Muito além de fazer um retrato fiel da indústria pornográfica, o longa "Pleasure" (da diretora sueca Ninja Thyberg) compromete-se a iluminar as determinantes de gênero colocadas no tabuleiro deste obscuro universo. Bella chega em Los Angeles com o sonho de se tornar a próxima estrela pornô da indústria. Em uma das primeiras cenas do filme, o desconforto e a hesitação da personagem em sua primeira gravação explícita são colocados no foco central da trama pela delicada interpretação de Sofia Kappel - o que nos leva a concluir que Bella tem certo receio de sua escolha. Até onde vai a protagonista? Quais são os seus limites? A dúvida latente mantém a curiosidade do espectador acesa ao longo de toda a progressão do filme. Ao mesmo tempo que temos uma Bella desconfortável em sua primeira gravação, vemos um discurso convicto em suas primeiras negociações: Bella deixa claro seus limites para um dos diretores, embora justifique essa "limitação" como uma "carta na manga" que quer guardar para mais tarde. Com o passar das semanas, a dura realidade da alta concorrência e escassez de trabalho fazem com que a personagem ceda as suas imposições iniciais, aceitando fazer gravações mais radicais e subversivas. Bella então mergulha no terreno mais denso e underground da indústria, submetendo-se a gravações com temática de sadomasoquismo, violência sexual e submissão. Se por um lado a protagonista encontra uma equipe composta predominantemente por mulheres, que a tratam com dignidade e empatia, o contrário também entra em cena quando Bella precisa lidar com uma equipe pouco profissional e agressiva composta por um diretor machista e dois atores violentos. O filme aos poucos vai construindo a imagem perversa da indústria pornográfica: não é sempre que você vai encontrar uma equipe humanitária e profissional; existem pistas falsas e armadilhas pelo caminho. Depois de uma sequência extremamente incômoda e perturbadora, o filme faz o espectador acreditar que a protagonista vai por fim desistir de seu sonho. Ledo engano: Bella permanece convicta e busca outras formas de se reerguer dentro do ofício. Aqui cabe uma reflexão: quais são as motivações reais da personagem? O filme deixa bastante claro que a protagonista quer engajamento, fama, visibilidade e dinheiro; mas ao mesmo tempo, uma certa atmosfera de apatia e indiferença circundam a vida de Bella - é como se a personagem estivesse desconectada de sua própria essência, raízes ou família. Seria este o retrato de uma geração? O longa acerta ao tentar examinar as fronteiras entre o conteúdo temático a ser gravado e a realidade das relações profissionais na indústria pornográfica: em uma das cenas, um dos atores se aproveita de uma cena de submissão para se vingar de uma atriz que o jogou na piscina anteriormente. Uma postura antiética que é depois reproduzida por Bella no final da película: com uma cinta peniana, a protagonista assume um papel de dominação e utiliza a temática da cena a ser gravada para descontar sua vingança na atriz concorrente com quem divide a cama. Interessante observar as contradições colocadas pelo filme no desenrolar da trama: se no começo da história Bella é alertada para tomar cuidado com as amizades hipócritas que apunhalam pelas costas e puxam o tapete, no fim das contas, a maior ação de vilania é cometida por ela mesma. O filme não nos traz respostas concretas mas é válido por levantar perguntas e discussões interessantes, além de iluminar pontos obscuros que nos fazem pensar e refletir a respeito do tema. Não sei se concordo com a representação que o filme faz da indústria na sequência final do filme: talvez a forma esteja glamourizando demais algo que esteja sendo criticado. Acredito que seja um problema de disposição dos argumentos: se a glamourização estivesse presente na primeira metade do filme, deixando as cenas mais perturbadoras pro fim, talvez o roteiro ficasse mais alinhado com o discurso defendido pela obra.
Poético, sensível, subversivo... Se "A Grande Beleza" não se destacou como obra-prima do diretor italiano Paolo Sorrentino, chegou bastante perto. A película se compromete desde o princípio a fazer um retrato fidedigno da beleza da vida, como logo revela seu título. As longas tomadas das paisagens romanas poderiam facilmente dar conta desta busca, mas temos que observar que a beleza almejada pelo filme vai muito além do deleite estético e visual das estátuas renascentistas e da imponente arquitetura do Coliseu, que aparece recorrentemente no filme como um colosso evocando a memória da civilização. Depois de experimentar o sucesso de público e crítica com um romance do passado, o escritor Jep Gambardella entra em uma espiral atroz de crise e falta de criatividade - logo que o filme começa, o escritor já está há anos estagnado em seu próprio trabalho. Aqui podemos notar que a falta de criatividade do artista é colocada como metáfora do próprio vazio da existência, e isso fica bastante nítido com o avançar do filme: conversas banais entre pessoas da high society italiana, cenas de eventos sociais absurdamente vulgares, personagens vazias com comportamentos e interesses mesquinhos e encontros sexuais superficiais são alguns dos elementos que podemos encontrar no roteiro emblemático de Sorrentino e Contarello. O espectador atento logo entende o porquê da crise criativa do artista (tema queridinho dos cineastas italianos, diga-se de passagem) e acaba por criar empatia pelo protagonista, que aos poucos vai assumindo uma postura comprometida com a verdade das coisas, sem concessões:
em um dos diálogos mais fantásticos e inteligentes do filme, Jeb escancara o abismo da hipocrisia de uma das personagens, na frente de um grupo seleto de pessoas.
Veja que aqui o objetivo do protagonista não é apontar dedos ou criticar a hipocrisia do outro - aqui o objetivo é justamente assumir o fracasso de todos nós como civilização. Se a beleza pode ser encontrada facilmente nas paisagens da cidade, talvez o mesmo não possa ser dito a respeito do ser humano. A este ponto, o título do filme pode parecer uma grande ironia: existe mesmo beleza em um mundo vazio e repleto de falências artísticas, sociais e humanitárias? Mas o movimento da contradição é latente, e nisto reside a inteligência do filme. Tentando buscar respostas na espiritualidade, o diretor faz uma incursão nas instituições religiosas, obviamente privilegiando a da Igreja Católica por questões geográficas e históricas (não se pode ignorar o Vaticano quando se tenta abordar uma espiritualidade italiana). A figura emblemática da freira no movimento final do filme traz a redenção que todos esperávamos: a severidade de seus princípios e a humildade de suas ações trazem um pouco de luz à discussão... talvez ainda haja beleza no ser humano. Temas sublimes ainda estão colocados como peças em um jogo complexo: sensibilidade, humildade e principalmente liberdade
(a cena final do voô das aves a partir do suspiro da freira mostra concretamente a posição otimista do diretor).
Note que aqui Sorrentino não tenta defender a Instituição Católica: isso pode ser presumido por conta da figura do Padre, um homem habituado com a ostentação e o conforto. O filme faz um panorama geral da vida ao passar por todos os eventos sociais de uma existência (aniversário, casamento, velório). Em todos os momentos da jornada, a beleza está presente, talvez não da maneira que esperamos, talvez não da maneira que deveria ser... Se no primeiro frame do filme podemos ver um tanque de guerra aludindo à violência constante de um mundo conflituoso e problemático, na última cena
temos a redenção otimista evocada pela paisagem de uma das cidades mais antigas e belas do mundo
. Se um dia o Coliseu foi palco de batalhas sanguinárias e destrutivas, hoje ele pode ser ressignificado como umas das arquiteturas mais célebres e imponentes da humanidade. Só nos resta saber: será que um dia conseguiremos também ressignificar a banalidade de nossos comportamentos? A pergunta ressoa ao longo de toda a película, enquanto o espectador desfruta de um dos filmes mais belos e sensíveis dos últimos tempos.
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Pleasure
3.4 113 Assista AgoraMuito além de fazer um retrato fiel da indústria pornográfica, o longa "Pleasure" (da diretora sueca Ninja Thyberg) compromete-se a iluminar as determinantes de gênero colocadas no tabuleiro deste obscuro universo. Bella chega em Los Angeles com o sonho de se tornar a próxima estrela pornô da indústria. Em uma das primeiras cenas do filme, o desconforto e a hesitação da personagem em sua primeira gravação explícita são colocados no foco central da trama pela delicada interpretação de Sofia Kappel - o que nos leva a concluir que Bella tem certo receio de sua escolha. Até onde vai a protagonista? Quais são os seus limites? A dúvida latente mantém a curiosidade do espectador acesa ao longo de toda a progressão do filme. Ao mesmo tempo que temos uma Bella desconfortável em sua primeira gravação, vemos um discurso convicto em suas primeiras negociações: Bella deixa claro seus limites para um dos diretores, embora justifique essa "limitação" como uma "carta na manga" que quer guardar para mais tarde. Com o passar das semanas, a dura realidade da alta concorrência e escassez de trabalho fazem com que a personagem ceda as suas imposições iniciais, aceitando fazer gravações mais radicais e subversivas. Bella então mergulha no terreno mais denso e underground da indústria, submetendo-se a gravações com temática de sadomasoquismo, violência sexual e submissão. Se por um lado a protagonista encontra uma equipe composta predominantemente por mulheres, que a tratam com dignidade e empatia, o contrário também entra em cena quando Bella precisa lidar com uma equipe pouco profissional e agressiva composta por um diretor machista e dois atores violentos. O filme aos poucos vai construindo a imagem perversa da indústria pornográfica: não é sempre que você vai encontrar uma equipe humanitária e profissional; existem pistas falsas e armadilhas pelo caminho. Depois de uma sequência extremamente incômoda e perturbadora, o filme faz o espectador acreditar que a protagonista vai por fim desistir de seu sonho. Ledo engano: Bella permanece convicta e busca outras formas de se reerguer dentro do ofício. Aqui cabe uma reflexão: quais são as motivações reais da personagem? O filme deixa bastante claro que a protagonista quer engajamento, fama, visibilidade e dinheiro; mas ao mesmo tempo, uma certa atmosfera de apatia e indiferença circundam a vida de Bella - é como se a personagem estivesse desconectada de sua própria essência, raízes ou família. Seria este o retrato de uma geração? O longa acerta ao tentar examinar as fronteiras entre o conteúdo temático a ser gravado e a realidade das relações profissionais na indústria pornográfica: em uma das cenas, um dos atores se aproveita de uma cena de submissão para se vingar de uma atriz que o jogou na piscina anteriormente. Uma postura antiética que é depois reproduzida por Bella no final da película: com uma cinta peniana, a protagonista assume um papel de dominação e utiliza a temática da cena a ser gravada para descontar sua vingança na atriz concorrente com quem divide a cama. Interessante observar as contradições colocadas pelo filme no desenrolar da trama: se no começo da história Bella é alertada para tomar cuidado com as amizades hipócritas que apunhalam pelas costas e puxam o tapete, no fim das contas, a maior ação de vilania é cometida por ela mesma. O filme não nos traz respostas concretas mas é válido por levantar perguntas e discussões interessantes, além de iluminar pontos obscuros que nos fazem pensar e refletir a respeito do tema. Não sei se concordo com a representação que o filme faz da indústria na sequência final do filme: talvez a forma esteja glamourizando demais algo que esteja sendo criticado. Acredito que seja um problema de disposição dos argumentos: se a glamourização estivesse presente na primeira metade do filme, deixando as cenas mais perturbadoras pro fim, talvez o roteiro ficasse mais alinhado com o discurso defendido pela obra.
A Grande Beleza
3.9 463 Assista AgoraPoético, sensível, subversivo... Se "A Grande Beleza" não se destacou como obra-prima do diretor italiano Paolo Sorrentino, chegou bastante perto. A película se compromete desde o princípio a fazer um retrato fidedigno da beleza da vida, como logo revela seu título. As longas tomadas das paisagens romanas poderiam facilmente dar conta desta busca, mas temos que observar que a beleza almejada pelo filme vai muito além do deleite estético e visual das estátuas renascentistas e da imponente arquitetura do Coliseu, que aparece recorrentemente no filme como um colosso evocando a memória da civilização. Depois de experimentar o sucesso de público e crítica com um romance do passado, o escritor Jep Gambardella entra em uma espiral atroz de crise e falta de criatividade - logo que o filme começa, o escritor já está há anos estagnado em seu próprio trabalho. Aqui podemos notar que a falta de criatividade do artista é colocada como metáfora do próprio vazio da existência, e isso fica bastante nítido com o avançar do filme: conversas banais entre pessoas da high society italiana, cenas de eventos sociais absurdamente vulgares, personagens vazias com comportamentos e interesses mesquinhos e encontros sexuais superficiais são alguns dos elementos que podemos encontrar no roteiro emblemático de Sorrentino e Contarello. O espectador atento logo entende o porquê da crise criativa do artista (tema queridinho dos cineastas italianos, diga-se de passagem) e acaba por criar empatia pelo protagonista, que aos poucos vai assumindo uma postura comprometida com a verdade das coisas, sem concessões:
em um dos diálogos mais fantásticos e inteligentes do filme, Jeb escancara o abismo da hipocrisia de uma das personagens, na frente de um grupo seleto de pessoas.
(a cena final do voô das aves a partir do suspiro da freira mostra concretamente a posição otimista do diretor).
temos a redenção otimista evocada pela paisagem de uma das cidades mais antigas e belas do mundo