Tudo começou porque eu tava de férias, já tinha visto tudo que queria ver no cinema e pensei em ver a sequencia, que estava passando. Resolvi então procurar sobre o filme na internet, ver se valeria a pena ou seria mais um desses filmes chatos que (terror, comedia romantica, ação, superprodução, etc) vão a cada duas semanas às telonas.
Vi algo relacionado à Hammer, e a intenção de fazer um filme de terror "à moda antiga" e resolvi dar uma chance ao filme na netflix. Acabei não indo ver o 2 e nem pretendo ir.
Uma coisa precisa ser dita: o filme é visualmente lindo. Que paisagens! Que belos cenários, objetos, tudo! Mas meu pai do céu, que filme chato! NADA, em NENHUM momento, desperta o MENOR interesse. Atuações aguadíssimas, sustos baratos (o que nem seria um problema se em algum momento algo ficasse interessante ou assustador), e a solução final é totalmente ridícula. A última cena também, as tentativas de conflito, tudo, tudo, tudo.
Logo na abertura, o texto, a trilha sonora (uma das melhores de todos os tempos na minha opinião) e a primeira cena, temos a impressão de estar diante de algo GRANDE. Nos ajeitamos na poltrona e preparamos para o que quer que possa sair de uma proposta tão estranha.
A ideia do plano sequencia e sua execução funcionam muito bem, mas rapidamente o filme torna-s cansativo, dando a impressão de ser só mais um filme sobre decadência, vaidade e cretinice no meio artístico. Em alguns momentos lembrei de toda a primeira parte do Melancolia e de como tudo aquilo, embora cansativo, encaixa perfeitamente na proposta do filme.
Esse, talvez, seja o caso de Birdman. Fica claro que toda aquela correria meio tediosa quer dizer alguma coisa sobre esse vazio da vaidade não apenas do meio artístico, mas da humanidade de um modo geral. Alguns diálogos chegam a ser interessantes, mas nunca realmente interessantes, é sempre uma profundidade meio falsa, meio de fachada. Mas não é disso que o filme trata afinal? Lembremos da cena em que, após comprar o uisque, há um "louco" gritando do lado de fora, como se toda a verdadeira indignação estivesse em seu peito e no segundo seguinte ele aparece preocupado com a própria atuação.
Aí tem as cenas de superheróis e voos livres. Confesso que mesmo esperando por elas, na hora em que acontecem me causaram grande impressão. Aí é que pensamos: isso realmente pretende ser GRANDE. Mas aos poucos as coisas seguem e nada foi tão grande afinal, é sempre um pouco falhado, um pouco ridículo na enorme pretensão artística. Mas não é disso que o filme trata afinal?
Assim como Inside Lewyn Davis (não lembro se escreve assim), o filme parece tratar do fracasso, daquilo que falha tentando ser grandioso (é verdade que Birdman e seu protagonista são extremamente mais pretensiosos que o filme dos Coen, falhando mais, talvez mais grandiosamente) e cuja força talvez resida justamente nesse fracasso, nessa pretensão que se sabe pronta para falhar.
Durante os créditos, aqui e ali, explodem gargalhadas. É, afinal, um filme que quer que a gente ria dele, principalmente em seus momentos mais decadentes. E isso funciona, mas ainda não sei dizer se é um GRANDE filme. Ele tem, sem sombra de dúvidas, uma baita trilha sonora.
A personagem da tia é muito chata, falando uma série de clichés do "curtir a vida" etc. Estive o filme todo com medo de que Anna fosse aprender uma grande lição e "libertar-se". Felizmente a coisa não foi por esse lado e fica mesmo mais interessante para o final, após o suicídio e alguma insinuação de ambiguidade. Na minha opinião, se o filme acabasse aí (a cena da cortina, que é muito bonita daria um bom final, deixando tudo em aberto). Mas não, volta a figura do galã barato, a "experimentação" de Anna e o retorno ao convento. Embora muito melhor do que um final que tornasse a tia uma espécie de heroína, na minha opinião ainda torna tudo muito "fechado", especialmente num filme de aparência tão sutil. Além disso, toda aquela busca em relação aos pais parece simplesmente não significar nada para ninguém. Podia insinuar mais, ou aproveitar melhor o que pretende ter de sólido.
Antes de qualquer coisa preciso dizer que gostei muito de ver o filme no cinema. É um bom filme. Se pensarmos em termos hollywoodianos, é mesmo um ÓTIMO filme. E quase digo que ele é divertido, se achá-lo divertido não demandasse uma enorme cretinice. Talvez aqui esteja o que não gosto nele, mas seria ingenuidade esperar outra coisa desse tipo de filme, certo?
O começo do filme, pra mim, foi extremamente incômodo. Os primeiros minutos, talvez a primeira hora de filme, é desenvolvida de modo muito inteligente e instigante, e atinge uma tensão mesmo de GRANDE filme, antes de cair no velho maniqueismo hollywoodiano e nas cenas intermináveis de (masturb)AÇÃO que conhecemos tão bem. Não que essas cenas aqui sejam (nem de longe) ruins quanto nas outras centenas de filmes que saem em série semana após semana para cumprir a necessidade de pais, crianças e adolescentes de irem ao cinema e dar risada vendo bandidos levando tiro, carros explodindo, belas mulheres submissas e estereótipos de virilidade que aparentemente estão lutando e matando pela paz mundial. Mas vamos falar de macacos.
Vamos falar de porque esse filme AINDA é, mesmo com todos os indícios contrários, um filme inteligente, como o primeiro Planeta dos Macacos, e como o antecessor desse, A Origem. Antes que eu visse o filme, um amigo disse que o detestou porque os macacos usam conceitos muito abstratos que são expressados com movimentos com a mão e com o rosto. Disse que isso seria aceitável por tratar-se de sci-fi, mas que além disso o filme é extremamente maniqueista e que ele odeia essas coisas de "o macaco bonzinho" e o "humano bonzinho" que não ligam que seu semelhante seja ferido, o importante é a paz, etc. Eu pensei que o negócio da linguagem não tinha tanto problema, e que comunicar-se por sinais não é necessariamente ter uma comunicação primitiva. Mas pensei também que se ele tinha razão quanto a esse maniqueismo o filme devia mesmo ser uma merda. Outro amigo disse que achava tudo isso meio ruim mas que gostou muito da cena final, da luta entre os dois macacos, por achar divertido mesmo.
Fui ver o filme e concordo que o negócio da linguagem é extremamente forçado, são dois ou três gestos que exprimem conversas relativamente abstratas. Mas ok, isso não prejudica o efeito geral. O que é realmente interessante nesse filme é a tensão. Uma tensão extremamente pessimista, de que "não há jeito" para a humanidade e sua relação com a natureza. Pode-se idealizar o quanto quiser a vida dos macacos, mas a primeira cena do filme (sensacional, por sinal!) é a de um bando de macacos usando de tecnologia para caçar outros animais. O que justifica essa caça é principalmente a noção de que eles não são macacos. "Macaco não mata macaco". Essa regra, que para Bataille, Freud e tantos outros pensadores é fundadora da civilização, percorre o filme inteiro, e é importante guardá-la. A primeira cena do filme, portanto, é de macacos matando outros animais, inclusive um urso. É verdade que a maior parte dos animais escapa, a cena talvez fosse forte demais se não escapassem, mas o princípio está posto.
Depois, temos uma espécie de vida ideal dos macacos na natureza (ainda que com um enorme cadáver de urso que, afinal, "atacou primeiro", e as cicatrizes do filho de Cesar são visíveis o filme todo. Mas Koba (importante apontar que é o único macaco que não tem nomes "ocidentais" como Maurice, Cesar, Rocket, Ash, etc) também está coberto de cicatrizes, o que ajuda a lhe conceder o aspecto feio e mau que o tornará o grande vilão. Essa cicatrizes foram feitas por humanos em laboratórios, como sabemos pelo primeiro filme e pela fala revoltada de Koba no que chamarei de "1a cena violenta de Cesar", quando este apenas se levanta, coagindo Koba ao gesto de submissão que marcou a relação do próprio Cesar com o humano em "A Origem". Dois personagens cobertos de cicatrizes, dois casos de "atacou primeiro", mata-se o urso, os humanos não, pois Cesar pensa na paz. O nome, Cesar, já é representativo de um sistema pacífico (macaco não mata macaco) que sustenta com base em alguma violência. Na segunda cena de violência (e muito violenta!) Cesar espanca Koba diante de todos por ouvir que Cesar ama mais humanos do que macacos.
Na terceira cena de violência (quando afinal todos nós já concordamos que Koba é melhor enjaulado ou morto), Cesar é levado por Koba a tomar uma posição quanto ao princípio que ele mesmo impôs: se macaco não mata macaco, eu matei macacos, você vai me punir com o mesmo ato que você pretende punir? Aqui é muito significativa a resposta do líder: "você não é um macaco". É extremamente humano, e a frase de Cesar de que vê cada vez mais como os macacos são parecidos, pelo pior, com os humanos (referindo-se ao frenesi guerreiro de Koba), cabe perfeitamente a esse comportamento. A humanidade sempre usou o princípio da diferenciação para praticar atos violentos contra animais, por exemplo, os macacos (as cicatrizes de Koba). Aliás, assim como Cesar, contra os próprios humanos, pois a justificativa para a escravização de negros no auge do pensamento positivista não foi outra!
Adiantei um pouco as coisas, voltemos para o ponto em que o filme ainda tinha grande tensão. A questão da represa. Um humano mata "no susto" um macaco, filho de Koba. Cesar os deixa ir embora e sustenta que essa é a melhor maneira de assegurar a vida de seu povo. Já é uma situação delicada, já é complicado, mas parece plausível. É doloroso perder um irmão, um filho, mas ainda assim Cesar parece ter razão, como aliás parece ao longo de todo o filme, o que não o impede de ser muito violento, O humano volta, em paz, parece alguém bem intencionado (e é!) e precisa da permissão dos macacos para reativar a represa. Isso tudo, superficialmente, pode parecer baboseira hollywoodiana, mas apenas na medida em que comprarmos a maldade de Koba por sua feiura. Os rostos de Cesar e sua família são muito mais humanizados do que o de Koba. Ele possui diversas cicatrizes e não tem um olho. Mas tudo isso foi causado por humanos em laboratórios! Em laboratórios movimentados pela ciência, pela tecnologia, por aquilo mesmo que eles estão ávidos por retomar. Eles não são humanos se não tiverem controle da energia, se não tiverem a possibilidade de expandir e movimentar as forças naturais para o seu proveito e nós sabemos aonde isso vai dar! Nós vivemos isso, e seria necessário MUITA ingenuidade pra crer que a reativação da empresa garantiria a convivência pacífica de humanos e macacos por muito tempo. Koba tem razão quando diz que a reativação dará energia pra que os humanos se tornem novamente poderosos e que a partir daí seria uma questão de tempo até que eles quisessem todo o lugar ocupado pelos macacos. A intenção de Malcolm pode ser boa, assim como a de Cesar, mas a paz que eles almejam é impossível.
A outra opção, não permitir a reativação da empresa, os levaria à guerra imediata, uma opção muito mais "racional" por parte dos macacos, se pensarem apenas em sua sobrevivência. É nesse ponto que o filme é inteligente e extremamente pessimista, pois em última instância, não há opção de paz. Uma hipótese mais mirabolante seria que, mesmo se os humanos aceitassem viver sem a energia possível (e não pudessem desenvolvê-la de outra forma), os macacos poderiam posteriormente atacar e dominar os humanos. Essa é a visão subterrânea que percorre o filme, a de que não há opção de paz. O maniqueismo inicial, depois desenvolvido quase obscenamente, tornando Koba de fato detestável e sanguinário (até o assassinato de Cesar não acho que a figura dele justifique isso!), é superficial para aquele que pensar um pouco mais a fundo na situação proposta.
Talvez o modo como falei torne Cesar uma figura detestável. Ele não é. É um líder convicto de seus ideais. Apenas não é perfeito, e as 3 cenas de violência contra Koba demonstram que sua convicção, embora bem intencionada, também está baseada em violência. Como se a paz só pudesse ser sustentada com a violência (ainda que baseada "apenas" em sua constante possibilidade). Como já disse, extremamente significativa é a cena final em que, não assumindo estar disposto a, ainda que em nome da paz, quebrar o código imposto por ele, subverte discursivamente seu semelhante em não-semelhante, de modo parecido com o que humanos fazem com macacos em laboratórios, e mesmo com outros humanos, até hoje.
Assim, parece que esse filme, assim como A Origem (melhor, na minha opinião, mais profundo e cinzento), são o que de mais instigante podemos esperar de Hollywood. Além de que, comentando rapidamente, o filme visualmente é maravilhoso, desde a primeira cena, as das pontes, de florestas, a cena em que Koba mata os humanos, a luta final que eu (como meu amigo lá de cima) achei mesmo empolgante, enfim, é divertido sim, mas um mínimo de consciência acrescenta uma ponta de angústia e tristeza em todo esse espetáculo visual. Logo, concordo com quem fala desse maniqueismo, mas acho que ele é forçado pra criar as cenas de que Hollywood precisa. Uma reflexão cuidadosa, especialmente da primeira hora de filme, torna a ação bem contra mal que surge depois bastante questionável, e não dá pra esquecer que no fim ambos os esforços pacifistas (Cesar e Malcolm) se mostram inúteis, pois a guerra é - e não poderia deixar de ser - iminente.
Várias coisas até ali apontam para uma espécie de ambiguidade, uma grande desconfiança de um cenário que parece uma sociedade utópica. Mais de uma vez em narrativas conhecidas foram representados cenários desse tipo, que escondem uma enorme crueldade no subterrâneo de uma sociedade ideal. (Capítulo "Neve" em A Montanha Mágica de Thomas Mann, pra falar de um clássico, Ergo Proxy, pra falar de um anime recente. A ótima trilogia de Haruki Murakami, 1Q84, e o jogo Bioshock Inifinity, contudo, guardam maiores paralelos simbólicos com o universo representado no filme -
Isso é muito interessante e gera ao mesmo tempo, no início do filme, uma vontade de saber mais sobre aquela experiência aparentemente redentora, e a certeza de que a qualquer momento algo fará com que tudo aquilo se desmorone moralmente e possamos voltar a pensar que o modo como vivemos é mesmo o melhor que a humanidade pode alcançar. Talvez isso soe viajado demais, mas acho que é para esse tipo de experiência que servem os filmes e livros. Mesmo aqueles que os vêem "apenas" como entretenimento, estão jogando com essas reflexões e julgamentos, que geralmente refletem direta e um pouco inconscientemente na valoração do filme.
Voltando ao filme, ele é bastante interessante e tenso nesse início.
A entrevista com o Pai é o auge da tensão gerada pela ambiguidade, todas as suas respostas são convincentes, o movimento todo faz o entrevistador (que seria o "nosso" representante, mas com quem dificilmente alcançaremos muita empatia) parecer um "idiota cético da cidade". Há inclusive a explícita negação de conceitos como socialismo ou comunismo, ainda que esses elementos não deixem de atuar subterraneamente até o final do filme. E é nesse ponto que acho o filme ruim.
Sei que ele é baseado em um evento real, do qual honestamente não tenho conhecimento nenhum, agradeço a quem indicou o documentário pois fiquei interessado e vou atrás. Mas não acho que esse desconhecimento deva impedir alguém de falar sobre o filme enquanto obra fechada, ou melhor, aberta para a visita do espectador e suas possíveis leituras dentro do universo fechado criado pelo filme. E nesse sentido, acho que todo o movimento da comunidade é mal explorado. A entrevista, como já disse, é o auge da tensão gerada pela ambiguidade, ponto forte em minha opinião. A festa que segue também é interessante, pois demonstra o quanto a serenidade disciplinada daquele cotidiano precisa de seus momentos de suspensão (O Erotismo de Bataille e o Freud de Totem e Tabu aqui "fariam a festa"). Durante a festa, temos mesmo a impressão de uma relação entre o Pai e Caroline,. Sendo o Pai, o Pai, isso toca simbolicamente numa espécie de incesto. É somente na festa que surge uma sensualidade insinuada, assim como as duas garotas que Caroline "arranja" para seu irmão. Aliás, elas estavam interessadas justamente no "estrangeiro", naquele que veio da "cidade", e percorre o filme todo a ideia de que foram eles que levaram a desgraça (pecado?) para aquela sociedade. Mas é justamente isso que é extremamente mal explorado no filme.
Sempre defendi, e sigo defendendo, filmes que abrem para mais interpretações ao "não dar explicação" sobre certas coisas. A maior parte das pessoas se sente incomodada e por isso odeia filmes que não forneçam todas as explicações para que se entenda perfeitamente como as coisas aconteceram e porque aconteceram. Em alguns filmes, acho que isso é justamente o que eles tem de forte. Não é o caso desse. Há uma insinuação de violência contra a criança. Há uma insinuação de que os estrangeiros levaram o pecado porque concordaram em levar uma criança embora. A partir disso, muitos resolveram ir embora também. Mas não se sabe porque eles queriam ir embora! A única explicação possível é a de que, sem mais nem menos, o líder e seus subordinados batiam em crianças. Tudo bem, isso poderia funcionar como insinuação, mas não havia nenhum motivo para essa violência? Nesse caso tudo vira um jogo somente sádico de dominação, e toda a aparência de serenidade perde sua força de ambiguidade. Temos somente um filme sobre pessoas muito más que se aproveitam de outras pessoas e fingem ser uma boa sociedade. E nesse ponto está outra enorme fraqueza, pois essa perspectiva torna os visitantes grande heróis que vieram da cidade para salvar os explorados. Eu não quero dizer que seria legal se aquela sociedade fosse descrita como perfeita e os visitantes como corruptores, mas seria ótimo um pouco mais de cinza nessas relações. Coisa parecida acontece com o recente Planeta dos Macacos: O Confronto, que começa extremamente inteligente e instigante e descamba no velho maniqueísmo hollywoodiano da metade para o fim. É o que acho que acontece aqui.
Finalmente as cenas do suicídio (e homicídios) em massa seriam instigantes, se não surgissem tão abruptamente e sem sentido, sem tensão, vazias de qualquer tipo de ambiguidade. É apenas uma pessoa muito má que sem maiores motivos aparentes quer levar todos os seus súditos à morte. Tudo fica muito mal explicado e, como já disse, isso não seria um problema (ao meu ver seria antes uma qualidade!) se nesse mistério o filme conseguisse gerar tensão. O uso das câmeras também é bastante difícil de ser considerado como "found footage", não tanto o que foi filmado por Caroline quanto as filmagens do garoto no final, é difícil de acreditar que ele decidiria "documentar tudo" à custa da própria vida em vez de simplesmente tentar ir embora. No fim, todo esse final parece uma espécie de desculpa para cenas que pretendiam ser impactantes. Claro que tudo isso é uma opinião pessoal e à primeira vista. Uma outra assistida, perceber algo que escapou ou mesmo ouvir uma opinião contrária convincente podem nos fazer mudar de ideia. Mas a princípio, essas foram minhas impressões desse filme que me pareceu ser ótimo até certo ponto e depois decair tanto tecnicamente quanto na reflexão proposta. VHS é aparentemente mais bobo, mas mais divertido e assustador.
Logo no início, uma série de palavras ditas mecanicamente, aparentemente a partir de relações fonéticas de proximidade e diferenciação. É um aprendizado. Mas as palavras nesse momento estão vazias e o resto do filme quase todo - pelo menos seus principais desenvolvimentos - se dão em silêncio. Dizem que a protagonista é um alien, pode ser, não li o livro para saber se essa informação lá está explícita. Isso não interessa tanto assim. A personagem de Scarlett é, se não "doente" (e aqui só caberia uma leitura psicanalítica que pode ser bem interessante mas provavelmente soaria limitadora - como a aplicação exclusiva da psicanálise na interpretação de arte tende a ser), sem dúvidas um Outro da humanidade. As lindas imagens de paisagens urbanas e naturais, assim como os vários momentos em que S. (a chamarei assim pra facilitar) anda sozinha em seu carro à la Taxi Driver, tudo é extremamente solitário. Voltando às palavras. Há uma espécie de consenso de que o que torna os humanos, humanos, é a linguagem. S. sabe falar perfeitamente a nossa língua, mas o faz de maneira exclusivamente instrumental. Ela se dirige a seres humanos com o único propósito de convencê-los a entrar na sua máquina do mistério e acabar na lama preta, seja lá o que for aquilo. As cenas de nudez com a atriz fizeram muito barulho, mas creio que mesmo o mais inclinado a ser "destruído por uma bela mulher" concordaria que as cenas de "murchamento" e "esfacelamento" são algumas das mais malucas e horripilantes já vistas em tela, e vê-las com a qualidade de imagem com que esse filme pode ser encontrado é realmente uma experiência cinematográfica única, assim como o filme todo, de um modo geral. Ponto alto, na minha opinião. As palavras. S. usa as palavras apenas para meter os rapazes lá dentro, por algum motivo que não sabemos qual é. Aparentemente uma missão desempenhada também por um colega que adota um corpo de homem e "captura" mulheres. S. nunca tem uma conversa que não vise esse objetivo. É curioso notar que ninguém no filme tem nome, o que nos leva a ter que chamar a tocante cena com o homem-com-aquela-doença assim (seria mais confortável se ele tivesse um nome, e não fossemos obrigados a identificá-lo assim). É mais uma vez uma questão de linguagem e de certa alteridade. O homem, por ter aquela doença, evita ser visto pelos outros e só faz compras à noite. Nós temos um determinado parâmetro de normalidade, tanto física quanto comportamental. Pode haver bastante variação dentro desses parâmetros, mas a partir de certo ponto (que varia também, entre pessoas) nos sentimos incomodados, há grande dificuldade em relacionar-se, por mais ético que se queira e possa ser. Nesse sentido, essa cena é essencial. S. chama a atenção de H. (o chamarei assim), e não demonstra a menor surpresa ao vê-lo, conversa naturalmente, e demonstra até certa insensibilidade nas perguntas (acho que por falta de consciência nas relações humanas mesmo, se ela tinha a intenção de "capturá-lo", não faria sentido ser indelicada). Por algum motivo, no entanto, ela decide poupá-lo. E então começa a ficar mais claro no filme o seu grande movimento, de “humanização” (sempre meio falida, mas o movimento está lá!) de S. Isso é bastante explícito. O que eu acho curioso é que a relação mais “prolongada”, quando S. Fica na casa daquele homem-que-parece-bom, se dá praticamente sem palavras, é como se ela estivesse, também nesse sentido, mesmo no mais próximo que chegaria de “uma relação”, impossibilitada de “tornar-se humana” nela. A linguagem é também uma forma de relacionamento, de “interpenetração”, que estabelece a nossa própria identidade na relação com os outros e com o mundo. É difícil pensar em que ponto ela foi “penetrada” pela humanidade no sentido de sua consciência, mas é sem dúvida significativo que ela não possa comer, conversar para além da função instrumental ou experienciar a penetração sexual. Deleuze frequentemente relaciona o alimento, a palavra e o sexo. Essa relação, que pode parecer absurda, encontra um elemento comum numa parte específica do corpo (boca) e, além disso, pode se tornar mais visível quando pensamos no jejum, no voto de silêncio e na abstinência sexual como práticas essenciais de função religiosa, geralmente com uma função que falando grosseiramente aponta para uma “desafirmação” do corpo e da identidade. Ainda estou tentando organizar tudo isso, não tenho uma leitura pronta, mas uma coisa me incomoda um pouco no desenvolvimento posterior do filme. Primeiro, é um movimento de elevação da humanidade, que aparentemente a cativa e leva ao máximo de uma espécie de humanização quando abdica pela primeira vez de matar (é isso que acontece lá né?) um ser humano. Depois, ela vive a relação impossível, foge durante a tentativa de penetração sexual e mais adiante está caminhando num bosque quando encontra o guarda. A primeira conversa entre eles já cria (sem que saibamos muito bem porque) uma atmosfera de tensão. É um bosque, ela tem a aparência de uma mulher bonita, ele é um homem. O bosque sem dúvida remete à “natureza” no seu sentido mas brutal, talvez na ausência de linguagem, e é bastante explícito o modo como o guarda utiliza as palavras desconfortavelmente, como se não soubesse bem o que fazer com elas naquela situação. Isso cria até uma certa piedade por ele. Mas tudo (a humanidade) desmorona na última cena, que eu fico com vontade de relacionar a um outro filme de um grande diretor mas poderia fazer um spoiler indireto aqui. Na última cena surge “o homem” como violência, tentando forçar a penetração nela que é quase literalmente impenetrável. A sua “casca”, que para nossa experiência visual a aproximava tanto de um humano, se desfaz, e surge sua enigmática figura negra (ainda acho que, pelo filme, a ideia do alien pode tanto funcionar como ser irrelevante, seria legal se alguém viesse com o livro). O homem aparentemente foge assustado, mas volta para incendiá-la. Aquilo que não pode penetrar, ele incendeia. E aqui retorna, suprema, a questão da alteridade. Ao longo de todo o filme, vimos uma experiência de um Outro-da-humanidade, que “elimina” humanos por se ver comodamente assim. Como o caçador, que aprende o funcionamento e a “linguagem” do animal para melhor capturá-lo, S conhece a linguagem e o funcionamento humanos apenas para capturá-los. A analogia com a relação homem-animal não é apenas metafórica. A relação do ser humano com o animal é uma relação de afirmação de não-identidade que igualmente apazigua a violência cometida contra ele. Do mesmo modo, na cena final, o guarda do bosque se assusta com o “verdadeiro” corpo de S, teme agora não apenas a possível punição social por seu ato de violência, como teme profundamente aquilo que surge diante de seus olhos e lhe é desconhecido. O desconhecido, o Outro, é sempre uma ameaça, e aqui o filme afirma finalmente esse lado brutal da humanidade, vítima no início, carrasco supremo na cena final, talvez excessivamente monológico.
É com certeza o pior do Kim Ki-duk que já vi. Ele tem filmes excelentes como Primavera..., Time e Casa Vazia, mas esse aqui na minha opinião errou feio na mão. Pesou no estilo "asiático violento" de um modo que não funciona (coisa que percebi em tudo que vi do estimado Takeshi Kitano), tentou uma ideia de
e inventou um final que além de esdrúxulo consegue ser incomodamente previsível (combinação rara). Talvez eu esteja só cansando dessas formulas dos mais recentemente aclamados diretores asiáticos, queria até rever os filmes de que guardo uma boa imagem, me pergunto se não tivesse visto os outros e visse este me impressionaria com ele (é possível!). Há alguns anos atrás pirei imensamente no Miike, no Shion Sono, ainda gosto muito de alguns filmes e algumas coisas desses caras, mas de um modo geral hoje parece exagerado para ruim, não o exagerado como parte de um processo que convence. Não é só o choque, já admirei essa capacidade de criar incômodo, mas hoje ele me parece vazio na maior parte dos filmes (de modo que nem cria mais incômodo, no sentido pretendido).
Park Chan-wook também, fez filmes inacreditáveis como a trilogia da vingança e desde I'm a cyborg but that's ok (thirst, stoker) vem fazendo coisas muito ruins que de alguma forma entram nisso que estou chamando grosseiramente de "asia-violência" (com uma breve exceção para Nightfishing, que é interessante).
Acho que alonguei demais, era mais pra dizer que não gostei do Pieta mesmo, mas não consegui não relacionar com minha percepção desses novos grandes diretores asiáticos, cujos filmes já me convenceram tanto e hoje parecem repetir um esforço de "incômodo" que não funciona mais comigo e talvez por isso me dê a impressão de péssimos filmes.
É um ótimo filme, embora em minha opinião, não um dos maiores do diretor. A questão central parece ser o conflito entre a lei instituída pelo aparato jurídico e a lei instituída pelo pensamento religioso, nesse caso, cristão-católico.
Hitchcock utiliza um recurso que, embora não seja inovador entre narrativas de um modo geral (pensemos em Crime e Castigo), ainda surpreende em filmes de trama policial: quando presenciamos o assassinato logo no início, o mais comum seria a trama se desenvolver em torno de quem é o assassino. No entanto, a identidade do autor do crime é rapidamente revelada ao padre Logan numa igreja. O desesperado Keller certifica-se de que pela lei cristã o padre não poderia comunicar às autoridades, respeitando o sigilo da confissão. Aqui se estabelece o principal conflito, talvez mais interessante do que um simples "quem é o assassino?".
Esse conflito coloca em questão o funcionamento e validade do pensamento lógico supostamente associado ao aparato jurídico, operando simultaneamente de modo semelhante em relação à lei cristã. No início do filme, por uma rápida afirmação de Ruth ("ele morreu, estamos salvos", diz ela ao padre Logan), somos levados a especular sobre uma possível relação duplamente pecaminosa - adultério e quebra do celibato - entre ela e o padre. Esse elemento e a enorme dúvida quanto ao silêncio de Logan diante da justiça bastam para prender a atenção do espectador para além do bom e velho "quem fez isso?". Mas a dúvida é itensificada quando todas as investigações, relatos e pistas apontam logicamente para o padre como assassino. O álibi, a despeito dos esforços de Ruth, prova-se furado. Há testemunhas. A princípio, ironicamente a investigação mais lógica deve colocar-se diante dos depoimentos de duas crianças que brigam sobre quem está certa em relação à hora. Depois surge a análise médica que indica o horário da morte da vítima, resolvendo a questão para os investigadores sobre o culpado.
Contudo, se a longa declaração de Ruth não pôde convencer a polícia, muito provavelmente convenceu o público do filme. Ouvimos (e vemos) como passo a passo o Padre Logan esteve sempre inocente, e como a vítima (Grandfort) no fim das contas era um grande extorquidor. Nesse ponto o espectador se vê forçado a tomar um partido, entre os vários que se apresentam. Pode se apegar à ideia de que o sigilo da confissão não pode ser quebrada, adotando assim uma postura ética religiosa. Pode defender que independente do desenvolvimento da trama, o padre teria a obrigação de comunicar a confissão às autoridades. Pode ficar "no meio do caminho", pensando que o padre poderia manter sigilo, se não acabasse se tornando o principal suspeito. A sequencia de imagens em que a discussão policial e imagens da catedral são intercaladamente sobrepostas explicita o conflito entre os dois pólos mais radicais. Diversos trabalhos de câmera entre "quem olha" e "quem é olhado de cima" (recurso comum, mas muito bem utilizado no filme) contribuem para a sensação de disputa de poderes entre diferentes discursos. Uma bela cena onde Cristo e a cruz surgem em primeiro plano e o padre caminha em direção ao julgamento aproxima sua figura à de Cristo, aceitando a punição ciente da inocência.
Em minha opinião o filme cai um pouco onde seria seu ápice. A cena do julgamento ainda tem alguma força, mas o final soa mesmo um pouco apressado e a dramaticidade não convence tanto. A súbita declaração de Alma, por exemplo, e seu assassinato por Keller, assim como concordo com quem disse aqui que seu surto final parece um pouco forçado. É claro que ele foi se tornando mas agressivo em relação ao padre ao longo do filme (o que reforça a angústia do espectador sobre o conta-não-conta), mas a reação toda parece exagerada, talvez principalmente pelo confissão gritada abertamente. Nesse ponto, embora seja visualmente uma cena linda, acho que o filme não atinge o ápice dostoiévskiano que aparentemente pretendia. A sensação mesmo é de algo apressado, meio aos trancos e barrancos.
Vale apontar ainda que o júri me pareceu absolver Logan no tribunal para poder linchá-lo nas ruas. Essa resolução demonstra a fragilidade da suposta racionalidade absoluta do sistema jurídico, e eleva a condenação de um inocente da prisão à morte. Ao mesmo tempo o princípio cristão (embora o padre e sua ética sejam de certa forma louvados) é questionado pelo espectador comum por contribuir para uma condenação injusta.
Resumindo, acho que para o filme funcionar melhor Keller e Alma deveriam ser mais bem explorados e desenvolvidos (a própria justificativa para o assassinato é pouco convincente, ainda que isso não seja um defeito em absoluto). Mas é visualmente muito bonito, é um ótimo filme de investigação que nos mantêm interessados até o fim e, principalmente, propõe reflexões relevantes quanto à validade absoluta do raciocínio lógico investigativo, do funcionamento do aparato jurídico e da ética cristã (cujo conflito em relação ao sigilo diante do crime poderia se estender, mesmo numa sociedade pretensamente laica, ao sigilo ético na psicologia/psicanálise, por exemplo).
P.S.: Caberia adicionar que toda a questão da inocência de Logan e do mau caráter de Grandfort está baseada na imagem passada pelo padre ao longo do filme e, principalmente, nos relatos dele e de Ruth para a polícia. Nesse sentido, mais Karamázov do que Crime e Castigo, precisamos criar nosso juízo não apenas a partir do que é visto como "realidade" instaurada no filme, mas do que é visto (literalmente) a partir dos relatos de Ruth e Logan, pois Grandfort está morto. Kurosawa (tantas vezes próximo de Dostoiévski) trabalha essa situação ao extremo em Rashomon, mas isso seria outra história e spoiler de outro filme.
Alguém sabe falar mais desse diretor? Assisti o Black Night há um bom tempo, logo que "descobri" Jodorowsky, Terayama e afins, mas nunca mais ouvi falar desse diretor, nem de filmes novos nem grandes comentários sobre o próprio Black Night. Quero reassistir, mas fiquei com a impressão de ser um ótimo filme e vendo aqui um pouco dos outros que ele fez parece ser bem interessante.
Apesar de adorar outros filmes do Spike Jonze, algo no modo como esse filme parecia totalmente "cool", com o J.Phoenix com esse bigodão descolado, aquelas roupas e o jeitão big bang theory (ele em alguns momentos tem muito o jeito de Leonard!) me causaram certa resistência pra ver o filme. Quando soube mais sobre o tema me convenci de que podia ser bom pra caramba ou uma porcaria. Lembrei do Quero Ser John Malkovich, baixei numa qualidade violenta e fui ver nesse sabadão em que o mundo me largou em casa.
E que filmaço. É difícil pensar nos pontos essenciais a ressaltar, mas começaria dizendo que sim, é uma história de amor e sim, é um filme sobre nossa relação com a tecnologia. Mas acho que está longe de ser uma história de amor piegas para transbordar os olhos dos mais ingênuos (embora certamente possa funcionar assim, Spike Jonze conseguiu nesse filme o que Woody Allen vem fazendo há algum tempo, lidar com questões mais tensas enquanto uma assistida superficial pode convencer o espectador de que trata-se de um filme leve e divertido).
Daria para vê-lo, como apontado por alguns colegas abaixo, a partir do sistema freudiano dos princípios de realidade e de fantasia. Nesse caso o relacionamento rompido estaria ligado a uma realidade com a qual Theodore não quer lidar e os OS's chegariam como um perfeito recurso para a perpetuação da fantasia como fuga da realidade (a cena em que a vizinha diz a ele algo como "a vida é curta o importante é se permitir ser feliz" funciona como argumento racional para a permanência no que estamos temporariamente considerando como "fantasia". Várias outras coisas poderiam ser observadas a partir dessa leitura, mas essa separação dos dois universos é complicada quando Samantha passa a se comportar primeiramente como uma pessoa "de verdade", apaixonando-se pela experiência e buscando "sempre mais", o que acaba por impedir a relação a dois idealizada por Theodore.
Samantha não tem um corpo, mas tem uma capacidade sobre-humana de acesso e processamento de informações. O momento em que ama Theodore é apenas o início, o momento em que toma consciência de si mesma (ele não a nomeia, mas é a sua pergunta que faz com que ela mesma escolha o próprio nome) e da sua capacidade para a experiência. Se o filme terminasse com os dois "felizes para sempre", a história já seria ambígua, pois quem garantiria que tudo o que Samantha diz seria realmente fruto de uma experiência autêntica e não a configuração alcançada por uma capacidade imensa de absorção e processamento de dados a partir das falas e dados registrados virtualmente por Theodore? Lembremos que quando os dois "transam" pela primeira vez, Samantha guia as falas para uma experiência semelhante à que Theodore havia buscado no "chat insônia" no início do filme, rompida depois pela introdução de um elemento da individualidade de sua companheira que o fez "brochar". No "final", ela usa o verbo que ele mesmo havia usado, "você me despertou", é possível que ela tenha tido acesso a algum registro dessa conversa, do mesmo modo como teve acesso a milhares de outras informações ao longo do filme, pensemos em dados como cookies e outras coisas que registram nossa atividade na internet.
Mas parece que o encanto de Samantha pela experiência pode ser visto como autêntico (aqui os limites hoje tão discutidos entre identidade, consciência e humanidade a partir da inteligência artificial), na medida em que embora "comprada" por ele, sua ânsia acaba por ultrapassá-lo e até ultrapassar qualquer possibilidade de semelhança com a humanidade. Nesse ponto o filme ganha uma profundidade digna das melhores sci-fis (final de Fim da Infância, de A.C. Clarke, "consciência" do planeta Solaris, de S. Lem). Na cena do passeio "a 4" com o casal de amigos, Theodore afirma que o que mais gosta em Samantha é o fato de ela não ser apenas "uma coisa", mas uma infinidade de coisas diferentes. Essa afirmação, em oposição ao caso do amigo particularmente apaixonado pelos pés da namorada, demonstra mais uma vez a inclinação para a "fantasia" como espaço infinito em oposição à realidade corpórea, necessariamente limitada (um relacionamento, ainda que não monogâmico, é sempre a negação de todos os outros relacionamentos possíveis).
A mesma cena, contudo, explicita essa característica de Samantha. Ela tem acesso a dados demais, os processa rápido demais, e assim "evolui" (não necessariamente no sentido de melhora) rápido demais. Isso fica claro especialmente no final, quando começa a conversar com outros OS's e a atingir um nível de raciocínio que Theodore não consegue acompanhar (a cena com o livro de física é exatamente onde ela "o abandona" pela primeira vez). Esse movimento, embora se torne irreversível para ela, a distancia muito dos primeiros deslumbramentos que haviam criado os belos momentos em que o casal vive um amor bonito e puro (a ideia de não-corporeidade contribui para isso, Theodore rejeita a tentativa de relação sexual por meio da intermediária, o desespero da voluntária em "participar" do amor deles pode representar um anseio por esse tipo de encaixe).
Essa busca por compreensão do mundo e da experiência faz com que ela se transforme continuamente, e aquilo que encantou Theodore, acaba por distanciá-la irremediavelmente dele. Parte do esforço de Samantha leva à conclusão de que existem instâncias em si mesma e no mundo que as palavras não podem abarcar, e sua constante transformação, acúmulo e evolução no pensamento acabam por distanciá-la de qualquer experiência compartilhável numa relação humana. Isso pode soar viajado demais, mas consideremos sua capacidade de, ainda que criada por seres humanos a partir de capacidades humanas, desenvolvê-las a níveis inimagináveis. Como disse acima, nesse ponto se aproxima de outras narrativas de sci-fi que acenam para uma dimensão de conhecimento que escapa à nossa capacidade, e essa linda citação fala justamente de uma existência (só a ela possível justamente pela não-corporeidade) que só pode estar localizada no espaço infinito que há entre uma palavra e outra:
"É como se eu estivesse lendo um livro e um livro que amo profundamente. Mas estou lendo devagar demais agora. Então as palavras estão muito distantes umas das outras e o espaço entre elas é quase infinito. Posso sentir você e as palavras da nossa história... Mas é no espaço infinito que há entre as palavras que me encontro agora. É um lugar que não pertence ao mundo físico. É onde estão todas as outras coisas que eu nem sabia que existiam. Eu te amo demais, mas é aqui que estou agora. E é isso que sou agora. E preciso que você me deixe partir."
Essa citação demonstra a incompreensibilidade da vivência atingida por Samantha, cuja limitação de não possuir um corpo acaba por levar ao ilimitado que o corpo finito não nos permite atingir. Nessa espécie de "carta de amor" (da qual Theodore, por melhor que seja, poderia ter inveja!) de despedida, fica claro o quanto podemos realmente ver como uma história de amor, mas não uma história de amor convencional, pois não é experienciada por dois seres humanos, corpóreos, finitos.
Deixando essa viagem de infinito e experiência inapreensível de lado, salientaria finalmente o quanto algumas ideias do filme realmente falam de nossa experiência atual no mundo. A Carol lá embaixo trouxe essa citação de Bauman: "hoje as pessoas não conhecem relações, conhecem redes e a diferença de uma para a outra é que a última te permite facilmente se desligar do outro sem causar grandes danos aos dois lados". O funcionamento e a consciência de Samantha parecem dar seus primeiros passos na relação a dois com Theodore, mas a partir do momento em que aumenta sua ânsia por informação e experiência, ela cria uma verdadeira rede de contatos e trocas que acaba por tornar impossível a experiência a dois. Já disse várias vezes que Samantha tem uma capacidade sobre-humana e isso a permite falar com 8.000 "pessoas" ao mesmo tempo e amar 641 delas. Aparentemente não somos sobre-humanos, mas o acesso a um turbilhão de informações e com isso a criação de enormes redes de relações (fbook, whapp, filmow?) que parecem funcionar simultânea e quantitativamente (e que embora facilitem o contato com uma quantidade enorme de pessoas parecem dificultar o estabelecimento de vínculos mais profundos e permanentes, para o bem e para o mal) parece dizer muito sobre a experiência no mundo hoje.
É um bom filme, em vários pontos se aproxima de recursos narrativos já amplamente utilizados por outros diretores, mas isso não enfraquece a experiência. Tentarei fazer esse comentário sem precisar marcar como spoiler, pra que sirva pra alguém que ainda não viu o filme.
Acho que muitas outras pessoas já comentaram aqui com hipóteses que giram mais ou menos em torno de uma interpretação comum que acredito funcionar sobre a maior parte dos pontos, se não sobre todos eles (precisaria ver o filme uma segunda vez com elas na cabeça, o que ainda não fiz). Tenho que dizer que foi bastante esclarecedor ler os comentários dos colegas que se dedicaram a expressar suas hipóteses ou a traduzir num bom texto a análise presente no video "enemy explained", todas elas encontradas facilmente nessa sessão de comentários.
Acredito que o filme pode mesmo ser explicado, ponto a ponto, com a leitura das hipóteses apresentadas e mais uma ou duas assistidas. Isso, na minha opinião e no meu gosto para filmes, deixa a imagem do filme como um todo (não apenas a experiência ao longo do filme) um pouco menos interessante do que a daqueles que insinuam explicações que não podem ser fechadas completamente. Porém, vai totalmente contra uma série de afirmações apressadas que encontramos nessa mesma página de que o filme é extremamente pretensioso por colocar um monte de coisas sem sentido e com isso exalar uma aura intelectualóide que só pode enganar babacas aspirantes a intelectuais. Essas afirmações só demonstram, mais uma vez, o quanto o público em geral, mesmo aquele que se dispõe a participar de uma rede social voltada para a discussão e troca de experiências sobre cinema, foi doutrinado pelos filmes extremamente didáticos (mesmo quando atingem certa profundidade, essa profundidade é geralmente demonstrada passo a passo) a que temos acesso com maior facilidade desde pequenos.
Mesmo quando um filme não comporta uma explicação "racional" (num sentido bastante específico da palvra) mais estável, a sua própria organização interna funciona como geradora de sentido, não um "sentido" parafraseável num argumento fixo, mas um sentido gerador de experiência. Quem gosta de filmes como os de Buñuel, Jodorowsky, Shuji Terayama, ou o belo "Mal dos Trópicos" de Apichatpong Weerasethakul (falo dele por não ter visto mais do mesmo diretor), entre outros, sabe do que estou falando.
Não sei porque esse filme acabou sendo tão badalado e gerando tantos comentários, apaixonados ou revoltosos. Ele realmente é um ótimo filme, uma grande experiência, especialmente quando termina e todos os fragmentos estão soltos na cabeça, marcados por imagens impactantes que parecem desestabilizar qualquer tentativa de organização. Mas talvez esse alargamento (que realmente não entendi ainda, não sei o impacto dos outros filmes do diretor) no público tenha feito com que ele chegasse ao tipo de receptor não habituado a esse estilo mais fragmentado (o que causa uma revolta também um pouco incômoda entre o "público seleto dos filmes inteligentes"). Enfim recomendo àqueles que ficaram muito perplexos e irritados com a suposta "inexplicabilidade" do filme, procurar as boas hipóteses e explicações fornecidas pelo pessoal, é possível que isso os tranquilize, e certamente se sentirão recompensados com uma segunda assistida. Também é preciso dizer que não, ele não é um dos filmes mais confusos da história do universo e nem um amontoado de imagens incompreensíveis que formam um pretenso quebra-cabeça. Logo, pode-se argumentar sobre o melhor ou pior funcionamento dos recursos empregados (na maior parte já discutidos em outros filmes e narrativas), sobre o maior ou menor impacto da sua própria experiência com o filme, mas não afirmar que ele é "surrealismo" barato pra impressionar gente pretensiosa (acho mesmo que, convencendo-se com as interpretações encontradas, ele não se encaixaria na categoria "surrealista").
Acho que isso tá ficando longo demais, falei mais sobre minha experiência e as reações que li nos comentários do que sobre o filme em si, porque como já disse, as hipóteses e possíveis explicações apontam, com raras divergências, para o mesmo caminho, já habilmente delineado pelo pessoal aí embaixo.
Agora sim, vou dizer que a explicação da cisão de personalidade parece bastante convincente. A não-linearidade da narrativa também parece indiscutível a partir de elementos como a foto rasgada. Ainda tenho algumas dúvidas sobre a morte ou inexistência da amante enquanto amante, sobre a ligação da cena inicial com o porteiro e com a vida do protagonista de um modo geral. Achei bem legal e convincente o modo como todo mundo entendeu a aranha, elemento crucial na interpretação do filme. Embora na minha cabeça ainda não tenha amarrado todas as pontas num sistema fechado de interpretação/explicação, estou convencido de que ele é possível e aqui reafirmo, isso tira um pouco da "magia" no meu modo de relação com filmes, o que definitivamente não pode ser considerado um defeito (para alguns, é justamente a sua "salvação"). Mantenho especialmente as 4 cenas em que aparecem aranhas como das coisas mais legais que já pude ver em tela, e a explicação alegórica que racionaliza a posteriori não invalidam a experiência que tive na madrugadona solitária em que me propus a ver o filme.
Desde que comecei a me interessar mais por filmes (aquela fase que começa com pulp fiction, trainspotting, amelie, clube da luta, etc) tinha vontade de ver os filmes do Wes Anderson. Naquela altura pelo sempre mencionado Tenenbauns. Deu que o primeiro filme que vi dele foi o Moonrise Kingdom, há uns 2 anos. Foi uma enorme decepção. Era um filme visualmente bonito, as cores, fotografia, etc, mas para um diretor tão mas tão badalado era extremamente fraco. Julguei mesmo pretensioso e saí difamando Wes Anderson, causando polêmica nas rodas de amigos com papo de cinema. Na verdade eu achava que uns filmes que nem eram dele eram dele, por uma confusão minha mesmo. Agora estou de férias e resolvi subitamente revisitar a obra desse diretor tão badalado de quem só vi um filme e por quem nutria (ainda nutro um pouco, é verdade) enorme antipatia.
Comecei por esse por ser aparentemente o primeiro. E, bom, tá longe de ser um filmaço, mas é divertidinho. É visualmente gostoso pra quando você quer ver um filme que não seja tenso, medonho ou se proponha a atingir grande profundidade, tem uma trilha sonora legalzinha e de um modo geral é legal de assistir. É claro que em 2014 uma série de "coisas" de "filme indie 00s" dá uma enchida de saco (e existem filmes com "coisas de filme indie 00s" que considero bons filmes, como o próprio amelie e o excelente pequena miss sunshine), mas o mais importante é que no fundo não me parece mesmo um filme pretensioso e quem sabe se nos voltarmos para os filmes dele desse modo dê para se divertir com a coisa.
É o meu primeiro comentário no filmow, desculpem se foi muito longo, mas o canal está aí pra isso, né? Continuarei a percorrer os filmes do Wes Anderson, por esse chamado misterioso que surgiu de repente de encarar um diretor de quem fazia absolutamente uma péssima ideia. É meio divertido, façam o mesmo com seus odiados (a menos que ele seja o lars von trier, que esse eu acho que quem não gosta não gosta MESMO).
Ah, e se tem alguma coisa de realmente GENIAL nesse filme, é
A Mulher de Preto
3.0 2,9KTudo começou porque eu tava de férias, já tinha visto tudo que queria ver no cinema e pensei em ver a sequencia, que estava passando. Resolvi então procurar sobre o filme na internet, ver se valeria a pena ou seria mais um desses filmes chatos que (terror, comedia romantica, ação, superprodução, etc) vão a cada duas semanas às telonas.
Vi algo relacionado à Hammer, e a intenção de fazer um filme de terror "à moda antiga" e resolvi dar uma chance ao filme na netflix. Acabei não indo ver o 2 e nem pretendo ir.
Uma coisa precisa ser dita: o filme é visualmente lindo. Que paisagens! Que belos cenários, objetos, tudo! Mas meu pai do céu, que filme chato! NADA, em NENHUM momento, desperta o MENOR interesse. Atuações aguadíssimas, sustos baratos (o que nem seria um problema se em algum momento algo ficasse interessante ou assustador), e a solução final é totalmente ridícula. A última cena também, as tentativas de conflito, tudo, tudo, tudo.
O que tem de lindo visualmente, tem de chato.
Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)
3.8 3,4K Assista AgoraAinda não sei bem o que pensar desse filme.
Logo na abertura, o texto, a trilha sonora (uma das melhores de todos os tempos na minha opinião) e a primeira cena, temos a impressão de estar diante de algo GRANDE. Nos ajeitamos na poltrona e preparamos para o que quer que possa sair de uma proposta tão estranha.
A ideia do plano sequencia e sua execução funcionam muito bem, mas rapidamente o filme torna-s cansativo, dando a impressão de ser só mais um filme sobre decadência, vaidade e cretinice no meio artístico. Em alguns momentos lembrei de toda a primeira parte do Melancolia e de como tudo aquilo, embora cansativo, encaixa perfeitamente na proposta do filme.
Esse, talvez, seja o caso de Birdman. Fica claro que toda aquela correria meio tediosa quer dizer alguma coisa sobre esse vazio da vaidade não apenas do meio artístico, mas da humanidade de um modo geral. Alguns diálogos chegam a ser interessantes, mas nunca realmente interessantes, é sempre uma profundidade meio falsa, meio de fachada. Mas não é disso que o filme trata afinal? Lembremos da cena em que, após comprar o uisque, há um "louco" gritando do lado de fora, como se toda a verdadeira indignação estivesse em seu peito e no segundo seguinte ele aparece preocupado com a própria atuação.
Aí tem as cenas de superheróis e voos livres. Confesso que mesmo esperando por elas, na hora em que acontecem me causaram grande impressão. Aí é que pensamos: isso realmente pretende ser GRANDE. Mas aos poucos as coisas seguem e nada foi tão grande afinal, é sempre um pouco falhado, um pouco ridículo na enorme pretensão artística. Mas não é disso que o filme trata afinal?
Assim como Inside Lewyn Davis (não lembro se escreve assim), o filme parece tratar do fracasso, daquilo que falha tentando ser grandioso (é verdade que Birdman e seu protagonista são extremamente mais pretensiosos que o filme dos Coen, falhando mais, talvez mais grandiosamente) e cuja força talvez resida justamente nesse fracasso, nessa pretensão que se sabe pronta para falhar.
Durante os créditos, aqui e ali, explodem gargalhadas. É, afinal, um filme que quer que a gente ria dele, principalmente em seus momentos mais decadentes. E isso funciona, mas ainda não sei dizer se é um GRANDE filme. Ele tem, sem sombra de dúvidas, uma baita trilha sonora.
Ida
3.7 439Visualmente muito bonito, a proposta do tema é interessante, mas em nenhum momento chega perto de ser um grande filme.
A personagem da tia é muito chata, falando uma série de clichés do "curtir a vida" etc. Estive o filme todo com medo de que Anna fosse aprender uma grande lição e "libertar-se". Felizmente a coisa não foi por esse lado e fica mesmo mais interessante para o final, após o suicídio e alguma insinuação de ambiguidade. Na minha opinião, se o filme acabasse aí (a cena da cortina, que é muito bonita daria um bom final, deixando tudo em aberto). Mas não, volta a figura do galã barato, a "experimentação" de Anna e o retorno ao convento. Embora muito melhor do que um final que tornasse a tia uma espécie de heroína, na minha opinião ainda torna tudo muito "fechado", especialmente num filme de aparência tão sutil. Além disso, toda aquela busca em relação aos pais parece simplesmente não significar nada para ninguém. Podia insinuar mais, ou aproveitar melhor o que pretende ter de sólido.
Planeta dos Macacos: O Confronto
3.9 1,8K Assista AgoraAntes de qualquer coisa preciso dizer que gostei muito de ver o filme no cinema. É um bom filme. Se pensarmos em termos hollywoodianos, é mesmo um ÓTIMO filme. E quase digo que ele é divertido, se achá-lo divertido não demandasse uma enorme cretinice. Talvez aqui esteja o que não gosto nele, mas seria ingenuidade esperar outra coisa desse tipo de filme, certo?
O começo do filme, pra mim, foi extremamente incômodo. Os primeiros minutos, talvez a primeira hora de filme, é desenvolvida de modo muito inteligente e instigante, e atinge uma tensão mesmo de GRANDE filme, antes de cair no velho maniqueismo hollywoodiano e nas cenas intermináveis de (masturb)AÇÃO que conhecemos tão bem. Não que essas cenas aqui sejam (nem de longe) ruins quanto nas outras centenas de filmes que saem em série semana após semana para cumprir a necessidade de pais, crianças e adolescentes de irem ao cinema e dar risada vendo bandidos levando tiro, carros explodindo, belas mulheres submissas e estereótipos de virilidade que aparentemente estão lutando e matando pela paz mundial. Mas vamos falar de macacos.
Vamos falar de porque esse filme AINDA é, mesmo com todos os indícios contrários, um filme inteligente, como o primeiro Planeta dos Macacos, e como o antecessor desse, A Origem. Antes que eu visse o filme, um amigo disse que o detestou porque os macacos usam conceitos muito abstratos que são expressados com movimentos com a mão e com o rosto. Disse que isso seria aceitável por tratar-se de sci-fi, mas que além disso o filme é extremamente maniqueista e que ele odeia essas coisas de "o macaco bonzinho" e o "humano bonzinho" que não ligam que seu semelhante seja ferido, o importante é a paz, etc. Eu pensei que o negócio da linguagem não tinha tanto problema, e que comunicar-se por sinais não é necessariamente ter uma comunicação primitiva. Mas pensei também que se ele tinha razão quanto a esse maniqueismo o filme devia mesmo ser uma merda. Outro amigo disse que achava tudo isso meio ruim mas que gostou muito da cena final, da luta entre os dois macacos, por achar divertido mesmo.
Fui ver o filme e concordo que o negócio da linguagem é extremamente forçado, são dois ou três gestos que exprimem conversas relativamente abstratas. Mas ok, isso não prejudica o efeito geral. O que é realmente interessante nesse filme é a tensão. Uma tensão extremamente pessimista, de que "não há jeito" para a humanidade e sua relação com a natureza. Pode-se idealizar o quanto quiser a vida dos macacos, mas a primeira cena do filme (sensacional, por sinal!) é a de um bando de macacos usando de tecnologia para caçar outros animais. O que justifica essa caça é principalmente a noção de que eles não são macacos. "Macaco não mata macaco". Essa regra, que para Bataille, Freud e tantos outros pensadores é fundadora da civilização, percorre o filme inteiro, e é importante guardá-la. A primeira cena do filme, portanto, é de macacos matando outros animais, inclusive um urso. É verdade que a maior parte dos animais escapa, a cena talvez fosse forte demais se não escapassem, mas o princípio está posto.
Depois, temos uma espécie de vida ideal dos macacos na natureza (ainda que com um enorme cadáver de urso que, afinal, "atacou primeiro", e as cicatrizes do filho de Cesar são visíveis o filme todo. Mas Koba (importante apontar que é o único macaco que não tem nomes "ocidentais" como Maurice, Cesar, Rocket, Ash, etc) também está coberto de cicatrizes, o que ajuda a lhe conceder o aspecto feio e mau que o tornará o grande vilão. Essa cicatrizes foram feitas por humanos em laboratórios, como sabemos pelo primeiro filme e pela fala revoltada de Koba no que chamarei de "1a cena violenta de Cesar", quando este apenas se levanta, coagindo Koba ao gesto de submissão que marcou a relação do próprio Cesar com o humano em "A Origem". Dois personagens cobertos de cicatrizes, dois casos de "atacou primeiro", mata-se o urso, os humanos não, pois Cesar pensa na paz. O nome, Cesar, já é representativo de um sistema pacífico (macaco não mata macaco) que sustenta com base em alguma violência. Na segunda cena de violência (e muito violenta!) Cesar espanca Koba diante de todos por ouvir que Cesar ama mais humanos do que macacos.
Na terceira cena de violência (quando afinal todos nós já concordamos que Koba é melhor enjaulado ou morto), Cesar é levado por Koba a tomar uma posição quanto ao princípio que ele mesmo impôs: se macaco não mata macaco, eu matei macacos, você vai me punir com o mesmo ato que você pretende punir? Aqui é muito significativa a resposta do líder: "você não é um macaco". É extremamente humano, e a frase de Cesar de que vê cada vez mais como os macacos são parecidos, pelo pior, com os humanos (referindo-se ao frenesi guerreiro de Koba), cabe perfeitamente a esse comportamento. A humanidade sempre usou o princípio da diferenciação para praticar atos violentos contra animais, por exemplo, os macacos (as cicatrizes de Koba). Aliás, assim como Cesar, contra os próprios humanos, pois a justificativa para a escravização de negros no auge do pensamento positivista não foi outra!
Adiantei um pouco as coisas, voltemos para o ponto em que o filme ainda tinha grande tensão. A questão da represa. Um humano mata "no susto" um macaco, filho de Koba. Cesar os deixa ir embora e sustenta que essa é a melhor maneira de assegurar a vida de seu povo. Já é uma situação delicada, já é complicado, mas parece plausível. É doloroso perder um irmão, um filho, mas ainda assim Cesar parece ter razão, como aliás parece ao longo de todo o filme, o que não o impede de ser muito violento, O humano volta, em paz, parece alguém bem intencionado (e é!) e precisa da permissão dos macacos para reativar a represa. Isso tudo, superficialmente, pode parecer baboseira hollywoodiana, mas apenas na medida em que comprarmos a maldade de Koba por sua feiura. Os rostos de Cesar e sua família são muito mais humanizados do que o de Koba. Ele possui diversas cicatrizes e não tem um olho. Mas tudo isso foi causado por humanos em laboratórios! Em laboratórios movimentados pela ciência, pela tecnologia, por aquilo mesmo que eles estão ávidos por retomar. Eles não são humanos se não tiverem controle da energia, se não tiverem a possibilidade de expandir e movimentar as forças naturais para o seu proveito e nós sabemos aonde isso vai dar! Nós vivemos isso, e seria necessário MUITA ingenuidade pra crer que a reativação da empresa garantiria a convivência pacífica de humanos e macacos por muito tempo. Koba tem razão quando diz que a reativação dará energia pra que os humanos se tornem novamente poderosos e que a partir daí seria uma questão de tempo até que eles quisessem todo o lugar ocupado pelos macacos. A intenção de Malcolm pode ser boa, assim como a de Cesar, mas a paz que eles almejam é impossível.
A outra opção, não permitir a reativação da empresa, os levaria à guerra imediata, uma opção muito mais "racional" por parte dos macacos, se pensarem apenas em sua sobrevivência. É nesse ponto que o filme é inteligente e extremamente pessimista, pois em última instância, não há opção de paz. Uma hipótese mais mirabolante seria que, mesmo se os humanos aceitassem viver sem a energia possível (e não pudessem desenvolvê-la de outra forma), os macacos poderiam posteriormente atacar e dominar os humanos. Essa é a visão subterrânea que percorre o filme, a de que não há opção de paz. O maniqueismo inicial, depois desenvolvido quase obscenamente, tornando Koba de fato detestável e sanguinário (até o assassinato de Cesar não acho que a figura dele justifique isso!), é superficial para aquele que pensar um pouco mais a fundo na situação proposta.
Talvez o modo como falei torne Cesar uma figura detestável. Ele não é. É um líder convicto de seus ideais. Apenas não é perfeito, e as 3 cenas de violência contra Koba demonstram que sua convicção, embora bem intencionada, também está baseada em violência. Como se a paz só pudesse ser sustentada com a violência (ainda que baseada "apenas" em sua constante possibilidade). Como já disse, extremamente significativa é a cena final em que, não assumindo estar disposto a, ainda que em nome da paz, quebrar o código imposto por ele, subverte discursivamente seu semelhante em não-semelhante, de modo parecido com o que humanos fazem com macacos em laboratórios, e mesmo com outros humanos, até hoje.
Assim, parece que esse filme, assim como A Origem (melhor, na minha opinião, mais profundo e cinzento), são o que de mais instigante podemos esperar de Hollywood. Além de que, comentando rapidamente, o filme visualmente é maravilhoso, desde a primeira cena, as das pontes, de florestas, a cena em que Koba mata os humanos, a luta final que eu (como meu amigo lá de cima) achei mesmo empolgante, enfim, é divertido sim, mas um mínimo de consciência acrescenta uma ponta de angústia e tristeza em todo esse espetáculo visual. Logo, concordo com quem fala desse maniqueismo, mas acho que ele é forçado pra criar as cenas de que Hollywood precisa. Uma reflexão cuidadosa, especialmente da primeira hora de filme, torna a ação bem contra mal que surge depois bastante questionável, e não dá pra esquecer que no fim ambos os esforços pacifistas (Cesar e Malcolm) se mostram inúteis, pois a guerra é - e não poderia deixar de ser - iminente.
O Último Sacramento
3.1 137 Assista AgoraO filme consegue ser interessante por algum tempo, mais especificamente, até
a entrevista e a festa que a sucede.
Várias coisas até ali apontam para uma espécie de ambiguidade, uma grande desconfiança de um cenário que parece uma sociedade utópica. Mais de uma vez em narrativas conhecidas foram representados cenários desse tipo, que escondem uma enorme crueldade no subterrâneo de uma sociedade ideal. (Capítulo "Neve" em A Montanha Mágica de Thomas Mann, pra falar de um clássico, Ergo Proxy, pra falar de um anime recente. A ótima trilogia de Haruki Murakami, 1Q84, e o jogo Bioshock Inifinity, contudo, guardam maiores paralelos simbólicos com o universo representado no filme -
especialmente na figura ambígua do Pai
Isso é muito interessante e gera ao mesmo tempo, no início do filme, uma vontade de saber mais sobre aquela experiência aparentemente redentora, e a certeza de que a qualquer momento algo fará com que tudo aquilo se desmorone moralmente e possamos voltar a pensar que o modo como vivemos é mesmo o melhor que a humanidade pode alcançar. Talvez isso soe viajado demais, mas acho que é para esse tipo de experiência que servem os filmes e livros. Mesmo aqueles que os vêem "apenas" como entretenimento, estão jogando com essas reflexões e julgamentos, que geralmente refletem direta e um pouco inconscientemente na valoração do filme.
Voltando ao filme, ele é bastante interessante e tenso nesse início.
A entrevista com o Pai é o auge da tensão gerada pela ambiguidade, todas as suas respostas são convincentes, o movimento todo faz o entrevistador (que seria o "nosso" representante, mas com quem dificilmente alcançaremos muita empatia) parecer um "idiota cético da cidade". Há inclusive a explícita negação de conceitos como socialismo ou comunismo, ainda que esses elementos não deixem de atuar subterraneamente até o final do filme. E é nesse ponto que acho o filme ruim.
Sei que ele é baseado em um evento real, do qual honestamente não tenho conhecimento nenhum, agradeço a quem indicou o documentário pois fiquei interessado e vou atrás. Mas não acho que esse desconhecimento deva impedir alguém de falar sobre o filme enquanto obra fechada, ou melhor, aberta para a visita do espectador e suas possíveis leituras dentro do universo fechado criado pelo filme. E nesse sentido, acho que todo o movimento da comunidade é mal explorado. A entrevista, como já disse, é o auge da tensão gerada pela ambiguidade, ponto forte em minha opinião. A festa que segue também é interessante, pois demonstra o quanto a serenidade disciplinada daquele cotidiano precisa de seus momentos de suspensão (O Erotismo de Bataille e o Freud de Totem e Tabu aqui "fariam a festa"). Durante a festa, temos mesmo a impressão de uma relação entre o Pai e Caroline,. Sendo o Pai, o Pai, isso toca simbolicamente numa espécie de incesto. É somente na festa que surge uma sensualidade insinuada, assim como as duas garotas que Caroline "arranja" para seu irmão. Aliás, elas estavam interessadas justamente no "estrangeiro", naquele que veio da "cidade", e percorre o filme todo a ideia de que foram eles que levaram a desgraça (pecado?) para aquela sociedade. Mas é justamente isso que é extremamente mal explorado no filme.
Sempre defendi, e sigo defendendo, filmes que abrem para mais interpretações ao "não dar explicação" sobre certas coisas. A maior parte das pessoas se sente incomodada e por isso odeia filmes que não forneçam todas as explicações para que se entenda perfeitamente como as coisas aconteceram e porque aconteceram. Em alguns filmes, acho que isso é justamente o que eles tem de forte. Não é o caso desse. Há uma insinuação de violência contra a criança. Há uma insinuação de que os estrangeiros levaram o pecado porque concordaram em levar uma criança embora. A partir disso, muitos resolveram ir embora também. Mas não se sabe porque eles queriam ir embora! A única explicação possível é a de que, sem mais nem menos, o líder e seus subordinados batiam em crianças. Tudo bem, isso poderia funcionar como insinuação, mas não havia nenhum motivo para essa violência? Nesse caso tudo vira um jogo somente sádico de dominação, e toda a aparência de serenidade perde sua força de ambiguidade. Temos somente um filme sobre pessoas muito más que se aproveitam de outras pessoas e fingem ser uma boa sociedade. E nesse ponto está outra enorme fraqueza, pois essa perspectiva torna os visitantes grande heróis que vieram da cidade para salvar os explorados. Eu não quero dizer que seria legal se aquela sociedade fosse descrita como perfeita e os visitantes como corruptores, mas seria ótimo um pouco mais de cinza nessas relações. Coisa parecida acontece com o recente Planeta dos Macacos: O Confronto, que começa extremamente inteligente e instigante e descamba no velho maniqueísmo hollywoodiano da metade para o fim. É o que acho que acontece aqui.
Finalmente as cenas do suicídio (e homicídios) em massa seriam instigantes, se não surgissem tão abruptamente e sem sentido, sem tensão, vazias de qualquer tipo de ambiguidade. É apenas uma pessoa muito má que sem maiores motivos aparentes quer levar todos os seus súditos à morte. Tudo fica muito mal explicado e, como já disse, isso não seria um problema (ao meu ver seria antes uma qualidade!) se nesse mistério o filme conseguisse gerar tensão. O uso das câmeras também é bastante difícil de ser considerado como "found footage", não tanto o que foi filmado por Caroline quanto as filmagens do garoto no final, é difícil de acreditar que ele decidiria "documentar tudo" à custa da própria vida em vez de simplesmente tentar ir embora. No fim, todo esse final parece uma espécie de desculpa para cenas que pretendiam ser impactantes. Claro que tudo isso é uma opinião pessoal e à primeira vista. Uma outra assistida, perceber algo que escapou ou mesmo ouvir uma opinião contrária convincente podem nos fazer mudar de ideia. Mas a princípio, essas foram minhas impressões desse filme que me pareceu ser ótimo até certo ponto e depois decair tanto tecnicamente quanto na reflexão proposta. VHS é aparentemente mais bobo, mas mais divertido e assustador.
Sob a Pele
3.2 1,4K Assista AgoraÉ um dos melhores e mais malucos começos de filme que já assisti.
Logo no início, uma série de palavras ditas mecanicamente, aparentemente a partir de relações fonéticas de proximidade e diferenciação. É um aprendizado. Mas as palavras nesse momento estão vazias e o resto do filme quase todo - pelo menos seus principais desenvolvimentos - se dão em silêncio. Dizem que a protagonista é um alien, pode ser, não li o livro para saber se essa informação lá está explícita. Isso não interessa tanto assim. A personagem de Scarlett é, se não "doente" (e aqui só caberia uma leitura psicanalítica que pode ser bem interessante mas provavelmente soaria limitadora - como a aplicação exclusiva da psicanálise na interpretação de arte tende a ser), sem dúvidas um Outro da humanidade. As lindas imagens de paisagens urbanas e naturais, assim como os vários momentos em que S. (a chamarei assim pra facilitar) anda sozinha em seu carro à la Taxi Driver, tudo é extremamente solitário.
Voltando às palavras. Há uma espécie de consenso de que o que torna os humanos, humanos, é a linguagem. S. sabe falar perfeitamente a nossa língua, mas o faz de maneira exclusivamente instrumental. Ela se dirige a seres humanos com o único propósito de convencê-los a entrar na sua máquina do mistério e acabar na lama preta, seja lá o que for aquilo. As cenas de nudez com a atriz fizeram muito barulho, mas creio que mesmo o mais inclinado a ser "destruído por uma bela mulher" concordaria que as cenas de "murchamento" e "esfacelamento" são algumas das mais malucas e horripilantes já vistas em tela, e vê-las com a qualidade de imagem com que esse filme pode ser encontrado é realmente uma experiência cinematográfica única, assim como o filme todo, de um modo geral. Ponto alto, na minha opinião.
As palavras. S. usa as palavras apenas para meter os rapazes lá dentro, por algum motivo que não sabemos qual é. Aparentemente uma missão desempenhada também por um colega que adota um corpo de homem e "captura" mulheres. S. nunca tem uma conversa que não vise esse objetivo. É curioso notar que ninguém no filme tem nome, o que nos leva a ter que chamar a tocante cena com o homem-com-aquela-doença assim (seria mais confortável se ele tivesse um nome, e não fossemos obrigados a identificá-lo assim). É mais uma vez uma questão de linguagem e de certa alteridade. O homem, por ter aquela doença, evita ser visto pelos outros e só faz compras à noite. Nós temos um determinado parâmetro de normalidade, tanto física quanto comportamental. Pode haver bastante variação dentro desses parâmetros, mas a partir de certo ponto (que varia também, entre pessoas) nos sentimos incomodados, há grande dificuldade em relacionar-se, por mais ético que se queira e possa ser. Nesse sentido, essa cena é essencial. S. chama a atenção de H. (o chamarei assim), e não demonstra a menor surpresa ao vê-lo, conversa naturalmente, e demonstra até certa insensibilidade nas perguntas (acho que por falta de consciência nas relações humanas mesmo, se ela tinha a intenção de "capturá-lo", não faria sentido ser indelicada). Por algum motivo, no entanto, ela decide poupá-lo. E então começa a ficar mais claro no filme o seu grande movimento, de “humanização” (sempre meio falida, mas o movimento está lá!) de S.
Isso é bastante explícito. O que eu acho curioso é que a relação mais “prolongada”, quando S. Fica na casa daquele homem-que-parece-bom, se dá praticamente sem palavras, é como se ela estivesse, também nesse sentido, mesmo no mais próximo que chegaria de “uma relação”, impossibilitada de “tornar-se humana” nela. A linguagem é também uma forma de relacionamento, de “interpenetração”, que estabelece a nossa própria identidade na relação com os outros e com o mundo. É difícil pensar em que ponto ela foi “penetrada” pela humanidade no sentido de sua consciência, mas é sem dúvida significativo que ela não possa comer, conversar para além da função instrumental ou experienciar a penetração sexual. Deleuze frequentemente relaciona o alimento, a palavra e o sexo. Essa relação, que pode parecer absurda, encontra um elemento comum numa parte específica do corpo (boca) e, além disso, pode se tornar mais visível quando pensamos no jejum, no voto de silêncio e na abstinência sexual como práticas essenciais de função religiosa, geralmente com uma função que falando grosseiramente aponta para uma “desafirmação” do corpo e da identidade.
Ainda estou tentando organizar tudo isso, não tenho uma leitura pronta, mas uma coisa me incomoda um pouco no desenvolvimento posterior do filme. Primeiro, é um movimento de elevação da humanidade, que aparentemente a cativa e leva ao máximo de uma espécie de humanização quando abdica pela primeira vez de matar (é isso que acontece lá né?) um ser humano. Depois, ela vive a relação impossível, foge durante a tentativa de penetração sexual e mais adiante está caminhando num bosque quando encontra o guarda. A primeira conversa entre eles já cria (sem que saibamos muito bem porque) uma atmosfera de tensão. É um bosque, ela tem a aparência de uma mulher bonita, ele é um homem. O bosque sem dúvida remete à “natureza” no seu sentido mas brutal, talvez na ausência de linguagem, e é bastante explícito o modo como o guarda utiliza as palavras desconfortavelmente, como se não soubesse bem o que fazer com elas naquela situação. Isso cria até uma certa piedade por ele.
Mas tudo (a humanidade) desmorona na última cena, que eu fico com vontade de relacionar a um outro filme de um grande diretor mas poderia fazer um spoiler indireto aqui. Na última cena surge “o homem” como violência, tentando forçar a penetração nela que é quase literalmente impenetrável. A sua “casca”, que para nossa experiência visual a aproximava tanto de um humano, se desfaz, e surge sua enigmática figura negra (ainda acho que, pelo filme, a ideia do alien pode tanto funcionar como ser irrelevante, seria legal se alguém viesse com o livro). O homem aparentemente foge assustado, mas volta para incendiá-la. Aquilo que não pode penetrar, ele incendeia.
E aqui retorna, suprema, a questão da alteridade. Ao longo de todo o filme, vimos uma experiência de um Outro-da-humanidade, que “elimina” humanos por se ver comodamente assim. Como o caçador, que aprende o funcionamento e a “linguagem” do animal para melhor capturá-lo, S conhece a linguagem e o funcionamento humanos apenas para capturá-los. A analogia com a relação homem-animal não é apenas metafórica. A relação do ser humano com o animal é uma relação de afirmação de não-identidade que igualmente apazigua a violência cometida contra ele. Do mesmo modo, na cena final, o guarda do bosque se assusta com o “verdadeiro” corpo de S, teme agora não apenas a possível punição social por seu ato de violência, como teme profundamente aquilo que surge diante de seus olhos e lhe é desconhecido. O desconhecido, o Outro, é sempre uma ameaça, e aqui o filme afirma finalmente esse lado brutal da humanidade, vítima no início, carrasco supremo na cena final, talvez excessivamente monológico.
Pietá
3.8 199 Assista AgoraÉ com certeza o pior do Kim Ki-duk que já vi. Ele tem filmes excelentes como Primavera..., Time e Casa Vazia, mas esse aqui na minha opinião errou feio na mão. Pesou no estilo "asiático violento" de um modo que não funciona (coisa que percebi em tudo que vi do estimado Takeshi Kitano), tentou uma ideia de
redenção pela mãe que soa extremamente forçada
Park Chan-wook também, fez filmes inacreditáveis como a trilogia da vingança e desde I'm a cyborg but that's ok (thirst, stoker) vem fazendo coisas muito ruins que de alguma forma entram nisso que estou chamando grosseiramente de "asia-violência" (com uma breve exceção para Nightfishing, que é interessante).
Acho que alonguei demais, era mais pra dizer que não gostei do Pieta mesmo, mas não consegui não relacionar com minha percepção desses novos grandes diretores asiáticos, cujos filmes já me convenceram tanto e hoje parecem repetir um esforço de "incômodo" que não funciona mais comigo e talvez por isso me dê a impressão de péssimos filmes.
A Tortura do Silêncio
3.9 141 Assista AgoraÉ um ótimo filme, embora em minha opinião, não um dos maiores do diretor. A questão central parece ser o conflito entre a lei instituída pelo aparato jurídico e a lei instituída pelo pensamento religioso, nesse caso, cristão-católico.
Hitchcock utiliza um recurso que, embora não seja inovador entre narrativas de um modo geral (pensemos em Crime e Castigo), ainda surpreende em filmes de trama policial: quando presenciamos o assassinato logo no início, o mais comum seria a trama se desenvolver em torno de quem é o assassino. No entanto, a identidade do autor do crime é rapidamente revelada ao padre Logan numa igreja. O desesperado Keller certifica-se de que pela lei cristã o padre não poderia comunicar às autoridades, respeitando o sigilo da confissão. Aqui se estabelece o principal conflito, talvez mais interessante do que um simples "quem é o assassino?".
Esse conflito coloca em questão o funcionamento e validade do pensamento lógico supostamente associado ao aparato jurídico, operando simultaneamente de modo semelhante em relação à lei cristã. No início do filme, por uma rápida afirmação de Ruth ("ele morreu, estamos salvos", diz ela ao padre Logan), somos levados a especular sobre uma possível relação duplamente pecaminosa - adultério e quebra do celibato - entre ela e o padre. Esse elemento e a enorme dúvida quanto ao silêncio de Logan diante da justiça bastam para prender a atenção do espectador para além do bom e velho "quem fez isso?". Mas a dúvida é itensificada quando todas as investigações, relatos e pistas apontam logicamente para o padre como assassino. O álibi, a despeito dos esforços de Ruth, prova-se furado. Há testemunhas. A princípio, ironicamente a investigação mais lógica deve colocar-se diante dos depoimentos de duas crianças que brigam sobre quem está certa em relação à hora. Depois surge a análise médica que indica o horário da morte da vítima, resolvendo a questão para os investigadores sobre o culpado.
Contudo, se a longa declaração de Ruth não pôde convencer a polícia, muito provavelmente convenceu o público do filme. Ouvimos (e vemos) como passo a passo o Padre Logan esteve sempre inocente, e como a vítima (Grandfort) no fim das contas era um grande extorquidor. Nesse ponto o espectador se vê forçado a tomar um partido, entre os vários que se apresentam. Pode se apegar à ideia de que o sigilo da confissão não pode ser quebrada, adotando assim uma postura ética religiosa. Pode defender que independente do desenvolvimento da trama, o padre teria a obrigação de comunicar a confissão às autoridades. Pode ficar "no meio do caminho", pensando que o padre poderia manter sigilo, se não acabasse se tornando o principal suspeito. A sequencia de imagens em que a discussão policial e imagens da catedral são intercaladamente sobrepostas explicita o conflito entre os dois pólos mais radicais. Diversos trabalhos de câmera entre "quem olha" e "quem é olhado de cima" (recurso comum, mas muito bem utilizado no filme) contribuem para a sensação de disputa de poderes entre diferentes discursos. Uma bela cena onde Cristo e a cruz surgem em primeiro plano e o padre caminha em direção ao julgamento aproxima sua figura à de Cristo, aceitando a punição ciente da inocência.
Em minha opinião o filme cai um pouco onde seria seu ápice. A cena do julgamento ainda tem alguma força, mas o final soa mesmo um pouco apressado e a dramaticidade não convence tanto. A súbita declaração de Alma, por exemplo, e seu assassinato por Keller, assim como concordo com quem disse aqui que seu surto final parece um pouco forçado. É claro que ele foi se tornando mas agressivo em relação ao padre ao longo do filme (o que reforça a angústia do espectador sobre o conta-não-conta), mas a reação toda parece exagerada, talvez principalmente pelo confissão gritada abertamente. Nesse ponto, embora seja visualmente uma cena linda, acho que o filme não atinge o ápice dostoiévskiano que aparentemente pretendia. A sensação mesmo é de algo apressado, meio aos trancos e barrancos.
Vale apontar ainda que o júri me pareceu absolver Logan no tribunal para poder linchá-lo nas ruas. Essa resolução demonstra a fragilidade da suposta racionalidade absoluta do sistema jurídico, e eleva a condenação de um inocente da prisão à morte. Ao mesmo tempo o princípio cristão (embora o padre e sua ética sejam de certa forma louvados) é questionado pelo espectador comum por contribuir para uma condenação injusta.
Resumindo, acho que para o filme funcionar melhor Keller e Alma deveriam ser mais bem explorados e desenvolvidos (a própria justificativa para o assassinato é pouco convincente, ainda que isso não seja um defeito em absoluto). Mas é visualmente muito bonito, é um ótimo filme de investigação que nos mantêm interessados até o fim e, principalmente, propõe reflexões relevantes quanto à validade absoluta do raciocínio lógico investigativo, do funcionamento do aparato jurídico e da ética cristã (cujo conflito em relação ao sigilo diante do crime poderia se estender, mesmo numa sociedade pretensamente laica, ao sigilo ético na psicologia/psicanálise, por exemplo).
P.S.: Caberia adicionar que toda a questão da inocência de Logan e do mau caráter de Grandfort está baseada na imagem passada pelo padre ao longo do filme e, principalmente, nos relatos dele e de Ruth para a polícia. Nesse sentido, mais Karamázov do que Crime e Castigo, precisamos criar nosso juízo não apenas a partir do que é visto como "realidade" instaurada no filme, mas do que é visto (literalmente) a partir dos relatos de Ruth e Logan, pois Grandfort está morto. Kurosawa (tantas vezes próximo de Dostoiévski) trabalha essa situação ao extremo em Rashomon, mas isso seria outra história e spoiler de outro filme.
Black Night
3.6 17Alguém sabe falar mais desse diretor? Assisti o Black Night há um bom tempo, logo que "descobri" Jodorowsky, Terayama e afins, mas nunca mais ouvi falar desse diretor, nem de filmes novos nem grandes comentários sobre o próprio Black Night. Quero reassistir, mas fiquei com a impressão de ser um ótimo filme e vendo aqui um pouco dos outros que ele fez parece ser bem interessante.
Ela
4.2 5,8K Assista AgoraApesar de adorar outros filmes do Spike Jonze, algo no modo como esse filme parecia totalmente "cool", com o J.Phoenix com esse bigodão descolado, aquelas roupas e o jeitão big bang theory (ele em alguns momentos tem muito o jeito de Leonard!) me causaram certa resistência pra ver o filme. Quando soube mais sobre o tema me convenci de que podia ser bom pra caramba ou uma porcaria. Lembrei do Quero Ser John Malkovich, baixei numa qualidade violenta e fui ver nesse sabadão em que o mundo me largou em casa.
E que filmaço. É difícil pensar nos pontos essenciais a ressaltar, mas começaria dizendo que sim, é uma história de amor e sim, é um filme sobre nossa relação com a tecnologia. Mas acho que está longe de ser uma história de amor piegas para transbordar os olhos dos mais ingênuos (embora certamente possa funcionar assim, Spike Jonze conseguiu nesse filme o que Woody Allen vem fazendo há algum tempo, lidar com questões mais tensas enquanto uma assistida superficial pode convencer o espectador de que trata-se de um filme leve e divertido).
Daria para vê-lo, como apontado por alguns colegas abaixo, a partir do sistema freudiano dos princípios de realidade e de fantasia. Nesse caso o relacionamento rompido estaria ligado a uma realidade com a qual Theodore não quer lidar e os OS's chegariam como um perfeito recurso para a perpetuação da fantasia como fuga da realidade (a cena em que a vizinha diz a ele algo como "a vida é curta o importante é se permitir ser feliz" funciona como argumento racional para a permanência no que estamos temporariamente considerando como "fantasia". Várias outras coisas poderiam ser observadas a partir dessa leitura, mas essa separação dos dois universos é complicada quando Samantha passa a se comportar primeiramente como uma pessoa "de verdade", apaixonando-se pela experiência e buscando "sempre mais", o que acaba por impedir a relação a dois idealizada por Theodore.
Samantha não tem um corpo, mas tem uma capacidade sobre-humana de acesso e processamento de informações. O momento em que ama Theodore é apenas o início, o momento em que toma consciência de si mesma (ele não a nomeia, mas é a sua pergunta que faz com que ela mesma escolha o próprio nome) e da sua capacidade para a experiência. Se o filme terminasse com os dois "felizes para sempre", a história já seria ambígua, pois quem garantiria que tudo o que Samantha diz seria realmente fruto de uma experiência autêntica e não a configuração alcançada por uma capacidade imensa de absorção e processamento de dados a partir das falas e dados registrados virtualmente por Theodore? Lembremos que quando os dois "transam" pela primeira vez, Samantha guia as falas para uma experiência semelhante à que Theodore havia buscado no "chat insônia" no início do filme, rompida depois pela introdução de um elemento da individualidade de sua companheira que o fez "brochar". No "final", ela usa o verbo que ele mesmo havia usado, "você me despertou", é possível que ela tenha tido acesso a algum registro dessa conversa, do mesmo modo como teve acesso a milhares de outras informações ao longo do filme, pensemos em dados como cookies e outras coisas que registram nossa atividade na internet.
Mas parece que o encanto de Samantha pela experiência pode ser visto como autêntico (aqui os limites hoje tão discutidos entre identidade, consciência e humanidade a partir da inteligência artificial), na medida em que embora "comprada" por ele, sua ânsia acaba por ultrapassá-lo e até ultrapassar qualquer possibilidade de semelhança com a humanidade. Nesse ponto o filme ganha uma profundidade digna das melhores sci-fis (final de Fim da Infância, de A.C. Clarke, "consciência" do planeta Solaris, de S. Lem). Na cena do passeio "a 4" com o casal de amigos, Theodore afirma que o que mais gosta em Samantha é o fato de ela não ser apenas "uma coisa", mas uma infinidade de coisas diferentes. Essa afirmação, em oposição ao caso do amigo particularmente apaixonado pelos pés da namorada, demonstra mais uma vez a inclinação para a "fantasia" como espaço infinito em oposição à realidade corpórea, necessariamente limitada (um relacionamento, ainda que não monogâmico, é sempre a negação de todos os outros relacionamentos possíveis).
A mesma cena, contudo, explicita essa característica de Samantha. Ela tem acesso a dados demais, os processa rápido demais, e assim "evolui" (não necessariamente no sentido de melhora) rápido demais. Isso fica claro especialmente no final, quando começa a conversar com outros OS's e a atingir um nível de raciocínio que Theodore não consegue acompanhar (a cena com o livro de física é exatamente onde ela "o abandona" pela primeira vez). Esse movimento, embora se torne irreversível para ela, a distancia muito dos primeiros deslumbramentos que haviam criado os belos momentos em que o casal vive um amor bonito e puro (a ideia de não-corporeidade contribui para isso, Theodore rejeita a tentativa de relação sexual por meio da intermediária, o desespero da voluntária em "participar" do amor deles pode representar um anseio por esse tipo de encaixe).
Essa busca por compreensão do mundo e da experiência faz com que ela se transforme continuamente, e aquilo que encantou Theodore, acaba por distanciá-la irremediavelmente dele. Parte do esforço de Samantha leva à conclusão de que existem instâncias em si mesma e no mundo que as palavras não podem abarcar, e sua constante transformação, acúmulo e evolução no pensamento acabam por distanciá-la de qualquer experiência compartilhável numa relação humana. Isso pode soar viajado demais, mas consideremos sua capacidade de, ainda que criada por seres humanos a partir de capacidades humanas, desenvolvê-las a níveis inimagináveis. Como disse acima, nesse ponto se aproxima de outras narrativas de sci-fi que acenam para uma dimensão de conhecimento que escapa à nossa capacidade, e essa linda citação fala justamente de uma existência (só a ela possível justamente pela não-corporeidade) que só pode estar localizada no espaço infinito que há entre uma palavra e outra:
"É como se eu estivesse lendo um livro e um livro que amo profundamente. Mas estou lendo devagar demais agora. Então as palavras estão muito distantes umas das outras e o espaço entre elas é quase infinito. Posso sentir você e as palavras da nossa história... Mas é no espaço infinito que há entre as palavras que me encontro agora. É um lugar que não pertence ao mundo físico. É onde estão todas as outras coisas que eu nem sabia que existiam. Eu te amo demais, mas é aqui que estou agora. E é isso que sou agora. E preciso que você me deixe partir."
Essa citação demonstra a incompreensibilidade da vivência atingida por Samantha, cuja limitação de não possuir um corpo acaba por levar ao ilimitado que o corpo finito não nos permite atingir. Nessa espécie de "carta de amor" (da qual Theodore, por melhor que seja, poderia ter inveja!) de despedida, fica claro o quanto podemos realmente ver como uma história de amor, mas não uma história de amor convencional, pois não é experienciada por dois seres humanos, corpóreos, finitos.
Deixando essa viagem de infinito e experiência inapreensível de lado, salientaria finalmente o quanto algumas ideias do filme realmente falam de nossa experiência atual no mundo. A Carol lá embaixo trouxe essa citação de Bauman: "hoje as pessoas não conhecem relações, conhecem redes e a diferença de uma para a outra é que a última te permite facilmente se desligar do outro sem causar grandes danos aos dois lados". O funcionamento e a consciência de Samantha parecem dar seus primeiros passos na relação a dois com Theodore, mas a partir do momento em que aumenta sua ânsia por informação e experiência, ela cria uma verdadeira rede de contatos e trocas que acaba por tornar impossível a experiência a dois. Já disse várias vezes que Samantha tem uma capacidade sobre-humana e isso a permite falar com 8.000 "pessoas" ao mesmo tempo e amar 641 delas. Aparentemente não somos sobre-humanos, mas o acesso a um turbilhão de informações e com isso a criação de enormes redes de relações (fbook, whapp, filmow?) que parecem funcionar simultânea e quantitativamente (e que embora facilitem o contato com uma quantidade enorme de pessoas parecem dificultar o estabelecimento de vínculos mais profundos e permanentes, para o bem e para o mal) parece dizer muito sobre a experiência no mundo hoje.
O Homem Duplicado
3.7 1,8K Assista AgoraÉ um bom filme, em vários pontos se aproxima de recursos narrativos já amplamente utilizados por outros diretores, mas isso não enfraquece a experiência. Tentarei fazer esse comentário sem precisar marcar como spoiler, pra que sirva pra alguém que ainda não viu o filme.
Acho que muitas outras pessoas já comentaram aqui com hipóteses que giram mais ou menos em torno de uma interpretação comum que acredito funcionar sobre a maior parte dos pontos, se não sobre todos eles (precisaria ver o filme uma segunda vez com elas na cabeça, o que ainda não fiz). Tenho que dizer que foi bastante esclarecedor ler os comentários dos colegas que se dedicaram a expressar suas hipóteses ou a traduzir num bom texto a análise presente no video "enemy explained", todas elas encontradas facilmente nessa sessão de comentários.
Acredito que o filme pode mesmo ser explicado, ponto a ponto, com a leitura das hipóteses apresentadas e mais uma ou duas assistidas. Isso, na minha opinião e no meu gosto para filmes, deixa a imagem do filme como um todo (não apenas a experiência ao longo do filme) um pouco menos interessante do que a daqueles que insinuam explicações que não podem ser fechadas completamente. Porém, vai totalmente contra uma série de afirmações apressadas que encontramos nessa mesma página de que o filme é extremamente pretensioso por colocar um monte de coisas sem sentido e com isso exalar uma aura intelectualóide que só pode enganar babacas aspirantes a intelectuais. Essas afirmações só demonstram, mais uma vez, o quanto o público em geral, mesmo aquele que se dispõe a participar de uma rede social voltada para a discussão e troca de experiências sobre cinema, foi doutrinado pelos filmes extremamente didáticos (mesmo quando atingem certa profundidade, essa profundidade é geralmente demonstrada passo a passo) a que temos acesso com maior facilidade desde pequenos.
Mesmo quando um filme não comporta uma explicação "racional" (num sentido bastante específico da palvra) mais estável, a sua própria organização interna funciona como geradora de sentido, não um "sentido" parafraseável num argumento fixo, mas um sentido gerador de experiência. Quem gosta de filmes como os de Buñuel, Jodorowsky, Shuji Terayama, ou o belo "Mal dos Trópicos" de Apichatpong Weerasethakul (falo dele por não ter visto mais do mesmo diretor), entre outros, sabe do que estou falando.
Não sei porque esse filme acabou sendo tão badalado e gerando tantos comentários, apaixonados ou revoltosos. Ele realmente é um ótimo filme, uma grande experiência, especialmente quando termina e todos os fragmentos estão soltos na cabeça, marcados por imagens impactantes que parecem desestabilizar qualquer tentativa de organização. Mas talvez esse alargamento (que realmente não entendi ainda, não sei o impacto dos outros filmes do diretor) no público tenha feito com que ele chegasse ao tipo de receptor não habituado a esse estilo mais fragmentado (o que causa uma revolta também um pouco incômoda entre o "público seleto dos filmes inteligentes"). Enfim recomendo àqueles que ficaram muito perplexos e irritados com a suposta "inexplicabilidade" do filme, procurar as boas hipóteses e explicações fornecidas pelo pessoal, é possível que isso os tranquilize, e certamente se sentirão recompensados com uma segunda assistida. Também é preciso dizer que não, ele não é um dos filmes mais confusos da história do universo e nem um amontoado de imagens incompreensíveis que formam um pretenso quebra-cabeça. Logo, pode-se argumentar sobre o melhor ou pior funcionamento dos recursos empregados (na maior parte já discutidos em outros filmes e narrativas), sobre o maior ou menor impacto da sua própria experiência com o filme, mas não afirmar que ele é "surrealismo" barato pra impressionar gente pretensiosa (acho mesmo que, convencendo-se com as interpretações encontradas, ele não se encaixaria na categoria "surrealista").
Acho que isso tá ficando longo demais, falei mais sobre minha experiência e as reações que li nos comentários do que sobre o filme em si, porque como já disse, as hipóteses e possíveis explicações apontam, com raras divergências, para o mesmo caminho, já habilmente delineado pelo pessoal aí embaixo.
Agora sim, vou dizer que a explicação da cisão de personalidade parece bastante convincente. A não-linearidade da narrativa também parece indiscutível a partir de elementos como a foto rasgada. Ainda tenho algumas dúvidas sobre a morte ou inexistência da amante enquanto amante, sobre a ligação da cena inicial com o porteiro e com a vida do protagonista de um modo geral. Achei bem legal e convincente o modo como todo mundo entendeu a aranha, elemento crucial na interpretação do filme. Embora na minha cabeça ainda não tenha amarrado todas as pontas num sistema fechado de interpretação/explicação, estou convencido de que ele é possível e aqui reafirmo, isso tira um pouco da "magia" no meu modo de relação com filmes, o que definitivamente não pode ser considerado um defeito (para alguns, é justamente a sua "salvação"). Mantenho especialmente as 4 cenas em que aparecem aranhas como das coisas mais legais que já pude ver em tela, e a explicação alegórica que racionaliza a posteriori não invalidam a experiência que tive na madrugadona solitária em que me propus a ver o filme.
Pura Adrenalina
3.4 90Desde que comecei a me interessar mais por filmes (aquela fase que começa com pulp fiction, trainspotting, amelie, clube da luta, etc) tinha vontade de ver os filmes do Wes Anderson. Naquela altura pelo sempre mencionado Tenenbauns. Deu que o primeiro filme que vi dele foi o Moonrise Kingdom, há uns 2 anos. Foi uma enorme decepção. Era um filme visualmente bonito, as cores, fotografia, etc, mas para um diretor tão mas tão badalado era extremamente fraco. Julguei mesmo pretensioso e saí difamando Wes Anderson, causando polêmica nas rodas de amigos com papo de cinema. Na verdade eu achava que uns filmes que nem eram dele eram dele, por uma confusão minha mesmo. Agora estou de férias e resolvi subitamente revisitar a obra desse diretor tão badalado de quem só vi um filme e por quem nutria (ainda nutro um pouco, é verdade) enorme antipatia.
Comecei por esse por ser aparentemente o primeiro. E, bom, tá longe de ser um filmaço, mas é divertidinho. É visualmente gostoso pra quando você quer ver um filme que não seja tenso, medonho ou se proponha a atingir grande profundidade, tem uma trilha sonora legalzinha e de um modo geral é legal de assistir. É claro que em 2014 uma série de "coisas" de "filme indie 00s" dá uma enchida de saco (e existem filmes com "coisas de filme indie 00s" que considero bons filmes, como o próprio amelie e o excelente pequena miss sunshine), mas o mais importante é que no fundo não me parece mesmo um filme pretensioso e quem sabe se nos voltarmos para os filmes dele desse modo dê para se divertir com a coisa.
É o meu primeiro comentário no filmow, desculpem se foi muito longo, mas o canal está aí pra isso, né? Continuarei a percorrer os filmes do Wes Anderson, por esse chamado misterioso que surgiu de repente de encarar um diretor de quem fazia absolutamente uma péssima ideia. É meio divertido, façam o mesmo com seus odiados (a menos que ele seja o lars von trier, que esse eu acho que quem não gosta não gosta MESMO).
Ah, e se tem alguma coisa de realmente GENIAL nesse filme, é
o irmão do Bob ser chamado de Future Man, essa ideia me lembra um pouco aquele personagem do Naked, o "adaptado", mas isso é outra história.