O único acerto dessa série é ter uma música das Mercenárias. Infelizmente é uma policial ouvindo (a música não era Polícia, claro).
Nem tudo que é politicamente interessante tem relevância estética. Neste caso, creio que nem a parte da política funciona: o Brasil precisa mesmo de mais narrativas cujo limite da crítica da justiça seja transformá-la em vingança? Nada nesta série se presta a um bom papel.
O deus de Kieslowski está mais para Exu do que para a bíblia cristã: ele junta e separa, ata e desata, inverte as consequências e as causas, não dá para quem merece, joga dados o tempo inteiro, desmente a aparente solidez das palavras ao mostrar que o significado de uma única letra sequer nunca poderá ser unívoco. E este é um projeto de atualidade acertadíssima, cuja vigência está nas obras de outros europeus como Agamben, Didi-Huberman ou Rancière, aqueles que se dedicam a mostrar como a solidez da cultura ocidental, de seu par logos e letra, está fundada em um mar de contingências e abismos. Como se pode admitir que uma única frase de um texto religioso possa ter significado universal quando a própria língua desmente todos os dias esta possibilidade? E como se pode ter fundado todo um mundo conceitual a partir da crença na abstração da racionalidade unívoca, que nada fez ao redor do mundo a não ser separar um lado de dentro de um lado de fora?
O Decálogo é mais um capítulo de uma ruptura urgente, e mostra em funcionamento - a partir de pessoas normais que moram em um conjunto de prédios residenciais numa periferia, imagine - um mundo que passa muito longe da causalidade pretendida pelos impérios de deus ou da razão. É este o tamanho desta obra, e assim ela deve ser celebrada.
A premissa base de O Mecanismo é muito perigosa, e poderia ser resumida em algo como "a política é um jogo de aparências onde sempre se perde". Todos os partidos, todas as normas e códigos de conduta, todos os meios de comunicação, todos os procedimentos regimentares fazem parte de um mesmo processo que visa colocar uma cortina de fumaça na real finalidade da democracia: enganar. Não existe, assim, nenhuma possibilidade de se agir com alguma verdade ou convicção política/ideológica legítima, mas o núcleo do poder está sempre corrompido, e essa é a essencialidade de seu funcionamento (o que a própria abertura da série sintetiza bem, em seu ímpeto homogeneizante). Neste fundo, portanto, não há nenhuma diferença entre ser de esquerda ou direita, liberal ou conservador, comunista ou fascista: não há sequer a existência de um espaço político legítimo, pois tudo é falso e aparente, tudo é maleável e penetrável pelo "mecanismo".
Se formos analisar, apenas os personagens de fato fictícios são dotados de valores positivos como perseverança, honestidade, obstinação, apego à família; todos os personagens com correlatos reais, por outro lado, padecem de algum mal moral ou ético, servem-se do sistema a seu favor, porque esta é uma implicação natural de conseguir nele estar, a ele pertencer. Os bons personagens - os fictícios, aqueles que dão fundo psicológico à trama - agem e conseguem seus objetivos unicamente por se afastarem dos mecanismos institucionais, como se a única possibilidade de obter algo a partir de um sistema jurídico/político/penal podre fosse atravessando suas regras e leis criadas unicamente para atrapalhar o que seria a verdadeira justiça. Nisto, pode-se ver a violação de regras básicas de ação como algo que é unicamente "necessário" aos fins - salvo no caso do juiz Rico, que - como se sinaliza - se incorporará ao "mecanismo" futuramente.
Nesta perspectiva, é possível entender por que O Mecanismo situa seus bons personagens acima ou fora - como uma voz em off - do espaço público tradicional, e qual a verdadeira ideologia que embasa uma concepção de que a política é necessariamente um jogo platônico. O que esquecem os roteiristas é que, aqui, no Brasil de 2019, não há lado de fora da política: por mais que se acredite que "tudo o que está aí" é errado, este "tudo" não vai deixar de ter implicações práticas em nosso cotidiano, tampouco se pode igualar uma política de contingenciamento a uma política de investimento, por exemplo: há infinitas formas de se fazer política, e cada uma delas é guiada por ideias diferentes sobre o que é o Estado, a sociedade, o indivíduo. Eis o perigo do ponto de vista que se quer isento, portanto, como tanta gente veio aqui exigir: a isenção é parte de uma crença de que a história das lutas políticas já teve um fim. Felizmente, ainda estamos bem longe deste ponto.
A série apresenta um bom manejo da linguagem do entretenimento que a Netflix pisa e repisa ano após ano (com sucesso), funcionando assim ao que pretende ser (daí minha nota): um produto regular. No entanto, confesso que larguei La Casa de Papel no meio desta temporada, e acho que três cenas "menores" da série podem perfeitamente explicar o porquê.
A primeira, e principal delas, diz respeito à condição imposta pela inspetora a um dos informantes, que dividia a cela com o personagem Berlim. Esta condição, mantida em suspenso até sua revelação no final da sequência, é sobre a obrigatoriedade do informante aceitar submeter-se a um processo de castração química. A cena é construída de modo a que esta condição surja como momento de gozo compartilhado entre a personagem que detém a empatia do espectador (Raquel) e o próprio espectador, o que reafirma a intenção da direção em colocar este método numa chave indiscutivelmente positiva. A naturalização de um procedimento como este, como se sua aplicabilidade e eficácia tivessem sido amplamente comprovadas, me pareceu, no mínimo, irresponsável (para não dizem mal-intencionada) por parte tanto de roteiro, quanto de direção.
A segunda, e mais absurda delas, é a sequência em que Denver faz um longo discurso para a refém Mónica acerca do suposto erro que seria tomar uma pílula abortiva, utilizando uma narrativa emocionada (e emocionante) sobre sua própria vida para justificar sua intervenção. Novamente, a série me parece cair em um erro idêntico ao anterior: apresentar conteúdo polêmico e discutível com naturalidade e irresponsabilidade, utilizando a empatia do público com os personagens para passar uma série de valores conservadores "debaixo dos panos".
A terceira, e mais comum delas, se dá na sequência de Tóquio e Alisson Parker no banheiro, e creio que essa carece de explicação, pois me digam: qual a função que o beijo entre as duas têm para a narrativa, para a construção das personagens ou para a aquela cena? E qual terá sido a intenção da direção em inserir algo assim no meio da narrativa? Isso eu deixo pra vocês responderem.
Em suma, a verdade é que, em paralelo a toda a ~desconstrução que a Netflix apresenta em seus perfis, o conteúdo de seus produtos ainda é, majoritariamente, conservador, tanto em linguagem (o que nem entra em conta nesta crítica) como em valores (o que denuncia o que de fato permanece dos produtos mais populares da plataforma). É bom ficar de olho.
As custosas horas assistindo a esta série me fizeram pensar que via uma novela de Walcyr Carrasco. Desde Tropa de Elite, Padilha já mostrava que era um cineasta sem nenhum compromisso ético com o que produzia: aqui, comprova que esta é uma constante em seu trabalho. Sua estética de "jogar pra galera", de apostar no sadismo mais senso comum para construir seus personagens e acusar seus anti-heróis (muitas vezes, partindo de mero moralismo classe-média, como ocorre sobretudo com as personagens femininas desta serie) é simplesmente criminosa. Padilha adora fazer seu público puritano gozar de alegria expondo ao ridículo e à violência seus personagens portadores de anti-valores (muitos deles vagos, como luxúria ou burrice - em típica acusação de classe), e justificando processos sociais muito complexos com isso. Pense sobretudo nas cenas do diretor da Petrobrás dentro da prisão estadual, em como elas se assemelham ao que vimos (com êxtase ou com assombro) em Tropa de Elite.
Assim, sob a égide deste possante artista, só poderia surgir uma série que assume as rédeas da verdade e pega a mão de seus espectadores em direção a um pretenso "conhecimento dos fatos". São colocadas, então, sob o veio da veracidade as conclusões e os vieses dos diretores e roteiristas: esconde-se o mecanismo ficcional justamente expondo-o na adaptação e no falseamento dos nomes. A sacada de Padilha foi justamente esconder-se na ficção, criar o movimento de reconhecimento (ah, esse é o Moro!, ah, essa é a Dilma!) e então atrelar personagens fictícios a personagens históricos. Daí poder, por exemplo, utilizar termos como "sangria" e "acordo" - consagrados em momentos factuais - na boca de personagens reais que não aqueles que de fato os disseram, condicionando uma visão sobre eles; daí colocar como fatos reais aquilo que é mera especulação, naturalizando a narrativa ficcional dentro da narrativa histórica; daí amarrar valores moralistas - apego aos filhos, amor da esposa, sobriedade - na concepção positiva de sujeitos que agem publicamente, como dizendo "estes sujeitos agiram corretamente porque são bons, lógico" (se você conseguir explicar a importância narrativa das cenas de Moro com a mulher e a filha, você ganha um doce).
A verdade da série está em escamotear aquilo que é ideologia e interpretação (sem entrar no mérito de qual seja a ideologia, ou do grau de acerto histórico da interpretação, o que é outro assunto...), criando um produto que pode funcionar esteticamente, mas que é eticamente deplorável, dizendo o mínimo.
Disse sobre a primeira temporada, digo sobre a segunda: o grande problema de Black Mirror é que ela não nos leva a nada além de um riso breve: não propõe possibilidades, não clareia brechas, não nos fere em nenhum momento.
Qual é a grande lição que devemos tomar de The Waldo Moment? Que devemos crer na nossa democracia atual? Como se existisse algum tipo de oposição crucial entre esse autoritarismo distópico e o sistema democrático que deixa milhares de mortos e feridos todos os anos em nome de interesses privados: são, no frigir dos ovos, dois estágios de uma mesma farsa, ora: é até irresponsável dispor isto nestes termos.
Quanto a White Bear: em que momento nós, espectadores, somos acusados de termos sido também parte (ainda que inconsciente) dos voyeurs da tortura? E como se pode distanciar a Netflix (que oferece produtos como filmes do Tarantino) dos meios de veiculação de um programa como aquele que nos é apresentado? Será mesmo que estamos diante de um sistema que é uma alternativa ao tipo de mídia que é ali apresentado?
Be Right Back parece dar o exemplo mais claro disso que eu estou tentando provar aqui: vemos a personagem principal diante do dilema da memória, suas atitudes em relação à tecnologia é aquilo o que está em jogo. E quanto àqueles que concebem e fabricam esse tipo de coisa: onde eles estão sendo acusados ou confrontados? Parece muitas vezes que a série adere a uma crença em um ritmo natural (ênfase aqui) da evolução tecnológica, despida de ideologia, como se quem tivesse que saber lidar com isso fosse a sociedade. Mas o problema está sobretudo na outra ponta do processo.
Black Mirror é uma série boa, sim, claro: mas ainda é uma série difundida e vendida por um grupo específico, e que atende a interesses bem claros que se deixam ver nos seus limites de representação. É algo sempre intransitivo, conformista em seu inconformismo. Esse aspecto ambivalente da série fica claro quando se está diante de alguém que crê cegamente no discurso que nos é proposto, pois, veja só, não resta dúvidas sobre como a série faz parte do sistema que tenta pintar como um oposto a si.
A narrativa deste episódio é um tanto quanto estranha em seus valores: para comprovar isso, basta ver como numerosas pessoas que são a favor de um punitivismo irrefletido compram esta narrativa, assim como aqueles que são contrários a isso também a compram: de que lado está a direção, afinal? Ao representar aqueles que são responsáveis pela justiça euforicamente expondo alguém - ainda que um simulacro de alguém - a uma prisão sádica, não parece haver algo que cumpre com as necessidades mais primitivas de punição exemplar que vivem na nossa sociedade atual? E quando Matt é fichado sem que se diga a duração desta punição, não parece haver no plano do real a mesma realização da demanda que ganha vazão no simulacro? Black Mirror muitas vezes parece dar respaldo ao próprio mundo que é criticado em Black Mirror.
Os dilemas morais colocados são de fato interessantes, mas esbarram o tempo todo na forma série (o que me faz inclusive odiar esse formato): sempre o que se vê em cena são as atitudes de alguém que está entre "eles" e "a espécie humana", nunca é um"eu". Isso ocorre pela dependência da série em relação ao seu espectador, a preocupação em não ofendê-lo a ponto de correr o risco de perder um cliente.
Tanto The Nacional Anthem quanto Fifteen Million Merits, por serem episódios sobre a relação imagem-consumidor, perdem a enorme chance de propor de fato uma confrontação que quebre a tal da quarta parede: durante o primeiro, pode-se dizer que havia tantos de nós ansiosos para ver a cena do primeiro ministro com a porca quanto os personagens ali expostos; durante o segundo, há uma condescendência enorme com o conteúdo fortemente ideológico da canção que carrega a "pureza" da personagem, ademais do fato de não ser proposta nenhuma saída ao sistema ali exposto, o que faz com que a própria série coloque-se como um dos produtos daquele sistema que ela mesmo critica, afinal ela é também originária de um conglomerado que gera conteúdo multimídia para todo o mundo, etc, etc.
Mas tudo bem, vai: há acertos interessantes nesta temporada, algo que nas próximas vai se tornar cada vez mais raro.
Comprar Ingressos
Este site usa cookies para oferecer a melhor experiência possível. Ao navegar em nosso site, você concorda com o uso de cookies.
Se você precisar de mais informações e / ou não quiser que os cookies sejam colocados ao usar o site, visite a página da Política de Privacidade.
Cidade Invisível (1ª Temporada)
4.0 751Finalmente um conteúdo infanto-juvenil com personagens nacionais.
Bom Dia, Verônica (1ª Temporada)
4.2 760 Assista AgoraO único acerto dessa série é ter uma música das Mercenárias. Infelizmente é uma policial ouvindo (a música não era Polícia, claro).
Nem tudo que é politicamente interessante tem relevância estética. Neste caso, creio que nem a parte da política funciona: o Brasil precisa mesmo de mais narrativas cujo limite da crítica da justiça seja transformá-la em vingança? Nada nesta série se presta a um bom papel.
O Decálogo
4.7 108O deus de Kieslowski está mais para Exu do que para a bíblia cristã: ele junta e separa, ata e desata, inverte as consequências e as causas, não dá para quem merece, joga dados o tempo inteiro, desmente a aparente solidez das palavras ao mostrar que o significado de uma única letra sequer nunca poderá ser unívoco. E este é um projeto de atualidade acertadíssima, cuja vigência está nas obras de outros europeus como Agamben, Didi-Huberman ou Rancière, aqueles que se dedicam a mostrar como a solidez da cultura ocidental, de seu par logos e letra, está fundada em um mar de contingências e abismos. Como se pode admitir que uma única frase de um texto religioso possa ter significado universal quando a própria língua desmente todos os dias esta possibilidade? E como se pode ter fundado todo um mundo conceitual a partir da crença na abstração da racionalidade unívoca, que nada fez ao redor do mundo a não ser separar um lado de dentro de um lado de fora?
O Decálogo é mais um capítulo de uma ruptura urgente, e mostra em funcionamento - a partir de pessoas normais que moram em um conjunto de prédios residenciais numa periferia, imagine - um mundo que passa muito longe da causalidade pretendida pelos impérios de deus ou da razão. É este o tamanho desta obra, e assim ela deve ser celebrada.
O Mecanismo (2ª Temporada)
3.5 101A premissa base de O Mecanismo é muito perigosa, e poderia ser resumida em algo como "a política é um jogo de aparências onde sempre se perde". Todos os partidos, todas as normas e códigos de conduta, todos os meios de comunicação, todos os procedimentos regimentares fazem parte de um mesmo processo que visa colocar uma cortina de fumaça na real finalidade da democracia: enganar. Não existe, assim, nenhuma possibilidade de se agir com alguma verdade ou convicção política/ideológica legítima, mas o núcleo do poder está sempre corrompido, e essa é a essencialidade de seu funcionamento (o que a própria abertura da série sintetiza bem, em seu ímpeto homogeneizante). Neste fundo, portanto, não há nenhuma diferença entre ser de esquerda ou direita, liberal ou conservador, comunista ou fascista: não há sequer a existência de um espaço político legítimo, pois tudo é falso e aparente, tudo é maleável e penetrável pelo "mecanismo".
Se formos analisar, apenas os personagens de fato fictícios são dotados de valores positivos como perseverança, honestidade, obstinação, apego à família; todos os personagens com correlatos reais, por outro lado, padecem de algum mal moral ou ético, servem-se do sistema a seu favor, porque esta é uma implicação natural de conseguir nele estar, a ele pertencer. Os bons personagens - os fictícios, aqueles que dão fundo psicológico à trama - agem e conseguem seus objetivos unicamente por se afastarem dos mecanismos institucionais, como se a única possibilidade de obter algo a partir de um sistema jurídico/político/penal podre fosse atravessando suas regras e leis criadas unicamente para atrapalhar o que seria a verdadeira justiça. Nisto, pode-se ver a violação de regras básicas de ação como algo que é unicamente "necessário" aos fins - salvo no caso do juiz Rico, que - como se sinaliza - se incorporará ao "mecanismo" futuramente.
Nesta perspectiva, é possível entender por que O Mecanismo situa seus bons personagens acima ou fora - como uma voz em off - do espaço público tradicional, e qual a verdadeira ideologia que embasa uma concepção de que a política é necessariamente um jogo platônico. O que esquecem os roteiristas é que, aqui, no Brasil de 2019, não há lado de fora da política: por mais que se acredite que "tudo o que está aí" é errado, este "tudo" não vai deixar de ter implicações práticas em nosso cotidiano, tampouco se pode igualar uma política de contingenciamento a uma política de investimento, por exemplo: há infinitas formas de se fazer política, e cada uma delas é guiada por ideias diferentes sobre o que é o Estado, a sociedade, o indivíduo. Eis o perigo do ponto de vista que se quer isento, portanto, como tanta gente veio aqui exigir: a isenção é parte de uma crença de que a história das lutas políticas já teve um fim. Felizmente, ainda estamos bem longe deste ponto.
La Casa de Papel (Parte 1)
4.2 1,3K Assista AgoraA série apresenta um bom manejo da linguagem do entretenimento que a Netflix pisa e repisa ano após ano (com sucesso), funcionando assim ao que pretende ser (daí minha nota): um produto regular. No entanto, confesso que larguei La Casa de Papel no meio desta temporada, e acho que três cenas "menores" da série podem perfeitamente explicar o porquê.
A primeira, e principal delas, diz respeito à condição imposta pela inspetora a um dos informantes, que dividia a cela com o personagem Berlim. Esta condição, mantida em suspenso até sua revelação no final da sequência, é sobre a obrigatoriedade do informante aceitar submeter-se a um processo de castração química. A cena é construída de modo a que esta condição surja como momento de gozo compartilhado entre a personagem que detém a empatia do espectador (Raquel) e o próprio espectador, o que reafirma a intenção da direção em colocar este método numa chave indiscutivelmente positiva. A naturalização de um procedimento como este, como se sua aplicabilidade e eficácia tivessem sido amplamente comprovadas, me pareceu, no mínimo, irresponsável (para não dizem mal-intencionada) por parte tanto de roteiro, quanto de direção.
A segunda, e mais absurda delas, é a sequência em que Denver faz um longo discurso para a refém Mónica acerca do suposto erro que seria tomar uma pílula abortiva, utilizando uma narrativa emocionada (e emocionante) sobre sua própria vida para justificar sua intervenção. Novamente, a série me parece cair em um erro idêntico ao anterior: apresentar conteúdo polêmico e discutível com naturalidade e irresponsabilidade, utilizando a empatia do público com os personagens para passar uma série de valores conservadores "debaixo dos panos".
A terceira, e mais comum delas, se dá na sequência de Tóquio e Alisson Parker no banheiro, e creio que essa carece de explicação, pois me digam: qual a função que o beijo entre as duas têm para a narrativa, para a construção das personagens ou para a aquela cena? E qual terá sido a intenção da direção em inserir algo assim no meio da narrativa? Isso eu deixo pra vocês responderem.
Em suma, a verdade é que, em paralelo a toda a ~desconstrução que a Netflix apresenta em seus perfis, o conteúdo de seus produtos ainda é, majoritariamente, conservador, tanto em linguagem (o que nem entra em conta nesta crítica) como em valores (o que denuncia o que de fato permanece dos produtos mais populares da plataforma). É bom ficar de olho.
O Mecanismo (1ª Temporada)
3.5 526As custosas horas assistindo a esta série me fizeram pensar que via uma novela de Walcyr Carrasco. Desde Tropa de Elite, Padilha já mostrava que era um cineasta sem nenhum compromisso ético com o que produzia: aqui, comprova que esta é uma constante em seu trabalho. Sua estética de "jogar pra galera", de apostar no sadismo mais senso comum para construir seus personagens e acusar seus anti-heróis (muitas vezes, partindo de mero moralismo classe-média, como ocorre sobretudo com as personagens femininas desta serie) é simplesmente criminosa. Padilha adora fazer seu público puritano gozar de alegria expondo ao ridículo e à violência seus personagens portadores de anti-valores (muitos deles vagos, como luxúria ou burrice - em típica acusação de classe), e justificando processos sociais muito complexos com isso. Pense sobretudo nas cenas do diretor da Petrobrás dentro da prisão estadual, em como elas se assemelham ao que vimos (com êxtase ou com assombro) em Tropa de Elite.
Assim, sob a égide deste possante artista, só poderia surgir uma série que assume as rédeas da verdade e pega a mão de seus espectadores em direção a um pretenso "conhecimento dos fatos". São colocadas, então, sob o veio da veracidade as conclusões e os vieses dos diretores e roteiristas: esconde-se o mecanismo ficcional justamente expondo-o na adaptação e no falseamento dos nomes. A sacada de Padilha foi justamente esconder-se na ficção, criar o movimento de reconhecimento (ah, esse é o Moro!, ah, essa é a Dilma!) e então atrelar personagens fictícios a personagens históricos. Daí poder, por exemplo, utilizar termos como "sangria" e "acordo" - consagrados em momentos factuais - na boca de personagens reais que não aqueles que de fato os disseram, condicionando uma visão sobre eles; daí colocar como fatos reais aquilo que é mera especulação, naturalizando a narrativa ficcional dentro da narrativa histórica; daí amarrar valores moralistas - apego aos filhos, amor da esposa, sobriedade - na concepção positiva de sujeitos que agem publicamente, como dizendo "estes sujeitos agiram corretamente porque são bons, lógico" (se você conseguir explicar a importância narrativa das cenas de Moro com a mulher e a filha, você ganha um doce).
A verdade da série está em escamotear aquilo que é ideologia e interpretação (sem entrar no mérito de qual seja a ideologia, ou do grau de acerto histórico da interpretação, o que é outro assunto...), criando um produto que pode funcionar esteticamente, mas que é eticamente deplorável, dizendo o mínimo.
Black Mirror (2ª Temporada)
4.4 753 Assista AgoraDisse sobre a primeira temporada, digo sobre a segunda: o grande problema de Black Mirror é que ela não nos leva a nada além de um riso breve: não propõe possibilidades, não clareia brechas, não nos fere em nenhum momento.
Qual é a grande lição que devemos tomar de The Waldo Moment? Que devemos crer na nossa democracia atual? Como se existisse algum tipo de oposição crucial entre esse autoritarismo distópico e o sistema democrático que deixa milhares de mortos e feridos todos os anos em nome de interesses privados: são, no frigir dos ovos, dois estágios de uma mesma farsa, ora: é até irresponsável dispor isto nestes termos.
Quanto a White Bear: em que momento nós, espectadores, somos acusados de termos sido também parte (ainda que inconsciente) dos voyeurs da tortura? E como se pode distanciar a Netflix (que oferece produtos como filmes do Tarantino) dos meios de veiculação de um programa como aquele que nos é apresentado? Será mesmo que estamos diante de um sistema que é uma alternativa ao tipo de mídia que é ali apresentado?
Be Right Back parece dar o exemplo mais claro disso que eu estou tentando provar aqui: vemos a personagem principal diante do dilema da memória, suas atitudes em relação à tecnologia é aquilo o que está em jogo. E quanto àqueles que concebem e fabricam esse tipo de coisa: onde eles estão sendo acusados ou confrontados? Parece muitas vezes que a série adere a uma crença em um ritmo natural (ênfase aqui) da evolução tecnológica, despida de ideologia, como se quem tivesse que saber lidar com isso fosse a sociedade. Mas o problema está sobretudo na outra ponta do processo.
Black Mirror é uma série boa, sim, claro: mas ainda é uma série difundida e vendida por um grupo específico, e que atende a interesses bem claros que se deixam ver nos seus limites de representação. É algo sempre intransitivo, conformista em seu inconformismo. Esse aspecto ambivalente da série fica claro quando se está diante de alguém que crê cegamente no discurso que nos é proposto, pois, veja só, não resta dúvidas sobre como a série faz parte do sistema que tenta pintar como um oposto a si.
Black Mirror: White Christmas
4.5 452A narrativa deste episódio é um tanto quanto estranha em seus valores: para comprovar isso, basta ver como numerosas pessoas que são a favor de um punitivismo irrefletido compram esta narrativa, assim como aqueles que são contrários a isso também a compram: de que lado está a direção, afinal? Ao representar aqueles que são responsáveis pela justiça euforicamente expondo alguém - ainda que um simulacro de alguém - a uma prisão sádica, não parece haver algo que cumpre com as necessidades mais primitivas de punição exemplar que vivem na nossa sociedade atual? E quando Matt é fichado sem que se diga a duração desta punição, não parece haver no plano do real a mesma realização da demanda que ganha vazão no simulacro? Black Mirror muitas vezes parece dar respaldo ao próprio mundo que é criticado em Black Mirror.
Black Mirror (1ª Temporada)
4.4 1,3K Assista AgoraOs dilemas morais colocados são de fato interessantes, mas esbarram o tempo todo na forma série (o que me faz inclusive odiar esse formato): sempre o que se vê em cena são as atitudes de alguém que está entre "eles" e "a espécie humana", nunca é um"eu". Isso ocorre pela dependência da série em relação ao seu espectador, a preocupação em não ofendê-lo a ponto de correr o risco de perder um cliente.
Tanto The Nacional Anthem quanto Fifteen Million Merits, por serem episódios sobre a relação imagem-consumidor, perdem a enorme chance de propor de fato uma confrontação que quebre a tal da quarta parede: durante o primeiro, pode-se dizer que havia tantos de nós ansiosos para ver a cena do primeiro ministro com a porca quanto os personagens ali expostos; durante o segundo, há uma condescendência enorme com o conteúdo fortemente ideológico da canção que carrega a "pureza" da personagem, ademais do fato de não ser proposta nenhuma saída ao sistema ali exposto, o que faz com que a própria série coloque-se como um dos produtos daquele sistema que ela mesmo critica, afinal ela é também originária de um conglomerado que gera conteúdo multimídia para todo o mundo, etc, etc.
Mas tudo bem, vai: há acertos interessantes nesta temporada, algo que nas próximas vai se tornar cada vez mais raro.