Anatomia de uma Queda é, superficialmente, um filme de investigação criminal. Nele, Samuel cai do terceiro andar de seu chalé nos Alpes franceses e recai sobre sua esposa, Sandra, a suspeita de assassinato. Foi um suicídio, um homicídio, um acidente? Para a diretora Justine Triet pouco importa. Aqui ela pretende discutir a busca pela verdade e o que é a verdade. Qual o conceito de verdade? É só uma versão melhor contada? Verdade é aquilo que vemos, aquilo que ouvimos ou aquilo que vemos e ouvimos? Uma mentira crível se torna verdade? Em virtude de os primeiros laudos apontarem à possibilidade de um golpe na cabeça antecedendo a queda, Sandra é vista como homicida e a partir de então a direção de Justine Triet e a excelente edição de Laurent Sénéchal busca elucidar a relatividade das imagens e a fragilidade da verdade. A edição muda de uma perspectiva para outra com precisão e disposição, mas pouco serve para “atestar” uma teoria e “buscar a verdade” e sim para confundir o espectador naquilo que é apenas um “jogo de narrativas”. Quando os planos se alongam, quando os flashbacks se alongam são apenas para que uma imagem, que uma ideia se fixe ao espectador. A edição trabalha para minar nossas certezas sobre a veracidade das imagens que vemos ou esconde elementos cruciais para a compreensão do todo. As imagens têm um poder enorme. No cinema, o uso de flashbacks tende a ser encarado como verdade, pois é uma reprodução do passado por meio daquilo que se testemunhou visualmente, mas essas reproduções podem ser falsas, representações de mentiras contadas de uma pessoa para outra. E essa dúvida se mantém fixa até o fim do filme, mesmo que a diretora tenha optado por nos entregar um veredito (o que, na minha opinião, foi um equívoco). O momento mais emblemático do filme se dá quando ouvimos um áudio gravado por Samuel de uma briga entre o casal no dia anterior ao acidente. É apenas um áudio, mas Triet opta por nos ilustrar o que se ouve por um flashback, porém, em um determinado momento, quando a discussão se acalora e há sons que remetem a um embate físico, a diretora nos priva da visão, nos priva da “verdade” e nos questiona novamente sobre o que é a verdade. É aquilo que ouvimos e interpretamos ou é aquela ilustração que nos foi mostrada inicialmente? Se terminássemos o flashback vendo que Samuel foi agressivo, acreditaríamos na inocência de Sandra ou se apenas ouvíssemos ela dizendo no áudio que era agressiva acreditaríamos que ela é culpada? Ficamos então entre duas versões: a versão do acusado e a versão da acusação. Todo ponto de vista é apenas a visão de um ponto. Em um determinado momento do filme, o filho do casal, Daniel, questiona se é preciso “fingir ter certeza” e lhe é respondido que não, deve-se apenas “escolher”, isto é, deve-se escolher em qual verdade acreditar. E ele assim o faz, porém, o seu depoimento é verdade ou apenas uma escolha da verdade? O fato curioso durante seu depoimento é que nos é mostrado mais um flashback, mas dessa vez não baseada em um registro factual dos acontecimentos como no caso do áudio, mas com base em um relato de Daniel, porém, diferentemente do anterior, nesse não ouvimos a voz de Samuel, mas sim a de Daniel contando a história que comprovaria a tendência suicida do pai. Esse detalhe põe mais uma dúvida sobre a narrativa: o menino “escolheu” acreditar na mãe e teria mentido para inocentá-la? Em Anatomia de uma Queda, Justine Triet não nos oferece fundamentos para a respostas que nos dá. O filme inteiro nos opõe versões, oferece perspectivas distintas ou nos dá apenas recortes da realidade (ou de impressões). Dito isso, mesmo com um final fechado, carrega-se de incertezas, não permitindo que o espectador conheça a “verdade” dos personagens.
O último duelo trata-se do último duelo mortal ocorrido na França oficialmente. Tal duelo ocorre com a justificativa de "deixar na mão de Deus" quem está mentindo. O filme é dividido em 3 partes ou capítulos, os quais apresentam 3 versões de uma história: a versão do estuprador (Jacques LeGris), a versão do marido da vítima (Jean de Carrouges) e a versão da vítima (Marguerite de Carrouges). A ideia de mostrar 3 versões é muito interessante e engrandece a versão real. Contudo, muitas cenas das versões são completamente desnecessárias, uma vez que apenas repetem a mesma cena, os mesmos diálogos ditos da mesma forma. O contraste entre as versões é muito interessante pois mostra a qualidade do roteiro onde em algumas cenas consegue utilizar os mesmos diálogos, mas com entonações diferentes, gerando uma interpretação completamente diferente do ocorrido. A duas primeiras versões poucam acrescentam à história, servindo apenas para apresentar características dos personagens e motivações, logo ambas as versões poderiam ser condensadas em uma única. Já a versão de Marguerite é excelente e somente a parte já é suficiente para manter o filme. Na versão discute -se principalmente o papel da mulher e do homem na sociedade da época. Com diálogos simples, mas muito bem aplicados, a verdade da vítima Magritte é posta em dúvida até mesmo pelo seu próprio marido. Ainda, seu marido ao saber do ocorrido preocupa-se apenas com sua "honra", como se ele fosse a vítima. Enfim, o filme é longo desnecessariamente, mas que ao chegar na versão real o filme cresce exponencialmente.
Não basta falar apenas sobre “Sem Tempo para Morrer”, mas também sobre o legado da saga de filmes interpretados por Daniel Craig. Em “Cassino Royale”, primeiro filme da saga, vemos uma ruptura com o que era o James Bond das sagas anteriores, apresentando o que seria essa nova saga: Uma saga mais realista, humana, concisa e sentimental, com pitadas de tradicionalismo. Até então James Bond era um agente secreto imbatível, que sequer tomava tiros ou sofria lesões graves, além de suas missões sempre estarem relacionadas à conjuntura da época, a Guerra Fria entre Capitalismo e Socialismo. Com Daniel Craig não veio um James Bond apenas com cenas de ação mais realistas, mas também uma reformulação profunda do íntimo do personagem. Agora James Bond era tratado como um humano, que erra, se machuca, se decepciona, que desiste. Agora os filmes de 007 tinham ligação, não eram apenas filmes episódicos. Havia uma linha que conectava todos, personagens e organizações que retornavam, traumas que o personagem carregava até os próximos filmes.
Em “Sem Tempo para Morrer” não seria diferente. É o filme mais sentimental e dramático de toda a franquia, e o filme aposta nisso, não só pelo fato de ser a despedida de Daniel Craig no papel clássico, mas também pelo encerramento do arco criado em “Cassino Royale”. Frequentemente, os filmes de 007 iniciam com uma cena de ação de James Bond nos preparando para a música original, feita para o filme. Aqui, James Bond está aposentado, devido aos acontecimentos do seu filme anterior “Spectre”, então o filme começa com James curtindo a vida de aposentado com sua amada Madeleine, quebrando mais um paradigma da franquia. O 007 de Daniel Craig sempre carregou um trauma que foi a morte de Vesper Lynd (Eva Green) em “Cassino Royale” porque foi a primeira vez que ele se apaixonou, se abriu pra alguém, mas esse alguém o traiu. No entanto, em “Sem Tempo para Morrer” ele novamente se apaixona, se abre para alguém, mas novamente esse alguém o trai. Então, o filme se fixa no ressentimento de James para construir sua motivação. A canção original de Billie Eilish e a trilha sonora de Hans Zimmer contribuem muito para o tom do filme e para o engajamento do expectador. O filme valeu a pena esperar, tem belos visuais, ação excelente e o filme mais emocionante de Bond de todos os tempos. Em alguns momentos é desnecessariamente complexo, o que faz parecer o filme longo, mas o tempo extra e a história dão ao seu ato final a gravidade necessária para separá-lo do resto e consolidar o legado de Daniel Craig como o James Bond mais pé no chão de todos.
(Spoiler a partir daqui) . . . . . . . Pela primeira vez em toda a história de James Bond ele não é o 007 (mesmo que por pouco tempo). Pela primeira vez ele tem uma família (fato que, inclusive, é dito de forma humorada pelo personagem durante o filme), embora em “A Serviço Secreto de Sua Majestade”, de 1969, o personagem tenha se casado. Pela primeira vez ele desiste. Pela primeira vez ele morre. Exatamente, ele morre. O vilão, patético, diga-se de passagem, o qual é interpretado por Rami Malek, desenvolve uma tecnologia capaz de matar pessoas baseado em seu código genético. De certa forma, um vilão muito inteligente, mas que não tem espaço pra mostrar essa inteligência nem explicar qual a real motivação (que na minha opinião não existe nenhuma plausível). Por algum motivo, o vilão resolve fazer James Bond sofrer da mesma forma que ele sofreu, privando-o da sua família. Entretanto, o vilão não mata a família de Bond, mas atua de forma mais cruel, desenvolve a tecnologia para que o próprio James Bond seja a arma que matará a própria família, por meio dessa nanotecnologia, se entrar em contato com ela. Então, aqui o legado da era Craig fala mais alto. Em “Skyfall”, ele se apresenta um personagem saudosista, que é capaz de formar vínculos afetivos e que é passional. Logo, em “Sem Tempo para Morrer”, ele chega à conclusão de que seu tempo acabou. Ele já perdeu tudo o que tinha e todas as pessoas que amava, uma vez que embora sua família esteja viva, ele nunca mais poderá vê-la. Sendo assim, ele desiste e apenas espera os mísseis destruírem a ilha, onde se passa o fim do filme, destruindo a tecnologia maligna, inclusive ele.
Muitos não irão gostar do final devido ao personagem ter morrido ou ter escolhido morrer, mas, na minha opinião, foi apenas a conclusão do que foi iniciado. Desde o primeiro filme, o personagem foi passional, consequentemente, no último filme não poderia ser diferente. Para quem é fã da franquia, acredito que nunca houve um medo súbito pela vida de James Bond. Aqui se tem, aqui se sofre, aqui se arrepende, aqui se desiste. Em suma, “Sem Tempo para Morrer” é um filme sentimental, com conexões com outros filmes, mas que sua ação se basta, então, se você não acompanhou os outros filmes ou não é fã da franquia, esse também é um filme para você, pois tem personagens carismáticos e uma ação glamourosa nível 007 que te deixa na ponta da poltrona.
Quem é Fern? Por que ela não tem casa? Ela escolheu viver essa vida? Até a meia hora inicial eu buscava por respostas, mas logo percebi que eu não as teria pelo simples fato de a sociedade americana, ou a sociedade em geral, não se importar com essas perguntas, então por que o longa nos diria?
Em Nomadland, a trama gira em torno de Fern (Frances McDormand) que reúne suas coisas e começa a morar em uma van improvisada após a crise imobiliária de 2008, viajando os EUA em busca de empregos temporários para se manter no novo modo de vida. Como já dito, o longa não nos contará histórias sobre Fern, nem fará julgamentos de valor sobre o modo de vida. Ele está preocupado apenas em mostrar o dia a dia dessas pessoas, suas alegrias, suas dificuldades, sem problematizar a conjuntura. Em alguns diálogos há menções sobre a crise de 2008, mas nenhuma crítica ao sistema capitalista dos EUA. Fern e os outros nômades escolheram essa vida ou foram obrigados a vive-la dessa forma? Não importa. Uns gostariam de se conectar com a natureza ou de fugir de centros urbanos, enquanto outros apenas foram obrigados pelo sistema a aderir a essa forma de vida. Inclusive, a própria protagonista pode se enquadrar em ambos os casos, seja pela sua resistência em morar em uma casa com a irmã ou com amigos, seja pelo sentimento de saudade de morar em uma casa quando ela admira os móveis de uma casa.
Vale ressaltar que, além da atuação brilhante de Frances e da direção firme e extremamente competente (principalmente no fato de ela dirigir um elenco formado por não atores), o roteiro e a edição são essenciais para a proposta do filme. Ao falar sobre o roteiro o que mais me marcou foi algo peculiar: As pedras. Ao longo do filme, pedras de diferentes formatos e origens estão constantemente aparecendo na tela, trazendo um significado muito singelo que é externalizado pelos personagens por meio de uma pergunta: “Lar é só uma palavra ou algo que você carrega dentro de você?”. As pedras carregam todo o peso do mundo, toda a perda, toda a memória, sem ser necessário que lhes acrescente profundidade. Elas não estão enraizadas, toda sua história está gravada em si mesmo, como acontece com os nômades e suas vans, trailers, ônibus, etc. Um detalhe pequeno com um significado enorme.
Já ao falar sobre a edição, é impossível trata-la como um fato isolado, pois ela não faria sentido sem o roteiro. Do início ao fim ela ocorre de modo muito frenético, pulando de uma fala a outra, de uma pequena atividade a outra, como se fosse algo mal feito. Contudo, a trama se trata sobre um modo de vida que está em movimento constante, ou seja, essa frenesia é apenas a rotina nômade, que aos poucos nós vamos normalizando. Além disso, a edição evita que o filme caia no cliché dramático com diálogos expositivos, como na cena em que uma senhora dá conselhos de vida à protagonista e lhe explica que sua aliança representa um amor sem início e fim e subitamente o filme corta para a personagem abrindo uma lata de sopa. Novamente, o filme não tem a intenção de apelar para o lado sentimental (evitando até que a trilha sonora melancólica se alongue muito), ele apenas quer mostrar a rotina feliz e difícil dessas pessoas.
Nomadland é simples, contemplativo e muito delicado ao tratar, de forma quase documental, a rotina de nômades americanos, com o intuito apenas de legitimar toda e qualquer forma de vida. Acredito que suas 6 indicações ao Oscar 2021 foram muito merecidas.
Perda de memória, confusão, desorientação, dificuldade em reconhecer familiares e amigos e movimentos e fala repetitivos são sintomas que, fora de contexto, poderia se tratar da demência, porém, esses são sensações que sentimos ao assistir ao filme. The Father, ou Meu Pai, é baseado na aclamada peça de mesmo nome de Florian Zeller, que, por sinal, também dirige o filme. O longa começa com um drama aparentemente simples, articulado em uma dinâmica familiar. Anne (Olivia Colman) está perdendo a paciência com seu pai Anthony (Anthony Hopkins), cujo controle da realidade está desaparecendo, mas que se recusa a permitir que uma cuidadora cuide dele. Anne está se mudando para Paris e precisa garantir a segurança dele, portanto, antes de partir, ela deve encontrar alguém que o auxiliará. Simples, não? Contudo, com o passar do tempo, exatamente como a demência sofrida por Anthony, nós vamos desconfiando do que vimos e ouvimos ou do que achamos que vimos e ouvimos.
Ela realmente vai para Paris? Ela comprou frango, não? Existe uma outra filha? Eu já não vi isso? Todas são perguntas que nos fazemos durante o filme, pois, assim como Anthony, perdemos a noção do que é real e estamos completamente perdidos no labirinto em que o filme nos inseriu. Estamos no mesmo apartamento, mas ao mesmo tempo ele não é o mesmo. Nós, constantemente, temos nossas teorias confirmadas e refutadas na cena seguinte. Desorientação total.
Além do longa de Zeller nos fazer sentir a sensação de desorientação, ele também utiliza de muitas rimas visuais para expressar a mesma sensação. Diversas vezes Anthony se encontra em busca do seu relógio perdido, pois, sem ele a noção de tempo não existe, e, segundo o mesmo, o faz sentir-se “completamente nu” sem ele, ou seja, sem o relógio perco minha sanidade, minha noção de tempo, minha memória. Outro exemplo é quando Anthony compara sua situação como uma árvore que está perdendo suas folhas, sua vida, sua sanidade, tornando-se senil.
Outro ponto que deve ser destacado é a edição do filme. Ela é vital para a sensação de desorientação existir, uma vez que é por meio dela que nos questionamos se já tínhamos visto o que acabamos de ver ou se perdemos alguma coisa (Para aqueles que assistiram, a cena do frango é o ápice de desorientação que pudemos sentir. Sensacional!). Em suma, The Father é um retrato brutal de como deve ser a sensação de perder o controle da realidade. Merecidamente, o filme foi indicado a 6 Oscars, merecendo vencer pelo menos 3.
Não tive a oportunidade de assistir à peça, mas acho muito difícil ela ser tão boa quanto o filme, pois ele é certamente uma das adaptações de palco para tela mais impressionantes dos últimos tempos.
The United States vs. Billie Holiday é vago, raso e pouco compreensível. Primeiramente, qual a proposta do filme? É mostrar a carreira de sucesso de uma das cantoras de jazz mais influentes de todos os tempos? É mostrar a decadência da cantora e seu vício com drogas? É mostrar a força que a sua música “Strange Fruit” tinha e o incômodo gerado no governo devido ao sucesso da música? Acredito que todas as alternativas estão corretas. O filme dirigido por Lee Daniels tenta trazer todas essas propostas sem se aprofundar em nenhuma delas. Durante o filme há passagens de tempo muito abruptas e desconexas, sendo apenas um compilado de momentos mais importantes da época em que se escolheu tratar.
Em outras palavras, o longa, que conseguiu uma indicação de melhor atriz no Oscar 2021 para Andra Day (interpretando Billie Holiday), não esboça peso nem para a carreira da cantora nem para a música. Não tocar a música durante o filme foi uma decisão acertada, uma vez que nos passou o sentimento que se sentiu na época com a censura da música. Contudo, não nos foi apresentado o real peso da música, da cantora ou dos personagens coadjuvantes na sua história.
Se você não conhece nada sobre a cantora, você continuará sem saber. Se você não conhece nada sobre a música ou sobre a época, você continuará sem saber, pois apenas flashes de momentos marcantes não são o suficiente para dar consistência a uma história. Por outro lado, se você conhece tudo o que já mencionei, você sairá tão decepcionado quanto.
Mulan, adaptação Live action da animação clássica da Disney, acertou em se afastar da animação, mas errou ao se afastar demais. A tentativa de se distanciar da animação clássica veio desde antes das gravações ao decidir que o filme não seria um musical nem teria o personagem Mushu, utilizado como alívio cômico no longa animado, para que aparentasse algo mais “sério”. Contudo, o filme se contradiz diversas vezes ao apresentar suas ideias, desde diálogos forçados e mal aplicados até cenas extremamente irreais e meramente plásticas. Não somente isso, a tentativa de distanciamento da animação ora ou outra parece cada vez mais frágil, uma vez que insere as músicas clássicas de modo instrumental no plano de fundo (mesmo inicialmente afirmando que não as usaria) e reutiliza cenas da animação, mas com um tom mais “real”.
Por outro lado, diferentemente da animação, nesse filme a inserção da personagem de Mulan no regimento é bem mais compreensível devido a decisão de utilizar atores mais franzinos e frágeis de modo que Mulan não evidenciasse tão facilmente o fato de ser mulher.
Acredito que o longa tentou respeitar a cultura asiática ao passo que tentava discutir sobre a desigualdade de gênero e empoderamento feminino, porém, seus diálogos são extremamente rasos e pouco assertivos, agindo apenas como frases de efeitos sendo liberadas a cada minuto de filme. A vilã Xianniang, personagem criada unicamente para o longa, só existe para ser um contraponto com Mulan; fato, esse, dito pela própria personagem: “Nós somos iguas, mas com uma diferença. Eles aceitam você, mas nunca vão me aceitar”.
Além disso, algo que a animação demonstrou lindamente é que você pode ser e fazer o que desejar fazer, independente de quem você é. Na animação, Mulan era apenas uma garota que assumiu o lugar do seu pai na convocação para a guerra. No longa de 2020, no entanto, Mulan é claramente alguém mais forte, mais inteligente e com um “chi mais forte”. Uma mulher poderia liderar um exército sem ser especial, ela não precisaria de um “chi” mais forte. Compreendo a mensagem de ela precisar esconder o seu “chi” porque não é algo bem visto na sociedade, demonstrando a necessidade de ser alguém que você não é, mas acredito que isso poderia ter sido demonstrado de outras formas, sem torná-la um ser imbatível.
Em suma, o filme é um bom entretenimento, mas nada além disso. Ainda bem que a animação de 1998 existe, pois se dependesse do longa de 2020, o tiro sairia pela culatra. Mulan de 1998 continua extremamente atual e válido..
Promising Young Woman, ou Bela Vingança no Brasil, é escrito, dirigido e produzido por Emerald Fennel, que conseguiu encantar a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos EUA já na sua estreia como diretora. E que direção incrível. Certamente sem os nomes de Fennel, Margot Robbie (na co-produção) e Carey Mulligan (como protagonista), o filme não seria o mesmo.
O filme traz Carey Mulligan como a protagonista Cassandra, uma jovem que possuía um futuro promissor, mas que tem sua vida destruída por um trauma. Diante disso, sem perspectivas, ela decide fazer justiça com as próprias mãos. Desde os primeiros minutos do filme, percebe-se a falta que sentiríamos se não houvesse a mão de mulheres fortes à frente do projeto. Esse inicia com cenas em uma boate, onde as imagens sensualizam o corpo masculino, não o feminino, como estamos acostumados a ver. Detalhe, esse, que é apresentado em todo o filme, seja por cenas como essas ou pela falta de profundidade com os personagens masculinos, exaltando a superficialidade e infantilidade.
Além disso, a direção de arte, os figurinos, a maquiagem e o cabelo contribuem para refutar o estereótipo de mulher com “M” maiúsculo. Frequentemente, vemos Cassandra usando roupas delicadas, com tonalidade rosa, cabelos limpos e bem arrumados, aparência bem cuidada, unhas devidamente pintadas, bem ao estilo idealizado pela sociedade em geral. Não apenas isso, mas o cenário da casa onde mora com seus pais é extremamente extravagante, com um visual muito limpo e sempre ressaltando a cor rosa. De forma muito bem aplicada, na minha opinião, Fennel representa a invalidação da crença da sociedade acerca de como uma mulher deve aparentar ou ser e do desconforto ao se deparar com o diferente por meio da reação de Madison (interpretada por Alison Brie) diante de um cenário extravagante que não era “compatível” com o que Cassandra (Mulligan) realmente era. A reação é quase como se falasse “mas você não é uma mulher ‘direita’. Não pode viver em um ambiente como o meu”.
O filme é excelente, com uma trilha sonora e edição cirúrgicas que impedem que seus olhos desviem da tela. Definitivamente, a produção, indicada a 5 Oscars, traz outros questionamentos em seu plano de fundo, o que ratifica a qualidade e profundidade do filme. Recomendo que assistam ao filme sem muitas informações sobre o desenrolar do filme, pois qualquer conhecimento prévio poderá influenciar na sua percepção, e claro, no seu entretenimento.
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Anatomia de uma Queda
4.0 797 Assista AgoraAnatomia de uma Queda é, superficialmente, um filme de investigação criminal. Nele, Samuel cai do terceiro andar de seu chalé nos Alpes franceses e recai sobre sua esposa, Sandra, a suspeita de assassinato. Foi um suicídio, um homicídio, um acidente? Para a diretora Justine Triet pouco importa. Aqui ela pretende discutir a busca pela verdade e o que é a verdade.
Qual o conceito de verdade? É só uma versão melhor contada? Verdade é aquilo que vemos, aquilo que ouvimos ou aquilo que vemos e ouvimos? Uma mentira crível se torna verdade?
Em virtude de os primeiros laudos apontarem à possibilidade de um golpe na cabeça antecedendo a queda, Sandra é vista como homicida e a partir de então a direção de Justine Triet e a excelente edição de Laurent Sénéchal busca elucidar a relatividade das imagens e a fragilidade da verdade. A edição muda de uma perspectiva para outra com precisão e disposição, mas pouco serve para “atestar” uma teoria e “buscar a verdade” e sim para confundir o espectador naquilo que é apenas um “jogo de narrativas”. Quando os planos se alongam, quando os flashbacks se alongam são apenas para que uma imagem, que uma ideia se fixe ao espectador. A edição trabalha para minar nossas certezas sobre a veracidade das imagens que vemos ou esconde elementos cruciais para a compreensão do todo.
As imagens têm um poder enorme. No cinema, o uso de flashbacks tende a ser encarado como verdade, pois é uma reprodução do passado por meio daquilo que se testemunhou visualmente, mas essas reproduções podem ser falsas, representações de mentiras contadas de uma pessoa para outra. E essa dúvida se mantém fixa até o fim do filme, mesmo que a diretora tenha optado por nos entregar um veredito (o que, na minha opinião, foi um equívoco).
O momento mais emblemático do filme se dá quando ouvimos um áudio gravado por Samuel de uma briga entre o casal no dia anterior ao acidente. É apenas um áudio, mas Triet opta por nos ilustrar o que se ouve por um flashback, porém, em um determinado momento, quando a discussão se acalora e há sons que remetem a um embate físico, a diretora nos priva da visão, nos priva da “verdade” e nos questiona novamente sobre o que é a verdade. É aquilo que ouvimos e interpretamos ou é aquela ilustração que nos foi mostrada inicialmente? Se terminássemos o flashback vendo que Samuel foi agressivo, acreditaríamos na inocência de Sandra ou se apenas ouvíssemos ela dizendo no áudio que era agressiva acreditaríamos que ela é culpada?
Ficamos então entre duas versões: a versão do acusado e a versão da acusação. Todo ponto de vista é apenas a visão de um ponto. Em um determinado momento do filme, o filho do casal, Daniel, questiona se é preciso “fingir ter certeza” e lhe é respondido que não, deve-se apenas “escolher”, isto é, deve-se escolher em qual verdade acreditar. E ele assim o faz, porém, o seu depoimento é verdade ou apenas uma escolha da verdade?
O fato curioso durante seu depoimento é que nos é mostrado mais um flashback, mas dessa vez não baseada em um registro factual dos acontecimentos como no caso do áudio, mas com base em um relato de Daniel, porém, diferentemente do anterior, nesse não ouvimos a voz de Samuel, mas sim a de Daniel contando a história que comprovaria a tendência suicida do pai. Esse detalhe põe mais uma dúvida sobre a narrativa: o menino “escolheu” acreditar na mãe e teria mentido para inocentá-la?
Em Anatomia de uma Queda, Justine Triet não nos oferece fundamentos para a respostas que nos dá. O filme inteiro nos opõe versões, oferece perspectivas distintas ou nos dá apenas recortes da realidade (ou de impressões). Dito isso, mesmo com um final fechado, carrega-se de incertezas, não permitindo que o espectador conheça a “verdade” dos personagens.
O Último Duelo
3.9 326O último duelo trata-se do último duelo mortal ocorrido na França oficialmente. Tal duelo ocorre com a justificativa de "deixar na mão de Deus" quem está mentindo.
O filme é dividido em 3 partes ou capítulos, os quais apresentam 3 versões de uma história: a versão do estuprador (Jacques LeGris), a versão do marido da vítima (Jean de Carrouges) e a versão da vítima (Marguerite de Carrouges). A ideia de mostrar 3 versões é muito interessante e engrandece a versão real. Contudo, muitas cenas das versões são completamente desnecessárias, uma vez que apenas repetem a mesma cena, os mesmos diálogos ditos da mesma forma. O contraste entre as versões é muito interessante pois mostra a qualidade do roteiro onde em algumas cenas consegue utilizar os mesmos diálogos, mas com entonações diferentes, gerando uma interpretação completamente diferente do ocorrido.
A duas primeiras versões poucam acrescentam à história, servindo apenas para apresentar características dos personagens e motivações, logo ambas as versões poderiam ser condensadas em uma única.
Já a versão de Marguerite é excelente e somente a parte já é suficiente para manter o filme. Na versão discute -se principalmente o papel da mulher e do homem na sociedade da época. Com diálogos simples, mas muito bem aplicados, a verdade da vítima Magritte é posta em dúvida até mesmo pelo seu próprio marido. Ainda, seu marido ao saber do ocorrido preocupa-se apenas com sua "honra", como se ele fosse a vítima.
Enfim, o filme é longo desnecessariamente, mas que ao chegar na versão real o filme cresce exponencialmente.
007: Sem Tempo para Morrer
3.6 564 Assista AgoraNão basta falar apenas sobre “Sem Tempo para Morrer”, mas também sobre o legado da saga de filmes interpretados por Daniel Craig. Em “Cassino Royale”, primeiro filme da saga, vemos uma ruptura com o que era o James Bond das sagas anteriores, apresentando o que seria essa nova saga: Uma saga mais realista, humana, concisa e sentimental, com pitadas de tradicionalismo. Até então James Bond era um agente secreto imbatível, que sequer tomava tiros ou sofria lesões graves, além de suas missões sempre estarem relacionadas à conjuntura da época, a Guerra Fria entre Capitalismo e Socialismo. Com Daniel Craig não veio um James Bond apenas com cenas de ação mais realistas, mas também uma reformulação profunda do íntimo do personagem. Agora James Bond era tratado como um humano, que erra, se machuca, se decepciona, que desiste. Agora os filmes de 007 tinham ligação, não eram apenas filmes episódicos. Havia uma linha que conectava todos, personagens e organizações que retornavam, traumas que o personagem carregava até os próximos filmes.
Em “Sem Tempo para Morrer” não seria diferente. É o filme mais sentimental e dramático de toda a franquia, e o filme aposta nisso, não só pelo fato de ser a despedida de Daniel Craig no papel clássico, mas também pelo encerramento do arco criado em “Cassino Royale”. Frequentemente, os filmes de 007 iniciam com uma cena de ação de James Bond nos preparando para a música original, feita para o filme. Aqui, James Bond está aposentado, devido aos acontecimentos do seu filme anterior “Spectre”, então o filme começa com James curtindo a vida de aposentado com sua amada Madeleine, quebrando mais um paradigma da franquia. O 007 de Daniel Craig sempre carregou um trauma que foi a morte de Vesper Lynd (Eva Green) em “Cassino Royale” porque foi a primeira vez que ele se apaixonou, se abriu pra alguém, mas esse alguém o traiu. No entanto, em “Sem Tempo para Morrer” ele novamente se apaixona, se abre para alguém, mas novamente esse alguém o trai. Então, o filme se fixa no ressentimento de James para construir sua motivação. A canção original de Billie Eilish e a trilha sonora de Hans Zimmer contribuem muito para o tom do filme e para o engajamento do expectador. O filme valeu a pena esperar, tem belos visuais, ação excelente e o filme mais emocionante de Bond de todos os tempos. Em alguns momentos é desnecessariamente complexo, o que faz parecer o filme longo, mas o tempo extra e a história dão ao seu ato final a gravidade necessária para separá-lo do resto e consolidar o legado de Daniel Craig como o James Bond mais pé no chão de todos.
(Spoiler a partir daqui)
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Pela primeira vez em toda a história de James Bond ele não é o 007 (mesmo que por pouco tempo). Pela primeira vez ele tem uma família (fato que, inclusive, é dito de forma humorada pelo personagem durante o filme), embora em “A Serviço Secreto de Sua Majestade”, de 1969, o personagem tenha se casado. Pela primeira vez ele desiste. Pela primeira vez ele morre. Exatamente, ele morre. O vilão, patético, diga-se de passagem, o qual é interpretado por Rami Malek, desenvolve uma tecnologia capaz de matar pessoas baseado em seu código genético. De certa forma, um vilão muito inteligente, mas que não tem espaço pra mostrar essa inteligência nem explicar qual a real motivação (que na minha opinião não existe nenhuma plausível). Por algum motivo, o vilão resolve fazer James Bond sofrer da mesma forma que ele sofreu, privando-o da sua família. Entretanto, o vilão não mata a família de Bond, mas atua de forma mais cruel, desenvolve a tecnologia para que o próprio James Bond seja a arma que matará a própria família, por meio dessa nanotecnologia, se entrar em contato com ela. Então, aqui o legado da era Craig fala mais alto. Em “Skyfall”, ele se apresenta um personagem saudosista, que é capaz de formar vínculos afetivos e que é passional. Logo, em “Sem Tempo para Morrer”, ele chega à conclusão de que seu tempo acabou. Ele já perdeu tudo o que tinha e todas as pessoas que amava, uma vez que embora sua família esteja viva, ele nunca mais poderá vê-la. Sendo assim, ele desiste e apenas espera os mísseis destruírem a ilha, onde se passa o fim do filme, destruindo a tecnologia maligna, inclusive ele.
Muitos não irão gostar do final devido ao personagem ter morrido ou ter escolhido morrer, mas, na minha opinião, foi apenas a conclusão do que foi iniciado. Desde o primeiro filme, o personagem foi passional, consequentemente, no último filme não poderia ser diferente. Para quem é fã da franquia, acredito que nunca houve um medo súbito pela vida de James Bond. Aqui se tem, aqui se sofre, aqui se arrepende, aqui se desiste. Em suma, “Sem Tempo para Morrer” é um filme sentimental, com conexões com outros filmes, mas que sua ação se basta, então, se você não acompanhou os outros filmes ou não é fã da franquia, esse também é um filme para você, pois tem personagens carismáticos e uma ação glamourosa nível 007 que te deixa na ponta da poltrona.
Nomadland
3.9 896 Assista AgoraQuem é Fern? Por que ela não tem casa? Ela escolheu viver essa vida? Até a meia hora inicial eu buscava por respostas, mas logo percebi que eu não as teria pelo simples fato de a sociedade americana, ou a sociedade em geral, não se importar com essas perguntas, então por que o longa nos diria?
Em Nomadland, a trama gira em torno de Fern (Frances McDormand) que reúne suas coisas e começa a morar em uma van improvisada após a crise imobiliária de 2008, viajando os EUA em busca de empregos temporários para se manter no novo modo de vida. Como já dito, o longa não nos contará histórias sobre Fern, nem fará julgamentos de valor sobre o modo de vida. Ele está preocupado apenas em mostrar o dia a dia dessas pessoas, suas alegrias, suas dificuldades, sem problematizar a conjuntura. Em alguns diálogos há menções sobre a crise de 2008, mas nenhuma crítica ao sistema capitalista dos EUA. Fern e os outros nômades escolheram essa vida ou foram obrigados a vive-la dessa forma? Não importa. Uns gostariam de se conectar com a natureza ou de fugir de centros urbanos, enquanto outros apenas foram obrigados pelo sistema a aderir a essa forma de vida. Inclusive, a própria protagonista pode se enquadrar em ambos os casos, seja pela sua resistência em morar em uma casa com a irmã ou com amigos, seja pelo sentimento de saudade de morar em uma casa quando ela admira os móveis de uma casa.
Vale ressaltar que, além da atuação brilhante de Frances e da direção firme e extremamente competente (principalmente no fato de ela dirigir um elenco formado por não atores), o roteiro e a edição são essenciais para a proposta do filme. Ao falar sobre o roteiro o que mais me marcou foi algo peculiar: As pedras. Ao longo do filme, pedras de diferentes formatos e origens estão constantemente aparecendo na tela, trazendo um significado muito singelo que é externalizado pelos personagens por meio de uma pergunta: “Lar é só uma palavra ou algo que você carrega dentro de você?”. As pedras carregam todo o peso do mundo, toda a perda, toda a memória, sem ser necessário que lhes acrescente profundidade. Elas não estão enraizadas, toda sua história está gravada em si mesmo, como acontece com os nômades e suas vans, trailers, ônibus, etc. Um detalhe pequeno com um significado enorme.
Já ao falar sobre a edição, é impossível trata-la como um fato isolado, pois ela não faria sentido sem o roteiro. Do início ao fim ela ocorre de modo muito frenético, pulando de uma fala a outra, de uma pequena atividade a outra, como se fosse algo mal feito. Contudo, a trama se trata sobre um modo de vida que está em movimento constante, ou seja, essa frenesia é apenas a rotina nômade, que aos poucos nós vamos normalizando. Além disso, a edição evita que o filme caia no cliché dramático com diálogos expositivos, como na cena em que uma senhora dá conselhos de vida à protagonista e lhe explica que sua aliança representa um amor sem início e fim e subitamente o filme corta para a personagem abrindo uma lata de sopa. Novamente, o filme não tem a intenção de apelar para o lado sentimental (evitando até que a trilha sonora melancólica se alongue muito), ele apenas quer mostrar a rotina feliz e difícil dessas pessoas.
Nomadland é simples, contemplativo e muito delicado ao tratar, de forma quase documental, a rotina de nômades americanos, com o intuito apenas de legitimar toda e qualquer forma de vida. Acredito que suas 6 indicações ao Oscar 2021 foram muito merecidas.
Meu Pai
4.4 1,2K Assista AgoraPerda de memória, confusão, desorientação, dificuldade em reconhecer familiares e amigos e movimentos e fala repetitivos são sintomas que, fora de contexto, poderia se tratar da demência, porém, esses são sensações que sentimos ao assistir ao filme.
The Father, ou Meu Pai, é baseado na aclamada peça de mesmo nome de Florian Zeller, que, por sinal, também dirige o filme. O longa começa com um drama aparentemente simples, articulado em uma dinâmica familiar. Anne (Olivia Colman) está perdendo a paciência com seu pai Anthony (Anthony Hopkins), cujo controle da realidade está desaparecendo, mas que se recusa a permitir que uma cuidadora cuide dele. Anne está se mudando para Paris e precisa garantir a segurança dele, portanto, antes de partir, ela deve encontrar alguém que o auxiliará. Simples, não? Contudo, com o passar do tempo, exatamente como a demência sofrida por Anthony, nós vamos desconfiando do que vimos e ouvimos ou do que achamos que vimos e ouvimos.
Ela realmente vai para Paris? Ela comprou frango, não? Existe uma outra filha? Eu já não vi isso? Todas são perguntas que nos fazemos durante o filme, pois, assim como Anthony, perdemos a noção do que é real e estamos completamente perdidos no labirinto em que o filme nos inseriu. Estamos no mesmo apartamento, mas ao mesmo tempo ele não é o mesmo. Nós, constantemente, temos nossas teorias confirmadas e refutadas na cena seguinte. Desorientação total.
Além do longa de Zeller nos fazer sentir a sensação de desorientação, ele também utiliza de muitas rimas visuais para expressar a mesma sensação. Diversas vezes Anthony se encontra em busca do seu relógio perdido, pois, sem ele a noção de tempo não existe, e, segundo o mesmo, o faz sentir-se “completamente nu” sem ele, ou seja, sem o relógio perco minha sanidade, minha noção de tempo, minha memória. Outro exemplo é quando Anthony compara sua situação como uma árvore que está perdendo suas folhas, sua vida, sua sanidade, tornando-se senil.
Outro ponto que deve ser destacado é a edição do filme. Ela é vital para a sensação de desorientação existir, uma vez que é por meio dela que nos questionamos se já tínhamos visto o que acabamos de ver ou se perdemos alguma coisa (Para aqueles que assistiram, a cena do frango é o ápice de desorientação que pudemos sentir. Sensacional!). Em suma, The Father é um retrato brutal de como deve ser a sensação de perder o controle da realidade. Merecidamente, o filme foi indicado a 6 Oscars, merecendo vencer pelo menos 3.
Não tive a oportunidade de assistir à peça, mas acho muito difícil ela ser tão boa quanto o filme, pois ele é certamente uma das adaptações de palco para tela mais impressionantes dos últimos tempos.
Estados Unidos Vs Billie Holiday
3.3 150 Assista AgoraThe United States vs. Billie Holiday é vago, raso e pouco compreensível. Primeiramente, qual a proposta do filme? É mostrar a carreira de sucesso de uma das cantoras de jazz mais influentes de todos os tempos? É mostrar a decadência da cantora e seu vício com drogas? É mostrar a força que a sua música “Strange Fruit” tinha e o incômodo gerado no governo devido ao sucesso da música? Acredito que todas as alternativas estão corretas. O filme dirigido por Lee Daniels tenta trazer todas essas propostas sem se aprofundar em nenhuma delas. Durante o filme há passagens de tempo muito abruptas e desconexas, sendo apenas um compilado de momentos mais importantes da época em que se escolheu tratar.
Em outras palavras, o longa, que conseguiu uma indicação de melhor atriz no Oscar 2021 para Andra Day (interpretando Billie Holiday), não esboça peso nem para a carreira da cantora nem para a música. Não tocar a música durante o filme foi uma decisão acertada, uma vez que nos passou o sentimento que se sentiu na época com a censura da música. Contudo, não nos foi apresentado o real peso da música, da cantora ou dos personagens coadjuvantes na sua história.
Se você não conhece nada sobre a cantora, você continuará sem saber. Se você não conhece nada sobre a música ou sobre a época, você continuará sem saber, pois apenas flashes de momentos marcantes não são o suficiente para dar consistência a uma história. Por outro lado, se você conhece tudo o que já mencionei, você sairá tão decepcionado quanto.
Mulan
3.2 1,0K Assista AgoraMulan, adaptação Live action da animação clássica da Disney, acertou em se afastar da animação, mas errou ao se afastar demais. A tentativa de se distanciar da animação clássica veio desde antes das gravações ao decidir que o filme não seria um musical nem teria o personagem Mushu, utilizado como alívio cômico no longa animado, para que aparentasse algo mais “sério”. Contudo, o filme se contradiz diversas vezes ao apresentar suas ideias, desde diálogos forçados e mal aplicados até cenas extremamente irreais e meramente plásticas. Não somente isso, a tentativa de distanciamento da animação ora ou outra parece cada vez mais frágil, uma vez que insere as músicas clássicas de modo instrumental no plano de fundo (mesmo inicialmente afirmando que não as usaria) e reutiliza cenas da animação, mas com um tom mais “real”.
Por outro lado, diferentemente da animação, nesse filme a inserção da personagem de Mulan no regimento é bem mais compreensível devido a decisão de utilizar atores mais franzinos e frágeis de modo que Mulan não evidenciasse tão facilmente o fato de ser mulher.
Acredito que o longa tentou respeitar a cultura asiática ao passo que tentava discutir sobre a desigualdade de gênero e empoderamento feminino, porém, seus diálogos são extremamente rasos e pouco assertivos, agindo apenas como frases de efeitos sendo liberadas a cada minuto de filme. A vilã Xianniang, personagem criada unicamente para o longa, só existe para ser um contraponto com Mulan; fato, esse, dito pela própria personagem: “Nós somos iguas, mas com uma diferença. Eles aceitam você, mas nunca vão me aceitar”.
Além disso, algo que a animação demonstrou lindamente é que você pode ser e fazer o que desejar fazer, independente de quem você é. Na animação, Mulan era apenas uma garota que assumiu o lugar do seu pai na convocação para a guerra. No longa de 2020, no entanto, Mulan é claramente alguém mais forte, mais inteligente e com um “chi mais forte”. Uma mulher poderia liderar um exército sem ser especial, ela não precisaria de um “chi” mais forte. Compreendo a mensagem de ela precisar esconder o seu “chi” porque não é algo bem visto na sociedade, demonstrando a necessidade de ser alguém que você não é, mas acredito que isso poderia ter sido demonstrado de outras formas, sem torná-la um ser imbatível.
Em suma, o filme é um bom entretenimento, mas nada além disso. Ainda bem que a animação de 1998 existe, pois se dependesse do longa de 2020, o tiro sairia pela culatra. Mulan de 1998 continua extremamente atual e válido..
Bela Vingança
3.8 1,3K Assista AgoraPromising Young Woman, ou Bela Vingança no Brasil, é escrito, dirigido e produzido por Emerald Fennel, que conseguiu encantar a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos EUA já na sua estreia como diretora. E que direção incrível. Certamente sem os nomes de Fennel, Margot Robbie (na co-produção) e Carey Mulligan (como protagonista), o filme não seria o mesmo.
O filme traz Carey Mulligan como a protagonista Cassandra, uma jovem que possuía um futuro promissor, mas que tem sua vida destruída por um trauma. Diante disso, sem perspectivas, ela decide fazer justiça com as próprias mãos. Desde os primeiros minutos do filme, percebe-se a falta que sentiríamos se não houvesse a mão de mulheres fortes à frente do projeto. Esse inicia com cenas em uma boate, onde as imagens sensualizam o corpo masculino, não o feminino, como estamos acostumados a ver. Detalhe, esse, que é apresentado em todo o filme, seja por cenas como essas ou pela falta de profundidade com os personagens masculinos, exaltando a superficialidade e infantilidade.
Além disso, a direção de arte, os figurinos, a maquiagem e o cabelo contribuem para refutar o estereótipo de mulher com “M” maiúsculo. Frequentemente, vemos Cassandra usando roupas delicadas, com tonalidade rosa, cabelos limpos e bem arrumados, aparência bem cuidada, unhas devidamente pintadas, bem ao estilo idealizado pela sociedade em geral. Não apenas isso, mas o cenário da casa onde mora com seus pais é extremamente extravagante, com um visual muito limpo e sempre ressaltando a cor rosa. De forma muito bem aplicada, na minha opinião, Fennel representa a invalidação da crença da sociedade acerca de como uma mulher deve aparentar ou ser e do desconforto ao se deparar com o diferente por meio da reação de Madison (interpretada por Alison Brie) diante de um cenário extravagante que não era “compatível” com o que Cassandra (Mulligan) realmente era. A reação é quase como se falasse “mas você não é uma mulher ‘direita’. Não pode viver em um ambiente como o meu”.
O filme é excelente, com uma trilha sonora e edição cirúrgicas que impedem que seus olhos desviem da tela. Definitivamente, a produção, indicada a 5 Oscars, traz outros questionamentos em seu plano de fundo, o que ratifica a qualidade e profundidade do filme. Recomendo que assistam ao filme sem muitas informações sobre o desenrolar do filme, pois qualquer conhecimento prévio poderá influenciar na sua percepção, e claro, no seu entretenimento.