Não tenho muito a dizer em termos analíticos sobre esse filme. A soberania da cultura moral e religiosa sobre as pessoas é um aspecto certamente corrosivo e isso está bem claro na obra. Mas o que mais me impressionou foi como a história e as atuações conseguiram se apropriar de tudo isso com tanta profundidade. Esse roteiro me deixou estonteado.
É um filme essencialmente cativante que conquista pela simplicidade e pela atuação da garotinha encantadora. Escolhe um palco áspero e conspirador para uma ótica infantil em que os adultos parecem ameaçadores. E talvez fossem mesmo. A princípio, não consegui entender o significado da obra e aceitei que, pela falta de recursos e tudo, o filme era aquilo mesmo e já estava ótimo. Mas aí vi que o roteiro de Abbas Kiarostami, o que me deixou intrigado.
Pela falta de domínio da cultura iraniana, é fácil errar ou ficar por fora do que o balão branco realmente significa. Mas em linhas gerais, presumo que seja relacionado a esperança pela paz, no sentido de que os povos se solidarizem entre si. Vivemos em um mundo onde a maioria dos problemas gira em torno do dinheiro ou pela busca dele. Pessoas roubam, se prostituem ou até matam por uma nota, seja qual for sua necessidade: emocional, fisiológica ou cultural. Apesar de toda a dificuldade, descaso e desconfiança, a obra mostra que com a colaboração, é possível preservar até mesmo a inocência de uma criança.
Um filme que fala sobre, dentre várias outras coisas, fazer cinema. Ou melhor, sobre quem o faz. O cara desajustado no mundo, com problemas familiares e financeiros, que usa pijama, um gorro vermelho e tem uma arma amarrada à perna pra tentar conquistar um pouco de seriedade. Inclusive, tem consigo uma trupe de semelhantes que se aventuram pelo mesmo propósito, mesmo sem saber exatamente no que vai dar. O problema é que às vezes esse cara comete o erro de colocar na tela o seu ponto fraco, o seu cofre, e acaba se expondo demais. Uma profunda crise moral e existencial se instaura a partir dos acusações de que seu cinema é uma farsa - porque talvez sua vida também seja.
Apesar de seu formato didático, tem uma trama implícita bem complexa. Abrange uma vasta gama de referências, tanta, que a impressão que temos é de que não damos conta de entender tudo. Inspirado na vida do pesquisador Jacques Costeau (1910-1997), a história tem um ritmo esquizofrênico, um semblante melancólico e um humor cínico. Mas maior que tudo, é o estranhamento geral que ele causa, por ser ter reações bizarras que quebram a sanidade da diegese.
- "O que é esse ruído?" - "Sim, são as luzes. É como se o mundo natural se virasse de ponta-cabeça." - depois de Steve, sozinho, se soltar das amarras e botar pra correr 20 piratas de seu navio.
O cinema caricato de Wes Anderson está todo lá: os enquadramentos que emolduram, as lentes grande angular, os movimentos de câmera e zooms particulares, as cores sólidas e personagens emblemáticos. Por isso mesmo, já após seu segundo longa-metragem, Wes já era criticado como esteticista - e menos como cineasta -, o que provavelmente o levou a realizar este terceiro, discursando não só sobre as dificuldades de se fazer cinema, mas também o quanto essa aventura para loucos pode ser tão fantástica quanto essencial. O motivo de Steve é simples e pessoal - vingança - assim como a de Anderson, que possivelmente seria o de responder sarcasticamente àqueles que tentam lhe dizer como deveria ser seu cinema ou questionam pelo que ele o faz. Sorte a dele que conquistou hoje o espaço de se produzir o que é chamado de cinema autoral.
Seria razoável ainda presumir esse lugar de fazer cinema como um submarino, um lugar de fuga, de busca pelo "tubarão-jaguar", vasculhando pelas profundezas do oceano, observando o mundo através da tela de vidro, com sua equipe de lunáticos, todas as suas bugingangas e parafernálias. A vida por trás da câmera.
Bill Murray está boçal e monótono como o inusitado líder de sunga e adidas, mas Willem Dafoe compensa com um engraçadíssimo personagem temperamental. Owen Wilson, habitual dos filmes de Wes não oferece muito, mas tem Cate Blanchett como contrapeso carismático interpretando uma repórter grávida chorona e de sotaque irreconhecível. Por último a onipresença notável de Pele dos Santos e seu violão, interpretado por Seu Jorge, que aparece aleatoriamente durante o filme pontuando a linha dramática da história com canções de David Bowie em português - o que contribui muito para a atmosfera de intimidade do filme.
Não acho que seja um de seus filmes mais cativantes ou divertidos, tem sabor duvidoso que pode não agradar, mas certamente um passo necessário para que pudesse futuramente filmar obras maravilhosas como "Moonrise KIngdom" e "O Grande Hotel Budapeste".
Depois de alcançar o que parecia ser seu máximo domínio técnico em “Moonrise Kingdom” (2011), o texano Wes Anderson (“Os Tenenbaums”, “Darjeeling Limited”) conclui seu majestoso e oitavo longa-metragem, “O Grande Hotel Budapeste”. Com o pai pertencente ao ramo da publicidade, a mãe arqueóloga e uma formação em filosofia, Anderson é por si só uma mistura que se resulta em um cinema caricato, equacionando, inclusive, uma variedade interessante de referências fílmicas e literárias. As características plásticas se preservam, como os cenários de cores particulares, os enquadramentos simétricos, a lente grande angular, os pontuais movimentos de câmera, a linguagem teatral cômica, a trupe pertencente a uma instituição sob uma nuvem negra e a presença do protagonista não ajustado ao mundo em que vive. Ainda assim, Wes consegue reciclar a fórmula de uma maneira a evidenciar a criatividade da obra. E, caso ainda não tenha assistido, não continue lendo esta revisão.
Inspirado nos escritos de Stefan Zweig, o filme possui algumas camadas temporais cavadas pela narrativa de forma metalinguística. Começamos em um contexto supostamente atual, em um cemitério de um lugar ficcional chamado de República de Zubrowka, onde uma garota faz uma visita respeitosa a um autor anônimo. Pode-se presumir que Wes não está meramente reverenciando a entidade emblemática da literatura, mas também resgatando memórias daquele templo que pretendem ser contadas a partir de então. A seguir, somos transportados a 1985, em uma tela ligeiramente menor, onde este mesmo personagem a pouco homenageado faz uma pequena declaração esclarecedora para os espectadores, fazendo uma citação direta a Zweig, do livro “Coração Impaciente”. A luz é redirecionada a ele, o olhar vai à câmera e em um irreverente take único, o prólogo está concluído. Em seguida, somos novamente transportados, desta vez à cidade de Nebelsbad, Hungria, “aos pés de Alpine Sudetenwaltz”, onde se encontra o famoso Hotel Budapeste, 1968. Mas nesse momento, o hotel está fora de moda e padece do vazio fantasmagórico da solidão, em que seus poucos habitantes mal se comunicam. Nesse contexto, encontramos o hóspede Junger Schriftsteller, interpretado por Jude Law, que carrega curiosidade suficiente para que o Sr. Zero Moustafa (F. Murray Abraham), atual, triste e misterioso proprietário, conte a ele a história do hotel. Recuando ainda mais no tempo, vamos a 1932, em uma tela 4:3, acompanhar a trajetória do excêntrico e exigente Sr. Gustave (Ralph Fiennes), concierge do célebre Budapeste no período em que o jovem Zero Moustafa (Tony Revolori) ingressava na instituição. Conseguimos então alguma estabilidade cronológica a partir dos dez minutos de filme, com exceção aos pequenos e rápidos espasmos do roteiro, que logo trata de retornar aos tempos áureos do grande hotel.
Ainda aprendendo sobre como ser um bom lobby boy, Sr. Gustave diz a Moustafa que é uma profissão em que se é invisível mas está em todo lugar e que alguns segredos vão consigo para o túmulo. Para Wes, talvez, este fúnebre local seja onde residem valiosos tesouros, histórias enterradas que são dignas de voltar à vida através da arte. Temos no centro da aventura um quadro renascentista, “Boy with Apple”, artigo pintado especificamente para o filme. E, para chegar até ele, a morte de uma velha senhora que deixa uma herança de valor inestimável. É quando os ambiciosos e ameaçadores familiares aparecem, dentre eles o ganancioso Dimitri (Adrien Brody) e o cruel capataz Jopling (Willem Dafoe), para disputar esse artefato com Sr. Gustave H., antigo amigo e amante da falecida condessa Desgoffe, interpretada por Tilda Swinton – que conta com uma maquiagem de envelhecimento impressionante. Quando Sr. Moustafa, inevitavelmente emocionado, introduz Agatha à história, dentre os primeiros itens que surgem ao seu redor são um livro que ganha de Zero e um caixão de tamanho infantil (não à toa, visto que perde o filho futuramente da mesma peste que a mata) com tulipas brancas.
Com a dimensão da morte tão presente nas vértebras da história, a cor roxa predomina na vestimenta da dupla de protagonistas – o concierge Sr. Gustave e seu lobby boy, Zero – cujo vínculo da amizade nasce diante das confidências de um pacto selado. A Segunda Guerra Mundial encontra os personagens na fronteira de Zubrowka, onde um oficial chamado Henckels (Edward Norton) aparece , que libera a passagem da dupla por ser um antigo conhecido de Gustave, o que demonstra um pouco do poder da influência de um concierge. Mais tarde, veremos Gustave utilizar da famosa “Occulta Claves Decussata Societatis”, O.C.D.S., ou ainda “The Society of the Cross Keys”, conexão existente entre 33 hotéis de 7 países consolidada em 1911 para favores internacionais.
Toda essa ideia de reputação se encaixa no luxuoso Budapeste, ainda em sua plena forma na década de 30, habituado a hospedar pessoas ilustres. Entretanto, o sofisticado hotel, algum tempo depois, se encontra em decadência em que seu mais notável hóspede é a solidão. Uma analogia ao próprio Sr. Zero Moustafa que mantinha as aparências frequentando os mais caros hotéis afora, mas por dentro era um homem profundamente triste e solitário. Agatha, que ganha de Gustave H. um pingente com um formato de chave, é tida para Zero como a personificação de uma válvula de escape a seu passado amargo. Devido a morte de Agatha, foi condenado à prisão de viver toda sua vida naquele hotel, sem poder fugir das próprias raras memórias que o hotel ainda preservava.
Quem sabe, toda essa plasticidade com sabor de sobremesa e o cerrado humor com seus trejeitos sirvam excepcionalmente como um mecanismo gracioso e artificial que Wes encontra para tratar de temas não tão felizes assim – como a guerra ou a perda – em instância existencial. Um disfarce tão superficial e atraente quanto um perfume. Vale ressaltar a presença insistente da fuga em seus filmes, flertando com a resistência aos conflitos de um mundo que não lhe adapta bem. Nesse universo criado tão minuciosamente por Wes, não só o Grande Budapeste, mas até mesmo a mais fortificada prisão medieval possui o que eles chamam de vulnerabilidade. Assim como o mais requintado concierge. Com o uso de chaves e a cooperação altruísta de outros presidiários, Gustave H. tem sucesso em se livrar das grades. Após a fuga, no momento do disfarce, Sr. Gustave pede perdão a Zero pelas palavras duras, pedindo desculpas em nome do hotel, como se representassem oficialmente e intrinsecamente um ao outro. Praticamente um discurso em luto, Gustave, que um dia já fora também paquete, é honrado no final com sua redenção, lutando bravamente em defesa de seu protegido Zero. “Ainda há lampejos de civilização no açougue bárbaro que já foi a humanidade. Ele – Sr. Gustave – foi um desses lampejos”, que se esforçava para se expressar recitando poemas desconcertadamente.
Recheado com um elenco infindável de grandes atores, resta mencionar as pontas de Bill Murray, Owen Wilson, Jason Schwartzman, Harvey Keitel, Mathieu Amalric, Saoirse Ronan, Jeff Goldblum, Bob Balaban, Tom Wilkinson e Léa Seydoux. Por essa via talvez esteja seu único pecado em que se tem um excesso na receita de personagens e informações. Pela montagem ágil, que se mostra perfeitamente apropriada ao timing do cômico que se propõe, exige um ritmo muito acelerado de assimilação e organização mental do espectador. Sendo assim, acaba sobrando muito pouco respiro para se refletir e assimilar, ainda durante a exibição, sobre as questões conceituais da obra ou até mesmo falta tempo para se relacionar afetivamente aos personagens.
Dividido em cinco capítulos, essa história contada por Sr. Moustafa se passa na Hungria, mas foi rodada na Alemanha. Os diálogos, em articulação com a narração, ganham um aspecto literário atribuindo uma atmosfera mágica e fabulesca ao filme. Das referências mais latentes, é pertinente citar Ernst Lubitsch, com suas comédias como “Ser ou Não Ser” (1942) e “A Loja da Esquina” (1940), ficando evidente a referência quando o hotel, em determinado momento, é tomado por ornamentações e soldados que carregam um símbolo que faz alusão ao nazismo. Algumas características de um cinema passado são resgatadas em uma linguagem fantasiosa e teatral, como por exemplo os escritos de bilhetes ou cartas fixados em quadros estáticos – quase didáticos – para a leitura do espectador. A iluminação, sem abusos, parece atender às vontades extradiegéticas do narrador, gerenciando suas percepções emocionais. A título de curiosidade, Anderson, em entrevista, confessa ter simulado locais sem ter estado lá efetivamente, auxiliado pelo recurso de mapas da Google. Os cenários são ricos não só pela beleza da paisagem equilibrada e suas cores pastéis, mas também pelo detalhamento de objetos que compõe simbolicamente o contexto da cena – como por exemplo o relógio parado ao lado de um pequeno cacto na dispensa da cozinha, logo após a dupla descobrir sobre a morte de Madame D. A trilha de muitas badaladas se encontra entre o épico e o singelo estabelecendo uma sincronia fenomenal com os acontecimentos, em que parece interagir com os cenários e personagens.
Uma aventura estonteante sobre amizade e boas pessoas em um palco trágico e encantador. Apesar dos traços brutos e das condições desfavoráveis, Agatha é “sem dúvidas, sem falhas, sempre e invariavelmente é adorável por causa de sua pureza”, descrição que pode caber também à obra agridoce de Anderson que, pode-se ainda dizer, “sustentou a ilusão com tremenda graça”. Uma homenagem excepcionalmente delicada, dinâmica e impecável com uma profundidade poética timidamente camuflada por um sorriso triste.
Acredito que o fato da maior parte do filme se passar na Amazônia desvirtua "um pouco" o propósito do título da animação. O roteiro, ainda que não seja dos mais cativantes, gera uma série de focos de conflito que, surpreendentemente, conseguem se resolver bem até o final da história. Faço elogio à trilha sonora que tem músicas brilhantes e, claro, à animação que é de altíssima qualidade. Em linhas gerais, é um bom entretenimento para o público infantil.
Depois de um longo hiato, volto a Almodóvar em uma de suas obras mais valorizadas, por assim dizer. Seu cinema caricato tem uma camada superficial novelesca, preservando o humor e a forte presença das cores. Contudo, encontra profundidade conceitual a partir de uma complexa rede de personagens e suas respectivas motivações. O modo como lida com o tema, como era de se esperar, tange a sexualidade com atenção ao universo feminino, sempre no campo das relações afetivas. Uma experiência que a princípio não me cativou, mas me dispus a analisar a partir do meu ponto de vista porque me parecia guardar uma mensagem, no mínimo, intrigante:
As cortinas se abrem e o trecho inicial da peça “Caffe Müller”, de Pina Bausch, é o prólogo escolhido por Almodóvar para orientar a história que veremos a seguir. Não à toa, no espetáculo de dança vemos uma mulher vagando desgovernada por um terreno conflituoso, tendo ao seu redor um homem que se esforça para facilitar seu trajeto lhe tirando todas as cadeiras do caminho. Existe uma segunda dançarina (a própria Pina), como um reflexo, que reverbera seus gestos. É o nascimento compartilhado das personagens Alícia, bailarina, e Lydia, toureira, ambas em estado de coma, sob os cuidados de Benigno (enfermeiro) e Marco (jornalista), que contemplam a peça um ao lado do outro, na plateia do espetáculo, sem ainda se conhecerem. Esse tipo de delicadeza só pode ser compreendida considerando todo o conjunto à distância, em que o filme poderia ser visto como uma legenda à peça e vice-versa.
Aqui talvez seja curioso comentar sobre a semelhança física de Pina com a atriz Geraldine Chaplin, filha de Charles Chaplin, que interpreta a materna professora de balé de Alícia.
Dos quatro personagens centrais, o mais interessante e de maior influência na história é Benigno, que passou a maior parte da vida cuidando de sua mãe. Nome bastante sugestivo que tem uma conotação duvidosa quando comparado ao termo “tumor benigno” que, apesar de parecer inofensivo, continua sendo um intruso (vide cena em que invade o quarto dela). E o acesso - sexual - ao interior de Alícia é capaz de transformar o curso de seu estado que se pensava ser permanente. A que exatamente Almodóvar está atribuindo essa revitalização, se a atitude de Benigno é salvadora e merecedora de reprovação? Essa ambiguidade problematiza o que alguns classificam como "amor", no filme, mas que à luz do discernimento, o que se vê é uma intensa devoção de Benigno por Alícia. Quando se acrescenta a postura de Lydia diante da profissão que tem por influência do pai, esse questionamento acaba sendo direcionado a uma relação de subserviência. Porque talvez, o ponto do filme não seja a paixão ou o amor, mas sim a função servil que esse tipo de relação acaba, nas melhores intenções, condicionando as pessoas.
Mas não é só isso. O componente essencial de cada personagem está intrinsecamente ligado a um passado determinante de suas ações atuais, o que chamariam de trauma. Em diálogo com essa característica, o pai de Alícia torna-se o potencial psiquiatra de Benigno. Abrindo portas para o subconsciente, no meio do filme, um curta-metragem mudo e preto e branco com traços surrealistas intercala a projeção. Com o título de “Amante Minguante”, conta rapidamente a história de um homem que ingeriu uma fórmula não testada para emagrecer, acabou encolhendo e entrou dentro da genitália de sua amada para dentro dela viver. Preso em sua obsessão por Alícia, Benigno ir para a cadeia só lhe afeta porque o distancia de sua amada, já que passou toda sua vida em um cárcere moral. Sua dedicação aos cuidados para com Alicia parecia ser o melhor antídoto contra seu maior sofrimento: a solidão.
Benigno conta a Marco que lembra de suas lágrimas durante a peça enquanto pinga colírio nos olhos de Alícia, em que a gota, ao mesmo tempo, escorre em seu rosto. “...Por isso chorava quando via algo que me emocionava”, diz Marco a Lydia no carro, “porque sabia que não podia dividir aquilo com ela. Não há nada pior que te separarem de quem você quer ver todos os dias”.
Marco, por sua vez, traz em sua bagagem separações e frustrações amorosas, em relacionamentos que também dedicou trechos de sua vida inteiramente àquelas que amou. Entretanto, em comparação a Benigno, é um personagem que mais apara e organiza as informações para que a narrativa delimite seu trilho do que efetivamente incide uma profundidade dramática. Sua sensatez é o que pondera e costura os personagens centrais - em que os outros estão, cada um ao seu modo, à deriva de sua irracionalidade. Mesmo na improvável amizade do acaso que se estabelece com Benigno, cria-se uma fronteira radical. Marco em síntese, é aquele que, ao contrário de Benigno e Lydia, posiciona-se do outro lado da obsessão, diante dela. O que também não é incomum de se encontrar por aí.
Em um terceiro e último vértice de composição, o filme também é feito de contrastes em variados níveis. Lydia, por exemplo, que é questionada sobre ser uma mulher atuando em um universo povoado pelo machismo, desafia a morte em forma de touro sem hesitar, mas se desespera por uma cobra. A relação de Marco e Benigno para com as mulheres que esperam são praticamente opostas - esse mal consegue tocá-la, enquanto este o faz deliberadamente. Em um outro trecho, a sexualidade de Benigno é problematizada quando precisa fingir que é homossexual para não se afastar de Alícia. No entanto, o modo como se comporta transparece bastante feminilidade. Um tópico que dialoga diretamente com as questões pessoais de Almodóvar, diga-se de passagem, que, todos sabem, é homossexual. Angustiado e diagnosticado como psicopata, vetado de ver Alícia, Benigno tenta entrar em coma para se juntar a ela como recurso espiritual, mas acaba cometendo suicídio. Para mim, Benigno é a personificação poética de algo que muitas pessoas, erroneamente, etiquetam como “amor”, que transita entre a ternura e a loucura num corpo que mascara instabilidade.
Essa potencial dualidade dá espaço a várias referências ao Brasil. Não só havia brasileiros na equipe, mas também vemos Caetano Veloso tocar “Paloma”, escutamos Elis Regina em uma bela cena de tourada (ainda que seu método de execução tenha sido triste por terem sacrificado o animal) e a menção bem inserida a Tom Jobim. A trilha sonora, em seu aspecto latino com interferências de suspense, não se desvirtua muito do que habitualmente é tradicional de Almodóvar, o que, claro, é um elogio. Vale a pena reparar nos interessantes movimentos de câmera e nas eventuais fusões de imagem.
Em desfecho, há um cruzamento desses quatro cromossomos que se tornam apenas dois, um de cada lado. Alícia desperta enquanto Lydia morre e Marco passa a morar no apartamento do também falecido Benigno. Essa união fica evidente na cena em que os reflexos no vidro que separam Marco e Benigno no presídio fundem-se em um só. Talvez sugerindo que algumas vidas realmente se fundem às de outras ou ainda que, em determinados casos, algumas pessoas se tornam apenas metades. Portanto, não há distinção de gênero no discurso crítico de Almodóvar, que é direcionado tanto para os homens quanto para as mulheres, ainda que elas sejam culturalmente e estatisticamente as maiores vítimas desse cenário. Tanto Lydia quanto Benigno, que basicamente adotaram suas profissões em função dos pais, foram corroídos por suas compulsões quase condescendentes. Mas ter duas mulheres em coma em um filme trágico de Almodóvar definitivamente não é - não pode ser - despropositado. Talvez, para entender como funciona uma mulher, baste, da maneira correta, falar com ela. E, quem sabe, possa existir um pouco de ela – dormente – neles também.
O mais interessante desta versão, é entendê-la como uma obra de Bresson. Além da sua pegada tão caricata que se expressa mais evidentemente pelos intérpretes, é um cineasta francês, que vê em Joana uma imponente figura da história nacional.
Um filme que pode calçar várias análises referentes à filosofia, sociologia e afins. Problematiza o homem como ser social em todas as concepções, hábitos, conhecimentos, culturas, crenças, etc que sustenta. Critica os valores éticos e morais fundamentados pela fé religiosa e todas as demais normas e preconceitos construídos pelo ser humano na perspectiva de quem vê o mundo com olhos nus.
É interessante perceber Kaspar Houser como uma figura verídica e sua relativa compatibilidade com Herzog, uma vez que compartilha, dizem, sentimentos de inadequações no mundo. Vale deixar grifado a admirável interpretação de Bruno Schleinstein, que também tem traços equivalentes aos de Kaspar, como o desamparo familiar e a aproximação com a música.
Uma crônica simplista que retrata e sintetiza a transformação de uma operária da periferia de Helsinque. Na fábrica, onde predomina a mão de obra feminina, a rotina é sistemática e seca. Em casa, os pais, acomodados, apáticos e improdutivos, a exploram e reprimem. A procura por um amor é angustiada e a conquista frustrada. Em universo em que o mundo lá fora também parece ser tão conturbado e infeliz quanto sua vida, a impressão é de que não há mais por onde ir.
É o meu primeiro contato com o diretor, mas li que essa não foi a primeira vez que o tema da exploração do trabalho foi abordado. Junto aos filmes "Sombras no Paraíso" e "Ariel", realizados no final da década de 80, "A Garota da Fábrica de Fósforos" fecha o que chamam de trilogia do proletariado. Aki Kaurismäki também demonstra, pelo pouco que sei de sua vida, uma consciência crítica política bastante sólida, que nos ajuda um pouco a entender seu cinema. Às vezes esse engajamento reflete no filme um viés didático argumentativo. Não sei nada sobre o seu realismo, mas os personagens em cena fazem muito lembrar os chamados “modelos” (não atores) de Bresson.
Provavelmente adaptado do conto dinamarquês "A Pequena Vendedora de Fósforos", publicada por Hans Christian Andersen em 1845, Kaurismäki problematiza a transição da personagem Iris que pretende ser vista agora como uma mulher desejada. Sem ter a quem e para onde recorrer, essa comercialização de si mesma é uma tentativa de tornar-se um instrumento de fuga. Mas o que ela consegue é apenas dinheiro depois de dormir com um estranho pretendente. Não se encontra mais sentimento em lugar algum.
A fábrica, templo do capitalismo, é também uma entidade de força maior análoga à automatização das relações humanas. A materialidade prevalece e se manifesta através da câmera que tanto privilegia os objetos. Quando o pai de Iris a visita no hospital para lhe expulsar de casa, seu corpo está em quadro, mas não a cabeça: a amputação das relações humanas. Esse áspero distanciamento fica bastante evidente na cena do restaurante, onde toda a potencial conversa romântica é reduzida a uma bruta e fria represália de poucas palavras.
Refém do silêncio, a comunicação verbal parece agora pertencer às máquinas (TV principalmente). Iris tenta escapar dessa tendência lendo jornais e se expressando por cartas, um dos meios mais pessoais e orgânicos que se pode utilizar. A música que sai da jukebox, junto ao cinema, parecem expressar os sentimentos por ela em uma química de substituição inevitável. São, portanto, narradores extradiegéticos que parecem transbordar da protagonista.
Existe uma cena em que Iris está em um jardim e olha para flores, onde pode encarar e se despedir de seus sonhos de amor. Curiosamente, o roteiro faz uma enorme inversão da trágica história da garota vendedora de fósforos. Iris mata aqueles que esbarram em sua revolta com veneno de rato (ícone bem sugestivo), e porta dentro de si uma vida, assim como o fósforo dá luz à chama. Mas o que a grávida acende é um cigarro.
Ela aguarda com monotonia diante de uma máquina de lavar que gira suas roupas. O ciclo continua, não só para ela, mas para todas as outras garotas de fábricas, prisioneiras da terra dos sonhos atrofiados, que se tornam meras peças mecânicas, cinzas e rachadas.
Roteiro de muito potencial, mas com uma execução por vezes comprometedora. Tem seus pontos fortes por um lado, algumas falhinhas do outro, e no fim é apenas mais um entretenimento que diverte no momento mas se torna descartável após a sessão.
Mais uma obra coreana que felizmente consegue sobreviver às minhas grandes expectativas com um primor surpreendente. Semelhante em vários aspectos com "I Saw the Devil" é outro trabalho de Kim Jee Woon que entra para os meus favoritos. Um filme que reúne referências de mais obras do que eu domino hoje, e por isso acredito que não consigo entendê-lo por completo. Li dezenas de textos por aí e não encontrei nenhum que analisa a poética de construção que alimenta a narrativa. Portanto, me permiti reassistir tentando interpretar e organizar seus elementos da maneira como eu os percebo.
Em primeiro lugar, me fascinou perceber que grande parte do filme aconteceu apenas no imaginário do protagonista. Pouco antes dos 30 minutos, Sun-Woo está observando Hee-Soo tocar. A câmera se aproxima por trás dele, em direção à cabeça, sem mostrar sua feição, abrindo um portal para a vontade onírica que desperta no personagem naquele instante. A realidade é interrompida bruscamente com um corte seco. A partir deste ponto, sobe ao palco do cinema, o "sonho" de Sun-Woo, até o retorno de sua lucidez, já no desfecho do filme.
Essa trajetória fica mais evidente pela abertura e fechamento da obra que traz pequenos contos de um velho sábio e seu discípulo. Nem as folhas nem o vento se moviam, mas sim seu coração aliado a sua mente. Ou seja, tudo o que vemos só estava acontecendo na cabeça de Sun-Woo. No final, o sonho, referido pelo discípulo, não se tornará realidade, de acordo com o rumo natural do mundo injusto em que vivemos. O acordo proposto por Sun-Woo ao casal flagrado, para evitar que morressem, foi o de que eles fingissem que aquilo nunca aconteceu, que aquele dia fosse apagado de suas memórias, assim como acontecem com os sonhos. Entretanto, o desencadeamento de um sentimento doce e doloroso neste episódio o torna tão incisivo em sua mente que Woo sabe que não pode mais ser esquecido. Mais a frente, vemos que nem a vingança poderá.
Na primeira visita a Hee-Soo, percebemos as folhas da árvore no reflexo do vidro do carro enquadrando Woo, muito parecidas com aquelas que ilustram os provérbios. Ao descer do carro, é interessante perceber, um vento forte preenche a cena em tom de presságio, instaurando o momento místico divisor de águas.
Outro elemento bastante presente em momentos que redefinem o rumo do protagonista é o celular. Talvez não só porque é o instrumento que coloca Sun-Woo em comunicação com Hee-Soo por um canal virtual (não físico), mas também em outros contextos apresenta risco de morte (como no desaforo que faz ao líder da gangue inimiga ou no contato com Kang na cena das armas desmontadas). Porque a ligação para Kang, ao ver que Soo a traia, é fatal. Existe uma cena em que Woo liga para Hee-Soo e ela não atende porque Kang está presente no quarto, encoberto pela escuridão. Essa incomunicação é representada por Kang na luz apagada, o que causa uma interferência no "sonho" de Sun-Woo. Uma espécie de peso na consciência que o força a voltar para a realidade.
A cena seguinte a essa que acabo de descrever me chamou bastante atenção e se refere a essa lógica narrativa. É quando Sun-Woo está deitado em seu sofá, em casa, acendendo e apagando a luz. Os cortes entre as alternâncias de luz dão espaço para outros planos que enquadram fragmentos do cotidiano sistemático e apático de Woo. Essa tentativa de reconexão, fuga da realidade em que vive, deseja voltar à sua aventura interna. De repente, vários homens estão em seu apartamento para lhe raptar. Talvez personificando uma punição de seu próprio senso moral que reluta contra o afeto de Woo por Hee-Soo. As luzes falham a cada golpe, a tela se apaga. A conexão está reestabelecida.
O abajur também é um ícone muito importante que merece destaque, cenograficamente muito presente. A luz pode representar a vida e o sonho. A escuridão, a morte e a realidade. Não é à toa que Sun-Woo foge lutando com uma tocha. Na iminência do último golpe contra o amante de Hee-Soon, Woo quebra um abajur, destruindo sua luz e ameaça o homem com a haste. Hee-Soon gosta de abajures. Ganha um de Mr. Kang e outro de Sun-Woo, um de cor vermelha que ela deseja pela vitrine quando está acompanhada dele. Na última cena, vemos Woo diante da janela praticando seus golpes, lutando contra uma infinidade de luzes que vemos pelo reflexo, sonhos que nunca poderá realizar.
A ambiguidade não comporta somente o claro e o escuro, mas também contrastes de outras composições. O fogo, por exemplo, na fuga desesperada de Woo, encontra seu contrário na quadra de gelo, onde a violência é fria e mortal para um de seus inimigos. Outro campo também bastante latente pela contribuição generosa do título americano, expõe o doce e salgado como forças serventes ao contexto em que o protagonista se encontra. Na companhia dela, se alimentam do que é salgado, temperado. Sozinho, a comida é doce. “La Dolce Vita” é o nome do restaurante “fachada” que frequenta, sua zona de conforto, terreno onde as coisas estão sob controle, até encontrar se deparar com a garota. Não acho, inclusive, que a grafia estrangeira seja gratuita, simbolizando mais que uma referência à máfia italiana, mas também porque é algo artificial, que não faz parte de sua vida realmente. Arena final que acaba em ruínas. A vida não é tão doce quanto pensa, mas repleta de dor e sofrimento.
É uma mistura também de sentimentos que se debatem em sua mente. Por um lado, maravilhado pela doce afeição que é despertada por ela. Por outro, o dever de cumprir e ser fiel, fundamentado em seu condicionamento habitual, naquilo que foi treinado para ser. Na cena da morte de Woo, o olhar vai às folhas da árvore, o telefone contacta Hee-Soon e o sonho não pode ir mais além. “Não é justo”, e a fantasia terminar ali. O disparo interrompe a música e vem a escuridão. Se Woo irá ou não desacatar as ordens de Kang, não há como saber. A única coisa que importa foi o momento em que Woo experimentou aquela sensação e, entregue, sorriu.
Quero registrar também a cena da montagem das armas pela qual vibrei muito. Uma experiência memorável proporcionada por uma construção cinematograficamente muito inteligente que provavelmente é uma das mais sensacionais de todo o filme.
A estética elegante de Kim Jee Woon é impecável nos mais diversos setores de produção. Sem abrir mão da violência estilizada e da beleza gráfica, adiciona algumas pitadas cômicas que funcionam como alívio mesmo em trechos bastante tensos. Byung Hun Lee tem uma performance incrível, e vale apontar a mudança do cabelo que divide o estado entre as duas fases do personagem. A música é magnífica, transitando da música latina à erudita. Revela uma grande habilidade em mise-én-scène em cenas de carro, luta e tiroteio. Quanto às cores, geralmente o branco e o preto ornamentados pelo vermelho escarlate. Vale a pena ressaltar também a relação antropofágica que tem com inúmeras obras como Scarface, Old Boy, Taxi Driver, Le Samourai e tantos outros que se reúnem nesse trabalho que pra mim, sem dúvidas, é uma obra de arte.
“Mesmo que você faça cem coisas certas, faça uma errada e coloque tudo a perder.”
Tive o prazer de assistir à pré-estreia 5 dias antes do lançamento oficial em MG, junto à equipe e relacionados e as primeiras impressões são bem positivas, o filme é feito com muito cuidado e as crianças responderam muito bem.
O resultado como adaptação é muito feliz narrativamente, costurando os contos do menino Fernando em um roteiro com uma linha dramática que me surpreendeu bastante. Os atores são cativantes, as crianças são fantásticas e figurino, fotografia, som e subordinados são impecáveis. Inclusive, acho que seria bem legal se o Filmow creditasse os meninos aqui (o Ravi, a Giovanna, etc.)
Algumas cenas ficam meio gratuitas, alguns diálogos poderiam ser melhor trabalhados mas sem dúvida é um trabalho com muito mais acertos do que fica devendo. A sensibilidade de algumas cenas pequenas o torna mais delicado, reforçando a atmosfera suave e nostálgica da produção. Um universo na perspectiva de uma criança com suas questões próprias à idade, contextualizado em Minas Gerais na década de 20.
É um tributo não só a Sabino, que cresceu em Belo Horizonte, mas também uma homenagem a, por exemplo, Humberto Mauro (o cinema da história exibe "Ganga Bruta"), cineasta pioneiro que nasceu pelas redondezas de Cataguazes, cidade onde as gravações de O Menino no Espelho foram realizadas. Alguns podem relacionar o longa ao famoso "Os Batutinhas", mas eu diria que se assemelha muito mais aos traços franceses de "O Pequeno Nicolau".
Provavelmente, o filme nacional infantil de maior peso depois de "O Menino Maluquinho". Não porque tive um pequeno envolvimento com o projeto e foi feito por pessoas ao meu redor, mas é sempre bom ver o cinema nacional ganhar um filme tão bacana e divertido. O entretenimento vale tanto pro público mirim quanto para o adulto, e não só recomendo como incentivo, para que a recepção se torne um estímulo ao nosso cinema.
Um camaleão que pode ser muita coisa, mas não sabe quem é. Uma camada de metalinguagem estrutura a relação de Rango com a arte da interpretação, onde pode fingir ser alguém que queira ser. É nesse sentido que o filme se apropria de inúmeras referências aos clássicos, desde filmes de faroeste a Kubrick, com destaque inusitado o Espírito do Oeste personificado em um forasteiro divino (Clint Eastwood?).
Essa crise de identidade pode ser comparada à escassez de água, quando passa a ter poder aqueles poucos que a tem. A busca pela água é a busca pela identidade como necessidades à sobrevivência. Uma vez que se encontra na aparência de um herói, torna-se o xerife da cidade, abandonando o disfarce para se tornar o destaque. O poder da confiança, em acreditar em algo. No fim, do outro lado da estrada, tem-se acesso à reflexão e a busca é por verdadeiramente ser.
É abusando dessa crença que o prefeito, personagem vilão, movido pela ganância da "civilização", engana a sociedade desviando toda a água para seu próprio benefício. E a cena que nos mostra para onde ele desvia é realmente um tapa na cara. Absolutamente surpreendente. Uma analogia sobre a exploração sobre o povo e a própria natureza.
Rango, nome que alude ao tradicional Django, dos faroestes, que também encontra espaço para caracterizações dos personagens de John Wayne. Uma homenagem também a filmes de Jhon Ford, como "O Homem que Matou o Facínora", quando comparam Rango ao personagem de James Stewart, uma lenda, famoso por ter matado alguém que na verdade não matou (os sete irmãos com uma bala só). Ainda nas referências, aproximo o filme "Paris Texas", principalmente na cena em que atravessa a estrada, além de sérias suspeitas sobre a cena de introdução de "Cidade de Deus", onde correm atrás de uma galinha, comparando a cena da águia correndo atrás de Rango dentre vielas da cidade.
Uma resignificação que desemboca numa típica jornada do herói com seu conflito existencial, sua mocinha a ser resgatada e os vilões cafajestes, a ascensão, a queda, a redenção, e, com todos esses clichês, o roteiro ainda funciona. O personagem central é carismático, as cenas de ação são animadoras, as reviravoltas são interessantes e a crítica se faz por entender, seja para o público adulto ou infantil. A qualidade gráfica da animação é encantadora e todos os demais aspectos técnicos não estão em outros patmares.
Para Dreyer, dinamarquês, a imagem de Joana D'Arc relaciona-se irredutivelmente a uma santa. Os olhares sempre para cima denunciam seu aspecto sagrado por estar em sintonia com os céus. Aqueles que a condenam, ao contrário, têm expressões densas e olhares maliciosos, estabelecendo uma perspectiva mais maniqueísta das relações. Sua morte, então, sofrível, no bom sentido.
O cinema mudo tem suas desvantagens sensoriais, mas sua maior qualidade, Dreyer escancara na tela: os olhares. A intensidade com que Maria Falconetti incide em cada quadro é incrível, fazendo transbordar uma emoção pouco lúcida, mas que vem diretamente da alma.
Típico filme blockbuster fachada, raso e descartável. Roteiro cheio de furos e forçadinhas, desenvolvimento fraco e desfecho sem sal. Um distanciamento se cria com os inúmeros personagens que têm um desenvolvimento bastante panorâmico, o que configura uma abordagem super ampla e superficial. O envolvimento com o filme, portanto, se dá muito menos pelos personagens e mais pelas cenas de ação, que apostam pesadamente no deslumbramento causado pelos efeitos visuais em conjunto com o som. E, talvez por esse motivo, sempre ficam a desejar.
Acho que todo mundo reparou, mas é preciso reforçar o marketing enganoso em cima do zombie boy que ocupa 1/4 do pôster comercial e tem um outro só pra ele, como se fosse um personagem de grande relevância, quando, na verdade, seu tempo em tela é risível.
Se você está pensando em assistir por estar seduzido pelas magníficas imagens, como eu fui, recomendo que não o faça.
Um casal que faz uma visita ao passado em ruínas, ao relacionamento deixado aos fantasmas, aos rastros severos do tempo. Um simples, curto e eficiente filme sobre o comportamento humano, o ciúme, o orgulho, os golpes trocados pela incompreensão amorosa.
Vale mencionar, como recurso de registro, a cena em que estão dentro de um carro conversando sobre ter filhos. Ela quer, ele não. Do lado dela do carro, pela janela, vemos crianças passando pela rua, como uma janela para seus pensamentos, projeções. Um balão de história em quadrinhos. Em seguida, na cena final, diante da ideia do divórcio, a multidão arrasta Katherine para longe de Alex, atuando como força inconsciente e fervorosa que promove o afastamento. Mas ela vai contra a correnteza, e Alex a resgata.
Estrutura massante e hermética como nos tão venerados filmes scorceseanos - como "Cassino", por exemplo. Filme com grande potencial mas que não passa das ameaças. Usa de uma estratégia covarde de star system para cativar espectadores mas acaba por ficar no razoável "bom". Dos pontos fortes, tem que se admirar as interpretações das figuras centrais, com destaque espantoso, Christian Bale. A indicação ao oscar foi merecida.
Tão belo quanto grandioso, fez por merecer o oscar de melhor filme. Incríveis interpretações, majestosa fotografia. Temática muito pertinente também aos nossos dias.
Trabalho excepcional dos atores. Realmente acima da média. Matthew McConaughey com interpretação monstruosa e Jared Leto irreconhecível. Todos os prêmios que essa dupla ganhou por aí, incluindo os oscars, foram muito merecidos.
A julgar pelos movimentos das animações que lembram bastante os traços da Disney da época, é um trabalho bem cativante. Há também uma mistura com live action que consegue permear a atmosfera da narrativa com um efeito curioso.
Eu não sei se assisti uma versão amputada, mas mesmo com mais de duas horas de duração, o final é extremamente resumido e não mostra Frodo e Sam chegando em Mordor, o desfecho de Smeagle, Merry, Pippin, Saruman, as árvores, Sauron, o anel, nada. A historia acaba na guerra do Abismo de Elmo, como se os desenhistas estivessem cansados e resolveram parar por ali mesmo, resolvendo toda a história com três duas frases ditas pelo narrador.
Pra mim, como espectador que não leu os livros, valeu a pena assistir porque aborda detalhes que não apareceram nos longas de Peter Jackson. Mas, existindo a trilogia, não recomendo essa versão.
A Separação
4.2 726 Assista AgoraNão tenho muito a dizer em termos analíticos sobre esse filme. A soberania da cultura moral e religiosa sobre as pessoas é um aspecto certamente corrosivo e isso está bem claro na obra. Mas o que mais me impressionou foi como a história e as atuações conseguiram se apropriar de tudo isso com tanta profundidade. Esse roteiro me deixou estonteado.
Recomendo fortemente.
O Balão Branco
4.0 81É um filme essencialmente cativante que conquista pela simplicidade e pela atuação da garotinha encantadora. Escolhe um palco áspero e conspirador para uma ótica infantil em que os adultos parecem ameaçadores. E talvez fossem mesmo. A princípio, não consegui entender o significado da obra e aceitei que, pela falta de recursos e tudo, o filme era aquilo mesmo e já estava ótimo. Mas aí vi que o roteiro de Abbas Kiarostami, o que me deixou intrigado.
Pela falta de domínio da cultura iraniana, é fácil errar ou ficar por fora do que o balão branco realmente significa. Mas em linhas gerais, presumo que seja relacionado a esperança pela paz, no sentido de que os povos se solidarizem entre si. Vivemos em um mundo onde a maioria dos problemas gira em torno do dinheiro ou pela busca dele. Pessoas roubam, se prostituem ou até matam por uma nota, seja qual for sua necessidade: emocional, fisiológica ou cultural. Apesar de toda a dificuldade, descaso e desconfiança, a obra mostra que com a colaboração, é possível preservar até mesmo a inocência de uma criança.
A Vida Marinha com Steve Zissou
3.8 455 Assista AgoraUm filme que fala sobre, dentre várias outras coisas, fazer cinema. Ou melhor, sobre quem o faz. O cara desajustado no mundo, com problemas familiares e financeiros, que usa pijama, um gorro vermelho e tem uma arma amarrada à perna pra tentar conquistar um pouco de seriedade. Inclusive, tem consigo uma trupe de semelhantes que se aventuram pelo mesmo propósito, mesmo sem saber exatamente no que vai dar. O problema é que às vezes esse cara comete o erro de colocar na tela o seu ponto fraco, o seu cofre, e acaba se expondo demais. Uma profunda crise moral e existencial se instaura a partir dos acusações de que seu cinema é uma farsa - porque talvez sua vida também seja.
Apesar de seu formato didático, tem uma trama implícita bem complexa. Abrange uma vasta gama de referências, tanta, que a impressão que temos é de que não damos conta de entender tudo. Inspirado na vida do pesquisador Jacques Costeau (1910-1997), a história tem um ritmo esquizofrênico, um semblante melancólico e um humor cínico. Mas maior que tudo, é o estranhamento geral que ele causa, por ser ter reações bizarras que quebram a sanidade da diegese.
- "O que é esse ruído?"
- "Sim, são as luzes. É como se o mundo natural se virasse de ponta-cabeça." - depois de Steve, sozinho, se soltar das amarras e botar pra correr 20 piratas de seu navio.
O cinema caricato de Wes Anderson está todo lá: os enquadramentos que emolduram, as lentes grande angular, os movimentos de câmera e zooms particulares, as cores sólidas e personagens emblemáticos. Por isso mesmo, já após seu segundo longa-metragem, Wes já era criticado como esteticista - e menos como cineasta -, o que provavelmente o levou a realizar este terceiro, discursando não só sobre as dificuldades de se fazer cinema, mas também o quanto essa aventura para loucos pode ser tão fantástica quanto essencial. O motivo de Steve é simples e pessoal - vingança - assim como a de Anderson, que possivelmente seria o de responder sarcasticamente àqueles que tentam lhe dizer como deveria ser seu cinema ou questionam pelo que ele o faz.
Sorte a dele que conquistou hoje o espaço de se produzir o que é chamado de cinema autoral.
Seria razoável ainda presumir esse lugar de fazer cinema como um submarino, um lugar de fuga, de busca pelo "tubarão-jaguar", vasculhando pelas profundezas do oceano, observando o mundo através da tela de vidro, com sua equipe de lunáticos, todas as suas bugingangas e parafernálias. A vida por trás da câmera.
Bill Murray está boçal e monótono como o inusitado líder de sunga e adidas, mas Willem Dafoe compensa com um engraçadíssimo personagem temperamental. Owen Wilson, habitual dos filmes de Wes não oferece muito, mas tem Cate Blanchett como contrapeso carismático interpretando uma repórter grávida chorona e de sotaque irreconhecível. Por último a onipresença notável de Pele dos Santos e seu violão, interpretado por Seu Jorge, que aparece aleatoriamente durante o filme pontuando a linha dramática da história com canções de David Bowie em português - o que contribui muito para a atmosfera de intimidade do filme.
Não acho que seja um de seus filmes mais cativantes ou divertidos, tem sabor duvidoso que pode não agradar, mas certamente um passo necessário para que pudesse futuramente filmar obras maravilhosas como "Moonrise KIngdom" e "O Grande Hotel Budapeste".
O Grande Hotel Budapeste
4.2 3,0KAnálise que fiz para um blog.
Depois de alcançar o que parecia ser seu máximo domínio técnico em “Moonrise Kingdom” (2011), o texano Wes Anderson (“Os Tenenbaums”, “Darjeeling Limited”) conclui seu majestoso e oitavo longa-metragem, “O Grande Hotel Budapeste”. Com o pai pertencente ao ramo da publicidade, a mãe arqueóloga e uma formação em filosofia, Anderson é por si só uma mistura que se resulta em um cinema caricato, equacionando, inclusive, uma variedade interessante de referências fílmicas e literárias. As características plásticas se preservam, como os cenários de cores particulares, os enquadramentos simétricos, a lente grande angular, os pontuais movimentos de câmera, a linguagem teatral cômica, a trupe pertencente a uma instituição sob uma nuvem negra e a presença do protagonista não ajustado ao mundo em que vive. Ainda assim, Wes consegue reciclar a fórmula de uma maneira a evidenciar a criatividade da obra. E, caso ainda não tenha assistido, não continue lendo esta revisão.
Inspirado nos escritos de Stefan Zweig, o filme possui algumas camadas temporais cavadas pela narrativa de forma metalinguística. Começamos em um contexto supostamente atual, em um cemitério de um lugar ficcional chamado de República de Zubrowka, onde uma garota faz uma visita respeitosa a um autor anônimo. Pode-se presumir que Wes não está meramente reverenciando a entidade emblemática da literatura, mas também resgatando memórias daquele templo que pretendem ser contadas a partir de então. A seguir, somos transportados a 1985, em uma tela ligeiramente menor, onde este mesmo personagem a pouco homenageado faz uma pequena declaração esclarecedora para os espectadores, fazendo uma citação direta a Zweig, do livro “Coração Impaciente”. A luz é redirecionada a ele, o olhar vai à câmera e em um irreverente take único, o prólogo está concluído. Em seguida, somos novamente transportados, desta vez à cidade de Nebelsbad, Hungria, “aos pés de Alpine Sudetenwaltz”, onde se encontra o famoso Hotel Budapeste, 1968. Mas nesse momento, o hotel está fora de moda e padece do vazio fantasmagórico da solidão, em que seus poucos habitantes mal se comunicam. Nesse contexto, encontramos o hóspede Junger Schriftsteller, interpretado por Jude Law, que carrega curiosidade suficiente para que o Sr. Zero Moustafa (F. Murray Abraham), atual, triste e misterioso proprietário, conte a ele a história do hotel. Recuando ainda mais no tempo, vamos a 1932, em uma tela 4:3, acompanhar a trajetória do excêntrico e exigente Sr. Gustave (Ralph Fiennes), concierge do célebre Budapeste no período em que o jovem Zero Moustafa (Tony Revolori) ingressava na instituição. Conseguimos então alguma estabilidade cronológica a partir dos dez minutos de filme, com exceção aos pequenos e rápidos espasmos do roteiro, que logo trata de retornar aos tempos áureos do grande hotel.
Ainda aprendendo sobre como ser um bom lobby boy, Sr. Gustave diz a Moustafa que é uma profissão em que se é invisível mas está em todo lugar e que alguns segredos vão consigo para o túmulo. Para Wes, talvez, este fúnebre local seja onde residem valiosos tesouros, histórias enterradas que são dignas de voltar à vida através da arte. Temos no centro da aventura um quadro renascentista, “Boy with Apple”, artigo pintado especificamente para o filme. E, para chegar até ele, a morte de uma velha senhora que deixa uma herança de valor inestimável. É quando os ambiciosos e ameaçadores familiares aparecem, dentre eles o ganancioso Dimitri (Adrien Brody) e o cruel capataz Jopling (Willem Dafoe), para disputar esse artefato com Sr. Gustave H., antigo amigo e amante da falecida condessa Desgoffe, interpretada por Tilda Swinton – que conta com uma maquiagem de envelhecimento impressionante. Quando Sr. Moustafa, inevitavelmente emocionado, introduz Agatha à história, dentre os primeiros itens que surgem ao seu redor são um livro que ganha de Zero e um caixão de tamanho infantil (não à toa, visto que perde o filho futuramente da mesma peste que a mata) com tulipas brancas.
Com a dimensão da morte tão presente nas vértebras da história, a cor roxa predomina na vestimenta da dupla de protagonistas – o concierge Sr. Gustave e seu lobby boy, Zero – cujo vínculo da amizade nasce diante das confidências de um pacto selado. A Segunda Guerra Mundial encontra os personagens na fronteira de Zubrowka, onde um oficial chamado Henckels (Edward Norton) aparece , que libera a passagem da dupla por ser um antigo conhecido de Gustave, o que demonstra um pouco do poder da influência de um concierge. Mais tarde, veremos Gustave utilizar da famosa “Occulta Claves Decussata Societatis”, O.C.D.S., ou ainda “The Society of the Cross Keys”, conexão existente entre 33 hotéis de 7 países consolidada em 1911 para favores internacionais.
Toda essa ideia de reputação se encaixa no luxuoso Budapeste, ainda em sua plena forma na década de 30, habituado a hospedar pessoas ilustres. Entretanto, o sofisticado hotel, algum tempo depois, se encontra em decadência em que seu mais notável hóspede é a solidão. Uma analogia ao próprio Sr. Zero Moustafa que mantinha as aparências frequentando os mais caros hotéis afora, mas por dentro era um homem profundamente triste e solitário. Agatha, que ganha de Gustave H. um pingente com um formato de chave, é tida para Zero como a personificação de uma válvula de escape a seu passado amargo. Devido a morte de Agatha, foi condenado à prisão de viver toda sua vida naquele hotel, sem poder fugir das próprias raras memórias que o hotel ainda preservava.
Quem sabe, toda essa plasticidade com sabor de sobremesa e o cerrado humor com seus trejeitos sirvam excepcionalmente como um mecanismo gracioso e artificial que Wes encontra para tratar de temas não tão felizes assim – como a guerra ou a perda – em instância existencial. Um disfarce tão superficial e atraente quanto um perfume. Vale ressaltar a presença insistente da fuga em seus filmes, flertando com a resistência aos conflitos de um mundo que não lhe adapta bem. Nesse universo criado tão minuciosamente por Wes, não só o Grande Budapeste, mas até mesmo a mais fortificada prisão medieval possui o que eles chamam de vulnerabilidade. Assim como o mais requintado concierge. Com o uso de chaves e a cooperação altruísta de outros presidiários, Gustave H. tem sucesso em se livrar das grades. Após a fuga, no momento do disfarce, Sr. Gustave pede perdão a Zero pelas palavras duras, pedindo desculpas em nome do hotel, como se representassem oficialmente e intrinsecamente um ao outro. Praticamente um discurso em luto, Gustave, que um dia já fora também paquete, é honrado no final com sua redenção, lutando bravamente em defesa de seu protegido Zero. “Ainda há lampejos de civilização no açougue bárbaro que já foi a humanidade. Ele – Sr. Gustave – foi um desses lampejos”, que se esforçava para se expressar recitando poemas desconcertadamente.
Recheado com um elenco infindável de grandes atores, resta mencionar as pontas de Bill Murray, Owen Wilson, Jason Schwartzman, Harvey Keitel, Mathieu Amalric, Saoirse Ronan, Jeff Goldblum, Bob Balaban, Tom Wilkinson e Léa Seydoux. Por essa via talvez esteja seu único pecado em que se tem um excesso na receita de personagens e informações. Pela montagem ágil, que se mostra perfeitamente apropriada ao timing do cômico que se propõe, exige um ritmo muito acelerado de assimilação e organização mental do espectador. Sendo assim, acaba sobrando muito pouco respiro para se refletir e assimilar, ainda durante a exibição, sobre as questões conceituais da obra ou até mesmo falta tempo para se relacionar afetivamente aos personagens.
Dividido em cinco capítulos, essa história contada por Sr. Moustafa se passa na Hungria, mas foi rodada na Alemanha. Os diálogos, em articulação com a narração, ganham um aspecto literário atribuindo uma atmosfera mágica e fabulesca ao filme. Das referências mais latentes, é pertinente citar Ernst Lubitsch, com suas comédias como “Ser ou Não Ser” (1942) e “A Loja da Esquina” (1940), ficando evidente a referência quando o hotel, em determinado momento, é tomado por ornamentações e soldados que carregam um símbolo que faz alusão ao nazismo. Algumas características de um cinema passado são resgatadas em uma linguagem fantasiosa e teatral, como por exemplo os escritos de bilhetes ou cartas fixados em quadros estáticos – quase didáticos – para a leitura do espectador. A iluminação, sem abusos, parece atender às vontades extradiegéticas do narrador, gerenciando suas percepções emocionais. A título de curiosidade, Anderson, em entrevista, confessa ter simulado locais sem ter estado lá efetivamente, auxiliado pelo recurso de mapas da Google. Os cenários são ricos não só pela beleza da paisagem equilibrada e suas cores pastéis, mas também pelo detalhamento de objetos que compõe simbolicamente o contexto da cena – como por exemplo o relógio parado ao lado de um pequeno cacto na dispensa da cozinha, logo após a dupla descobrir sobre a morte de Madame D. A trilha de muitas badaladas se encontra entre o épico e o singelo estabelecendo uma sincronia fenomenal com os acontecimentos, em que parece interagir com os cenários e personagens.
Uma aventura estonteante sobre amizade e boas pessoas em um palco trágico e encantador. Apesar dos traços brutos e das condições desfavoráveis, Agatha é “sem dúvidas, sem falhas, sempre e invariavelmente é adorável por causa de sua pureza”, descrição que pode caber também à obra agridoce de Anderson que, pode-se ainda dizer, “sustentou a ilusão com tremenda graça”. Uma homenagem excepcionalmente delicada, dinâmica e impecável com uma profundidade poética timidamente camuflada por um sorriso triste.
Rio 2
3.3 606 Assista AgoraAcredito que o fato da maior parte do filme se passar na Amazônia desvirtua "um pouco" o propósito do título da animação. O roteiro, ainda que não seja dos mais cativantes, gera uma série de focos de conflito que, surpreendentemente, conseguem se resolver bem até o final da história. Faço elogio à trilha sonora que tem músicas brilhantes e, claro, à animação que é de altíssima qualidade. Em linhas gerais, é um bom entretenimento para o público infantil.
Fale com Ela
4.2 1,0K Assista AgoraDepois de um longo hiato, volto a Almodóvar em uma de suas obras mais valorizadas, por assim dizer. Seu cinema caricato tem uma camada superficial novelesca, preservando o humor e a forte presença das cores. Contudo, encontra profundidade conceitual a partir de uma complexa rede de personagens e suas respectivas motivações. O modo como lida com o tema, como era de se esperar, tange a sexualidade com atenção ao universo feminino, sempre no campo das relações afetivas. Uma experiência que a princípio não me cativou, mas me dispus a analisar a partir do meu ponto de vista porque me parecia guardar uma mensagem, no mínimo, intrigante:
As cortinas se abrem e o trecho inicial da peça “Caffe Müller”, de Pina Bausch, é o prólogo escolhido por Almodóvar para orientar a história que veremos a seguir. Não à toa, no espetáculo de dança vemos uma mulher vagando desgovernada por um terreno conflituoso, tendo ao seu redor um homem que se esforça para facilitar seu trajeto lhe tirando todas as cadeiras do caminho. Existe uma segunda dançarina (a própria Pina), como um reflexo, que reverbera seus gestos. É o nascimento compartilhado das personagens Alícia, bailarina, e Lydia, toureira, ambas em estado de coma, sob os cuidados de Benigno (enfermeiro) e Marco (jornalista), que contemplam a peça um ao lado do outro, na plateia do espetáculo, sem ainda se conhecerem. Esse tipo de delicadeza só pode ser compreendida considerando todo o conjunto à distância, em que o filme poderia ser visto como uma legenda à peça e vice-versa.
Aqui talvez seja curioso comentar sobre a semelhança física de Pina com a atriz Geraldine Chaplin, filha de Charles Chaplin, que interpreta a materna professora de balé de Alícia.
Dos quatro personagens centrais, o mais interessante e de maior influência na história é Benigno, que passou a maior parte da vida cuidando de sua mãe. Nome bastante sugestivo que tem uma conotação duvidosa quando comparado ao termo “tumor benigno” que, apesar de parecer inofensivo, continua sendo um intruso (vide cena em que invade o quarto dela). E o acesso - sexual - ao interior de Alícia é capaz de transformar o curso de seu estado que se pensava ser permanente. A que exatamente Almodóvar está atribuindo essa revitalização, se a atitude de Benigno é salvadora e merecedora de reprovação? Essa ambiguidade problematiza o que alguns classificam como "amor", no filme, mas que à luz do discernimento, o que se vê é uma intensa devoção de Benigno por Alícia. Quando se acrescenta a postura de Lydia diante da profissão que tem por influência do pai, esse questionamento acaba sendo direcionado a uma relação de subserviência. Porque talvez, o ponto do filme não seja a paixão ou o amor, mas sim a função servil que esse tipo de relação acaba, nas melhores intenções, condicionando as pessoas.
Mas não é só isso. O componente essencial de cada personagem está intrinsecamente ligado a um passado determinante de suas ações atuais, o que chamariam de trauma. Em diálogo com essa característica, o pai de Alícia torna-se o potencial psiquiatra de Benigno. Abrindo portas para o subconsciente, no meio do filme, um curta-metragem mudo e preto e branco com traços surrealistas intercala a projeção. Com o título de “Amante Minguante”, conta rapidamente a história de um homem que ingeriu uma fórmula não testada para emagrecer, acabou encolhendo e entrou dentro da genitália de sua amada para dentro dela viver. Preso em sua obsessão por Alícia, Benigno ir para a cadeia só lhe afeta porque o distancia de sua amada, já que passou toda sua vida em um cárcere moral. Sua dedicação aos cuidados para com Alicia parecia ser o melhor antídoto contra seu maior sofrimento: a solidão.
Benigno conta a Marco que lembra de suas lágrimas durante a peça enquanto pinga colírio nos olhos de Alícia, em que a gota, ao mesmo tempo, escorre em seu rosto. “...Por isso chorava quando via algo que me emocionava”, diz Marco a Lydia no carro, “porque sabia que não podia dividir aquilo com ela. Não há nada pior que te separarem de quem você quer ver todos os dias”.
Marco, por sua vez, traz em sua bagagem separações e frustrações amorosas, em relacionamentos que também dedicou trechos de sua vida inteiramente àquelas que amou. Entretanto, em comparação a Benigno, é um personagem que mais apara e organiza as informações para que a narrativa delimite seu trilho do que efetivamente incide uma profundidade dramática. Sua sensatez é o que pondera e costura os personagens centrais - em que os outros estão, cada um ao seu modo, à deriva de sua irracionalidade. Mesmo na improvável amizade do acaso que se estabelece com Benigno, cria-se uma fronteira radical. Marco em síntese, é aquele que, ao contrário de Benigno e Lydia, posiciona-se do outro lado da obsessão, diante dela. O que também não é incomum de se encontrar por aí.
Em um terceiro e último vértice de composição, o filme também é feito de contrastes em variados níveis. Lydia, por exemplo, que é questionada sobre ser uma mulher atuando em um universo povoado pelo machismo, desafia a morte em forma de touro sem hesitar, mas se desespera por uma cobra. A relação de Marco e Benigno para com as mulheres que esperam são praticamente opostas - esse mal consegue tocá-la, enquanto este o faz deliberadamente. Em um outro trecho, a sexualidade de Benigno é problematizada quando precisa fingir que é homossexual para não se afastar de Alícia. No entanto, o modo como se comporta transparece bastante feminilidade. Um tópico que dialoga diretamente com as questões pessoais de Almodóvar, diga-se de passagem, que, todos sabem, é homossexual. Angustiado e diagnosticado como psicopata, vetado de ver Alícia, Benigno tenta entrar em coma para se juntar a ela como recurso espiritual, mas acaba cometendo suicídio. Para mim, Benigno é a personificação poética de algo que muitas pessoas, erroneamente, etiquetam como “amor”, que transita entre a ternura e a loucura num corpo que mascara instabilidade.
Essa potencial dualidade dá espaço a várias referências ao Brasil. Não só havia brasileiros na equipe, mas também vemos Caetano Veloso tocar “Paloma”, escutamos Elis Regina em uma bela cena de tourada (ainda que seu método de execução tenha sido triste por terem sacrificado o animal) e a menção bem inserida a Tom Jobim. A trilha sonora, em seu aspecto latino com interferências de suspense, não se desvirtua muito do que habitualmente é tradicional de Almodóvar, o que, claro, é um elogio. Vale a pena reparar nos interessantes movimentos de câmera e nas eventuais fusões de imagem.
Em desfecho, há um cruzamento desses quatro cromossomos que se tornam apenas dois, um de cada lado. Alícia desperta enquanto Lydia morre e Marco passa a morar no apartamento do também falecido Benigno. Essa união fica evidente na cena em que os reflexos no vidro que separam Marco e Benigno no presídio fundem-se em um só. Talvez sugerindo que algumas vidas realmente se fundem às de outras ou ainda que, em determinados casos, algumas pessoas se tornam apenas metades. Portanto, não há distinção de gênero no discurso crítico de Almodóvar, que é direcionado tanto para os homens quanto para as mulheres, ainda que elas sejam culturalmente e estatisticamente as maiores vítimas desse cenário. Tanto Lydia quanto Benigno, que basicamente adotaram suas profissões em função dos pais, foram corroídos por suas compulsões quase condescendentes. Mas ter duas mulheres em coma em um filme trágico de Almodóvar definitivamente não é - não pode ser - despropositado. Talvez, para entender como funciona uma mulher, baste, da maneira correta, falar com ela. E, quem sabe, possa existir um pouco de ela – dormente – neles também.
O Processo de Joana D'arc
4.0 19O mais interessante desta versão, é entendê-la como uma obra de Bresson. Além da sua pegada tão caricata que se expressa mais evidentemente pelos intérpretes, é um cineasta francês, que vê em Joana uma imponente figura da história nacional.
O Enigma de Kaspar Hauser
4.0 328Um filme que pode calçar várias análises referentes à filosofia, sociologia e afins. Problematiza o homem como ser social em todas as concepções, hábitos, conhecimentos, culturas, crenças, etc que sustenta. Critica os valores éticos e morais fundamentados pela fé religiosa e todas as demais normas e preconceitos construídos pelo ser humano na perspectiva de quem vê o mundo com olhos nus.
É interessante perceber Kaspar Houser como uma figura verídica e sua relativa compatibilidade com Herzog, uma vez que compartilha, dizem, sentimentos de inadequações no mundo. Vale deixar grifado a admirável interpretação de Bruno Schleinstein, que também tem traços equivalentes aos de Kaspar, como o desamparo familiar e a aproximação com a música.
A Garota da Fábrica de Fósforos
3.9 161 Assista AgoraNão fiz controle de spoilers.
Uma crônica simplista que retrata e sintetiza a transformação de uma operária da periferia de Helsinque. Na fábrica, onde predomina a mão de obra feminina, a rotina é sistemática e seca. Em casa, os pais, acomodados, apáticos e improdutivos, a exploram e reprimem. A procura por um amor é angustiada e a conquista frustrada. Em universo em que o mundo lá fora também parece ser tão conturbado e infeliz quanto sua vida, a impressão é de que não há mais por onde ir.
É o meu primeiro contato com o diretor, mas li que essa não foi a primeira vez que o tema da exploração do trabalho foi abordado. Junto aos filmes "Sombras no Paraíso" e "Ariel", realizados no final da década de 80, "A Garota da Fábrica de Fósforos" fecha o que chamam de trilogia do proletariado. Aki Kaurismäki também demonstra, pelo pouco que sei de sua vida, uma consciência crítica política bastante sólida, que nos ajuda um pouco a entender seu cinema. Às vezes esse engajamento reflete no filme um viés didático argumentativo. Não sei nada sobre o seu realismo, mas os personagens em cena fazem muito lembrar os chamados “modelos” (não atores) de Bresson.
Provavelmente adaptado do conto dinamarquês "A Pequena Vendedora de Fósforos", publicada por Hans Christian Andersen em 1845, Kaurismäki problematiza a transição da personagem Iris que pretende ser vista agora como uma mulher desejada. Sem ter a quem e para onde recorrer, essa comercialização de si mesma é uma tentativa de tornar-se um instrumento de fuga. Mas o que ela consegue é apenas dinheiro depois de dormir com um estranho pretendente. Não se encontra mais sentimento em lugar algum.
A fábrica, templo do capitalismo, é também uma entidade de força maior análoga à automatização das relações humanas. A materialidade prevalece e se manifesta através da câmera que tanto privilegia os objetos. Quando o pai de Iris a visita no hospital para lhe expulsar de casa, seu corpo está em quadro, mas não a cabeça: a amputação das relações humanas. Esse áspero distanciamento fica bastante evidente na cena do restaurante, onde toda a potencial conversa romântica é reduzida a uma bruta e fria represália de poucas palavras.
Refém do silêncio, a comunicação verbal parece agora pertencer às máquinas (TV principalmente). Iris tenta escapar dessa tendência lendo jornais e se expressando por cartas, um dos meios mais pessoais e orgânicos que se pode utilizar. A música que sai da jukebox, junto ao cinema, parecem expressar os sentimentos por ela em uma química de substituição inevitável. São, portanto, narradores extradiegéticos que parecem transbordar da protagonista.
Existe uma cena em que Iris está em um jardim e olha para flores, onde pode encarar e se despedir de seus sonhos de amor. Curiosamente, o roteiro faz uma enorme inversão da trágica história da garota vendedora de fósforos. Iris mata aqueles que esbarram em sua revolta com veneno de rato (ícone bem sugestivo), e porta dentro de si uma vida, assim como o fósforo dá luz à chama. Mas o que a grávida acende é um cigarro.
Ela aguarda com monotonia diante de uma máquina de lavar que gira suas roupas. O ciclo continua, não só para ela, mas para todas as outras garotas de fábricas, prisioneiras da terra dos sonhos atrofiados, que se tornam meras peças mecânicas, cinzas e rachadas.
Operação Sombra - Jack Ryan
3.1 322 Assista AgoraRoteiro de muito potencial, mas com uma execução por vezes comprometedora. Tem seus pontos fortes por um lado, algumas falhinhas do outro, e no fim é apenas mais um entretenimento que diverte no momento mas se torna descartável após a sessão.
Quem Se Importa?
4.1 23Motivacional bem interessante. Recomendo pra quem precisa se inspirar para botar em prática algum projeto.
O Gosto da Vingança
3.9 188Mais uma obra coreana que felizmente consegue sobreviver às minhas grandes expectativas com um primor surpreendente. Semelhante em vários aspectos com "I Saw the Devil" é outro trabalho de Kim Jee Woon que entra para os meus favoritos. Um filme que reúne referências de mais obras do que eu domino hoje, e por isso acredito que não consigo entendê-lo por completo. Li dezenas de textos por aí e não encontrei nenhum que analisa a poética de construção que alimenta a narrativa. Portanto, me permiti reassistir tentando interpretar e organizar seus elementos da maneira como eu os percebo.
Em primeiro lugar, me fascinou perceber que grande parte do filme aconteceu apenas no imaginário do protagonista. Pouco antes dos 30 minutos, Sun-Woo está observando Hee-Soo tocar. A câmera se aproxima por trás dele, em direção à cabeça, sem mostrar sua feição, abrindo um portal para a vontade onírica que desperta no personagem naquele instante. A realidade é interrompida bruscamente com um corte seco. A partir deste ponto, sobe ao palco do cinema, o "sonho" de Sun-Woo, até o retorno de sua lucidez, já no desfecho do filme.
Essa trajetória fica mais evidente pela abertura e fechamento da obra que traz pequenos contos de um velho sábio e seu discípulo. Nem as folhas nem o vento se moviam, mas sim seu coração aliado a sua mente. Ou seja, tudo o que vemos só estava acontecendo na cabeça de Sun-Woo. No final, o sonho, referido pelo discípulo, não se tornará realidade, de acordo com o rumo natural do mundo injusto em que vivemos. O acordo proposto por Sun-Woo ao casal flagrado, para evitar que morressem, foi o de que eles fingissem que aquilo nunca aconteceu, que aquele dia fosse apagado de suas memórias, assim como acontecem com os sonhos. Entretanto, o desencadeamento de um sentimento doce e doloroso neste episódio o torna tão incisivo em sua mente que Woo sabe que não pode mais ser esquecido. Mais a frente, vemos que nem a vingança poderá.
Na primeira visita a Hee-Soo, percebemos as folhas da árvore no reflexo do vidro do carro enquadrando Woo, muito parecidas com aquelas que ilustram os provérbios. Ao descer do carro, é interessante perceber, um vento forte preenche a cena em tom de presságio, instaurando o momento místico divisor de águas.
Outro elemento bastante presente em momentos que redefinem o rumo do protagonista é o celular. Talvez não só porque é o instrumento que coloca Sun-Woo em comunicação com Hee-Soo por um canal virtual (não físico), mas também em outros contextos apresenta risco de morte (como no desaforo que faz ao líder da gangue inimiga ou no contato com Kang na cena das armas desmontadas). Porque a ligação para Kang, ao ver que Soo a traia, é fatal. Existe uma cena em que Woo liga para Hee-Soo e ela não atende porque Kang está presente no quarto, encoberto pela escuridão. Essa incomunicação é representada por Kang na luz apagada, o que causa uma interferência no "sonho" de Sun-Woo. Uma espécie de peso na consciência que o força a voltar para a realidade.
A cena seguinte a essa que acabo de descrever me chamou bastante atenção e se refere a essa lógica narrativa. É quando Sun-Woo está deitado em seu sofá, em casa, acendendo e apagando a luz. Os cortes entre as alternâncias de luz dão espaço para outros planos que enquadram fragmentos do cotidiano sistemático e apático de Woo. Essa tentativa de reconexão, fuga da realidade em que vive, deseja voltar à sua aventura interna. De repente, vários homens estão em seu apartamento para lhe raptar. Talvez personificando uma punição de seu próprio senso moral que reluta contra o afeto de Woo por Hee-Soo. As luzes falham a cada golpe, a tela se apaga. A conexão está reestabelecida.
O abajur também é um ícone muito importante que merece destaque, cenograficamente muito presente. A luz pode representar a vida e o sonho. A escuridão, a morte e a realidade. Não é à toa que Sun-Woo foge lutando com uma tocha. Na iminência do último golpe contra o amante de Hee-Soon, Woo quebra um abajur, destruindo sua luz e ameaça o homem com a haste. Hee-Soon gosta de abajures. Ganha um de Mr. Kang e outro de Sun-Woo, um de cor vermelha que ela deseja pela vitrine quando está acompanhada dele. Na última cena, vemos Woo diante da janela praticando seus golpes, lutando contra uma infinidade de luzes que vemos pelo reflexo, sonhos que nunca poderá realizar.
A ambiguidade não comporta somente o claro e o escuro, mas também contrastes de outras composições. O fogo, por exemplo, na fuga desesperada de Woo, encontra seu contrário na quadra de gelo, onde a violência é fria e mortal para um de seus inimigos. Outro campo também bastante latente pela contribuição generosa do título americano, expõe o doce e salgado como forças serventes ao contexto em que o protagonista se encontra. Na companhia dela, se alimentam do que é salgado, temperado. Sozinho, a comida é doce. “La Dolce Vita” é o nome do restaurante “fachada” que frequenta, sua zona de conforto, terreno onde as coisas estão sob controle, até encontrar se deparar com a garota. Não acho, inclusive, que a grafia estrangeira seja gratuita, simbolizando mais que uma referência à máfia italiana, mas também porque é algo artificial, que não faz parte de sua vida realmente. Arena final que acaba em ruínas. A vida não é tão doce quanto pensa, mas repleta de dor e sofrimento.
É uma mistura também de sentimentos que se debatem em sua mente. Por um lado, maravilhado pela doce afeição que é despertada por ela. Por outro, o dever de cumprir e ser fiel, fundamentado em seu condicionamento habitual, naquilo que foi treinado para ser. Na cena da morte de Woo, o olhar vai às folhas da árvore, o telefone contacta Hee-Soon e o sonho não pode ir mais além. “Não é justo”, e a fantasia terminar ali. O disparo interrompe a música e vem a escuridão. Se Woo irá ou não desacatar as ordens de Kang, não há como saber. A única coisa que importa foi o momento em que Woo experimentou aquela sensação e, entregue, sorriu.
Quero registrar também a cena da montagem das armas pela qual vibrei muito. Uma experiência memorável proporcionada por uma construção cinematograficamente muito inteligente que provavelmente é uma das mais sensacionais de todo o filme.
A estética elegante de Kim Jee Woon é impecável nos mais diversos setores de produção. Sem abrir mão da violência estilizada e da beleza gráfica, adiciona algumas pitadas cômicas que funcionam como alívio mesmo em trechos bastante tensos. Byung Hun Lee tem uma performance incrível, e vale apontar a mudança do cabelo que divide o estado entre as duas fases do personagem. A música é magnífica, transitando da música latina à erudita. Revela uma grande habilidade em mise-én-scène em cenas de carro, luta e tiroteio. Quanto às cores, geralmente o branco e o preto ornamentados pelo vermelho escarlate. Vale a pena ressaltar também a relação antropofágica que tem com inúmeras obras como Scarface, Old Boy, Taxi Driver, Le Samourai e tantos outros que se reúnem nesse trabalho que pra mim, sem dúvidas, é uma obra de arte.
“Mesmo que você faça cem coisas certas, faça uma errada e coloque tudo a perder.”
O Menino no Espelho
3.2 71Tive o prazer de assistir à pré-estreia 5 dias antes do lançamento oficial em MG, junto à equipe e relacionados e as primeiras impressões são bem positivas, o filme é feito com muito cuidado e as crianças responderam muito bem.
O resultado como adaptação é muito feliz narrativamente, costurando os contos do menino Fernando em um roteiro com uma linha dramática que me surpreendeu bastante. Os atores são cativantes, as crianças são fantásticas e figurino, fotografia, som e subordinados são impecáveis. Inclusive, acho que seria bem legal se o Filmow creditasse os meninos aqui (o Ravi, a Giovanna, etc.)
Algumas cenas ficam meio gratuitas, alguns diálogos poderiam ser melhor trabalhados mas sem dúvida é um trabalho com muito mais acertos do que fica devendo. A sensibilidade de algumas cenas pequenas o torna mais delicado, reforçando a atmosfera suave e nostálgica da produção. Um universo na perspectiva de uma criança com suas questões próprias à idade, contextualizado em Minas Gerais na década de 20.
É um tributo não só a Sabino, que cresceu em Belo Horizonte, mas também uma homenagem a, por exemplo, Humberto Mauro (o cinema da história exibe "Ganga Bruta"), cineasta pioneiro que nasceu pelas redondezas de Cataguazes, cidade onde as gravações de O Menino no Espelho foram realizadas. Alguns podem relacionar o longa ao famoso "Os Batutinhas", mas eu diria que se assemelha muito mais aos traços franceses de "O Pequeno Nicolau".
Provavelmente, o filme nacional infantil de maior peso depois de "O Menino Maluquinho". Não porque tive um pequeno envolvimento com o projeto e foi feito por pessoas ao meu redor, mas é sempre bom ver o cinema nacional ganhar um filme tão bacana e divertido. O entretenimento vale tanto pro público mirim quanto para o adulto, e não só recomendo como incentivo, para que a recepção se torne um estímulo ao nosso cinema.
Rango
3.6 1,6K Assista Agora"Isso é uma metáfora".
Um camaleão que pode ser muita coisa, mas não sabe quem é. Uma camada de metalinguagem estrutura a relação de Rango com a arte da interpretação, onde pode fingir ser alguém que queira ser. É nesse sentido que o filme se apropria de inúmeras referências aos clássicos, desde filmes de faroeste a Kubrick, com destaque inusitado o Espírito do Oeste personificado em um forasteiro divino (Clint Eastwood?).
Essa crise de identidade pode ser comparada à escassez de água, quando passa a ter poder aqueles poucos que a tem. A busca pela água é a busca pela identidade como necessidades à sobrevivência. Uma vez que se encontra na aparência de um herói, torna-se o xerife da cidade, abandonando o disfarce para se tornar o destaque. O poder da confiança, em acreditar em algo. No fim, do outro lado da estrada, tem-se acesso à reflexão e a busca é por verdadeiramente ser.
É abusando dessa crença que o prefeito, personagem vilão, movido pela ganância da "civilização", engana a sociedade desviando toda a água para seu próprio benefício. E a cena que nos mostra para onde ele desvia é realmente um tapa na cara. Absolutamente surpreendente. Uma analogia sobre a exploração sobre o povo e a própria natureza.
Rango, nome que alude ao tradicional Django, dos faroestes, que também encontra espaço para caracterizações dos personagens de John Wayne. Uma homenagem também a filmes de Jhon Ford, como "O Homem que Matou o Facínora", quando comparam Rango ao personagem de James Stewart, uma lenda, famoso por ter matado alguém que na verdade não matou (os sete irmãos com uma bala só). Ainda nas referências, aproximo o filme "Paris Texas", principalmente na cena em que atravessa a estrada, além de sérias suspeitas sobre a cena de introdução de "Cidade de Deus", onde correm atrás de uma galinha, comparando a cena da águia correndo atrás de Rango dentre vielas da cidade.
Uma resignificação que desemboca numa típica jornada do herói com seu conflito existencial, sua mocinha a ser resgatada e os vilões cafajestes, a ascensão, a queda, a redenção, e, com todos esses clichês, o roteiro ainda funciona. O personagem central é carismático, as cenas de ação são animadoras, as reviravoltas são interessantes e a crítica se faz por entender, seja para o público adulto ou infantil. A qualidade gráfica da animação é encantadora e todos os demais aspectos técnicos não estão em outros patmares.
Vale como entretenimento e reflexão.
Recomendo!
A Paixão de Joana d'Arc
4.5 229 Assista AgoraPara Dreyer, dinamarquês, a imagem de Joana D'Arc relaciona-se irredutivelmente a uma santa. Os olhares sempre para cima denunciam seu aspecto sagrado por estar em sintonia com os céus. Aqueles que a condenam, ao contrário, têm expressões densas e olhares maliciosos, estabelecendo uma perspectiva mais maniqueísta das relações. Sua morte, então, sofrível, no bom sentido.
O cinema mudo tem suas desvantagens sensoriais, mas sua maior qualidade, Dreyer escancara na tela: os olhares. A intensidade com que Maria Falconetti incide em cada quadro é incrível, fazendo transbordar uma emoção pouco lúcida, mas que vem diretamente da alma.
47 Ronins
3.2 1,1K Assista AgoraTípico filme blockbuster fachada, raso e descartável.
Roteiro cheio de furos e forçadinhas, desenvolvimento fraco e desfecho sem sal.
Um distanciamento se cria com os inúmeros personagens que têm um desenvolvimento bastante panorâmico, o que configura uma abordagem super ampla e superficial. O envolvimento com o filme, portanto, se dá muito menos pelos personagens e mais pelas cenas de ação, que apostam pesadamente no deslumbramento causado pelos efeitos visuais em conjunto com o som. E, talvez por esse motivo, sempre ficam a desejar.
Acho que todo mundo reparou, mas é preciso reforçar o marketing enganoso em cima do zombie boy que ocupa 1/4 do pôster comercial e tem um outro só pra ele, como se fosse um personagem de grande relevância, quando, na verdade, seu tempo em tela é risível.
Se você está pensando em assistir por estar seduzido pelas magníficas imagens, como eu fui, recomendo que não o faça.
Romance na Itália
3.9 34Um casal que faz uma visita ao passado em ruínas, ao relacionamento deixado aos fantasmas, aos rastros severos do tempo. Um simples, curto e eficiente filme sobre o comportamento humano, o ciúme, o orgulho, os golpes trocados pela incompreensão amorosa.
Vale mencionar, como recurso de registro, a cena em que estão dentro de um carro conversando sobre ter filhos. Ela quer, ele não. Do lado dela do carro, pela janela, vemos crianças passando pela rua, como uma janela para seus pensamentos, projeções. Um balão de história em quadrinhos.
Em seguida, na cena final, diante da ideia do divórcio, a multidão arrasta Katherine para longe de Alex, atuando como força inconsciente e fervorosa que promove o afastamento. Mas ela vai contra a correnteza, e Alex a resgata.
Em uma única palavra, eu resumiria: encantador.
Ela
4.2 5,8K Assista AgoraEsse dói.
Trapaça
3.4 2,2K Assista AgoraEstrutura massante e hermética como nos tão venerados filmes scorceseanos - como "Cassino", por exemplo. Filme com grande potencial mas que não passa das ameaças. Usa de uma estratégia covarde de star system para cativar espectadores mas acaba por ficar no razoável "bom".
Dos pontos fortes, tem que se admirar as interpretações das figuras centrais, com destaque espantoso, Christian Bale. A indicação ao oscar foi merecida.
12 Anos de Escravidão
4.3 3,0KTão belo quanto grandioso, fez por merecer o oscar de melhor filme. Incríveis interpretações, majestosa fotografia. Temática muito pertinente também aos nossos dias.
Clube de Compras Dallas
4.3 2,8K Assista AgoraTrabalho excepcional dos atores. Realmente acima da média. Matthew McConaughey com interpretação monstruosa e Jared Leto irreconhecível. Todos os prêmios que essa dupla ganhou por aí, incluindo os oscars, foram muito merecidos.
A Balada de Narayama
4.0 54A palavra "desarmado" me define depois de assisti-lo.
Arca Russa
4.0 184Um desafio vencido. Experiência única.
O Senhor dos Anéis
3.2 119A julgar pelos movimentos das animações que lembram bastante os traços da Disney da época, é um trabalho bem cativante. Há também uma mistura com live action que consegue permear a atmosfera da narrativa com um efeito curioso.
Eu não sei se assisti uma versão amputada, mas mesmo com mais de duas horas de duração, o final é extremamente resumido e não mostra Frodo e Sam chegando em Mordor, o desfecho de Smeagle, Merry, Pippin, Saruman, as árvores, Sauron, o anel, nada. A historia acaba na guerra do Abismo de Elmo, como se os desenhistas estivessem cansados e resolveram parar por ali mesmo, resolvendo toda a história com três duas frases ditas pelo narrador.
Pra mim, como espectador que não leu os livros, valeu a pena assistir porque aborda detalhes que não apareceram nos longas de Peter Jackson. Mas, existindo a trilogia, não recomendo essa versão.