tão humano... a maneira com que esse filme extorque dores e até lágrimas de quem o assiste é tão crua e peculiar. se o coppola, quatro décadas antes dessa obra, já mostrava que sabia ser uma implosão cinematográfica, somos um bando de felizardos espectadores por ele continuar reiterando isso, seja de forma sutil, explícita, lenta, brusca, introvertida, extrovertida ou, oras, até mesmo de uma forma argentina;
o francis talvez seja como aquela borboleta, do começo do filme, que só bate e investe e se arremessa contra a luz, ininterrupta... ele é um dos poucos que conduz um filme como se fosse uma orquestra e uma câmera como se fosse um instrumento sonoro, como se cada cena fosse uma parte solo da sinfonia final. e eita, esse roteiro, essa fotografia que derrete nos olhos (remissões a murnau, welles, enfim), mais esse divino tango que o cinema coppolano fez nesse filme em particular com teatro e poesia... tão arguto, junto a uma quase-crítica à senciência na interpessoalidade, eu diria: um ambiente narrativo rodeando gallo de caricaturas só o fez ficar em relevo, e mais crível sua incredulidade; o refino temático e estético logo certifica de quem é a autoria -- o teor da sua embriaguez audiovisual talvez não esteja aqui tão alto, mas não subestimemos despercebidamente o que pode ser uma versão light e em miniatura de uma estrutura até, digamos, karamazoviana. o francis é um don da arte de fazer filmes, um papa da 35mm! aplausos!
WWWWOAARRRGH QUE FILME FODA, MEU DEUS. foi um transplante cerebral sem anestesia. mesmo sendo algo muito pessoal, creio que dê pra falar que esse é daqueles filmes que você termina se sentindo muito, demais, genuinamente humano (e não num bom aspecto), você termina com a impressão de que se é muito burro não só pro filme como pra toda sua vida, e ao mesmo tempo com um receio gelado de ter entendido certa parte direito. Porque assistir isso aqui é ter a cara esfolada num muro áspero de ideias lindas. ele reverbera o fato de que "se algo é mostrado ao espectador, é arte; e se é contado, é um artigo" -e é extraordinária a forma fluente com que esse grego faz posicionamentos que pra muita gente ótima já foi coisa inapreensível. uma das propostas mais originais desse século. se fosse, numa leitura já advertidamente ruim e redutora, pra comentar o impacto do espectro físico,
nada como o cinema pra tornar um atropelamento mental o que normalmente seria uma ideia filosófica estéril. num filme epistemológico desses, dá pra começar com a inferência básica de que qualquer saber é um relativismo ou vindo de um axioma, sendo esse saber axiomático só um relativismo numa embalagem. Disso, ele parece dizer que o funcionamento das pessoas e a dinâmica humana num geral se baseia completamente em valor psicológico agregado, a qualquer objeto, tanto em semântica (o caso dos zumbis, ou florzinhas) como emocionalmente, em questões mais profundas (o caso dos adesivos na cama, por exemplo), sendo razão e lógica uns dos preenchimentos mais débeis e fracos desses possíveis valores. e se nos parece cômico ou absurdo que se criem filhos dizendo-lhes que gatinhos são os piores animais do mundo, e que tais palavras não são tais palavras (uma vez que o filme põe os filhos como alienados e põe o público no mesmo nível que o pai), isso só se dá pois é certo que acontece o mesmo com nós — as coisas que tomamos por piores e mais prejudiciais podem muito bem não ser as piores e mais prejudiciais, e sim somente as mais excluídas, mais bem caluniadas e difamadas, e seguimos assim sem percebê-lo. (um bom exemplo disso é que até mesmo a tentativa de sair dos muros da mais velha, naquela cena memorável, está dentro dos padrões anteriormente impostos: para fazê-lo, ela tanto quebra o canino como espera no carro). apenas em proporções maiores, nossas crenças e limitações devem ficar mais ou menos pelo mesmo: só um círculo dentro de um círculo dentro de um círculo. É assim que se termina o filme com a impressão de terem tirado uma película dos seus olhos – e com a coceira incômoda de saber que debaixo dela haverá outra –, olhando diferentemente para si e para o mundo, tanto para trás como para a frente. nesse aspecto o lanthimos parece inclinado à empiria, e com as coisas se explicando por si mesmas (têm todas muito mais existência que significado), nunca pelas “generalizações especificantes”. Continuando, outro agravante seria que a causa da deterioração do lar organizado decorre de coisas a priori, que segundo o filme não se tirariam de um indivíduo mesmo quando criado dentro de muros e passando tudo o que chega a ele por um crivo anti-insubordinação (crivo tão profundo que até mesmo muda os significados de palavras potencialmente perigosas) – mas enfim, coisas a priori como medo e instinto assassino em função do desconhecido (pro gatinho), o princípio do prazer (até em alguém de fora, christina --nesse aspecto, ô filminho freudiano) etc. sobre o prazer, aliás, outro argumento ótimo: não existe uma diferença tão drástica entre a relação da christina com a mais velha e as nossas relações humanas, somos todos um pouco assim (tudo que ela queria era receber sexo oral e a outra queria algo em troca: em suma, desejos, caprichos sutis e satisfações de vaidades), tendo os nossos casos só uma tênue mudança na complexidade desse quid pro quo. enfim, um divino registro da jornada (e das inúmeras dificuldades dela) rumo às alforrias mentais; todos condenados ao autismo generalizado, e ao pleno desconhecimento do mundo e de nós: ficar em posição quadrúpede, não ultrapassar a linha e latir pro lado de fora deve ser, diante daquilo que consideramos nosso cotidiano, senão mais, tão natural quanto. já escrevi demais, mas kynodontas tem pauta pra um liceu – sede de submissão, sobre as crianças desenvolverem a índole maldosa com o transcurso na vida ou nascerem todas com todos os maus inumanos e terem essas pulsões supridas com processos moralizantes, egotismos, egoísmos, dilemas últimos da linguagem -“ter um sentido” não “tem um sentido”!!!-, projeções, sexualidade,
adestrar cachorros e adestrar pessoas... triste, o aviãozinho nem sempre cai. esse filme é jesus!!!!
Grande parte das críticas dizem que este filme não foi dinâmico feito os outros roteiros, como se fosse um Kaufman menos incisivo, perdido dentro de sua própria mente. Como se na mão do Jonze ou do Gondry fosse tornar-se uma coisa melhor. Mas creio que isso seja um tanto equívoco: o redemoinho dentro de uma cabeça com delay consiste na própria incisão; decerto é proposital o espinho crescido dentro do espectador ao ver o filme, a impressão alienígena de assistir o Charlie dirigindo o próprio Charlie, “absorvendo suas próprias pegadas”, com a maioria de suas propriedades e matérias típicas sendo submetidas a novas exposições, como tempo, as fortes dores e lágrimas causadas por esperanças e expectativas frustradas, amores, arte metalinguística, a perda de uma individualidade que se descobre nunca ter tido, o sujeito implodindo em lascas e a infinitude de fragilidades humanas e submissão dos donos delas a elas próprias.
É uma coisa celestial, porque o Kaufman não exatamente pede, mais obriga mesmo a se despir de uma linearidade lógica única, e te atira onde é tudo simultâneo, fragmento, múltiplo, perdido numa busca por unidade. Assisti-lo é uma plena ausência de plenitude, duas horas de despersonalização perplexa, uma inundação e concomitante tabula rasa do entendimento e da percepção; noções, sentimentos e ideias num fluxo indefinido mergulhando e emergindo de uma metanoia oceânica. Querer “quantificar” a polifonia dessa voz e os elementos alegóricos seria, de certa forma, reduzi-lo; é certo que rende um monte de observação teórica significativa, mas o objetivo não parece ser este: Kaufman já é uma interpretação, não uma coisa a ser interpretada. Mesmo que hajam cocôs verdes, casas em chamas ou outras coisas até mesmo óbvias, a beleza reside naquilo que ele abate e expõe e que é, normalmente, inapreensível: o emprego da palavra “tudo” não seria, eu acho, sinédoque, nem conotativo, nesse caso. É uma arte sui generis, e melhor ainda dessa vez, já que é ele próprio o diretor. A forma cadavérica com que o filme se arrasta não deve ser um defeito, só uma incorporação apropriada. Ele se estica até os limites possíveis e chega numa conclusão bem velha e natural, à sua própria maneira: o paradoxo é a figuração que mais temos de próxima da realidade. Parece inevitável sair desse filme sem a impressão de que se foi baleado. Um outro novo óculos para nossas mesmas vidas; vai bem além da ambivalência, é mais que dupla a pluralidade de possibilidades a serem escolhidas e renunciadas, reter-se ou engajar-se, ideias dos sentimentos, sentimentos pelas ideias, a necessidade de limpeza, de dirigir o teatro, dilúvios e abismos de consciência sem rédea. Só lembro da frase de que “fotografia é verdade; cinema é verdade vinte e quatro vezes por segundo”. Kaufman suplanta isso e eleva a afirmação até uma gradação quase nunca atingida: isto é a vida, fluindo, desfiando, diante de nossos olhos; como o próprio filme grita, é um deslize freudiano, é Artaud, Karamazov, é uma puta coisa estupenda. Cada vez mais esse senhor alto, magro, barbudo, contemplativo e paráfilo encanta: eu te amo, Charlie Kaufman.
Eu estava num dia tão bom e pacífico que esse filme foi um gole de ayahuasca de tão amargo, doído e embrulhante ao estômago. A crueza dele é bem incômoda, é um chumbo. Aliás, a crueza do cinema israelense em geral é incômoda, e parece que quanto mais esse canto isolado e desconhecido é revirado, mais coisas ótimas aparecem. Os conflitos ideativos internos têm uma pontuação tão magnífica que é praticamente desnecessária a fala, de tão visual que a história se torna, brusca e seca, ausente de som, presente só de instabilidade e toda angústia e ímpeto de um suicídio político. Nos compete sentir o que o filme cria não por engolir algo jogado na tela, em diversos diálogos ou ações, e sim por apenas absorver algo sulcado no rosto que aparece nessa tela, face quieta e expressiva por si só.
Então fico entre chamar essa obra prima de casablanca palestino ou um apocalypse now do paraíso — a direção e a fotografia podem não ser tão divinas quanto esses ambos supremos, mas chega perto —, e com um Capitão Willard bem mais irresoluto, porém tão bem construído quanto. Com uma tensão vezes mais acentuada, quem sabe pela ausência, não só de trilha sonora, mas pela ausência geral que o filme evoca, em particular no Said. Realmente o Kais Nashif dá um espetáculo de atuação, num largo e ora oco ora cheio âmbito psicológico, que vaga entre Meursault e Kirilov. Que uma personagem sublime disse que é aspecto de um filme minimalista japonês. Sobre o sujeito que incendiou um cinema. Mas, sério agora: da ótica pessoal, os dois personagens principais do filme são um tanto cegos, até mesmo na inversão drástica de vontades — o Said, que era antes relutante, e sua crescente e inabalável intenção de tomar parte na ação, enquanto o outro, voltando, cancelando sua missão numa chamada de paz. Nesse ponto, o filme mostra bem o quão a repressão sociocultural, étnica ou política pode esmerdolar a vida e a mente de um indivíduo ou mesmo de um meio social, e igualmente para a religião, quando é vista e praticada da forma que o é ali. Isso é bem explícito por duas cenas do filme, inteligentíssimo aliás, de uma agudeza bem incomum — uma é a santa ceia assim que se prepara o atentado, e a outra é a cena final, bíblica outra vez: os olhos do mártir e... silêncio. Ar suspenso. E que final... não é nem lindo, é... só. Porém ainda creio que haja a parcela de salvação no filme, a coisa que tira um, o Khaled, da vala — não a razão, de forma alguma, mas a presença feminina. Não, não tô forçando. É a Suha, a lindinha da Lubna Azabal, descabelada às quatro da manhã e fazendo chá. Não há alma de revolta ideológica que resista a isso. Mesmo. Ainda assim, a motivação vai ao viés equívoco, mas não é infundada. As cenas do Said discursando sobre sua indignação, tão retraída, a respeito da injustiça, ocupação, sua falta de liberdade, e a indiferença do mundo, são tocantes, quase fazem com que você o acompanhe no impulso de levar aos ares aquele ônibus, com até alguns inocentes dentro. "Em vida, diferentes, na morte, iguais; há um único deus e ele é o nosso; prefiro ter o paraíso em minha cabeça a viver de corpo nesse inferno"; no mínimo três conotações sobre "dignidade"; pais mancos ou já finados pela mesma razão... e por fim puxar a cordinha. Que filme, ein.
É o The Great Dictator da Guerra Fria pelas mãos de Kubrick. Um filme digno de... huh, fluídos naturais. Além de barrigas doendo de tanto rir. Porque é claro que você não pode brigar na sala de guerra. É o mais engraçado do Stanley, além de que é inteligentíssimo. Dizer que ele é versátil é redutor. Personagens inesquecíveis. Já começa com aquela áurea cinza bélica mas também cômica e logo tudo é sugestivo e ambíguo em sua risibilidade. O caricato exagerado só deixa mais hilariante. Sério, tento pensar em quantas perspectivas esse filme consegue ser genial. Agora, as sutilidades políticas dele são minuciosamente escrachantes, os detalhes fazem uma sátira que beira George Orwell e tem uma ironia lírica digna de Kurt Vonnegut:
O futuro do mundo depende de uma máquina da coca-cola! Além de que, em destaque, como é mostrado, o Doutor Fantástico, antes de integrar as autoridades estado-unidenses a revelar a fausta Doomsday Machine, integrava o terceiro Reich, na Alemanha Nazi. Agora, um sujeito real que fez o mesmo foi o Wernher von Braun, e há o caso clássico dele com o braço quebrado, na sua rendição... Bem, o Dr. Strangelove também tinha um braço problemático. E após os próprios nomes, como exemplo Sadesky, Major Kong, Turgidson e, é claro, Jack Ripper, o filme, além de estudo de escárnio da guerra, também é um esboço sobre o sexo. Sobre o macho, em particular. O anticomunista Ripper era tão austero e já risível, mas quando o simpático Mandrey lhe pergunta como e quando descobriu tudo aquilo, fala de um jeito tão melancólico e sincero que é impossível não rir. Mas, coitado, eu o achei quase profundo: perda de essência durante um ato físico de amor. Como ele mesmo diz, a sorte é que soube interpretar bem. Portanto, que proteja seus fluídos naturais, e a américa. Along with the nuclear war: Ride the bomb. Terminar “improvisadamente” com Vera Lynn também foi lindo...
A fotografia, como de hábito do Stanley, é primorosa... E a surpresa do Peter Sellers fazer três personagens cruciais e eu não ter percebido nenhum além do nosso amado Doctor Strangelove. O sarcasmo se eleva ao divino. Zieg Hail.
Uma eiva ao melhor conto do mais insigne barbudo cirílico. Infiel. Tudo bem que adaptar Dostoievski deve ser um terror, além de uma jactância com pretensões que estão quase fora da linha do crível... Mas meu sonhador!... tão frustrador o filme. O livro tem outra atmosfera, outros personagens, a direção não é ruim, a fotografia é bela, o filme tem um ínfimo resíduo da delicadeza e beleza do conto... Mas ah! não merecia uma adaptação como esta. O Fiódor em italiano! e ainda sem aquela narração única dele, sendo desconsiderado um fluxo e uma ambientação cinematográfica que se iguale. Eu tentei gostar, mas foi enxugada, sufocada toda a graça estética e psicológica do Dosto, ela se dilui e se perde aqui. É um personagem que tem nome, que não encanta; é um covarde prepotente, não um amável “sonhador do tipo ridículo”; é uma Nastienkha (Natália!) que também não apaixona, que até incomoda. Forçoso. O Visconti depois ainda foi enfiar o dedo no Estrangeiro do Camus... ah, tristeza. Ele faz o ato ausente de suas reais proporções. Só é inegável que ele tem bom gosto literário. Só que de forma alguma traduz toda a veemência de uns sujeitos tão grandiosos quanto Dostoievski ou Camus. Agora, quanto ao Notti Bianche, bem, o italiano severo -- aquele cabaré, a dança, alegórica e com os requintes do Chaplin; é divertido, interessante, mas não é a historieta devida. Como singular, como só um filme neo-realista, é razoável; como adaptação, não. Foi um filme bonito, mas frustrante, não um filme ao escrito em que se baseia. E as últimas cenas não se aproximam em nada com o livro, como disseram! O beijo não foi ardente!... e nem o fim do filme! O que aconteceu com aquele fim do conto, com as teias de aranha, aquele término que me varreu dos meus pés e enterrou um arpão das minhas tripas e me fez ficar engolindo os soluços?! ah... vale apenas pelo quesito estético e pelo Mastroianni, que, embora não interpreta o personagem que devia, ainda assim interpreta bem.
A presunção mais monstruosa do monstro Fellini. Esta maior do que adaptar Petrônio ou fazer uma cena tão inesquecível como aquela na Fontana di Trevi, barroca e pomposa, já tão inesquecível por si só. O visionário é o verdadeiro realista. Matando fórmulas. É uma projeção do inconsciente. E é difícil e delicioso porque o Fellini nos desloca. Se há uma coisa que ele mostra sobre o cinema é que é errado se analisar um filme pelo que ele é, e que talvez seja melhor vê-lo por como ele se cumpre em si, pelo que ele se propõe a ser e se ele desempenha tudo isso. A graça é que de certa forma o Otto e Mezzo não se propõe a ser nada, ele se constrói livre, se propõe a ser algo no mínimo um tanto indefinido, a ser a busca de um diretor para preencher o nada do seu projeto; mescla passado, sonho e presente. Só que no mesmo momento em que é um monte, mas um monte de coisa. E é até incômodo quando você se pergunta como alguém tira e logra tanto da ausência. A obra de Fellini não é uma obra. É um universo, peculiar e monumental. Desde o neo-realismo inicial à intimidade crescente do desenvolvimento artístico. E este em particular é um filme inexpressável caso externo a si mesmo, é espontaneidade congênita; já tinha muita coisa boa antes, mas é com Otto e Mezzo que o Fellini realmente vira – num pisão bestial de tão firme – Federico Fellini. Ele se torna algo não muito cerebral. Ele se rompe e nasce de novo. Fica sensorial, introspectivo e onírico... você não o acompanha mais. Agora é ele que te leva. E tem também bastante psicologia diluída no filme, enquanto ele explica e desenha a personalidade do Guido – e em suma a dele também – por meio de sonhos e, é claro, por reminiscências da infância. Agora, isso pode ser algo, de todo, equívoco, da minha ótica – porém o Federico foi sempre muito mais Jung do que Freud, e gostava da linha de pensamento jungiana – mas ele brinca de uma forma escancarada com a luz do preto e branco da fotografia em vários momentos bem singulares ao personagem, quando há incômodo, relutância ou, psicologicamente, “projeção” – o que parece remeter, metaforizar, a “sombra”, do Jung, a face mais sombria e primitiva do ego da psicologia analítica. Porque é justamente isso que ela propunha – o que o Federico traduz com maestria no seu estético característico e até feérico –: o lado mais animal, contido mas eventualmente incontrolável: ele sonha num harém, sonha até em matar o roteirista – enquanto a sombra também é responsável por coisas como a criatividade, o insight e a espontaneidade – coisas essenciais, artisticamente: a sombra está além do nosso controle, na bestialidade e na arte também; agora, fora o esboço acima da honestidade, digamos, não conjugal, mas sentimental, o Guido sofria, e mal tinha um amor – aliás ele tinha até uma melancolia quando via que despedaçava seus relacionamentos –; e ele evolui, faz um escrutínio de si e caminha com isso ao término purificante, discursivo e conclusivo quanto a essa insólita sombra que deveríamos clarear. No fim não há sombra, é um circo a céu aberto, é inspirador, até romântico. É também impossível deixar de notar a semelhança alegórica entre Fellini e Bergman, dois sujeitos tão espantosos, e como exploram certas particularidades. Nesse caso, mulheres. Enquanto o Ingmar várias vezes as faz de foco e possui a maior destreza em exaltar sua delicadeza e instaurar e deixar suspensas as maiores e mais bem construídas tensões – e mesmo assim fazendo da deformação algo belo e fluente –, é interessantíssimo como aqui, o Federico não centraliza, não são um fio condutor, e sim uma companhia contínua, e persiste em manter a sensibilidade de suas mulheres, mas as harmoniza numa comicidade inominável quanto ao roçar descontínuo dos sexos vista de olhos ternos que as mostra destruindo o Guido e sendo cruéis – mas ainda assim encantadoras, ainda fascinantes. Talvez ainda mais. A Luisa, a Anouk, está tão linda... é um amor. Então volta a psicologia. Ele se defende nos sonhos. O que é bem burlesco e risível, e igualmente profundo. Eufemismo dizer que esse filme é imprescindível ao cinema, ao artista. Dizer que Fellini é um gênio do cinema. Além de, nesse deleite, ser uma miríade para a hermenêutica. Ponderando-o de forma lógica e racional, ele também é um gênio: o filme é uma sátira crítica ao modo com que muitas vezes levam a arte cinematográfica, à cobrança de “responsabilidade” que um êxito traz, à incerteza titubeante de um artista e tudo mais... Mas, sabe, sinceramente, fica chato. Fazer isso é como lê-lo de uma perspectiva redutora. O Federico é poesia, espontaneidade, catarse e beleza justamente da quebra da ponderação lógica. E de um desabrochar das ruínas disso. Roteiro, direção, atributos técnicos. É uma dança. E que trilha sonora. Desde o Wagner escolhido e os outros à trilha em si. Com Nino Rota não seria de se esperar menos, mas... Tango! eu achava que o ponto máximo dele era a trilogia The Godfather com o Coppola. Sei não. Enfim, o filme é de uma graça indescritível, uma comédia arguta surreal muito mais do que inspirada sobre a falta de inspiração, tudo o que pode existir numa arte que não existe ainda, fumaça de cigarro e a voz macia do Mastroianni, nódoas de metalinguagem em algo que de tão sutil é quase visceral, subjetividade inefável e subversão num transpor de coisas sérias, mas observadas por essa lente perspicaz, aconchegante e risonha, e com discursos e cenas finais que reverberarão sua lírica e ecoarão em nossas mentes vazias por dias e dias.
Tetro
4.0 209tão humano... a maneira com que esse filme extorque dores e até lágrimas de quem o assiste é tão crua e peculiar.
se o coppola, quatro décadas antes dessa obra, já mostrava que sabia ser uma implosão cinematográfica, somos um bando de felizardos espectadores por ele continuar reiterando isso, seja de forma sutil, explícita, lenta, brusca, introvertida, extrovertida ou, oras, até mesmo de uma forma argentina;
o francis talvez seja como aquela borboleta, do começo do filme, que só bate e investe e se arremessa contra a luz, ininterrupta... ele é um dos poucos que conduz um filme como se fosse uma orquestra e uma câmera como se fosse um instrumento sonoro, como se cada cena fosse uma parte solo da sinfonia final.
e eita, esse roteiro, essa fotografia que derrete nos olhos (remissões a murnau, welles, enfim), mais esse divino tango que o cinema coppolano fez nesse filme em particular com teatro e poesia... tão arguto, junto a uma quase-crítica à senciência na interpessoalidade, eu diria: um ambiente narrativo rodeando gallo de caricaturas só o fez ficar em relevo, e mais crível sua incredulidade; o refino temático e estético logo certifica de quem é a autoria -- o teor da sua embriaguez audiovisual talvez não esteja aqui tão alto, mas não subestimemos despercebidamente o que pode ser uma versão light e em miniatura de uma estrutura até, digamos, karamazoviana.
o francis é um don da arte de fazer filmes, um papa da 35mm! aplausos!
Dente Canino
3.8 1,2K Assista AgoraWWWWOAARRRGH QUE FILME FODA, MEU DEUS. foi um transplante cerebral sem anestesia. mesmo sendo algo muito pessoal, creio que dê pra falar que esse é daqueles filmes que você termina se sentindo muito, demais, genuinamente humano (e não num bom aspecto), você termina com a impressão de que se é muito burro não só pro filme como pra toda sua vida, e ao mesmo tempo com um receio gelado de ter entendido certa parte direito.
Porque assistir isso aqui é ter a cara esfolada num muro áspero de ideias lindas. ele reverbera o fato de que "se algo é mostrado ao espectador, é arte; e se é contado, é um artigo" -e é extraordinária a forma fluente com que esse grego faz posicionamentos que pra muita gente ótima já foi coisa inapreensível. uma das propostas mais originais desse século. se fosse, numa leitura já advertidamente ruim e redutora, pra comentar o impacto do espectro físico,
nada como o cinema pra tornar um atropelamento mental o que normalmente seria uma ideia filosófica estéril. num filme epistemológico desses, dá pra começar com a inferência básica de que qualquer saber é um relativismo ou vindo de um axioma, sendo esse saber axiomático só um relativismo numa embalagem.
Disso, ele parece dizer que o funcionamento das pessoas e a dinâmica humana num geral se baseia completamente em valor psicológico agregado, a qualquer objeto, tanto em semântica (o caso dos zumbis, ou florzinhas) como emocionalmente, em questões mais profundas (o caso dos adesivos na cama, por exemplo), sendo razão e lógica uns dos preenchimentos mais débeis e fracos desses possíveis valores.
e se nos parece cômico ou absurdo que se criem filhos dizendo-lhes que gatinhos são os piores animais do mundo, e que tais palavras não são tais palavras (uma vez que o filme põe os filhos como alienados e põe o público no mesmo nível que o pai), isso só se dá pois é certo que acontece o mesmo com nós — as coisas que tomamos por piores e mais prejudiciais podem muito bem não ser as piores e mais prejudiciais, e sim somente as mais excluídas, mais bem caluniadas e difamadas, e seguimos assim sem percebê-lo. (um bom exemplo disso é que até mesmo a tentativa de sair dos muros da mais velha, naquela cena memorável, está dentro dos padrões anteriormente impostos: para fazê-lo, ela tanto quebra o canino como espera no carro). apenas em proporções maiores, nossas crenças e limitações devem ficar mais ou menos pelo mesmo: só um círculo dentro de um círculo dentro de um círculo.
É assim que se termina o filme com a impressão de terem tirado uma película dos seus olhos – e com a coceira incômoda de saber que debaixo dela haverá outra –, olhando diferentemente para si e para o mundo, tanto para trás como para a frente. nesse aspecto o lanthimos parece inclinado à empiria, e com as coisas se explicando por si mesmas (têm todas muito mais existência que significado), nunca pelas “generalizações especificantes”.
Continuando, outro agravante seria que a causa da deterioração do lar organizado decorre de coisas a priori, que segundo o filme não se tirariam de um indivíduo mesmo quando criado dentro de muros e passando tudo o que chega a ele por um crivo anti-insubordinação (crivo tão profundo que até mesmo muda os significados de palavras potencialmente perigosas) – mas enfim, coisas a priori como medo e instinto assassino em função do desconhecido (pro gatinho), o princípio do prazer (até em alguém de fora, christina --nesse aspecto, ô filminho freudiano) etc. sobre o prazer, aliás, outro argumento ótimo: não existe uma diferença tão drástica entre a relação da christina com a mais velha e as nossas relações humanas, somos todos um pouco assim (tudo que ela queria era receber sexo oral e a outra queria algo em troca: em suma, desejos, caprichos sutis e satisfações de vaidades), tendo os nossos casos só uma tênue mudança na complexidade desse quid pro quo.
enfim, um divino registro da jornada (e das inúmeras dificuldades dela) rumo às alforrias mentais; todos condenados ao autismo generalizado, e ao pleno desconhecimento do mundo e de nós: ficar em posição quadrúpede, não ultrapassar a linha e latir pro lado de fora deve ser, diante daquilo que consideramos nosso cotidiano, senão mais, tão natural quanto.
já escrevi demais, mas kynodontas tem pauta pra um liceu – sede de submissão, sobre as crianças desenvolverem a índole maldosa com o transcurso na vida ou nascerem todas com todos os maus inumanos e terem essas pulsões supridas com processos moralizantes, egotismos, egoísmos, dilemas últimos da linguagem -“ter um sentido” não “tem um sentido”!!!-, projeções, sexualidade,
esse filme é jesus!!!!
Sinédoque, Nova York
4.0 477Grande parte das críticas dizem que este filme não foi dinâmico feito os outros roteiros, como se fosse um Kaufman menos incisivo, perdido dentro de sua própria mente. Como se na mão do Jonze ou do Gondry fosse tornar-se uma coisa melhor. Mas creio que isso seja um tanto equívoco: o redemoinho dentro de uma cabeça com delay consiste na própria incisão; decerto é proposital o espinho crescido dentro do espectador ao ver o filme, a impressão alienígena de assistir o Charlie dirigindo o próprio Charlie, “absorvendo suas próprias pegadas”, com a maioria de suas propriedades e matérias típicas sendo submetidas a novas exposições, como tempo, as fortes dores e lágrimas causadas por esperanças e expectativas frustradas, amores, arte metalinguística, a perda de uma individualidade que se descobre nunca ter tido, o sujeito implodindo em lascas e a infinitude de fragilidades humanas e submissão dos donos delas a elas próprias.
É uma coisa celestial, porque o Kaufman não exatamente pede, mais obriga mesmo a se despir de uma linearidade lógica única, e te atira onde é tudo simultâneo, fragmento, múltiplo, perdido numa busca por unidade. Assisti-lo é uma plena ausência de plenitude, duas horas de despersonalização perplexa, uma inundação e concomitante tabula rasa do entendimento e da percepção; noções, sentimentos e ideias num fluxo indefinido mergulhando e emergindo de uma metanoia oceânica.
Querer “quantificar” a polifonia dessa voz e os elementos alegóricos seria, de certa forma, reduzi-lo; é certo que rende um monte de observação teórica significativa, mas o objetivo não parece ser este: Kaufman já é uma interpretação, não uma coisa a ser interpretada. Mesmo que hajam cocôs verdes, casas em chamas ou outras coisas até mesmo óbvias, a beleza reside naquilo que ele abate e expõe e que é, normalmente, inapreensível: o emprego da palavra “tudo” não seria, eu acho, sinédoque, nem conotativo, nesse caso. É uma arte sui generis, e melhor ainda dessa vez, já que é ele próprio o diretor. A forma cadavérica com que o filme se arrasta não deve ser um defeito, só uma incorporação apropriada.
Ele se estica até os limites possíveis e chega numa conclusão bem velha e natural, à sua própria maneira: o paradoxo é a figuração que mais temos de próxima da realidade. Parece inevitável sair desse filme sem a impressão de que se foi baleado. Um outro novo óculos para nossas mesmas vidas; vai bem além da ambivalência, é mais que dupla a pluralidade de possibilidades a serem escolhidas e renunciadas, reter-se ou engajar-se, ideias dos sentimentos, sentimentos pelas ideias, a necessidade de limpeza, de dirigir o teatro, dilúvios e abismos de consciência sem rédea. Só lembro da frase de que “fotografia é verdade; cinema é verdade vinte e quatro vezes por segundo”. Kaufman suplanta isso e eleva a afirmação até uma gradação quase nunca atingida: isto é a vida, fluindo, desfiando, diante de nossos olhos; como o próprio filme grita, é um deslize freudiano, é Artaud, Karamazov, é uma puta coisa estupenda. Cada vez mais esse senhor alto, magro, barbudo, contemplativo e paráfilo encanta: eu te amo, Charlie Kaufman.
Paradise Now
3.9 160 Assista AgoraEu estava num dia tão bom e pacífico que esse filme foi um gole de ayahuasca de tão amargo, doído e embrulhante ao estômago. A crueza dele é bem incômoda, é um chumbo. Aliás, a crueza do cinema israelense em geral é incômoda, e parece que quanto mais esse canto isolado e desconhecido é revirado, mais coisas ótimas aparecem.
Os conflitos ideativos internos têm uma pontuação tão magnífica que é praticamente desnecessária a fala, de tão visual que a história se torna, brusca e seca, ausente de som, presente só de instabilidade e toda angústia e ímpeto de um suicídio político. Nos compete sentir o que o filme cria não por engolir algo jogado na tela, em diversos diálogos ou ações, e sim por apenas absorver algo sulcado no rosto que aparece nessa tela, face quieta e expressiva por si só.
Então fico entre chamar essa obra prima de casablanca palestino ou um apocalypse now do paraíso — a direção e a fotografia podem não ser tão divinas quanto esses ambos supremos, mas chega perto —, e com um Capitão Willard bem mais irresoluto, porém tão bem construído quanto.
Com uma tensão vezes mais acentuada, quem sabe pela ausência, não só de trilha sonora, mas pela ausência geral que o filme evoca, em particular no Said. Realmente o Kais Nashif dá um espetáculo de atuação, num largo e ora oco ora cheio âmbito psicológico, que vaga entre Meursault e Kirilov. Que uma personagem sublime disse que é aspecto de um filme minimalista japonês. Sobre o sujeito que incendiou um cinema.
Mas, sério agora: da ótica pessoal, os dois personagens principais do filme são um tanto cegos, até mesmo na inversão drástica de vontades — o Said, que era antes relutante, e sua crescente e inabalável intenção de tomar parte na ação, enquanto o outro, voltando, cancelando sua missão numa chamada de paz. Nesse ponto, o filme mostra bem o quão a repressão sociocultural, étnica ou política pode esmerdolar a vida e a mente de um indivíduo ou mesmo de um meio social, e igualmente para a religião, quando é vista e praticada da forma que o é ali. Isso é bem explícito por duas cenas do filme, inteligentíssimo aliás, de uma agudeza bem incomum — uma é a santa ceia assim que se prepara o atentado, e a outra é a cena final, bíblica outra vez: os olhos do mártir e... silêncio. Ar suspenso. E que final... não é nem lindo, é... só.
Porém ainda creio que haja a parcela de salvação no filme, a coisa que tira um, o Khaled, da vala — não a razão, de forma alguma, mas a presença feminina. Não, não tô forçando. É a Suha, a lindinha da Lubna Azabal, descabelada às quatro da manhã e fazendo chá. Não há alma de revolta ideológica que resista a isso. Mesmo.
Ainda assim, a motivação vai ao viés equívoco, mas não é infundada. As cenas do Said discursando sobre sua indignação, tão retraída, a respeito da injustiça, ocupação, sua falta de liberdade, e a indiferença do mundo, são tocantes, quase fazem com que você o acompanhe no impulso de levar aos ares aquele ônibus, com até alguns inocentes dentro. "Em vida, diferentes, na morte, iguais; há um único deus e ele é o nosso; prefiro ter o paraíso em minha cabeça a viver de corpo nesse inferno"; no mínimo três conotações sobre "dignidade"; pais mancos ou já finados pela mesma razão... e por fim puxar a cordinha.
Que filme, ein.
Peace.
Dr. Fantástico
4.2 665 Assista AgoraÉ o The Great Dictator da Guerra Fria pelas mãos de Kubrick.
Um filme digno de... huh, fluídos naturais. Além de barrigas doendo de tanto rir. Porque é claro que você não pode brigar na sala de guerra. É o mais engraçado do Stanley, além de que é inteligentíssimo. Dizer que ele é versátil é redutor. Personagens inesquecíveis. Já começa com aquela áurea cinza bélica mas também cômica e logo tudo é sugestivo e ambíguo em sua risibilidade. O caricato exagerado só deixa mais hilariante.
Sério, tento pensar em quantas perspectivas esse filme consegue ser genial. Agora, as sutilidades políticas dele são minuciosamente escrachantes, os detalhes fazem uma sátira que beira George Orwell e tem uma ironia lírica digna de Kurt Vonnegut:
O futuro do mundo depende de uma máquina da coca-cola!
Além de que, em destaque, como é mostrado, o Doutor Fantástico, antes de integrar as autoridades estado-unidenses a revelar a fausta Doomsday Machine, integrava o terceiro Reich, na Alemanha Nazi. Agora, um sujeito real que fez o mesmo foi o Wernher von Braun, e há o caso clássico dele com o braço quebrado, na sua rendição... Bem, o Dr. Strangelove também tinha um braço problemático.
E após os próprios nomes, como exemplo Sadesky, Major Kong, Turgidson e, é claro, Jack Ripper, o filme, além de estudo de escárnio da guerra, também é um esboço sobre o sexo. Sobre o macho, em particular. O anticomunista Ripper era tão austero e já risível, mas quando o simpático Mandrey lhe pergunta como e quando descobriu tudo aquilo, fala de um jeito tão melancólico e sincero que é impossível não rir. Mas, coitado, eu o achei quase profundo: perda de essência durante um ato físico de amor. Como ele mesmo diz, a sorte é que soube interpretar bem. Portanto, que proteja seus fluídos naturais, e a américa. Along with the nuclear war: Ride the bomb. Terminar “improvisadamente” com Vera Lynn também foi lindo...
A fotografia, como de hábito do Stanley, é primorosa... E a surpresa do Peter Sellers fazer três personagens cruciais e eu não ter percebido nenhum além do nosso amado Doctor Strangelove.
O sarcasmo se eleva ao divino.
Zieg Hail.
Noites Brancas
4.1 61Uma eiva ao melhor conto do mais insigne barbudo cirílico.
Infiel. Tudo bem que adaptar Dostoievski deve ser um terror, além de uma jactância com pretensões que estão quase fora da linha do crível... Mas meu sonhador!... tão frustrador o filme. O livro tem outra atmosfera, outros personagens, a direção não é ruim, a fotografia é bela, o filme tem um ínfimo resíduo da delicadeza e beleza do conto... Mas ah! não merecia uma adaptação como esta. O Fiódor em italiano! e ainda sem aquela narração única dele, sendo desconsiderado um fluxo e uma ambientação cinematográfica que se iguale.
Eu tentei gostar, mas foi enxugada, sufocada toda a graça estética e psicológica do Dosto, ela se dilui e se perde aqui. É um personagem que tem nome, que não encanta; é um covarde prepotente, não um amável “sonhador do tipo ridículo”; é uma Nastienkha (Natália!) que também não apaixona, que até incomoda.
Forçoso. O Visconti depois ainda foi enfiar o dedo no Estrangeiro do Camus... ah, tristeza. Ele faz o ato ausente de suas reais proporções. Só é inegável que ele tem bom gosto literário. Só que de forma alguma traduz toda a veemência de uns sujeitos tão grandiosos quanto Dostoievski ou Camus.
Agora, quanto ao Notti Bianche, bem, o italiano severo -- aquele cabaré, a dança, alegórica e com os requintes do Chaplin; é divertido, interessante, mas não é a historieta devida.
Como singular, como só um filme neo-realista, é razoável; como adaptação, não.
Foi um filme bonito, mas frustrante, não um filme ao escrito em que se baseia. E as últimas cenas não se aproximam em nada com o livro, como disseram! O beijo não foi ardente!... e nem o fim do filme! O que aconteceu com aquele fim do conto, com as teias de aranha, aquele término que me varreu dos meus pés e enterrou um arpão das minhas tripas e me fez ficar engolindo os soluços?! ah... vale apenas pelo quesito estético e pelo Mastroianni, que, embora não interpreta o personagem que devia, ainda assim interpreta bem.
8½
4.3 409 Assista AgoraA presunção mais monstruosa do monstro Fellini. Esta maior do que adaptar Petrônio ou fazer uma cena tão inesquecível como aquela na Fontana di Trevi, barroca e pomposa, já tão inesquecível por si só. O visionário é o verdadeiro realista. Matando fórmulas.
É uma projeção do inconsciente. E é difícil e delicioso porque o Fellini nos desloca. Se há uma coisa que ele mostra sobre o cinema é que é errado se analisar um filme pelo que ele é, e que talvez seja melhor vê-lo por como ele se cumpre em si, pelo que ele se propõe a ser e se ele desempenha tudo isso. A graça é que de certa forma o Otto e Mezzo não se propõe a ser nada, ele se constrói livre, se propõe a ser algo no mínimo um tanto indefinido, a ser a busca de um diretor para preencher o nada do seu projeto; mescla passado, sonho e presente. Só que no mesmo momento em que é um monte, mas um monte de coisa. E é até incômodo quando você se pergunta como alguém tira e logra tanto da ausência.
A obra de Fellini não é uma obra. É um universo, peculiar e monumental. Desde o neo-realismo inicial à intimidade crescente do desenvolvimento artístico. E este em particular é um filme inexpressável caso externo a si mesmo, é espontaneidade congênita; já tinha muita coisa boa antes, mas é com Otto e Mezzo que o Fellini realmente vira – num pisão bestial de tão firme – Federico Fellini. Ele se torna algo não muito cerebral. Ele se rompe e nasce de novo. Fica sensorial, introspectivo e onírico... você não o acompanha mais. Agora é ele que te leva.
E tem também bastante psicologia diluída no filme, enquanto ele explica e desenha a personalidade do Guido – e em suma a dele também – por meio de sonhos e, é claro, por reminiscências da infância.
Agora, isso pode ser algo, de todo, equívoco, da minha ótica – porém o Federico foi sempre muito mais Jung do que Freud, e gostava da linha de pensamento jungiana – mas ele brinca de uma forma escancarada com a luz do preto e branco da fotografia em vários momentos bem singulares ao personagem, quando há incômodo, relutância ou, psicologicamente, “projeção” – o que parece remeter, metaforizar, a “sombra”, do Jung, a face mais sombria e primitiva do ego da psicologia analítica. Porque é justamente isso que ela propunha – o que o Federico traduz com maestria no seu estético característico e até feérico –: o lado mais animal, contido mas eventualmente incontrolável: ele sonha num harém, sonha até em matar o roteirista – enquanto a sombra também é responsável por coisas como a criatividade, o insight e a espontaneidade – coisas essenciais, artisticamente: a sombra está além do nosso controle, na bestialidade e na arte também; agora, fora o esboço acima da honestidade, digamos, não conjugal, mas sentimental, o Guido sofria, e mal tinha um amor – aliás ele tinha até uma melancolia quando via que despedaçava seus relacionamentos –; e ele evolui, faz um escrutínio de si e caminha com isso ao término purificante, discursivo e conclusivo quanto a essa insólita sombra que deveríamos clarear. No fim não há sombra, é um circo a céu aberto, é inspirador, até romântico.
É também impossível deixar de notar a semelhança alegórica entre Fellini e Bergman, dois sujeitos tão espantosos, e como exploram certas particularidades. Nesse caso, mulheres. Enquanto o Ingmar várias vezes as faz de foco e possui a maior destreza em exaltar sua delicadeza e instaurar e deixar suspensas as maiores e mais bem construídas tensões – e mesmo assim fazendo da deformação algo belo e fluente –, é interessantíssimo como aqui, o Federico não centraliza, não são um fio condutor, e sim uma companhia contínua, e persiste em manter a sensibilidade de suas mulheres, mas as harmoniza numa comicidade inominável quanto ao roçar descontínuo dos sexos vista de olhos ternos que as mostra destruindo o Guido e sendo cruéis – mas ainda assim encantadoras, ainda fascinantes. Talvez ainda mais. A Luisa, a Anouk, está tão linda... é um amor.
Então volta a psicologia. Ele se defende nos sonhos. O que é bem burlesco e risível, e igualmente profundo. Eufemismo dizer que esse filme é imprescindível ao cinema, ao artista. Dizer que Fellini é um gênio do cinema. Além de, nesse deleite, ser uma miríade para a hermenêutica. Ponderando-o de forma lógica e racional, ele também é um gênio: o filme é uma sátira crítica ao modo com que muitas vezes levam a arte cinematográfica, à cobrança de “responsabilidade” que um êxito traz, à incerteza titubeante de um artista e tudo mais... Mas, sabe, sinceramente, fica chato. Fazer isso é como lê-lo de uma perspectiva redutora. O Federico é poesia, espontaneidade, catarse e beleza justamente da quebra da ponderação lógica. E de um desabrochar das ruínas disso.
Roteiro, direção, atributos técnicos. É uma dança. E que trilha sonora. Desde o Wagner escolhido e os outros à trilha em si. Com Nino Rota não seria de se esperar menos, mas... Tango! eu achava que o ponto máximo dele era a trilogia The Godfather com o Coppola. Sei não. Enfim, o filme é de uma graça indescritível, uma comédia arguta surreal muito mais do que inspirada sobre a falta de inspiração, tudo o que pode existir numa arte que não existe ainda, fumaça de cigarro e a voz macia do Mastroianni, nódoas de metalinguagem em algo que de tão sutil é quase visceral, subjetividade inefável e subversão num transpor de coisas sérias, mas observadas por essa lente perspicaz, aconchegante e risonha, e com discursos e cenas finais que reverberarão sua lírica e ecoarão em nossas mentes vazias por dias e dias.