com o cargo. É justamente ali que ambos começam inverter posições, um aderindo ao renunciamento e o outro não, mostrando posições conservadoras e progressistas de modo contrário. Só que a troca não é verdadeiramente concretizada, no lugar disso, e dali pro resto do filme, é posto todo o panfleto e admiração diante de tudo sobre o papa atual, seus feitos e ideais. É quando a obra escolhe definir seu time que ela trai seu projeto de desalegorização, até então complexo. O flashback meloso que de repente pausa a informação sobre a vida do jovem Bergoglio para mostrar uma fronteira pichada com frases de amor, o maior exemplo disso.
Enfim, se o filme panfleta algo não parece ser importante, já que ele o faz da mesma forma que um comercial de algum político no meio do povo, comendo pastel e segurando bebês. Paradoxal, toda sua capacidade de preconizar o papa só é potente quando é justamente mais secundária e preocupada no seu cálculo de verossimilhança, quando seus esforços artísticos estão preocupados em sua construção, nesse caso, nos seus alicerces clássicos.
Midsommar: O Mal Não Espera a Noite
3.6 2,8K Assista AgoraSe o início da obra me cativou bastante, foi por ter me mostrado uma das cenas de suicídio mais horripilantes que já vi. E através deste momento tão gráfico, tão intenso, Ari Aster transforma os poucos minutos de primeiro ato num terror interpessoal, todo germinado pelo drama do luto e seu corolário (continuar vivendo, interagindo com os outros). Um tom específico que o diretor executou nos melhores momento de seu filme anterior e já fazia desde seu curta. É no meio deste tom que, ao contrário do que em muito rotularam o filme, todas as firulas e complexidades estéticas não resultam em puro virtuosismo, pois cada cor ou movimento extravagante externa aquele terror tão subjetivo e incubado na protagonista.
Entretanto, esse segmento parece um detalhe esquecível, perante o todo que a obra é de verdade. Seus primeiros segundos já anunciavam a verdadeira intenção, com o "tríptico" auto-referencial, sobre todo o porvir. Ou seja, a possibilidade de se ter um universo, uma religião, uma comunidade, e, principalmente, uma iconografia própria.
É aí que se mantém todos os objetivos do filme, num figurativismo, numa originalidade, mas se nada a partir daí funciona é por bons motivos.
Primeiro: porque o ritmo começa declinar graças a uma auto-indulgência.
A partir da chegada à comunidade pagã não há mais nenhum interesse em continuar com a atmosfera enervante proposta. Só há uma falsa confiança (que melhor podia ser explicada como desleixo) na "originalidade". Nisso, o diretor não tem nenhum pudor em mostrar cada evento, cada ritual, no seu tempo integral, independente da ausência de um clímax, de uma informação ou da continuidade de uma atmosfera, como se apenas contemplar a iconografia bastasse.
Depois: porque não demora para o terror buscar respaldo em apelos.
Como disse, a confiança do realizador nessa autossuficiência da pura contemplação do universo pagão é falsa. Isso se mostra quando a estrutura da obra se baseia em intercalar os momentos ritualísticos com algum gore brusco. Passa-se grande tempo apenas contemplando a cultura pagã e de repente algum sangue voa na tela. Um recurso desesperado em busca do horror, prova da atmosfera desgastada.
Finalmente: porque há toda uma tentativa falha de buscar um tom absurdo do seu filme referencial: O Homem de Palha.
O que quero dizer com absurdo é sobre a junção do estranho e do ridículo para desembocar no aterrorizante. Uma tonalidade bem difícil no cinema, que falha miseravelmente pra Aster. Pois, se no filme referencial até os momentos mais cômicos, como seus musicais, estavam canalizados em se criar uma religião diametralmente oposta à moralidade cristã, aqui, a estranheza e o exotismo são apenas risíveis. Falta canalizar a intenção, achar por qual caminho esse estranhamento quer atingir. Por exemplo, em certa hora descobre-se que um deficiente quem escreve as "escrituras sagradas", mas tal informação é dada de supetão, de modo improvisado (só havia aparecido um único plano, curto, com foco no personagem até então) e cria um fato apenas engraçado. O mesmo com uma cena de sexo em coro e numa outra com uma fantasia a la Nicolas Cage.
Ingrata surpresa ver um filme que tinha me cativado tanto em seu início tomar um rumo infeliz. Pior ainda perceber como esta era sua intenção desde o princípio
Sete Psicopatas e um Shih Tzu
3.4 600É uma daquelas obras metalinguísticas que talvez devam ser usadas de contraexemplo, para se entender como nem toda história sobre a história vira um 8½. Todavia, o resultado é paradoxal: é a pior obra de Martin McDonagh, mas a que mais representa seu autor na tela.
Todo o fracasso do filme é, ironicamente, bem autoconsciente. Seu diretor estava numa etapa de transição, querendo pensar em filmes como Três Anúncios Para Um Crime, mas ainda preso em Na Mira do Chefe. É dessa jornada de transição, de um espetacularismo cômico para um drama meditativo, que surge a anomalia que é Sete Psicopatas e Um Shitzu, um autor que quer conciliar seus polos criativos neste meio termo absoluto, que quer fazer um filme de sete psicopatas, mas, ao mesmo tempo, quer que seja um filme sobre otimismo.
O resultado, infelizmente, é muito mais uma glossolalia do que qualquer autocrítica, se torna um quebra-cabeça megalomaníaco, muito mais lógico para o autor que para o espectador. Uma junção a todo custo de seus fantasmas, seus mafiosos, o humor negro, os plot twists, somados ao discurso meditativo, à jornada de redenção e toda a parte que quer se fazer "séria".
Uma pena, pois, no final, soa como se seu diretor tivesse lapidado apenas os elementos que já usara no seu filme anterior. Ele junta toda as histórias estapafúrdias de seus assassinos muito habilmente com seu tom cômico único e reviravoltas bem particulares, o que, funciona justamente por como a metalinguagem estava sendo utilizada até então, para assumir o estapafúrdio da narrativa, sobre uma história de psicopatas que necessita criar um bom roteiro de psicopatas a qualquer custo. É assumindo a qualidade absurda da narrativa que ele se aproveita do omelete incongruente de personagens.
Disso, gera-se uma comédia que continua funcionando mesmo quando o filme começa a falhar, a virar auto-indulgência. Mas que, talvez por isso, decepciona mais ainda, por acabar subjugando suas qualidades nesse projeto esquizofrênico de expurgação. A cena pós-créditos é o melhor exemplo do que digo: era uma ótima sacada, uma piada ressurgida justamente no momento que ela se referia (os créditos), mas o diretor a desmonta de sua qualidade de gag em prol de toda uma "mensagem séria", desfaz o que funciona em prol de seu projeto pessoal.
Puro egoísmo catártico, mesmo que autoconsciente.
Longa Jornada Noite Adentro
3.6 63 Assista AgoraSoa como uma duplicata chamativa de um Lynch. Não apenas por ser onírico, mas por tentar seguir a especificidade da obra do americano. A cena de um criminoso dublando uma música, a la Veludo Azul, parece a insinuação direta a esta influência. Entretanto, finalmente, a obra é apenas um pastiche.
Em sua primeira metade, até há bons resultados com toda a trama enigmática construída em cima de um pseudo noir. Mesmo com a tautologia da "estética surreal", de verdes berrantes e contemplações infinitas. Mesmo com a grande exposição da sua condição de filme-sonho. Pois a elipse dos eventos, as informações não ditas, através de sua não-linearidade, que tornam tudo digno desse fantástico tão almejado. O continuar procurando algo nebuloso (muito mais para o espectador que para o protagonista), tornando palpável a dúvida sobre a figura feminina dada a confusão.
Só que logo tudo piora, o "mistério onírico" abandona sua qualidade detetivesca para se assumir de vez como sonho. É quando a obra começa seguir de vez um princípio Lynchiano (além do pseudo noir): o sonho como um universo paralelo e reverso da realidade. Porém, executando a idéia do modo mais formulaico e desinteressante possível, principalmente se comparado a um Mulholland Drive, o melhor uso do conceito.
O diretor subjuga e transforma toda a primeira metade em pura informação para criar conexõezinhas com a segunda parte do filme. A água vira fogo, o verde vira vermelho, ideias mencionadas se concretizam, nomes viram e reviram de lugar. Nada mais que a velha dança das cadeiras da concepção citada, mas que se torna desgastada justamente pela ordem das coisas, por transformar todo um sonho em puro cálculo de autorreferências, bem cínico.
Claro, tudo isso é acompanhado pelo chamariz do longuíssimo plano-sequência que em muito tornou o filme mais popular. Mas ainda bem que exibicionismo nunca extrairá qualquer filosofia de obras tão insossas.
Jojo Rabbit
4.2 1,6K Assista AgoraJojo Rabbit é como um livro de auto-ajuda de 50 páginas endereçado para aqueles que sofreram com o nazismo, ou seja, uma besteira.
Logo de cara, no seu primeiro seguimento, me preocupei com a forma que o discurso estava sendo levado, se, talvez, levar toda a situação sob um humor infantil apenas dourava a pílula sobre os problemas do nazismo e afastava qualquer reflexão inteligente. Pelo contrário, a primeira sequência do filme é a única coisa que ele possui de interessante. É quando se usa do humor infantil para representar uma alienação e até chegar numa espécie de humor negro, pois todas atrocidades (de queimar livros a treinar crianças com bombas) estão ali.
O ruim mesmo está no desinteresse ou pura falta de coragem desse tipo de humor pro resto do filme, que, posteriormente, só aparece difusamente com o Hitler que nunca nega um cigarro a alguém. O real problema é que Waititi parece ter algum parentesco com os mesmos criadores de "por que as nações não param de guerrear e viram amigas?", ou ainda, " por que não paramos com o racismo e percebemos que somos todos seres humanos?".
No mundo do diretor há 3 tipos de pessoas: os idiotas, os que não são nazistas e as crianças. E nesse caso, todo humor só serve para isso, mostrar como nazistas são idiotas, como o Sam Rockwell caolho tem sua pose facilmente desmontada pela Scarlet Johansson revolucionária ou como as frases de efeito sobre amor (também de Johansson) nos fazem perceber como somos todos iguais. Mesmo toda espécie de complexidade moral na figura de Rockwell é muito mais em prol de uma dramaticidade para o casal protagonista em vez de um real interesse em seu particular uso da ética.
Pura simploriedade que escolhe pasteurizar a densa problemática do nazismo através da trama de amizade infantil. Basta acreditar que o separatismo é algo inventado pelos adultos para todos horrores da guerra sumirem. De resto, a miséria se faz por gags, os tiroteios por câmeras lentas, e momentos fúnebres por elipses de sapatos que substituem rostos (o momento mais simbólico de como Waititi esconde a abjeção da guerra pra debaixo do tapete).
Finalmente, após todas suas tolices, a comemoração das crianças (e do filme), perante um fim de guerra, me faz concluir que Taika deveria ter visto um certo filme do Rossellini antes de realizar o seu.
Joias Brutas
3.7 1,1K Assista AgoraSe em Heaven Knows What há a energia de um consumo, prazer e risco extremados, advindos de seus personagens jovens marginalizados, se em Good Time há a frenesi da pressão do tempo que desemboca numa espécie de alegoria do escambo (sobre trocas infinitas que nunca conseguem resolver a intenção inicial), e se, agora, em Uncut Gems há todo um conflito entre apostas e o fluxo do dinheiro, um paradoxo de se endividar para conseguir lucro, é apenas por um bom e único motivo: Os Irmãos Safdie são os diretores mais empenhados em capturar formalmente a energia de seu tempo, nada mais que estetas jornalistas.
Toda uma maneira de se fazer filmes que flerta com o cinema de fluxo, mas que só se define como tal no primeiro longa citado. De resto, a narrativa não se dilui, pelo contrário, ela ganha tanta importância quanto todos os procedimentos da mise en scène, é o caso do complexo roteiro em forma de cascata de Good Time ou mesmo aqui. A câmera frenética ganha todo um papel de acompanhar um conteúdo igualmente alvoroçado (não é mais tempo de negligenciar a trama para presenciar as tentativas falhas de se colocar uma linha na agulha), o que beira a excelência com Pattinson, mas nem tanto com Sandler.
A lógica do universo de Howard é regida tal como a bolsa de valores, não só graças ao neon, à trilha sintetizada, aos enquadramentos sujos/fragmentários e ao seu ritmo, mas, também, pelo que há de mais objetivo na trama, a loja de jóias do protagonista. Ali, no coração da ostentação, que toda essa temática de rapidez e virtualização também se faz presente, quando a problemática dessa flutuação do dinheiro urge no questionamento, "ter uma jóia de 1 milhão de dólares significa que tenho 1 milhão de dólares?", e se conclui na resposta, "você só tem 1 milhão de dólares caso alguém a compre por 1 milhão de dólares".
Disso, dá pra se considerar um certo didatismo, aliás, o tema é mais direto do que nunca. O que continua no modo explícito que o filme divide os momentos pessoais e profissionais de Ratner, uma exposição, agora, meio incômoda, com fim de se perceber as complicações desse ritmo profissional em seu âmbito pessoal. Sobre como ele lida com a tentativa de retomar com a esposa tal qual uma especulação de aposta, a de que já conseguiu se livrar de sua amante.
Acontece que se for para defender uma distanciação dos Irmãos Safdie da estética de fluxo, talvez, Uncut Gems seja o melhor indício. Isso, graças à todas essas cenas familiares citadas, que fazem surgir uma pausa, cada vez maior, em todo esse deslizamento de energias inquietas, sendo a reunião judaica o maior exemplo.
O que resulta numa pressão bem inconstante de toda essa dívida que persegue o protagonista, hora parece um perigo de morte, hora algo que só causará uns machucados. E, por consequência, começa-se a induzir diversos novos gatilhos na narrativa para tentar retornar ao tal frenesi. Começa pelo leilão, mas culmina (aí sim de modo ruim) na última sequência, que está muito mais interessada em criar uma nova situaçãozinha de correria do que em se prender a decisão amalucada do protagonista, mais interessada em ver o tempo do jogo correr paralelamente as escolhas de Julia em vez de estudar Howard Ratner. Soa como uma indução gratuita.
Por outro lado, uma boa novidade dos autores está no tom dado pela figura principal, como se o Adam Sandler já carregasse uma presença de personagem só por ser quem é. Ele dá vida a uma figura caricata, rocambolesca, o que, positivamente, dá todo um tom cômico para a situação presenciada, ressaltando o absurdo do ritmo atropelado.
Parece certo concluir que a trajetória dos Safdie está passando por uma "desformalização" de seus temas, tornando cada vez mais direta essa captura do contemporâneo. O que não é necessariamente ruim, visto que Uncut Gems, querendo ou não, possui uma força, uma pulsação, muitíssimo autêntica, um dos melhores retratos estéticos de seu tempo, mesmo que um retrato de potência menor do que outros que seus realizadores já mostraram.
O Parque Macabro
3.8 142 Assista AgoraUm dos corações da obra, o mesmo motivo que divide aqueles que gostaram ou desgostaram, está todo presente nos seus elementos de filme B que, aqui, realmente carregam os estereótipos que costumam circundar esses longas (indevidamente, na maioria dos casos), isso é, acreditar que o baixo orçamento seja sinônimo de amadorismo e ineficácia. Uma característica de consequências bem paradoxais, pois, muitas vezes, os "erros" que acabam por corroborar com a estupenda atmosfera enigmática em torno da organista refém de forças irrefreáveis.
A montagem inapta, totalmente reversa a qualquer maestria, é um dos pontos que mais salta aos olhos. Seja na corrida de carros, que abre o filme de supetão, meio confusa e sem ritmo, fazendo uma bagunça aos intercalar planos internos e externos que vão pulando locações, ou mesmo nas continuidades falhas em momentos chaves, como quando vemos a protagonista tomar duas vezes o mesmo susto com a falsa aparição em seu quarto, o amadorismo é evidente. Todavia, aí reside a contradição, pois essa mesma montagem de momentos escabrosos é que vai proporcionar umas ousadias quase experimentais, muito competentes, em diversas de suas cenas oníricas.
Além disso, o mais curioso é como até suas falhas, por fim, transformam-se em benesses à experiência. Acontece que a força de um filme sempre está em seu todo, nunca em fragmentos, e cada cena com a montagem estranha, atuações meia boca (muitas vezes da própria protagonista) ou diálogos toscos, querendo ou não, traz um quê de bizarrice pra trama já muito insólita, solidifica os outros esforços de se construir o suspense enigmático. Por exemplo, na sequência literalmente onírica, em que Mary dorme ao volante, há um continuum de diversas ceninhas disfuncionais, mas, ao final, não importa muito se a "surpresa" no psicólogo é bem previsível, pois no instante seguinte, quando se deflagra o sonho, o que acabamos de presenciar foram diversas cenas descontínuas, estranhamente fantásticas. Todo um acréscimo à aura de "o que caralhos está acontecendo?".
Ao contrário do que possa parecer, o sucesso final da obra não se dá apenas por efeitos involuntários do diretor, o filme não depende do acaso das cenas meio mancas, elas apenas corroboram com o que já estava sendo feito. Se o acidente de carro possui imagens desastradas, a verdadeira abertura, com seus créditos e tudo o mais, é apresentada logo em seguida, com a enorme força da visão de um rio que parece querer irromper algum simbolismo na tela enquanto ouvimos a trilha composta pelo profundo som saído dos tubos de um órgão (sua melhor particularidade técnica). Daí, surge todo um empenho que orquestra mui bem toda a energia que o filme suspende, uma dualidade psíquica-metafísica.
Por um lado, permitindo-me o anacronismo, parece haver um esforço para o filme reprovar no teste de Bechdel, logo que, apesar do protagonismo feminino, todas figuras que rodeiam Mary são homens, desde o padre até a figura fantasmagórica (curiosamente interpretada pelo diretor), e mesmo quando há uma conversa com a dona do hotel elas se referem ao estranho vizinho. Uma proeminência da figura masculina que resulta em questionamentos psicossexuais entorno aos delírios então vistos, didaticamente exposto pelos dialógos com o psicólogo e corroborado com a estranha predileção à solidão da mulher. Por outro, além da incrível sequência de quase possessão que culmina na expulsão da igreja, toda uma sugestão evidente do pós-morte também a ronda, da trilha sonora citada às fixações da câmera nas pinturas sacras.
Entretanto, subjugar a atmosfera a essa dualidade de interpretações é algo simplório, existe uma densidade maior no mistério, uma aura mais hermética que torna uma besteira tentar reduzir objetivamente os acontecimentos à alguma interpretação (tolice que a própria sinopse do letterboxd faz). Aliás, o parque, o carnaval do título e, por fim, um incrível enquadramento final da incompreensão de dois homens, bem simbólico, solidificam o quão hermética é a assustadora atmosfera que presenciamos.
Redemoinho
3.5 30 Assista AgoraUm Villeuneuve iniciante (apesar de não ser seu primeiro longa) que, infelizmente, parece seguir o estereótipo máximo dos cineastas estreantes: dê a chance pra um novato contar sua visão de mundo e ele não vai mais calar a boca.
Ao contrário do que o primeiro intertítulo sugere, mencionando o "processo criativo do roteiro", sua história não é lá tão experimental assim. Na verdade, suas experimentações estão muito mais em toda forma de conta-la, toda uma miríade de diferentes resoluções imagéticas em prol de assinalar sua insistente visão de escárnio sobre a vida. O que, por si só, não é problemático, isso é, se seu discurso fosse bem montado.
Não é o caso. O diretor vai fundo nas liberdades da história, mas, desde o peixe narrador até as mil musiquinhas irônicas, o comentário é sempre o mesmo, a alegoria da vida humana igualada à dignidade das criaturas marinhas. Alegoria gritada, que quer se fazer perceber antes mesmo de estabelecer seu ponto na história, mostrar de onde ela surge. A criatura narradora é um bom exemplo, não basta sua inesperada apresentação como o dono da trama, há de se fazer com que ela apareça mais trocentas outras vezes para significar a mesmíssima coisa: a ironia da história "bela", "importante" e "essencial" para se entender a vida. Do que adianta tantas experimentações se todas são sinônimas?
Uma tautologia gigante que consegue levar a um patamar próprio de redundância o uso do leitmotiv, com os infinitos usos intercalados da água agitada que nomeia o filme. Tal como todo o resto da obra que nunca vai se cansar de enfiar em todas oportunidades possíveis a "simbologia inteligente" do mar e suas criaturas. Um grande assassínio da ideia da metáfora como uma sutileza de uma história.
História que nunca ganhou confiança pelas mãos do autor, nunca obteve importância genuína em presenciar os eventos da estranha derrocada daquela mulher. De um homem que morre num acidente se aproveita para colocar uma trilha que signifique o discurso e para se enfiar uma simbologia do mesmo. Uma importância somente aos eventos isolados da trama, fazendo com que cada um gere mais um pouco de seu comentário pessimista. A imagem do aborto, a imagem do assassinato, a imagem da tentativa de suicídio e assim por diante.
O que fica até meio destoante com o último segmento que quer, subitamente, transformar as coisas num "evento irônico do destino", prestar mais atenção na cadência dos eventos e presenciar essa ironia com piadas mais diretas na trama. Mas, mesmo que aí ele fique mais próximo de um acerto, estou convencido de que tal guinada só continua fazendo parte do tal "experimentalismo assumido", mais uma peça da sua pose de ousadia. Além do mais, a última cena, com o peixe que morre prestes a nos revelar o porquê da vida não possuir muita lógica, é o auge de toda essa constante de imaturidade discursiva.
Uma Mulher Delicada
3.9 17Lembro-me de certa vez ter lido um comentário negativo sobre You Were Never Really Here vindo de alguém que ficou muito descontente com suas cenas de tentativa de suicídio. O argumento era de que o filme romantizava o ato em questão e fazia isso devido a ausência da violência, recorrendo à elipses. O curioso do pensamento era como a autora usava de contraponto Sam Peckinpah, preconizando a ética de suas imagens por abrigarem uma violência visceral, pra ela, provavelmente, o horror em sua plenitude.
Disso, dá pra evidenciar uma falácia óbvia que o filme de Bresson consegue confrontar muito bem: a generalização involuntária de que toda elipse desemboca numa higienização. Realmente, há muitos exemplos monstruosos, até recentes, que confirmam parte da afirmação, porém, os grandes artistas sabem que uma elipse de pés mortos em Bresson é o antípoda dos pés mortos de um Jojo Rabbit.
Toda uma reflexão que me foi rememorada graças à particularidade da encenação bressoniana conseguir mostrar, especialmente aqui, a ascese como excelente par da tragédia. Novamente, não através da romantização, mas, em seu lugar, a crueza das ações dramáticas.
Particularidade dramatúrgica já mui ouvida por qualquer um que conheça, mesmo que pouco, o autor, mas que deve ter sua reflexão redobrada neste seu primeiro filme colorido, visto que (em mais de uma cena) o questionamento, ou ao menos a elucidação, do tal método idiossincrático, é invocado através dos contrastes das famosas atuações robóticas em torno aos intertextos da dramaturgia clássica, que se iniciam numa ida do casal ao cinema e percrustam mais fundo até a longa cena da peça de Shakespeare, esta última, com conclusão muito interessante, que justifica o devotamento da câmera sobre ela. É quando a mulher que nomeia a obra chega em casa descontente, pegando seu livro da peça, constatando que suprimiram uma passagem, aparentemente, essencial, a que Hamlet aconselha o ator, "sê moderado nos gestos, por que até mesmo na torrente e na tempestade, direi melhor, no turbilhão das paixões, você deve sempre manter a medida, e adquirir inclusive uma certa doçura".
Daí, desta "certa doçura", que está o trunfo de se lidar com essa história que já começa pela fatalidade, a objetivação incisiva do drama que culmina numa dose de desolação perante um relacionamento destinado a chafurdar. O que ocorre muito antes de um impactante plano final onde, simplesmente, se fecha um caixão. Um salto de cenas do apelo do protagonista ao pedido de casamento para o fim da cerimônia em si é um grande exemplo, é uma elipse que comumente seria usada para fins cômicos, mas, aqui, não é nada mais que o discorrer da história através deste efeito super redutor. Um afastamento radical do drama que evoca o paradoxo ao atrai-lo de volta.
Assim, cria-se aos poucos um discurso determinista muito coeso sobre o relacionamento, o casamento e o amor em si. Pode-se até argumentar que o estopim do declínio do casal se dá por uma diferença de classes ou por uma natural opressão masculina, mas, ao meu ver, tais ideias nunca sairão do campo das sugestões. Há, logo de início, um estranho flerte ou, sugestão de flerte, no cinema, sem explicação, em seguida, uma revolta com a condição de casal, expressa num inesperado abandono do buquê de flores e, até mesmo, um flagrante de traição onde, simplesmente, o marido tira sua mulher do outro e vai embora. É uma recusa de porquês que resulta numa pura presenciação da derrocada, não há o que se falar sobre as atitudes, só é possivel contemplar o declínio.
A narração expressa pelo marido é grande agente do tal determinismo em torno da história. É uma constante de explicações onde, obviamente, só se elucida a visão de um lado, só que isso não traz ironia ou absurdo numa espécie de jogo em que "ouvimos a mentira e vemos a verdade", o que acontece é que assistimos o vazio das motivações e escutamos a tentativa de preenche-lo. Aí que surge esse sentimento de irreversibilidade, através de toda uma condição de um relacionamento incomunicável que nunca deu chance do contrário, sendo a mise en scène reducionista chave mestra do processo, por, como já dito, nunca dar chance de aprofundar os porquês devido sua insistente objetivação das ações.
Por fim, é um retrato melancólico e determinante sobre relacionamento(s) que não quer se expressar como um épico poético, tal qual um Bergman iria esmiuçar com grandiloquência poucos anos depois. É muito mais que isso, é um haikai acachapante. Trágico e sábio.
Satyricon de Fellini
3.8 145 Assista AgoraÉ o exotismo extremo como força geradora, em via de engolir o espectador para seu universo localizado numa estranha intersecção da sociedade com a barbárie. Um esforço contínuo de transformar o vislumbre daquele épico bizarro num discorrer de baques, tal como o jovem romano que, da noite pro dia, acorda de sonhos amorosos descobrindo que virou um escravo.
“Este filme será uma ficção científica. Você está surpreso? Mas uma ficção científica pode se passar tanto no passado como no futuro". Assim que Fellini, numa de suas típicas descrições estranhas, denota seu filme, porém, aqui, ela é bem elucidativa. Uma "viagem" mesmo, nas suas diversas acepções, mas que tem seu ponto nevrálgico na "trip" sensorial, se aproveitando dos elementos específicos cinematográficos, isso é, a imagem, para criar seu jogo de fascínio e conflito. É onde tudo reluz, brilha, chama a atenção, mas, ao mesmo tempo, não te deixa processar muito bem o que se vê, devido sua inundação de elementos.
Sua mise en scène parte de tudo aquilo que é indigesto como engrenagem principal de seu mecanismo. Engrenagem presente nos cortes secos que trocam de sequência e, abruptamente, nos passam de um terremoto a uma galeria de arte, de um assassinato a uma luta contra o minotauro (sendo interessante pensar aqui que o diretor até utiliza fades em algumas passagens, mas os renega nas mudanças de capítulo). Presente na total dramatização de desconhecidos, que exalam urgência nos semblantes das crianças, aparentemente devido a troca de César, mas que nos põe no escuro, sem conhecer a real motivação, possivelmente política, por detrás daqueles personagens, sendo que até os créditos perpetuam o enigma, nomeando-os apenas como "suicidas". E, no que talvez mais chame a atenção, presente no hiperestilo de Fellini, que de sua possibilidade de enfiar mil figurantes, elefantes e pavões nos quadros, brinca com a capacidade de inundação, ocasionando uma overdose plástica ao espectador.
Daí, se mostra bem desonesto o usual rótulo de “A Doce Vida de sandálias” normalmente entregue à obra. Isso, porque, se desvinculando da racionalização do cinema moderno, do mundo discurso destes filmes, através do amontoado de incompreensões dadas, o filme segue por um caminho argumentativo (se é que pode ser chamado assim) totalmente diferente. É um flerte com o infraintelectual, a experiência urgindo pela sua condição básica de sensorialidade, usando toda aquela confecção extravagante para renegar uma retórica sobre o universo de decadência, apenas fazer com que o espectador experiencie, vivencie aquele quase mundo apocalíptico. A cena de ménage do filme é bem exemplificadora nesse ponto, há os dois jovens numa aventura casual com uma mulher estrangeira, em cima da cama a mulher seminua continua a falar em sua língua alienígena, assim como falava desde que conheceu os dois, é quando Encolpio e Ascilto se olham e começam a se acariciar. Pouco importa compreender a linguagem, o importante da cena é o sexo, o gozo, a imersão do sentir.
Então, tendo toda esta força lisérgica do filme em mente, poderíamos dizer que Satyricon possui certa relação com um cinema contemporâneo, de suspensão atmosférica e negação retórica?
Bem, na verdade não, pois há uma característica essencial para que aquela chuva plástica do filme funcione: seu alicerce é a falsidade assumida. Talvez um paradoxo, entretanto, o que permite que o diretor consiga fazer pulsar seu insólito universo é seguir a mesma máxima de um Godard, sobre a violência de Weekend, "é tudo tinta vermelha". É a mesma tônica de opacidade do mestre francês, aqui, através dos esticamentos da já artificial dublagem italiana, dos rostos romanos indiscriminadamente pintados de azul e verde, de um Encolpio, bem teatral, que se prosta como uma estátua expressando seu desolamento, apenas para posar pro enquadramento.
Uma necessidade de consciência, anterior ao núcleo psicodélico da sua mise en scène que implica em dois elementos cruciais.
O primeiro, a concessão para Fellini transformar o filme no seu pináculo de estilo. Ele começa por usufruir dessa necessidade de overdose (que faz com que ele triplique seu estilo já extravagante) e termina sem fazer com que o mundo de figurinos bizarros soem ridículos, afinal, eles nasceram pra serem escrotos, extravagantes ante a qualquer figurativismo. A autenticidade do universo jamais é ameaçada por já ter surgido sem a preocupação de ser imagem e semelhança da Roma de Nero. O segundo é que através dessa despreocupação, desse não figurativismo, que o diretor mantém uma relação direta com aquele mundo. Aliás, se tudo é inegavelmente regado de autorismo é porque tudo o que vislumbramos sempre foi UMA Roma Antiga em vez de A Roma Antiga, nada mais que a paisagem que o italiano entreviu perante o universo de Petrônio.
Assim sendo, o estranho caminho argumentativo que o filme faz se consolida, principalmente, pela experiência de hipnose ter sido confeccionada a partir de um olhar específico, logo, se surge alguma dor de retorno à consciência durante a projeção ela se realiza pelas conexões com o mundo real, quando conseguimos enxergar romanos canibais no asfalto das cidades. O que, certamente, não é nada difícil, principalmente para os espectadores de 60, ademais, não coincidentemente, Satyricon compartilhou seu ano de lançamento com o famoso festival de Woodstock. Vivemos aquele mundo e entendemos seus horrores, comparamos com nossas experiências e o apreendemos.
E mesmo que até a identificação do discurso seja um pouco mais obnubilada, até por ele se realizar de forma muitíssimo direta, na presenciação em si do tal mundo e nem tanto por argumentos colocados, as últimas imagens da obra talvez sejam o único lugar que encontremos um estado sóbrio. Um belíssimo chamamento à consciência que encerra a jornada lisérgica constatando o destino atual de todas aquelas figuras marcianas na contemporaneidade: apenas fragmentos de afrescos outrora vivos.
É um filme muito singular que me trouxe a escrever devido oportunidade de reassisti-lo na tela do cinema. O curioso é que dessa terceira experiência com a projeção percebi como sinto certa inveja de certos espectadores. É verdade, assistir Satyricon numa sala de cinema, por si só, já é incrível, é quando toda a capacidade de hipnose se intensifica pela sala escura e o imperativo da tela e do som. Entretanto, sortudos mesmo são aqueles que têm a oportunidade de assistir pela primeira vez.
Almas Desesperadas
3.7 64É uma trama de intenções inegavelmente corajosas, transformar o típico filme de romance entre desconhecidos num horror psicológico. Mas todo o potencial da premissa, infelizmente, desemboca em pura confusão, desarmonia e até mesmo hipocrisia, considerando que seu diretor não sabe se quer extrair um psicodrama, um thriller hitchcockiano ou um romance moralista.
A figura da Marilyn Monroe vinculada a esse prototerror, por si só, já é um grande trunfo à obra. Aliás, nela que está contido este potencial de subversão do tom. É o choque de ver aqueles primeiros planos da loira de olhos brilhantes e feições humildes se tornarem a personificação da psicose. Porém, desse princípio nuclear que dá para começar a enxergar as disfunções de seu autor, logo que, antes mesmo da sua salada de tons, um dos seus primeiros pecados é não se aperceber de seu trunfo, desprotagonizar sua estrela fazendo-a dividir importância com aqueles que descentralizam o tal tom sombrio.
Uma falta básica de concisão, de manter a lente da câmera naquilo que há de mais importante (ou melhor, enxugar os momentos que a câmera não faz isso) que, consequentemente, custam para a experiência. Aliás, para além de decidir se uma montagem alternada com fins de tensão é adequada para sua estória, é estritamente necessário que se saiba fazer tal montagem. Coisa dos primórdios do cinema, que Griffith usava e abusava, mas que, aqui, Baker se atrapalha todo, não conseguindo se ater ao essencial, no caso, a vítima e seu salvador (isso é, a filha amarrada em perigo e a mãe impossibilitada de subir ao apartamento por causa de um cachorro), ele adiciona mais outros núcleos (a telefonista e o casal) para correrem junto, estraga o simples.
É um exemplo micro, mas que sintetiza muito bem toda essa desorientação rítmica que acaba trazendo conflitos de coesão para a mise en scène.
Tal como Nell, que possui cicatrizes reveladoras em seus pulsos, mas, a partir daí, como isso deve ser encarado? Através da análise absurda da câmera que anuncia o detalhe de antemão? Através da surpresa no meio de uma discussão? Ou através do olhar do homem cínico que "deve aprender a ter empatia"? Bem, o filme escolhe o omelete...
Incongruência fatal, até mesmo se víssemos o casal em via de se separar como coração da obra, pois, hipocritamente, seu discurso de apelo a empatia logo se vira contra ele mesmo e demonstra a inutilidade de tantas imagens que aprofundam o "galã cínico". Hipocrisia de construção mesmo que, num primeiro momento, chora de empatia pela mulher desatinada para, no instante seguinte, sorrir pelo casal ter apreendido a lição as custas da outra. Claro, desconsiderando toda metamorfose de tons que poucos minutos antes se divertia com o espetacularismo que o horror gerava.
Não é impossível fazer um bom omelete de tons, toda uma história do cinema, anterior a própria Marilyn Monroe (Murnau, Ford, Renoir...), provam bem o ponto. O ruim mesmo é quando isso ocorre de forma involuntária, escapando das mãos de seu autor e negando seus melhores dotes.
E Sua Mãe Também
4.0 519Ao contrário de toda uma futura produção de formas exacerbadas e sofisticadas que a dupla Cuarón-Lubezki ainda ficaria conhecida, Y Tu Mamá También tem como alma o obsceno, a câmera de mão e os seios à mostra.
Imagens viscerais que, inesperadamente, querem falar justamente daquilo que seu amontoado de sexo rouba a atenção. Um pseudoroad movie adolescente que tem como maior intuito olhar para aquilo que não é protagonizado, contrapor os viajantes com os figurantes da estrada. Daí, se cria uma trama alegórica: os playboys motoristas que têm sua aventura sexual por cima de um povo que está sempre do outro lado do para-brisa. Uma premissa interessantíssima que certamente não é executada de modo lá tão sutil, porém, quando é, consegue usar de sua futilidade matriz para criar contrastes potentes. E desses mesmos momentos, de grosseria e delicadeza, todos embutidos nessa viagem alegórica, que se encontra as maiores afasias e eloquências do discurso.
Dos seus malogros, com certeza, temos a narração como uma grande baixa, o que, de forma alguma, ocorre por qualquer função do áudio como portador da estória, na verdade, o maior problema está em designar esse texto direto como mecanismo principal do discurso. É a fala de seu autor dirigida unilateralmente para o espectador, criando uma dialética fácil, senão preguiçosa, ao abolir o jogo de contrastes imagéticos para superdramatizar os acontecimentos através da onisciência do diretor e da voz monotônica do ator, vomitar argumentos sobre a tela.
O que possui uma posição ainda pior ao considerarmos que esse “viés literário” se justifica justamente pela brecha de um protagonista que almeja fazer literatura, “contar histórias de meninos ricos”, como ironiza seu primo. A obra por si só já conta uma estória de meninos ricos, entretanto, a locução também estaria na posição de Tenoch, isso é, narrando um status que ela pertence? Parece que sim, quando o texto faz questão de higienizar os eventos, abdicando da vulgaridade das palavras que tanto ouvimos de seus personagens e, ao mesmo tempo, sendo mais que direto sobre sua moral. Soa como uma tentativa manca de se colocar nessa condição de “literatura”, nada mais do que um tiro no próprio pé, logo que, ao introjetar uma retórica sofisticada, excluindo a vulgaridade nuclear da história, acaba por vulgarizar o discurso da narração em si.
Todavia, felizmente, seus sucessos são bem maiores que sua gagueira e, ao contrário do que se possa pensar, não me refiro a esse jogo de imagens do povo marginalizado que rodeia o ménage. São cenas que realmente tem momentos ilustres, tendo o plano do sossegado pé feminino sobre o painel do carro em seu auge, mas que não tardam a se tornarem tautológicas, esgotando a inventividade e, lamentavelmente, deixando a narração ocupar esse papel. O verdadeiro pináculo do discurso está no trio em si, no lento desvelamento desse prefixo de falsidade que acoberta o “filme adolescente” e que progride até sua admirável conclusão.
O que ocorre é uma genuína implosão dessa aventura hedônica. Se a narração falha em sustentar seu problema social, tentando chocar quando conta os meandros das vidas alheias à trama, as imagens têm sucesso dobrado levando os impulsos dos seus jovens às últimas consequências por meio da figura de outsider que é Luisa, são essas pulsões sexuais dos dois jovens esticadas ao limite, trazendo ao palco toda a relação egoísta e imatura implícita por ali. Uma continuidade dessa obscenidade mesma, tão base da experiência, como revelar os assuntos que um aliena para o outro (tal como, num dos poucos bons momentos da locução, sabemos o que os jovens fazem escondido no banheiro um do outro), tendo seu ápice no beijo gay de sentido quase canibalesco de tão egóico, a reiteração do insulto da mulher mais velha, sobre eles serem apenas "cães que gostariam de foder um ao outro”.
Logo, dada a revelação máxima, o tal plot twist, a aventura acaba por revelar mais sobre si mesma do que sobre Luisa. É quando se assume que aquela jornada de desvelamento foi apenas uma exceção possibilitada pela condição terminal da mulher. Agora, apenas um sonho longínquo que urge por certas dores de consciência ao ser lembrado. É dessa condição que se retorna ao processo de recalque, uma volta ao natural estado de melancolia e estagnação da vida dos "meninos ricos". Não existe mais a possibilidade das verdades do mundo afora ou das verdades que residem no âmago de seus corpos, o que resta é o insosso encontro formal dos dois, apenas olhares apáticos em torno a um cafézinho aceito por educação.
Uma obra que inegavelmente acomete deslizes, mas logra a potência embrionária da premissa ao retornar e reforçar as bases de sua mise en scène: a pornografia.
Cupido Não Tem Bandeira
4.0 56Com ímpetos desafiadores, a obra tem como base o uso direto dos símbolos de sua contemporaneidade, ou seja, começar com o retrato de Fidel Castro e terminar com a “Pepsi-Cola”, partindo disto para tentar conquistar o ineditismo através desses símbolos quase agressivos de tão despudorados. Uma ousadia que inevitavelmente se torna chamativa, aliás, ela materializa a Coca-Cola lutando contra a foice e o martelo em sua tela! Entretanto, de todo o espetáculo circense de Wilder, cabe ao espectador distinguir a eficácia do discurso, o que, por sua vez, independe de chamarizes.
Dito isso, devo assumir que possuo uma relação bem ambígua com o longa. Por um lado, o diretor acha o par romântico perfeito dessa inundação de bandeiras, marcas e logos através de seu passado, a herança da comédia screwball que ele já realizou bastante. Por outro, quando ele deixa de falar das intersecções e cai num jogo de demarcar as polaridades, satirizando primeiro X pra depois satirizar Y e vice-versa, sua experiência torna-se mais simplória e expõe fragilidades absurdas. E digo “absurdas” não por serem defeitos exagerados, mas por alcançarem uns feitos excepcionais de tão irônicos, aliás, me parece a única obra do mundo que consegue transformar o fato do James Cagney ser um puta ator numa característica negativa.
O que tão somente pode acontecer quando o autor adota essa postura esquemática no discurso, começar pelo desfile comunista, passar para o polo da Coca-Cola, seguir para o trio Russo etc. É um sistema que implica num olhar imparcial (que obviamente não existe), mas, pior que isso, cria um compromisso implícito de equilibrar a sátira para os dois times da Guerra Fria. Daí a figura do Cagney simplesmente arruína tudo. É só comparar como nesse toma lá dá cá do discurso o ator que antagoniza a figura ilustre do protagonista americano capitalista (que de forma inteligente e sutil rememora o seu premiado papel de propaganda americana) é um ator bem menos conhecido como Horst Buchholz (que tinha acabado de começar seu período de fama em Hollywood no ano anterior com The Magnificent Seven), ou como o contraste perante as gags inteligentes, que conotam uma analogia entre um empresário poderoso e Hitler, fica incubido à piada excessiva que não basta acabar no policial socialista que vai “confiscar” o fardo de Coca, mas necessita que a câmera ainda o veja bebendo o líquido e devolvendo as garrafas para MacNamara mais tarde. Nada mais que outro absurdo, pois, justamente, ao realizar uma crítica mais sofisticada ao país que pertence que a obra acaba complexificando o lado da Coca-Cola e reduzindo o lado Bolchevique, as sutilezas em torno de MacNamara versus o estereótipo da menina rica e burra que solta disparates sobre o pessoal do Sputnik. Do modo mais nítido e óbvio possível, o que acontece é que o realizador parece não largar o osso de todo seu passado de filmes com uma jornada dramática, de um nome e um olhar para protagonizar uma história e através do drama desse empresário, entre o refrigerante e a família, que o discurso dualista se mostra disforme.
Só que não dá pra sair chamando o filme de ruim. Não mesmo, e tá aí a ambiguidade, porque desse mesmo pendor à suas obras passadas que o Wilder vai conseguir alcançar momentos áureos, metamorfoseando sua posição discursiva para a do sádico que visita o manicômio. Esse retorno a um certo gosto pelo caos que está todo presente na confecção de uma comédia screwball ou mesmo de um nonsense. É o momento que ele revela a demência de seu tempo, quando aquele amontoado de símbolos não significa mais nada, são impossíveis de se acompanhar, a hiper-racionalização que entrou em parafuso e encontrou a esquizofrenia. Daí a mise en scène encontra sua genuinidade e eleva ao limite as cenas, suprime os espaços de transições (não há mais tempo de refletir), adere a loucura e fabrica uma sequência de quase 40 minutos!
E até poderia se argumentar que nesse gosto pela balbúrdia o diretor ainda se apoiaria numa pretensa imparcialidade, mas estou longe de concordar com isso. O imparcial busca a justiça utópica, a “equidade mais que necessária”. O caótico busca a histeria do riso, sobreviver ao dilúvio para boiar pelas ruínas escrevendo anedotas ácidas sobre o que restou.
Quando ouvir a língua alemã remete instantaneamente ao comunismo, ao capitalismo ou, antes de tudo isso, ao nazismo. Quando no Oriente do Ocidente se encontra a ideologia de esquerda espalhada pelo canto direito do mapa. Quando o discurso do jovem Abraham Lincoln se confunde com o de um jovem metido a Bolchevique. Quando todos os símbolos de todas as ideologias e de todas as famílias podem ser custeados pelo símbolo do dólar. Quando as imagens enlouquecem a ponto de começarem a brincar com fogo, enquanto dançam em cima da mesa do hotel comunista... aí Billy Wilder pode adentrar na orgia e encontrar os melhores momentos de seu filme. Do contrário, quando ele não acha estes momentos, ele só se parece com um esboço do filme que o Kubrick faria poucos anos depois.
O Selvagem
3.7 93 Assista AgoraLászló Benedek confeccionou algo maravilhoso: o nascimento e o sepultamento de um novo gênero em uma obra só. O filme da tribo de motocicletas que, através da nova moda anárquica juvenil, desvela certos medos e segredos da sociedade de sua época. Certamente, um tipo de imagem que se arrastou bastante no cinema, mas ao contrário de um Mad Max, aqui, não há a deformação e o exagero, há a limpidez de um sentimento, a filmagem de um Zeitgeist que se transformou em gestos e máquinas. O zênite e o ocaso nos mesmos 79 minutos.
Um tipo de filme que começa no mesmo tom moralista do cinema de gângster, um intertítulo a la Scarface que anuncia de prontidão sua tônica de censura para, em seguida, criar uma pose através das boinas e jaquetas de couro. Uma velha ideia de preencher os espaços do filme com o estilo daquilo que se criticará (algo também muito presente no cinema de gângster), mas, em vez de se aprofundar num mundo já existente (o do submundo do crime, por exemplo), a criação de László está mais interessada em confeccionar algo novo, um universo próprio e exótico que encontra nas motocicletas, nas vestimentas agressivas e nas siglas estampadas os símbolos de seu mito, muito antes das indumentárias sexuais de qualquer Kubrick.
Desse tal mito, o autor só encontra a possibilidade de realização da história na multiplicação desses símbolos, a necessidade da grande quantidade de figurantes que faz com que cada locação se torne lotada, um tumulto em todos os cantos do quadro que quer transformar os trocentos jovens numa massa de jaquetas de couro indivisível. O que é muito bem expresso no seu chamativo plano inicial, com as mil motos em direção à câmera, ou seja, a força de um bando.
Nisso que reside a problemática do intertítulo inicial, o “desafio público” estopim da tal “história chocante”. Uma questão que torna mais complexa e, por isso, mais perigosa, a condição dos motoqueiros. Aliás, eles não são gângsteres ou mafiosos, não há crime concreto nas suas atitudes, pior ainda, seriam só jovens? Dessa mistura de infração com molecagem que surge a indagação do policial que reluta a prender algum dos jovens após um pequeno acidente de trânsito. Logo, o problema da trupe subversiva está muito menos no crime em si do que na capacidade de realiza-lo a qualquer momento. É sobre estar no limiar das barreiras de liberdade o tempo todo, sempre esticando-as aqui e acolá em prol de seus impulsos.
Assim, o assédio é o grande símbolo exemplificador da tal condição e, nele, que todos outros símbolos também se desvelam, quando fica explícito que os rivais das armas de fogo dos civis são as motocicletas dos desordeiros. Uma máquina muito mais potente do que uma pistola, um instrumento que, além de maximizar o ir e vir de seus donos, permite que eles incidam na liberdade alheia, façam da garçonete protagonista uma presa rodeada por animais adornados de botas e anéis.
Entretanto, de toda a miscelânia de signos o maior deles situa-se no contrapeso, o motor entre todos os mecanismos: Marlon Brando. Ele quem supre o papel de dar um nome e um olhar para a tribo, encarna nos seus gestos todas as energias que rondam seus homens e contrasta a massa despersonalizada com sua figura. É seu marcante método de atuação que quebra o formalismo rimando com a temática, mas, além disso é sobre o cara que parece conseguir transformar todas as suas sinapses em gestos corporais. Ele nem precisa de palavras pra flertar, só precisa da espontaneidade momentânea: a brincadeira com a moeda no balcão, o empurrar o troféu para a garota e seu semblante relaxado e fixo. No final, o mesmo princípio que rege os outros motoqueiros, a gratuidade dos gestos originados pelos impulsos, o mesmo caso de Chino que nomeia aleatoriamente a garçonete para entregar o troféu roubado como prêmio, a diferença é que com Johnny toda essa impulsividade não se reduz a uma cena, a um evento, ela coagula todo o drama do filme em seu corpo, na criação de uma persona, uma profundidade psicológica para aquele homem hermético. Brando talvez seja o maior trunfo da obra.
E é bem interessante perceber como esta construção da persona do protagonista desemboca num movimento contrário a todo o resto do filme. Surpreendentemente, o perigo que o autor tanto alarma sobre a gangue das motos não recai numa dominação da cidade, numa série de crimes hediondos ou qualquer coisa do tipo. É mais profundo, o perigo está na evocação que os jovens trouxeram para a cidadezinha, reencarnaram a barbárie sobre o asfalto, reacenderam a lei do mais forte nos homens de terno que preferem quatro rodas à duas. Daí que vem esse confronto do núcleo de Johnny a todo o resto, em torno dele há todo um desmantelamento da civilização, do contrário, com ele, há o aprendizado civil, a desbestialização do líder da gangue possibilitada pelo romance. E dessa mesma dualidade, que resulta em Johnny sentindo a ética (ou a falta dela) na pele, surgem momentos que demonstram como Marlon Brando é o símbolo motor de toda esta mitologia, uma cena que o motoqueiro machão é invadido pelo medo e que, ao contrário do que a jovem apaixonada diz, não está no encontro do casal, mas no reencontro do homem com sua máquina, o verdadeiro momento do semblante desesperado.
Ao final, parece que o que restou de The Wild One foi muito mais a sua pose, as imagens de Brando de boina e jaqueta. Só que a obra é muito mais do que um divulgador de moda, é uma experiência única que contém um Zeitgeist: o medo de um atentado contra Montesquieu. Por esse lado, muito mais um precursor de Straw Dogs do que de qualquer filme de motoqueiros.
Carnaval Atlântida
3.4 17Ele tem como melhor característica um esquema que flerta com o metalinguístico, o que se parece em muito com o que o Fellini só faria mais de 10 anos depois, no seu famoso magnum opus, o diretor fictício que vê ao mesmo tempo que o diretor verdadeiro mostra. Só que a comparação com o filme italiano deve acabar aí mesmo, em elucidar essa base de complexidade, porque de resto a obra se faz justamente pelo afastamento do que é estrangeiro e pela procura da sua identidade nacional.
Uma negação em tom de paródia que, nos seus melhores momentos, utiliza das formas do tão citado cinema americano apenas para desconstruí-las: de Cecílio que faz surgir uma habitual transição em fusão para mostrar o vislumbre do desejo, passamos para a paródia do mesmo momento que transforma o desejo num número carnavalesco. Mais do que uma piada de contrastes de visões, uma formulação discursiva, enquanto o homem rico vislumbra aquilo que ele quer chutar de seu estúdio, o próprio filme que ele está contido já se apropriou daquela cena e a colocou para correr ao seu lado. O que se vê até mesmo de forma mais simples e óbvia, aliás, o personagem que clama por solenidade cinematográfica já se chama Cecílio B. de Milho.
O que pode soar de algum modo como uma inevitabilidade colocada pelo brasileiro, a impossibilidade de se fazer um filme nacional que queira ser sério. Mas seria uma besteira pensar dessa forma. É sobre a “aventura no Texas” escondida debaixo da Grécia, sobre querer se escorar num tal “cinema de qualidade”, ademais, o sinônimo de superespetáculo para o diretor, provavelmente, é Sansão e Dalila ou Cleópatra. Daí que Carlos Manga quer ressignificar, ou melhor, assumir o espetáculo brasileiro, desfazendo o blasé da festa burguesa com pulgas à solta.
Claro, além de toda retórica, a verdade é que o diretor está muito menos interessado em todo esse dilema do que na sua solução, o que significa que ele quer ser muito mais o filme brasileiro do que a reflexão sobre a herança do americano. Dado seu pensamento, as sequências se concentram cada vez mais no samba e nas anedotas, o que sugere um grande otimismo por de trás da câmera, uma confiança de que o convencimento não precisa se fazer por sermões, só é necessário um beijinho pra que se comece a cantar marchinhas de carnaval por aí. Todo um sentimento muito bonito, mas que, talvez, devido a toda essa confiança que acabe, poucas vezes, enfraquecendo sua mise en scène, isso é, essa dicotomia contrastante, a fulguração do espetáculo brasileiro versus os restos do cinema americano.
Dualidade que certamente não necessita de qualquer continuidade do discurso de paródia, como disse, ele quer muito mais apenas reproduzir o espetáculo sincero e identitário que encontrou, o “Eureka!” do Carlos Manga. Só que confeccionando o auge de seu espetáculo nacional que ele encontra a expulsão do “outro cinema”, o que está muito mais nas suas moças rebolando do que no Oscarito lutando (mesmo que sejam momentos bem cômicos).
Toda uma reprodução dessa “excelência do espetáculo brasileiro” que realmente emanta a obra quase que por completo. Como as cenas de sonho que vêm despudoramente uma atrás da outra ao final do filme. O que é ótimo, pois nesses shows oníricos e lúdicos que a experiência se reafirma mais do que nunca, o momento que se exclui de vez a tentativa de equilíbrio entre forma e conteúdo através da ilusão, adere ao caos da extravagância, negando enquanto se autoafirma. Nada mais que o plano final que escolhe acabar com a pegação tosca entre Xenofontes e a cubana pronta pro desfile.
Um filme sobre filmar Homero. Um filme sobre as diferentes visões de filmar essa mesma história. Um filme sobre um diretor pensando na sua visão de cinema no processo. Ou seja: O Desprezo brasileiro? Porra nenhuma! Godard que filmou o Carnaval Atlântida francês.
O Grande Golpe
4.1 236 Assista AgoraBoa parte do trabalho do Kubrick em Hollywood me soa muito como a história de um espírito preso num corpo que não lhe pertence. Um autor rodeado por formas clássicas e que, vergonhosamente, procura migalhas, brechas, pra poder consumar seu sonho de estilização. No pior dos casos temos um Killer's Kiss, um puta precursor da fotografia inventiva de Instagram.
Aqui há a ambiguidade: por um lado, a alma atrofiada, por outro, momentos genuínos de expressão estilística.
Num primeiro momento é tudo sobre esse jogo ignóbil de querer aparecer através de uma idiossincrasia barata. Quando o autor estica a duração de cada plano, reduz os cortes para se manter na sua decupagem de moldura. Fazer com que a cena se transforme em quadros sonorizados, seja botando os amantes para reproduzirem o texto num plano único em que eles sempre dividem o quadro ou criando outras estátuas aqui e acolá, que não podem mover muito a cabeça pra não saírem de seu esquema de posições e luzes. Claro, tudo feito na medida do possível, sem extrapolar muito, sem se assumir muito. Ou seja: um plano-tableaux, só que brocha.
Entretanto, o que o afasta de um filme ruim é o seu encontro com a verdadeira estilização, a que realmente traz algum efeito. Um esmero nas formas internas, diegéticas, ligadas ao drama pelas ações, ao contrário das metáforas ou sugestões bobas, como uma ferradura da "sorte" que reaparece ao lado do corpo morto só pra ser o plano final da cena. É a força imagética trazida pelo brutamontes que, de repente, tem sua camisa arrancada ao ser rasgada exatamente em dois (uma performance, assumida pelo público que se afasta para abrir um palco) ou por um rosto furado de balas que possibilita a câmera solta olhando pros corpos mortos. Daí que os investigadores do "discurso de carreira" do Kubrick podem encontrar aqui um exemplar potente do tal pessimismo do diretor: num belo esvoaçar do dinheiro pelo aeroporto.
Claro, disso tudo, dá pra denotar essa ambiguidade nada coesiva. E pra isso nem é necessário demarcar todas as piruetas estilísticas (ou as tentativas disso), basta se atentar a toda a narração, um par indissociável da carreira do diretor, nos seus piores e melhores momentos.
Nos primeiríssimos instantes de locução, ela já cospe a poética do "o único entre as 100.00 pessoas na corrida que não sentia nenhuma emoção" na voz de locutor de futebol. Depois, no melhor momento, ela assume uma simplicidade didática, uma necessidade puramente informacional de guiar o espectador. Contudo, logo em seguida, ela some, deixa seu autor contradizer sua necessidade de simplificar a não-linearidade quando repete inúmeras vezes as mesmas imagens dos cavalos rodeando a pista e dos megafones anunciando o mesmo momento. Quer avultar sua ousadia ao mesmo tempo que quer torna-la palatável e, ainda sim, por vezes, quer extrair alguma poesia. Pura confusão, falta de assertividade presente no todo.
Longe, muito longe, de ser uma das melhores coisas do Kubrick, pelo contrário. Porém, querendo ou não, ainda tem o belo esvoaçar do dinheiro pelo aeroporto.
Lanternas Vermelhas
4.3 201É sobre retratar a melhor personificação e, consequentemente, a maior literalidade do termo “patriarcal”. Quando existe uma super obviedade da problemática de gênero impregnada em cada acontecimento, uma condição base de protagonizar a história da 4ª esposa de um Lorde 70 anos depois de seu tempo. O que resulta em todo um perigo de se cair na redundância e na hiperdramatização, principalmente numa obra que quer designar o discurso como motor.
Num primeiro encontro de Song Lian com a 1ª esposa que a jovem ouve o conselho, “é bom que você seja educada, precisará disso para viver aqui”. De tal frase, logo se conclui que a “educação” falada é muito menos sobre uma gentileza do que um eufemismo para “saber seguir as regras” do amontoado de tradições e rituais que presenciamos em seguida. Exatamente desse princípio que a mise em scène têm seus melhores momentos, na rima com a austereza das formalidades.
A partir disso, a solução para escapar de todas as baratezas melodramáticas através do imperativo das formas calculistas e frias daquele universo extremamente particular, o que gera um diminuendo dramático. Tal, surge de maneira explícita na constante de enquadramentos geométricos e no fortalecimento da arquitetura monumental que rodeia a trama, atingindo certas potências quando essa energia impassível bloqueia o drama e se torna um puro contemplar dos gestos subservientes às tradições. Daí, melhor do que os planos gerais que somem com os semblantes tristes, há os momentos que engolem os conflitos na cena, petrificam-no sem o deixar explodir: um momento tenso como a exposição de Yan’er frente à todas esposas que nunca vira expurgação ou enervamento, pelo contrário, o drama é obrigado a ser mediado pela câmera ritualística, primeiro ouve-se a 4ª esposa, passa-se para a opinião da 3ª e assim por diante. O que alcança o auge na morte da serva fora de quadro.
Claro, não é um sistema formal de grandes magnitudes, no final é o velho conceito da sujeira debaixo do carpete lustroso (o filme mesmo se exemplifica numa cena em que a protagonista encontra o adultério abaixo do seu jogo de mahjong), porém, é aquilo que há de melhor no longa: as vezes que seu autor se concentra mais nas aparências do que na abjeção nem tão oculta assim.
Entretanto, mesmo diante dessas benesses propostas, há uma certa dubiedade contida no jogo de solenidade. Uma dúvida se toda aquela frieza está se configurando como um afastamento inteligente do drama ou uma solução maniqueísta para ampliar uma vitimização. É como a figura do todo poderoso marido, ele nunca é focado pela câmera, ver seu rosto, que só aparece em planos gerais, é uma tarefa difícil, mas, esse autorismo evidente, teria o efeito de dar continuidade a tal rigidez da mise en scène ou apenas vilanizar o homem? Provavelmente os dois, o que já é bem ruim. Vê-lo na mesa com as esposas, conversando com seu filho, falando com os servos, sob essa distância, parece um artifício inteligente, mas basta que o diretor decida fazer um close, se apegar ao rosto de sua protagonista chorando enquanto ele fala fora de quadro que as imagens passam a exercer uma vilanização tosca. Nisso, que retornamos ao primeiro plano do filme, se as últimas palavras de Song Lian pra câmera soarão como uma frase de efeito superficial pro porvir é porque a extrema fragilidade temática torna qualquer explicitação uma verdadeira redundância. Não é preciso dizer que “se tornar uma concubina é o destino de toda mulher”, quando presenciar qualquer gesto do tal universo já diz o mesmo, de modo muito mais forte.
Logo, o filme sempre se manterá nesta bifurcação, continuar no seu jogo de solenidade e complexificação dramática ou recair num sentimentalismo fácil. De certa forma, o que, por vezes, parece ocorrer quase como uma luta interna, como se dependesse puramente dos impulsos de seu diretor quebrar ou não a energia das formalidades, o que acaba significando chafurdar ou não num melodrama idiota, basicamente: contemplar se o autor vai conseguir apenas cortar de um plano frio para outro ou se não resistirá em cambalear a câmera para se aproximar da pele de seus personagens.
São nos momentos de revelação e paroxismo que surgem as tentações à mão de Yimou. Como no momento em que a 3ª esposa aparece para contar sobre sua gravidez, dali urge toda uma dúvida “ele conseguirá manter as mesmas escalas a cena toda?”. Bem, consegue, porém, numa cena de maiores exigências, de um assassinato, ele decai com força, trai todos os enquadramentos inteligentes que mantinham o crime ao longe, tão distante a ponto de se dissipar um grito até torna-lo puramente numa estatística, ao final, opta por uma tola subjetiva cambaleante a fim de reproduzir temores. Talvez a maior traição, liquefazer a rigidez de seu formalismo.
Toda uma encenação bem singular que, mesmo que nada excepcional, possui momentos potentes aqui e acolá e, talvez, por isso mesmo, seja decepcionante contemplar constantes autossabotagens. Afinal, torna-se difícil lembrar do belo momento de libertação e loucura solitária, com a protagonista acendendo todas as luzes e sentando-se sozinha, quando a obra opta pelo excesso, em adicionar mais cenas apenas para escandalizar seu ensandecimento. Falta integridade nas imagens de Yimou.
Judas e o Messias Negro
4.1 517 Assista AgoraAté começaria elogiando o fato de a obra entender bem onde ela se encaixa, saber que um filme político é diferente de um filme que fala de política — o seu caso —, entretanto, esta autoconsciência só parece originar um vazio dramático absurdo no seu cerne; como se a pura retratação de personas históricas na pele de atores hollywoodianos já fosse o suficiente para a experiência inteira.
A única coisa que Shaka King confecciona é uma série de cenas manjadas (todo o romance hipergenérico), burocráticas (todo o falatório de planejamentos internos dos Panteras) ou redundantes (toda a mesma caracterização malvada facílima em qualquer cena com o FBI). Um monte de retalhos tão enorme que fica até difícil de chamar qualquer sequência de “preenchimento”, pois toda sua estrutura é por si só um carrossel de desconjunturas; ações episódicas que nunca se assumem como tal.
Logo, um paralelismo tão rápido quanto despropositado, como Fred e Deborah discutindo sobre seu filho ao mesmo tempo que vemos Jake Winters num tiroteio, é prova de toda essa inabilidade de condução: não sabendo como conectar essas cenas tão esparsas e infrequentes, utiliza-se de um artificio de fluidez na marra — mesmo que totalmente desprovido de um significado além do óbvio. Algo que também poderia ser exemplificado pelo próprio conflito do “Judas”, já que seu drama de traição é sempre executado em ilhotas, isto é, bem marginalizado de outros núcleos, sempre necessitando de uma sequência isolada para manifestar-se (como um sonho deslocado ou os entretempos de janta) e nunca conseguindo se conciliar efetivamente com os momentos de Kaluuya — e só por isso já descarto qualquer espécie de comparação com filmes de “policiais infiltrados” a la White Heat, considerando que seus trunfos são as tensões entre as duas personas principais nesse jogo de alienação, o que não ocorre aqui.
Assim, quem dera este fosse um longa posudo, falsamente discursivo, ignorante da dicotomia do filme político, mas que ao menos soubesse conduzir a sua própria dramaturgia. Não me interessa a arte tão cuidadosa com a história e a política que retrata que esquece de si mesma; só me interessa a arte que cuida de si própria (o que não é ligar no automático seus atores renomados). Mil vezes um Hércules católico (como o de Bava ou Cottafavi) do que um Judas and the Black Messiah.
Os 7 de Chicago
4.0 581 Assista Agora“Aaron Sorkin, grande roteirista” tentando virar o “Aaron Sorkin, grande diretor” na base de muita gritaria — como já se faz com o roteiro, afinal.
Basta olhar para a montagem, aquela mesma que muito disseram que seria uma das mais promissoras a ganhar a estatueta da categoria, e não levar nem 2 segundos para perceber a farsa de Sorkin: tudo não se passa de mero chamariz de baixíssima qualidade. Ritmo corrido, megafluidinho que nunca cria algo de substancial para a experiência, permanecendo na superficialidade de se contentar com a velocidade pela velocidade (e com as trocentas gags de uma cena à outra, claro).
Coisa de diretor estreante, utilizar de um artificio espertinho que, desresponsabilizando-se de se atrelar à construção narrativa, só está lá para clamar pela “complexidade” de sua feitura. Afinal, se tentarmos encontrar os momentos que essa montagem escandalosa é usada efetivamente no drama, apenas nos depararemos com a pobreza de contrastes sem-vergonhas, da violência à frase impactante (com o “stand-up” de Abbie) ou da violência encenada à sua “seríssima” importância documental (com as imagens de arquivo preenchendo as cenas).
O que acaba por rimar com todo seu conteudismo fácil. Isso é, para o diretor encontrar o jogo de diálogos típicos de filmes judiciais (e o drama que provém deles), não se instaura nenhuma grande construção em cada cena, apenas se fabrica os personagens mais caricaturais possíveis e se dá vazão a uma dramaturgia binária previsível, em que suas estrelas berram o que já estava escancarado. Daí aquela cena risível do David Dellinger, o homem que nunca bateu em ninguém na vida, dando seu primeiro soco em pleno tribunal (com direito a contraplano da carinha triste do filho observando tudo).
O curioso é que diante de toda essa patifaria, entre um respiro e outro, até penso que a obra consegue encetar centelhas de momentos mais engajantes. E, mais curioso ainda, é que isso parece surgir justamente do que há de mais maquinal desse tipo de filme — como num conhecido momento em que o advogado acelera as perguntas para a datilógrafa registrar tudo ou em mais uma de suas sofisticadas perguntas sorrateiras. A questão é que são momentos marginalizados dentro de seu espetáculo calculado que, na verdade, só funcionam justamente por isso: apenas regem velhos clichês eficientes e não uma farsa engessada, fogem das frases de efeitos declamadas aos montes pelos personagens estereotipados através de uma direiteza mais sincera.
Mas, claro, isto é só um desvio do percurso que não se quer comentar muito. Sorkin não está nem um pouco interessado em estudar as contribuições logradas que Preminger, Capra ou Kramer já fizeram. Não. Ele apenas quer clamar pela “autoralíssima” narrativa de facilidade escandalosa. Afinal, qual das atuações o filme mais se concentra, na eficiência de Mark Rylance ou na miríade de bordões hippies de Sacha Baron Cohen? Não é de se espantar qual tenha recebido aclamação do Oscar...
No fundo, até há alguma tentativa de retornar ao antiquíssimo filme de tribunal de Hollywood, mas, antes que se possa chegar lá, afunda-se no meio de um caminho rodeado por diversos vícios e vaidades contemporâneas.
Minari - Em Busca da Felicidade
3.9 550 Assista AgoraMesmo pegando os melhores momentos de Minari, é uma tarefa difícil extrair qualquer coisa de muito especial do filme. Isto, porque seu auge parece ficar tão somente entre o clichê genérico e o clichê minimante eficiente — para, depois, só rolar ladeira abaixo.
Sobre seus quês mais genéricos, eles pertencem a toda uma seara semiformalista desenfreada ou, dizendo de outra maneira, a todo um apelo muito superficial do “filme bem filmado” (concorrendo à diversas categoriazinhas elogiosas do Oscar) que muitos têm comentado. Elementos que querem arrancar alguma “sensibilidade” de todo esse filme-memória a fórceps. Uma ansiedade de instaurar logo em seus primeiros minutos o gramado que desaba verde por toda a tela, a trilha sonora “evocativa” e o flare aos montes; mal conhecemos os personagens ou habitamos seus universos e quer-se demarcar através do grito a beleza dessa biografia, que, basicamente, só exerce de modo mais imediato os clichês de qualquer filme que lide com reminiscências — desde um bem recente Moonlight até um pai desse tipo de narrativa como I Vitelloni —, mas esquecendo-se de criar um drama próprio antes de escandalizar seus cenários pifiamente “peculiares”.
Entretanto, se há algum momento em que se encosta numa possível unicidade verdadeira — sua eficiência —, isso ocorre quando se entende que sua peculiaridade biográfica pode advir de seu difícil estado de transição e indefinição próprio dos imigrantes. Muito mais “único” do que se escorar num pictorialismo fácil é nos mostrar essa intersecção de culturas dentro de uma igreja. Mais significativo do que a poesia musical forçada — num primeiríssimo instante que Yeun afunda as mãos na terra — é presenciar a comunicação desengonçada entre duas garotas: metralhando um vocabulário coreano inventado e persistindo nele até se encontrar, ao acaso, algum ponto em comum.
Daí que vejo alguma potência na relação tão comentada entre avó e neto. Não por pura “boa atuação” (como se decai posteriormente), mas porque é justamente através dessa nova figura familiar que se tem o auge da tal unicidade verdadeira. Afinal, se o próprio entremeio linguístico é uma das coisas que mais simbolizam a situação daquela família, é com a personagem que menos fala inglês que isso se eleva. A mulher que força um escambo cultural com as todas suas comidas e hábitos longínquos até, por fim, culminar no “cheiro de Coréia” que passará a impregnar o quarto do caçula.
Só que, infelizmente, todos esses lampejos de bons momentos, além de disputarem lugar com os clamores de “peculiaridade” simplória de sua primeira metade (como já citei), apenas se extinguem ao rumar para o final do filme. Atingem uma decadência que tomba de vez para os vícios do “filme bem filmado”. Abole-se o resquício de identidade que se tinha e conduz tudo num jogo de dramaturgia instantânea, que não angaria um peso por desenrolar a história, pelo contrário, cria-se cenas mais intensas que se justificam imediatamente em si mesmas, no puro showcase dramático da coisa — é daí que surge o injustificável “Steven Yeun, uma das melhores performances do ano”, com suas cenas de briga pela briga e desespero pelo desespero (na sequência mega calculada de incêndio).
Ironicamente, o desastre máximo de toda essa derrocada é simbolizado pelo próprio trunfo anterior: Youn Yuh-jung. Afinal, é simplesmente vergonhosa a transformação que se escolhe para a personagem. Censura a sua posição anterior como símbolo fértil de uma ligação mais visceral com suas raízes (e os choques que isso ocasiona) e a torna mera muleta de atuação escandalosa. Não olhamos mais para a avó como outsider do solo americano causador de conflitos, mas como pura exibição de “atuação difícil” — mas um tanto quanto fácil para a obra clamar suas qualidades.
O pior caminho para o filme, mas, aparentemente, o melhor para as premiações. Até porque seria ingênuo acreditar que o nome em alta da atriz veterana se dá por qualquer outra coisa senão esse ponto óbvio de demonstração da performance. Assim, o que acaba por acontecer é que, se a tal “Minari” que intitula a obra já possuiu qualquer indício de profundidade biográfica, até o final do filme a planta será mera ferramenta de chororô preguiçoso.
Meu Pai
4.4 1,2K Assista AgoraDentre esses filmes-teatro próprios do Oscar, em alguma medida, este foi um dos que mais me surpreendeu. Uma obra que, diferente da grande maioria desse “gênero”, até que sabe articular bem seus artifícios primos de uma outra arte. Bem, ao menos antes de perder seu gás e tornar tudo cada vez mais limitado.
Se todo seu início é, aparentemente, bem morno, com o que há de mais clichê nessa transposição teatral para o cinema — como o diálogo entre Colman e Hopkins feito para dar vazão à interpretação de personalidades fortes ou como o espaço de locação única, pretexto para fulgurar ainda mais seus atores (esquema próprio de palco) —, isso acaba sendo estranhamente benéfico, quando, numa cena seguinte, toda essa concepção retilínea é desmontada por uma desorientação instantânea.
Disso, o que mais me parece divertido da sua série de choques é como eles são compostos justamente por mecanismos oriundos do teatro. É aquele velho jogo de estabelecer a locação, mas trocar os atores e insistir que eles tenham os mesmos nomes de personagens já conhecidos. A diferença, aqui, é como, em certa medida, Florian Zeller angaria propriedades muito cinematográficas nesse jogo simples. Anthony e o apartamento sob seus pés continuam a ter a mesma concretude de sempre, o mesmo reconhecimento imediato a nós — afinal, no cinema, tanto o apartamento, quanto a passagem de tempo possuem impressão de verossimilhança muito maior —, mas quando “novos” personagens entram em cena, toda a lógica destes elementos, que em nossa cabeça eram tão óbvios e estabelecidos, entram em curto-circuito. Uma simples ida da cozinha à sala nos faz questionar todo um espaço-tempo que parecia tão simples de entender. O que acontece justamente pela armadilha deste ponto de gravidade. Hopkins continua em seu personagem o tempo inteiro, mas, inesperadamente, todo o terreno que ele pisa parece se transmutar tal qual um cubo mágico... mesmo que seja apenas uma mesma locação.
O lado ruim de tudo isso é como, infelizmente, nunca mais se replica esse choque inicial da mesma maneira. Pelo contrário, todo o filme parece rumar progressivamente numa didatização cada vez maior, numa cautela que nunca entra completamente de cabeça na visão opaca dessa mente desbotada, procurando cada vez mais por pontos de claridade dentro da narrativa obnubilada.
Em algum nível, algo que parece estar estritamente ligado a um ato de subestimar o espectador: pesa-se a mão no didatismo com medo que o espectador não perca o drama familiar ali contido.
O que ocorre, por exemplo, nas vezes em que a câmera precisa navegar pelos bastidores e dar certa prioridade as feições de Olivia Colman, a fim de que tenhamos certeza sobre a concretude da sua preocupação e da doença de seu pai (c.f. a cena em que Laura é apresentada). Por esse lado, diferente de Hopkins, a protagonização da atriz atrapalha um pouco toda a configuração da experiência, pois parece que, de alguma forma, Colman teria que aparecer uma certa porcentagem fixa no filme (para ter o selo de atriz principal?) e, por isso mesmo, seu diretor realiza isso na marra. O que acaba soando como uma grande destoação dentre este cubo mágico, um ponto bizarramente fixo dentro de um espaço disforme.
Mas, de outro modo, até seu senso de onirismo (ou demência) progride em constante escassez. Uma cena literalmente de sonho (em tese, a oportunidade de confeccionar um auge para o desnorteamento), deixa de possuir qualquer teor de confusão e vira mera carga dramática fácil. Anthony vislumbra a filha no hospital e esclarece, mais uma vez, uma informação que nem era tão confusa.
Assim, basta ver a sequência final para encontrar o ponto em que essa escassez, finalmente, atinge o seu ponto 0. Uma cena excessivamente longa, montada apenas como explicação de todas as pontas soltas ou, pior ainda, o tal onirismo transformado em mera conexão lógica de fatos. Mais uma vez subestima-se o espectador: explica-se tudo para ter certeza que ele compreenda a carga dramática em questão — além de soar como aquele tipo de prazer tosco de certos finais de filme (a la Nolan), faz-se à fórceps o espectador entender toda a complexidade anterior a fim de que ele admire alguma “genialidade”.
Logo, talvez desse pra retornar aquela primeiríssima cena e dizer que são todos motes teatrais que rebaixam ou elevam o filme. De forma inteligente, traduz-se a concepção teatral em mecanismos peculiares de desorientação. De modo preguiçoso, acaba desmanchando todos esses mesmos mecanismos graças a uma necessidade despropositada de gritar o drama de seus atores.
Um cubo mágico muito mais divertido quando não se tem a intenção de completá-lo.
Sleep Has Her House
3.5 12A fim de uma explicação fácil, de forma bem rude, pode-se reduzir Sleep Has Her House àquele velho jogo infantil de contemplar as nuvens para encontrar animais e objetos. Sua essência parte justamente dessa mesma tônica de abolição de contornos e preservação de incertezas, porém, elevada a um outro nível de seriedade. Um projeto de hipersensorialidade que só pôde ser executado devido toda uma possibilidade derivada das imagens contemporâneas, essas que, por sua vez, seu autor possui domínio pleno.
Não parece difícil designar o medo como um dos principais efeitos do filme, o que, antes mesmo de aparecer de forma explícita nos únicos elementos definitivamente inteligíveis da obra, isso é, suas frases poéticas e sombrias sobre gritos e colinas, já se mostra no seu primeiro plano: duas criaturas incognoscíveis que parecem estar numa pintura, num esquema imóvel, praticamente desenhado, mas que, de repente, uma delas move sua cabeça do modo mais orgânico possível. Aí está seu principal jogo, que se complexificará progressivamente, uma desfiguração das formas que gera uma constante confusão da percepção. Uma indissociação do mar com o céu, das árvores com as pedras, proporções e movimentos muito nebulosos, em tal nível que os temores primitivos começam se aflorar. Esquema muito inteligente que busca tais temores no momento que a segurança da percepção é perdida, no momento que nada mais é sólido e as formas mais anômalas surgem justamente das formas mais universais: os desenhos da natureza.
Me lembra os planos mais visualmente expressivos de um Sombre, do Grandrieux, e, principalmente, de um Brakhage, mais especificamente de Anticipation of the Night, a obra que melhor merece um paralelo com a de Scott Barley.
É quando ambos utilizam o anoitecer como o grande signo de libertação de todos os outros signos, a transição da visão humana de fotópica para escotópica, a hora que as cores murcham, a acuidade baixa e o olho demora mais para se adaptar, a intersecção de ambiguidade ótica encontrada pelos cineastas para usufruir da liberdade/imersão da consciência. Entretanto, de tal paralelo, o mais interessante reside nas suas oposições.
O vanguardista americano utilizava sua câmera para retirar, primeiramente, um registro mesmo dos contornos (uma necessidade de se reconhecer que um bebê no gramado é um bebê no gramado, por exemplo) para, depois disso, poder movimentar a câmera até que o tal objeto se desfigure, ou no seu trabalho mais hercúleo, combinar as diversas imagens nos seus níveis mais minuciosos, amontoando as desfigurações para que resultem em transformações. Do contrário, a laboração de Barley não encontra seu ponto nevrálgico numa determinada escolha de registros que serão “desencantados” na mesa de montagem, primeiramente, porque a “mesa” de montagem não existe mais, ela possui uma outra dinâmica. É a pós-produção/finalização de duração megalomaníaca, o verdadeiro momento da criação da experiência, o lugar que se pode violar as imagens ao seu bel-prazer, mais, o lugar que sequer necessita do registro de qualquer câmera para iniciar qualquer criação: o preto e o branco surgem de pixels clicados pelo mouse. Daí que se percebe como essas árvores, riachos e estrelas pertencem estritamente a sua contemporaneidade, a uma imagem digital, aqui, uma bela imagem digital.
Para além de todas suas benesses, tenho que assumir que possuo certo desgosto da última e extravagante parte final, o que me parece acarretar de forma ainda mais negativa no longa justamente por ser escolhida como desfecho da obra. É um esquema de contraste na construção da estrutura, só que um esquema bem rude devido sua simploriedade. Imagens visualmente bem agressivas pra qualquer um (o que sem dúvidas é autoconsciente) que estão lá por um aguçamento meio barato, de ocasionar um despertar a partir da contraposição com o todo anterior. Nada mais que descobrir que o oposto das fixas paisagens cinzas são luzinhas piscando. É um pequeno momento final, mas que me soa ainda mais bobo quando comparado aos outros aguçamentos da obra, as vezes que a quebra daquela hipnose imagética está nos raios no céu ou no fogaréu repentino, aliás, o quão ilustre é a capacidade de um diretor conseguir que seu espectador sinta-se assustado puramente por contemplar o fogo, sem contexto algum?
Talvez, para alguns, possa soar idiota minha crítica à tal destoação numa experiência que é tão diferente, tão experimental, porém, na realidade, a situação é a mesmíssima de qualquer filme de ficção mais convencional, são apenas ícones e símbolos reduzidos ao seu nível abstrato, o que está contido em qualquer coisa que se chame de arte. É uma escolha parecida (inclusive em qualidade) a de um filme narrativo recente como The Invitation. Lá, escolhe-se o constraste de construção através duma tonalidade de gênero que passa do suspense sugestivo e subjetivo para o survival explícito e objetivo. Aqui, passa-se da ausência de cor para a sua presença, dos planos longos para a descontinuidade dos frames. No fundo, tudo é feito de barro.
Tudo bem, afinal, o que o autor nos apresentou é uma jóia intrincada de seu tempo, um mundo que se conecta com os espaços contemporâneos: líquidos, multiformes, em constante mutação. Um lugar muito mais virtual do que físico, mesmo que fosse posto numa instalação e, provavelmente, daí que encontra seu maior poder de ambiguidade das formas, ou seja, nas imagens que estão sempre desafiando a consciência contemporânea. Um sincretismo do abstrato com o concreto, quando atingimos a clareza, reconhecemos a imagem e semelhança das formas, elas se desfiguram no instante seguinte. Mas, ainda sim, uma metamorfose sempre bela.
Enfim, temos aqui uma boa provação pra qualquer purista que insiste em separar e elitizar “gravação” de “filmagem” em pleno 2020. Ademais, como não ficar tentado a conhecer mais da carreira de Scott Barley?