"Marvin" da diretora Anne Fontaine, é um acerto de contas com um passado de bullying e homofobia e de como a escrita e o teatro podem salvar um ser-humano. É um filme bonito que mostra como a família e a escola podem ser instituições perversas, que revelam o pior de nós. E como o olhar de uma educadora para um aluno tímido e talentoso pode fazer toda a diferença. O mais belo da trajetória de Marvim é como as várias pessoas cruzam seu caminho vão conduzindo-no para a construção de um novo eu, encarando sua infância difícil, o preconceito e a violência de seu pai e irmão, o descaso de sua mãe e o bullyng de meninos mais velhos na escola. Eis que o teatro surge como potencial catalizador de tudo isso. Isabelle Huppert surge no papel dela mesma, como uma espécie de tutora e como atriz do espetáculo que Marvin escreveu. As cenas teatrais são lindíssimas e extremamente simbólicas. Mas junto com o sucesso da peça, vem também um necessário reencontro com seus familiares. Recomendo! O filme faz parte da programação do Festival Varilux de Cinema Francês.
Quantas mentiras sobre o nosso passado contamos para nós mesmos? Quanta romantização somos capazes de inventar para não sofrer tanto? “The Tale” é um acerto de contas com esse passado romantizado. É um filme duro e cru(el). Tudo começa a desabar quando a mãe de Jennifer acha uma caixa no porão com textos e cartas que ela escrevera quando criança. A mãe se surpreende com o conteúdo e questiona a filha. Ela aparentemente não liga muito, mas quando relê um conto que escreveu sobre o relacionamento feliz que vivenciou com seus treinadores (um homem e uma mulher) quando ela tinha apenas 13 anos de idade, tudo muda. Aos poucos, Jennifer adulta vai escavando seu passado para entender o que aconteceu com a Jennifer criança. O processo é extremamente doloroso e ela se vê sozinha, e as marcas desse relacionamento abusivo ainda fazem parte de sua personalidade, mesmo que ela tenha calado durante tanto tempo. O mais interessante de toda a obra é a maneira como a diretora conta essa história. Ela é uma documentarista e esse é seu primeiro filme de ficção, então muito de sua experiência nos documentários servem muito bem aqui. Já que a história é totalmente baseada nas experiências reais da diretora. A personagem principal tem o mesmo nome e sobrenome da diretora. E isso só aumenta ainda mais toda a tensão. Não é um filme palatável. É uma obra corajosa num momento em que precisamos cada vez mais de pessoas corajosas no mundo. E ah, Laura Dern está excepcional. Assim como o todo elenco. Recomendo só para os fortes.
A sacada do diretor Michael O'Sea é genial. Ele se utiliza das histórias de terror sobre vampiros para fazer um tratado sobre pessoas psicopatas. Algo angustiante como se a própria sociedade forjasse variados estágios e formas de materializar crueldade e frieza. Um mundo extremamente abusivo e sem afeto, habitado por pessoas depressivas. Eu adoro filmes lentos, esse ultrapassa um pouquinho o limite da lentidão, mas não deixa de ser um bom filme.
A adolescência é aquela fase intermediária que ninguém parece se entender direito. Some-se a isso todas as pressões inerentes ao "ter que se encontrar", "ter que ser alguém na vida", "ter que arrumar um(a) namorado(a)", "ter que arrumar um emprego". Sim. Nossa sociedade é totalmente baseado num suposto desempenho todo ele já desenhado desde que o mundo é mundo. Não há muita coisa além disso. Ou há muita coisa além disso. Ou ainda, só há alguma coisa além disso. Mas o quê? O filme Falscher Bekenner retrata a vida de um adolescente perdido no meio de tudo isso. Ele acabou de sair da escola e seus pais estão pressionando-o para que arranje logo um emprego. Ele até participa de algumas entrevistas, mas fracassa miseravelmente, pq não possui nenhuma habilidade para a interação social. O diretor Christoph Hochhauser provoca ao mostrar o esdrúxulo de todo o processo seletivo e mostra como uma personalidade solitária e introvertida do garoto vai pouco a pouco mergulhando numa espécie de limbo emocional, onde ele se projeta como culpado de crimes que não cometeu e fazendo sexo fetichista com homens mais velhos. Tudo é bastante desencantado, sem trilha sonora, firulas visuais ou finais felizes.
"Thelma", do diretor Joachim Trier é um filme híbrido, que mistura gêneros de maneira bem orquestrada. A história é bem simples, mas camada após camada, o diretor vai tecendo uma visão de mundo bastante pessoal e complexa. Garota criada por pais religiosos se muda de cidade para estudar na Faculdade. Lá ela se apaixona por uma garota e eventos estranhos começam a acontecer. Resumidamente é isso, mas como disse, é um filme bastante ousado no tratamento da sexualidade, culpa, adolescência, conservadorismo religioso e sobra até para a indústria farmacológica. A atriz Eili Harboe tem um desempenho assombroso.
Muito mais que um mero documentário sobre a paixão de um menino pelo universo circense, “Jonas e o Circo sem Lona” questiona os processos de condicionamento de nossa sociedade e o quanto isso pode ser nocivo para o potencial criativo de nossas crianças e para o mundo que queremos construir. Jonas é um adolescente que mora no interior da Bahia. Ele é apaixonado pelo mundo do circo. Ele é filho e neto de artistas circenses. Mas sua mãe abandonou o circo e hoje sobrevive de maneira precária. Ela quer que o menino estude “para ser alguém na vida”, mas o menino nitidamente possui outros planos. Sua paixão pelo circo é tanta, que em suas férias escolares, ele monta um para si mesmo no quintal de sua casa. Para isso, chama uns amigos e os ensina alguns truques e palhaçadas. Aos poucos, o talento nato do menino vai aparecendo. É ele quem administra, ensina, diz o que cada irá fazer, escolhe trilha sonora, figurino e tudo o mais. Ele também se apresenta como palhaço, malabarista, trapezista e ainda imita Michael Jackson. Tudo vai bem.... Até que as férias terminam e seus colegas se dispersam e ele se vê sozinho novamente. Jonas é, em essência, um incompreendido. Sua mãe, seus amigos, a diretora do seu colégio, todos parecem duvidar de seu talento. Até ele mesmo às vezes se questiona dos porquês de se estar produzindo um documentário sobre sua vida e sonhos. E aos poucos, aquele menino tão vivaz, tão criativo, vai minguando, sumindo, se entristecendo. Esse é o processo de condicionamento que todos passam numa vivência em sociedade. O que Jonas precisava era de auxílio no desenvolvimento de suas potencialidades. Mas não. A sociedade não tolera isso. Todos querem segurança. Todos querem a criança adestrada. Todos querem a morte do potencial criativo. Trocamos tudo isso por dinheiro, por segurança, status. É triste! Triste demais! Como evitar que isso aconteça? Deixa a resposta com o Osho:
“Eu gostaria que vocês tivessem respeito pelas crianças. As crianças merecem todo o respeito que você for capaz de dar porque elas são tão frescas, tão inocentes, tão próximas da divindade. Está na hora de respeitá-las, e não de forçá-las a respeitar todos os tipos de corruptos – astutos, trapaceiros – simplesmente porque são velhos.
Eu gostaria de inverter a coisa toda: respeito para com as crianças porque elas estão mais próximas da fonte, você está distante. Elas ainda são originais, você já é uma cópia carbono.”
Ah, Lady Bird... Ah, Christine... Ah, Greta... Ah, Saoirse... Que filme lindo! Quantas camadas podem caber na simplicidade? Sim. É um filme simplicíssimo, mas que nos comunica tantas coisas, tantas possibilidades. Que nos toca, emociona. Nos faz refletir. É essa capacidade artística que falta (me desculpa comparar, mas será necessário) em "Me Chame Pelo Seu Nome". Lá tudo empolado, hermético, pretensioso, quase blasé... E aqui não. Tudo, apesar de simples, é luminoso, vibrante, habitado. A diretora Greta Gerwing fez um filme terno, poderoso, visceral sobre o rito de passagem de uma garota comum de uma cidade pequena para a vida adulta. Os sonhos, as idealizações, as insatisfações com a cidade, com a escola, com a mãe, com o irmão, as fantasias amorosas e as subsequentes desilusões com os meninos, estão todos representados naquela garota ao mesmo tempo tão frágil e tão forte. É um mergulho encantador na jornada de autoconhecimento dessa garota. E quantas lições ela (e tb nós) aprendemos. É só uma questão de prestar atenção. Pq sim, isso é uma forma de amor tb.
"Isto não pode durar. Esta infelicidade não pode durar. Devo recordar-me disso e controlar-me. Não há nada que dure, nem a felicidade, nem o desespero. Nem a vida dura muito tempo. Tempos virão, no futuro, em que isto não me incomodará. Tempos em que poderei pensar nisso com calma e boa disposição. Não, não quero que este dia chegue nunca. Quero me recordar de cada minuto... até o fim dos meus dias."
Pq eu não assisti esse filme antes? É uma das coisas mais lindas e triste que já vi na vida! "Desencanto" é um filme de 1945, dirigido por David Lean e que tem uma proposta bem ousada para a época em que foi filmado e é referencial até hoje para os filmes de amor. A história é bem simples, mas a maneira como o roteiro e direção vão tecendo as coisas é que é genial. O filme começa pelo final e numa primorosa narração em off vamos acompanhando como tudo se sucedeu. Laura é uma dona de casa que toda quinta-feira vai fazer compras, passear e ir ao cinema numa cidade próxima a sua. Um belo dia ao esperar o trem um cisco entra no seu olho e o médico Alec a ajuda a tirar. Uma série de coincidências faz com que eles se encontrem algumas vezes e o prazer de estarem juntos vai crescendo de forma natural. O problema é que ambos são casados, com filhos e uma vida estabilizada. O sentimento de culpa será maior que o amor que eles sentem? Celia Johnson é a protagonista absoluta e tem um desempenho excepcional. Acompanhamos seus conflitos, medos e sonhos pelo ponto de vista psicológico da personagem. Ela pouco verbaliza isso, mas seus fluxos de consciência nos permitem saber tudo o que ela sente. É uma coisa tão angustiante e tão bonita que nos assombra. Já se tornou um dos meus filmes prediletos!
Três histórias autônomas com um olhar melancólico sobre ser mulher numa sociedade machista. A diretora Kelly Reichardt concebe um filme minimalista, delicado e quase anticlimático, em que as entrelinhas e o que está além da história são os elementos mais importantes. Com um elenco estelar, o destaque fica com a menos conhecida das 4 atrizes principais. Lily Gladstone nos arrebata com uma personagem misteriosa, que parece descobrir que há possibilidades longe de sua vida tediosa. É lindo e triste acompanhar sua jornada de autoconhecimento.
“Três anúncios para um crime” é um filme grosseiro, rocambolesco, com personagens caricaturais. Fiquei com vergonha por aquele roteiro absolutamente feito nas coxas. Sabe que parece que o diretor teve uma ideia e quis encher o filme de cenas chocantes e misturou umas bizarrices e achou que a receita estava deliciosa. Filme sem rumo, sem identidade, apelativo, que quer atirar para todos os lados e não chega a lugar nenhum. Sinceramente, não sei como esse filme está sendo tão premiado. Nem a interpretação da protagonista é tão maravilhosa assim. É o típico filme que vai ganhar por causa do tema. Tipo “Spotlight” que é uma bomba, mas ganhou pelo tema e coisa e tal. Sai do cinema decepcionado. Juro!
Zygmunt Bauman em seu livro “44 cartas do mundo líquido moderno” dedica alguns capítulos para falar sobre o advento da internet, dos aplicativos e redes sociais, num deles cunha a expressão “sozinhos no meio da multidão” e foi esse texto que fiquei pensando o tempo todo ao assistir “Happy End” do diretor Michael Haneke. SIM! Haneke disseca daquela maneira fria e desfamiliarizada dele essa sensação ao mostrar pessoas que convivem dentro de uma mesma casa, mas que não se conhecem direito. Embora as relações sejam próximas (pai, filhos e netos) eles não se conhecem (ou não se deixam conhecer?). Tudo está meio que ruindo e eles fingem não ver. Há uma permanente sensação de vazio que é aplacada pela tecnologia. Relações mediadas por telas, sejam de computadores e ou de celulares. É ali, que esses personagens revelam seus desejos mais recônditos. Mas Haneke não joga toda a culpa nos aparelhos eletrônicos. O diretor sabe que eles respondem a uma necessidade que não criaram. O medo da solidão já estava lá desde sempre. Só foi cooptada para essa dependência quase que doentia. Diante disso, soa irônico que o personagem do avô, apesar de já estar quase senil, seja o mais consciente de sua solidão. A iminência da morte faz com que ele enxergue tudo de maneira diferente. Assim como a personagem da criança, cujo único desejo é não ser abandonada. Esses dois personagens funcionam como espelho de uma humanidade falhada, errática e cruel. Tudo parece ter dado errado, apesar do esforço tremendo para tudo parecer bem. No meio disso tudo, Haneke ainda cutuca com a questão dos imigrantes, que funcionam como uma espécie de válvula de escape para o incômodo que esses personagens se negam a olhar. Haneke nunca é óbvio em suas observações e isso é o mais rico em seu cinema. Ele nos dá tempo, nos dá espaço para que possamos fazer nossas próprias reflexões. E isso é tão raro no cinema atual ou indo além, no mundo atual. Talvez seja por isso que assisti-lo é sempre como levar um soco em plena boca do estômago. Haneke, juntamente com Lars Von Trier, Bèla Tarr e Yorgos Lanthimos, nos mostra esse mundo em franca desagregação, em que todos os ideais de felicidade e segurança perderam sua função e nos encontramos diante de uma crise existencial absurda. A pergunta que os filmes desses diretores levantam parece ser “Como escapar dessa crise?”. E a resposta talvez seja “Não há escapatórias”. Por isso, é que a personagem da garota seja tão cruel dentro do prognóstico geral do mundo. Ela é o sintoma de um mundo que perdeu todas as suas ilusões e sonhos. Ela e o Velho. Os mais conscientes de que esse mundo já foi para o brejo faz tempo. A cena final é uma das mais impactantes que já vi na minha vida. Meus pelos do corpo se arrepiam só de lembrar.
Esses dias vi "Projeto Flórida". Outro filme que está com um "hype" imenso. Demorei a escrever, pq estou com medo de falar minha opinião e tirarem minha carteirinha de cinéfilo. HAHAHAHA. Mas, gente, eu não gostei. Achei chato! De verdade. Me entediou. Achei aquelas crianças um pé no saco. Então, é isso. Não sei o que tá acontecendo comigo. HAHAHAHAHA
Melodrama é um gênero teatral caracterizado por carregar nas tintas dos vícios e virtudes de seus personagens. Digo isso, porque só é possível entender “Roda Gigante” do diretor Woody Allen dentro desse contexto. É um melodrama assumido. Daqueles bem rasgados. Também é estudo de personagens e de uma época. Sim. Estamos nos anos 50 e somos apresentados aos seguintes personagens:
Uma mulher de quase 40 anos que vive com um marido bem mais velho que ela nos fundos de um parque de diversão. Ela tem um filho entrando na adolescência com tendências piromaníacas. A história dessa mulher hoje relegada a trabalhar como garçonete naquele local é das mais interessantes. Ela foi atriz, teve um namoro e um filho com um baterista que a deixou porque foi traído por ela. Sem eira nem beira, foi salva por sua beleza. Essa mulher é Ginny. E seu anjo da guarda é Humpty, um operador de carrossel, que lhe dá teto e a ajuda criar seu filho. Mais ela quer mais. Acha pouco essa vidinha média. E é ai que entra Mickey. Nos seus acessos diários de tédio, Ginny sai para dar uma volta na praia e lá é vista por esse homem que trabalha como salva-vidas do local, mas que sonha em ser dramaturgo. Ele a aborda e iniciam um romance. Tudo vai bem até aparece a filha de Humpty. Ela que saiu de casa aos 20 anos de idade para se casar com m gangster italiano, depois de algum tempo, se dá conta da furada da situação e decidi botar um fim na relação e agora está sendo procurada por ele. O pai reluta em aceitá-la de volta, mas acaba deixando ela ficar. Pronto! Lógico que a chegada de Carolina desperta interesse em Mickey e o caos está armado.
Fiz esse resumo para que possamos entender a razão do conflito e onde ele se inicia. Para mim, tudo tem origem na maneira como educamos meninos e meninas. Nessa diferenciação cultural. Está tudo aí. E isso cobra o seu preço. E normalmente, altíssimo. O que começa com um caso de verão, aos poucos vai ganhando contornos cada mais vez mais dramáticos. Ginny quer segurança, quer fugir dali, quer outra vida. Mickey também parece quer isso. Mas hiperdimensiona um pouco as coisas para impressionar aquela mulher. Mulheres são educadas para serem as mantenedoras da vida, enquanto os homens são Ícaros. Sonhando com asas em busca do sol. Mas a realidade é que como no mito, estão presos, como punição, naquele labirinto. Reféns de seus desejos. Mickey conhece Carolina e se apaixona por ela. E não sabe muito bem o que fazer, então ele mente. Mente tanto para Ginny, quanto para a outra. Essa é também uma socialização masculina. E é aqui que um comportamento bastante ligado ao universo feminino aparece. Ao notar o interesse de Mickey em Carolina, Ginny se desespera. E pouco a pouco, vai se tornando o estereótipo da mulher histérica. Além disso, ela vê seu marido mudando de comportamento com ela e mimando em demasia a filha. E é aqui que que a tal propagada rivalidade entre mulheres aparece com força total Sim. Porque mesmo sem Carolina saber do caso de seu affair com a sua madrasta, elas estão disputando Mickey. E é claro, que contornos machistas vão aparecendo cada vez mais. Ginny sabe que não terá armas para competir com a juventude e beleza de sua enteada, e ela, então, começa a tramar contra aquela relação. Para isso, usa as armas que tem; se faz de amiga dela, dá conselhos, fala mal de Mickey, etc, etc... Mas nada disso parece dar certo. A angústia e o desespero de não conseguir sair daquele parque de diversão a consomem. A personagem enlouquece e se desliga totalmente da realidade e passa a habitar em seu idílio amoroso. Não é mais uma mulher, mas uma fantasmagoria. Todos serão punidos de alguma forma. Não há saída possível. Todos serão mandados de volta para seus próprios labirintos. E essa punição se dá porque ousaram se deslumbrar com suas asas e com a beleza do sol.
Juro que não entendo o "hype" em cima desse filme. Achei os personagens chatos, o roteiro enfadonho e as interpretações bem medianas (o menino que faz o protagonista é bom, mas o personagem é muito chato, gente). São 2h12 de filme! E eu ficava assim: "Calma, daqui a pouco vai melhorar" e nada, nada, nada. Pra falar a verdade, só teve uma cena que me tocou e foi bem perto do final. Na realidade mesmo, achei o filme bastante problemático. O personagem Oliver é um babaca, irresponsável emocionalmente e o ator que dá a vida ao personagem é bem bonito, mas só tb. A maneira como as mulheres são representadas na obra tb achei problemática. Ou são enganadas, ou são submissas, ou são histéricas. E nada além disso. Há uma romantização exagerada de uma relação que flerta com o abusivo tb. Enfim, poderia ficar aqui falando horas. Queria muito ter gostado. Mas não deu!
É muito interessante perceber o quanto o enredo do filme “The Square” possui um paralelo com a onda conservadora que se apresentou no Brasil no ano de 2017. Estão lá a polêmica dos museus envolvendo crianças e os limites da arte contemporânea. É engraçado e triste ao mesmo tempo. Mas essa é a forma que o diretor sueco Ruben Östlund encontrou para contar sua história ou explicitar sua visão de mundo. O filme conta a história de Christian, um diretor de um conceituado museu que se vê às voltas com a organização de uma nova exposição intitulada “The Square”. O projeto é ao mesmo tempo extremamente simples e ambicioso. Simples porque a obra que dá título à exposição é composta apenas por quadrado luminoso no chão. Já a ambição se dá porque há grandes teorias e expectativas sobre a tal obra. A crítica aqui se dá na lacuna existente entre a ideia e sua concretização. O quanto de exagero e hipocrisia pode existir no discurso artístico e todo o mercado que se monta em volta do artista e da obra. O pensador francês Jean Baudrillard escreveu que "A Arte se integrou ao círculo da banalidade” e é esse o ponto nevrálgico de toda a provocação e reflexão suscitados pelo filme.
Mas de quem é a culpa? Se é que há um culpado? Ruben Östlund cutuca esse vespeiro de forma bastante crítica: sim, existe hoje um amontoado de “obras” consideradas de arte que só ganham destaque porque são legitimadas pelo mercado (leia-se marchands, galeristas, acionistas) e aduladas pelos críticos dos grandes jornais e revistas. Uma arte burguesa, submissa, tatibitate e que não encontra nenhuma reverberação crítica, política ou estética. Pura masturbação egoíca.
Existe uma saída? Sim! E isso fica visível na excelente cena da performance de um ator que imita um macaco num jantar de gente rica. O lugar da arte não é agradável, bonitinha e perfurmada. NÃO! É selvagem. Libertária. Livre. Errática. Cruel. Artaud escreveu que "se falta enxofre à nossa vida, quer dizer, se lhe falta uma magia constante, é porque nos apraz contemplar os nossos atos e nos perdermos em considerações sobre as formas sonhadas de nossos atos, ao invés de sermos impulsionados por eles". É exatamente isso que o personagem principal do filme irá aprender na marra lá pelas tantas. E o mais belo de tudo isso é que essa lição é ensinada por uma criança. Nossas palavras, ações e gestos possuem reverberação no mundo real. E é preciso saber lidar com isso. Não cabendo mais aqui se esconder atrás de um suposto mundinho artístico. Essa atitude só pode gerar uma arte ingênua, ou pior, pessoas letárgicas e covardes.
Mais um filme da excelente safra de cinema brasileiro de 2017. "Não devore meu coração" é um filme híbrido, com ecos do diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn (com um Cauã Reymond a evocar Ryan Gosling nos excelentes "Drive" e "Apenas Deus Perdoa"), numa história que bebe na fonte shakespeariana do amor impossível entre famílias rivais de "Romeu e Julieta" e com pitadas do realismo fantástico do Apichatpong Weerasethakul . O cineasta Felipe Bragança mesmo não contrapondo violência versus beleza, concebe um filme bastante violento e absolutamente estético, de uma beleza avassaladora. Raras vezes vi cenas tão belas num filme brasileiro. Sai do cinema embasbacado com o apuro técnico dessa obra. O elenco tb é muito bom. Cauã surpreende num papel díficil, mas o filme é todo de Adeli Benitez, garota que vive uma índia guarani. Ao final, "Não devore meu coração" é quase um apelo para que os fantasmas que carregamos ao longo de nossas vidas não acabem por devorar nossa humanidade.
“Você é comida ou sexo?" Insano. Cruel. Psicológico. Submerso em signos e simbologias. "Demônio de Neon" é um filme para ser contemplado sem desejo e sem memória. Um conto de fadas perverso e contemporâneo. Um delírio visual illuminati.
"NÃO QUERO MAIS FINGIR QUE SOU UMA MULHER QUE DÁ CONTA DE TUDO. EU NÃO DOU CONTA DE TUDO.
À primeira vista “Como nossos pais” pode parecer um filme simples, até mesmo novelesco. Mas à medida que o enredo vai se desenrolando, vemos que as intenções de Laís Bodanzki são muito mais sutis e importantes do que aparentam. De certa forma, é o retrato preciso de uma geração de mulheres que estão se dando conta que existe toda uma estrutura de sociedade que é voltada contra elas. Que fabrica mentiras contadas repetidas vezes que são compradas como verdades absolutas e que só traz sofrimento. No entanto, essa ficha demora a cair. A lucidez cobra seu preço e é preciso rever todos os conceitos e, sobretudo, questionar tudo o que fomos ensinadas. Isso inclui família, emprego, casamento, amor, tesão, filhos, valores, etc, etc, etc. E sim, a questão aqui é feminina. O ponto de vista é delas. Os homens do filme são como os homens da nossa contemporaneidade; em sua esmagadora maioria uma cambada de bananas. A grande reflexão que o filme me causou é algo que já venho diagnosticando já a um bom tempo. A importância do masculino em nossas vidas foi totalmente superestimada. Aprendemos desde sempre que mulheres precisam dos homens e que eles são seres livres, autônomos e maravilhosos e que nosso espaço na vida deles é algo sem nenhuma isonomia. A relação é quase sempre desigual e cheia de possíveis abusos. Somos enfraquecidas em nossa potência através de sucessivos processos que na maioria das vezes nem nos damos conta. Por isso, chega a ser irônico que a personagem principal seja uma dramaturga castrada em sua criatividade e que ao mesmo seja quem provem a casa, enquanto seu marido tenta salvar o mundo. Foi esse sempre o lugar do feminino. A manutenção de todos esses valores passa pelo ideal da maternidade e não é a toda que o filme remeta a isso logo em seu título. Em nome de manter as relações familiares todas as gerações de mulheres são silenciadas em inúmeras questões. O mito da maternidade é algo vendido como o ideal de felicidade para todas as mulheres. A polícia de gênero cumpre seu papel desde a mais tenra idade. Reduzindo todo o potencial feminino a reprodução do papel de mãe. Observe o que todos os brinquedos comercializados como para meninas comunicam. Todos visam a criar essa falsa ilusão de que você só será completa quando engravidar, gerar e cuidar de sua própria prole.
O aprendizado de Rosa, a protagonista do filme, é extremamente doloroso e inclui colocar em xeque todas essas supostas estabilidades. Pois são elas, as maiores responsáveis por criar esse padrão do que é ser mulher. Impossível não pensar em Simone de Beauvoir e sua frase clássica (“Não se nasce mulher, torna-se”) e todos os seus milhares de significado. A jornada dessa mulher contemporânea é se dar conta de todos esses processos sociais normalizadores que inventam essas classificações e que acabam por gerar toda essa ansiedade e sofrimento por esse sujeito social estável.
Várias e várias referências pululam aqui e acolá o tempo todo fazendo com que essa casca de comportamentos coerentes e regulares seja rompida. A maior delas é a obra teatral “A Casa de Bonecas” escrita pelo dramaturgo norueguês Henrik Ibsen em 1879. Tanto lá quanto cá, as protagonistas são mulheres submissas que vivem para a casa estendendo até mesmo para seus maridos o papel de mãe. Mas as divergências são ainda mais assustadoras. Apesar de trabalhar e ser a responsável pelo sustento da casa, Rosa ainda vive de acordo com que a sociedade acha que deve ser. Seu papel de mãe acaba por confinar seus desejos dentro daquelas paredes domésticas e tudo que se afasta desse ideal acaba por gerar mentiras e culpas. Essa frustração de algo que poderia ter sido e que não foi é o que sobra dessas vidas comercializadas como perfeitas. Dois contrapontos preciosos são apresentados nos papéis da Mãe de Rosa e de sua meia-irmã mais nova. Clarice, a mãe, é uma mulher austera, fria, bastante egocêntrica, que vive sua vida da maneira como quer, diagnosticada com câncer não consegue deixar o prazer de fumar. Numa leitura esteoritipada de gêneros seria vista como masculinizada. Já a meia-irmã dela, possui algo de silencioso, daquelas que não precisam fazer alarde de suas verdades, até mesmo por não as ter ainda. O aspecto mais simbólico é que elas representam a velhice e a juventude. Já Rosa é a representante da vida adulta. Aquela que supostamente deve saber se comportar dentro dos padrões esperados. Tanto Nora de “A Casa de Bonecas”, quanto Rosa vão aos poucos se dando conta que não são pessoas se verdade. Se a metáfora proposta por Ibsen é a das bonecas, Bodanzky cutuca ainda mais fundo. Sim. Rosa é um fantoche daqueles confeccionados pelo seu próprio pai e usado para entretê-la em sua infância. A cutucada é mais profunda, porque se a boneca é apenas um objeto inanimado, o fantoche só ganha vida quando manipulado por outra pessoa. Se a trajetória de Nora é não mais brincar de casinha, a de Rosa é não mais aceitar ser manipulada pelos homens de sua vida. Isso inclui seu pai de criação aparentemente inofensivo, mas que é um aproveitador de marca maior, seu marido igualmente inofensivo, mas que a sobrecarrega com a rotina doméstica enquanto viaja pra cá e pra lá e quando está em casa fica na cobrança por sexo, seu pai biológico, um político importante que comanda o país, mas que não é capaz de ter qualquer atitude em sua vida privada e até mesmo um pai de um aluno da mesma escola de suas filhas que ela idealiza por vê-lo sempre fazendo compras, ou na reunião escolar, mas que pode esconder um comportamento machista por trás de todo o discurso libertário. Essa frustração com o masculino é extremamente importante para todo o processo que se seguirá e até mesmo para enxergar com olhos mais humanos para sua mãe prestes a morrer e sua filha mais rebelde. O ponto onde quero chegar com todo esse texto é exatamente esse. As mulheres são manipuladas para enxergar o risco, a ameaça, o medo em outras mulheres. Essa técnica visa impedir que elas compartilhem experiências e se apóiem. Essa impossibilidade de dividir o peso com outras mulheres acaba por criar desigualdade na relação entre homens e mulheres e até mesmo gerar esse sentimento de incompletude quando não se tem um representante do sexo masculino do lado. O mais extraordinário do filme é que toda essa questão é desencandeada após a revelação da mãe que Rosa não é filha do homem que ela acreditou a vida inteira ser seu pai. Aqui se faz preciso destacar que toda a ideia de propriedade privada que perdura até hoje é totalmente atrelada à descoberta do homem que ele participava do processo de concepção da vida. Até então as mulheres eram endeusadas e as crianças eram criadas por toda a comunidade. Ao observar os animais essa noção se desfaz e o medo de criar a prole de um outro homem gera todo esse cerceamento da liberdade feminina. Nascem ai o patriarcado, o machismo e toda essa noção e performance de gênero que carregamos até hoje. Sua manutenção é feita por todo um arsenal de artefatos e pirotecnias simbólicas que nos dizem a todo momento o que devemos fazer para ser um homem ou uma mulher. A filósofa queer Judith Butler escreveu que nós recebemos essas informações “pelas mídias, pelos filmes ou através de nosso pais, nós as perpetuamos através de nossos fantasmas e nossas escolhas de vidas” e que temos que negociar a todo instante com essas ideias e concluí:
”Alguns de nós as adoram e as encarnam apaixonadamente. Outros as rejeitam. Alguns detestam mas se conformam. Outros brincam da ambivalência… Eu me interesso pela distância entre essas normas e as diferentes formas de responder a ela."
Creio que esse interesse e resposta às normas seja o norte de toda ação libertária de Nora, Rosa e algumas muitas mulheres. A beleza do filme reside aí.
PS: Que trabalho lindo o de Maria Ribeiro, uma atriz que até então não tivera tido chance de mostrar seu talento. Sua Rosa é um transbordamento de existir. É uma flor de lótus que da lama floresce algo sublime.
Lá pelas tantas a personagem da atriz Jennifer Lawrence solta essa frase aos berros. Ela se refere aos “visitantes” que estão destruindo seu sonho de casamento perfeito. É uma frase extremamente simbólica para todo o périplo que o diretor Darren Aronofsvky mostrará em sua obra controversa. Controversa no sentido que ou as pessoas vão amar ou odiar o que o diretor está propondo. Não há meio termo. É uma provocação. Uma experiência. E cada um vai ver apenas o que quiser ou puder ver. SIM! É uma relação de espelhamento. E ao mesmo tempo exige de nós, espectadores, um estado de não identificação. Quase como se meditássemos. Ou participássemos de uma espécie de ritual. Algumas coisas não farão sentido. A maioria delas. Porque a linguagem acessada aqui não é a da realidade, mas a de um ponto de vista muito bem determinado pela práxis cinematográfica de toda a obra. Criação. Manutenção. Destruição. Ou poderia ser: Gênesis. Evangelho. Apocalipse. Sim. Aronofsky remonta toda história bíblica para nos mostrar como chegamos até aqui. E aqui deve se entender como toda a merda que estamos vivendo atualmente... ou seria desde sempre? Daí que a história é até mesmo simples. Ele, personagem de Javier Bardem, é um escritor entediado que mora numa casa no meio do nada. Ele é casado com Mãe. (Acostume-se os personagens não possuem nomes e são assim grafados no final do filme) O filme começa mostrando que a casa onde eles moram passou por incêndio e que Mãe restaurou cada parede da casa. Eles parecem viver bem, mas Ele não parece se importar muito com ela. Já Mãe vive para Ele. Um dia, do nada, aparece Homem e Ele o recebe de braços abertos e o convida para morar em sua casa. Mãe se ressente porque nem mesmo foi consultada. Homem é um daqueles caras que vivem a vida adoidado, bebe demais, fuma demais e possuí uma admiração quase infantil por Ele. Ele por sua vez se deixa fascinar completamente por essa admiração. No dia seguinte, aparece Mulher. Ela é extremamente ardilosa, dissimulada e invasiva. Mãe vira um fantasma dentro de sua própria casa. Tanto Homem quanto Mulher podem entrar em qualquer cômodo da casa, menos no escritório onde Ele escreve e exibe um misterioso amuleto (uma pedra preciosa, a única coisa que sobrou do incêndio). Lógico que Homem e Mulher não respeitam a exortação de Ele e invadem o local e quebram o amuleto. E É AQUI QUE TUDO DESANDA. No dia seguinte, aparecem os filhos, que estão brigando pelo testamento de Homem. A briga é tão intensa que um deles acaba sendo morto pelo próprio irmão. Não é preciso prolongar o resumo para entender que o diretor está recriando o seu Gênesis particular e que Ele representa a imagem e semelhança de Deus, Mãe representa a Terra, Homem e Mulher são Adão e Eva e seus filhos Caim e Abel. E o tal escritório e o amuleto representam a árvore e o fruto do conhecimento do bem e do mal. A força dessa situação mítica é dolorosa, porque demonstra a solidão, o tédio e a carência desse Deus que cria a humanidade para mera bajulação. Mãe não importa nada para Ele. É um mero acessório. Ele é fascinado pelos homens e mulheres que o bajulam constantemente. Esse é o primeiro ato. Aquele que representa a Criação ou Gênesis.
O segundo ato começa com a gravidez de Mãe. Após muitas brigas e ressentimentos, eles transam e ela engravida e tudo meio que volta a ser como era antes. Ele e Mãe vivem numa espécie de lua de mel. Ele até volta a escrever. Mas novamente é traído por seu ego enorme. Aqui tem inicio o Evangelho ou O Nascimento e Morte de Jesus, aquele que veio para salvar a Terra (Mãe) da iniqüidade. A megalomania do personagem Ele logo é tentada ao escrever e publicar o poema inspirado pela gravidez de Mãe. Ele começa a ser procurado por jornalistas e fãs que querem conversar sobre sua obra. Mais uma vez ele esquece de Mãe e se joga nos braços de seus adoradores. Mãe se ressente novamente. E é aqui que começa o Apocalipse. Que eu não vou comentar aqui porque é uma das coisas mais doidas já produzidas pelo cinema. Aronofsky nos esfrega na cara todo o estado atual das coisas É como se houvesse uma libertação de todas as coisas, signos, ideias, conceitos, essência, valor, referência, origem e finalidade. E isso tudo se resvala num delírio, pesadelo, caos. Onde cada um pode enfim libertar-se de sua máscara e revelar sua face mais hedionda. O resultado disso é uma confusão total. O CAOS REINA. E nem mesmo o nascimento de Jesus é capaz de aplacar essa balbúrdia. Muito pelo contrário. Porque o ego divino só enxerga ai a possibilidade de adoração barata. E nesse mundinho particular materializado nessa casa no meio do nada é que toda nossa humanidade mais primitiva vem à tona. SIM! Como afirmou o pensador Jean Baudrillard, nós somos criaturas ávidas por imagens, embora secretamente sejamos iconoclastas. “Não desses que destroem imagens, mas desses que fabricam uma profusão de imagens em que não há mais nada para ser visto.” E é essa a provocação do filme!!!!!! Porque chegamos a um tal nível em que já não é mais possível fazer nenhum julgamento. Mas NÃO. NÃO! Aronosfvy quer que não sejamos indiferentes e possamos nos posicionar diante de seu filme e indo além, nos posicionar perante a vida. Não é pouca coisa!!!
Sinceramente não consigo entender a quantidade de crítica negativa sobre “A Longa Caminhada de Billy Lynn”. O novo filme de Ang Lee é praticamente um estudo sociológico sobre a mentalidade americana. Não é meramente um filme de guerra. Não é sobre a jornada de um herói. Esqueça! É sobre os interesses obscuros e escusos por trás da guerra. É um filme de bastidores. Não é a toa que grande parte do filme se passa durante o show do intervalo de um jogo de futebol americano. Billy é um soldado que tem uma ação considerada heróica filmada por emissoras de televisão. Em pouco tempo, ele e seus amigos combatentes virão ídolos nacionais e são usados pelo governo americano com o objetivo de aumentar o apoio às tropas norte-americanas. Uma turnê é organizada e eles são saudados por toda a América. Nesse meio tempo, Billy reencontra sua família e sua irmã o pressiona para que ele não retorne mais para a guerra. Sentimentos ambivalentes tomam conta do jovem de 19 anos e ele se vê dividido. Baudrillard em “A Transparência do Mal” escreve que uma vez desviado de seu principio, o esporte pode ser explorado para qualquer fim, inclusive ser transformado em estratégia de guerra fria. E é isso que Ang Lee esmiúça e expõe de forma bastante contundente e irônica. O que está em jogo é poder e o dinheiro e aqueles pobres moços são meros joguetes nas mãos de quem comanda o show. E não existe maneira mais eficaz de dominação do que designar o outro como inimigo. Sim. O velho dividir para governar. O mais triste é que parece não existir uma saída para esse estado de lavagem cerebral.
“Quem nunca projetou todos os sonhos numa pessoa que nem conhece. Em outras palavras, quem nunca usou essa perigosa droga chamada amor platônico”.
“A Bruta Flor do Querer” é um filme contemporâneo. Fala sobre nós. Sobre a juventude que Baudrillard definiria como pós-orgia. Onde tudo aparentemente está liberado mas ainda encontramo-nos todos perdidos diante da tal pergunta: O que fazer com esse tédio monumental que vem seguido da orgia? No filme cujo diretores escreveram o roteiro, bolaram a iluminação e a excelente trilha sonora e ainda atuaram como protagonistas, vemos dois amigos diante da realidade do mundo atual. Eles até tinham sonhos, mas a urgência dos dias e a necessidade de sobrevivência cobram seu preço. Diego acabou de concluir a faculdade de cinema, já fez alguns curtas, mas se vê tendo que gravar casamentos para ganhar algum dinheiro. Sua vida pessoal também vai de mal a pior. Acalenta uma paixão platônica por uma menina que trabalha no sebo que ele freqüenta, mas não tem ideia de como trocar qualquer palavra com ela. Seu melhor amigo é outro que parece não ter grandes perspectivas. Ouve seus desabafos amorosos, aconselha às vezes, mas nada além disso. Os dois usam muita droga para aplacar alguma melancolia mal resolvida e vivem atrás de pegar mulher. Seus diálogos são rasos, quase sem nenhuma eloquência, soando como monólogos ou fluxo de (in)consciência. De forma bastante contundente, o que nos é apresentado é um registro do estado das coisas enquanto elas acontecem. É um filme duro, cru, obsessivo, fétido, pestilento. Diego é atormentado pelo fantasma da mulher independente que não lhe dá moral e personifica todas as suas frustrações amorosas e seus medos em Diana. Em seu delírio, chega a enxergá-la como sua oponente numa luta de boxe. Ela o massacra. Sua socialização machista não permite que ele a enxergue em sua totalidade. Ele precisa idealizá-la para sobreviver. Ela é mais um de seus vícios. Ele vive num estado de simulação em que já não é mais possível distinguir o que é real do que é não é. Assim como nós (espectadores) também não conseguimos decifrar direito o que é ficção e o que é documental no filme. Essa hibridez é fascinante e corrobora para o entendimento de que estamos no território do simulacro.
”Quando as coisas, os signos, as ações são libertadas de sua ideia, de seu conceito, de sua essência, de seu valor, de sua referência, de sua origem e de sua finalidade, entram então numa auto-reprodução ao infinito. As coisas continuam a funcionar ao passo que a ideia delas já desapareceu há muito. Continuam a funcionar numa indiferença total a seu próprio conteúdo. E o paradoxo é que elas funcionam melhor ainda”.
Recorro novamente a Baudrillard para tentar dar conta da urgência que a obra me causou. “Qualquer coisa que perca a própria ideia é como o homem que perdeu a sombra – cai num delírio em que se perde”. Mas acho que o que o filme retrata é algo ainda pior. São homens que se transformaram em suas próprias sombras. Fantasmas de um mundo perdido. Que até tentam enxergar algum significado nisso tudo, mas falham miseravelmente. Impossível não fazer uma leitura sobre os sexos e gêneros diante do que é apontado na obra. Os dois amigos e todos os outros homens retratados no filme possuem aquela inabilidade afetiva típica. Parecem não enxergar nada nem ninguém diante dos seus olhos. Vêem aquilo que querem ver e só. É assustador! Falta-lhes empatia. Um olhar mais atento pra si próprios e para os outros. Mas estão cegos demais, anestesiados demais para tal intento.
Já as mulheres parecem não aceitar mais esse tipo infantilizado de homem, a não ser para uma transa ou uma ficada na balada. Diana não quer nada com Diego. O amigo foi traído e abandonado pela namorada. E assim vai. Estranhos que eventualmente podem até trocar saliva e porra, mas que acaba ali. Não tem nada além de uma sexualidade sem nome ou rosto. O problema é que todos (homens e mulheres) fomos socializados para essa necessidade de ter alguém e esse vazio provoca ainda mais sofrimento. Ficamos então nesse estado em que as coisas parecem não possuir início nem fim, apenas meio. Algo que nunca começa nem termina direito, mas que também impede que qualquer outra coisa surja. Repito, é assustador!
Diferentemente de “Elle” que é um estudo de um personagem especifico vivido com imenso brilhantismo por Isabelle Huppert, “Animais Noturnos” é um filme que mostra a sociedade como ela é: misógina e vazia de sentido. Não é um filme sobre vingança. Esqueça! É a história de um cara que não aceitou levar o “não” de uma garota. Sim. Conhecemos tantas dessas histórias por aí... Mas vamos do começo! Susan é uma garota idealista que namora um jovem escritor sem eira nem beira. Sua mãe é a responsável por reproduzir todos os ensinamentos de uma sociedade machista. Fragilizando-a e fazendo com que ela titubeei em suas decisões. Essa é a socialização feminina. Você é frágil e depende de um homem forte ao seu lado que te sustente financeira e sentimentalmente. Susan nega, debate, fulmina a mãe com o olhar, mas o peso daquelas palavras passam a acompanhá-la como uma espécie de fantasmagoria. Ela já não enxerga no seu namorado mais as mesmas qualidades de outrora. Ela engravida e se dá conta de que aquele homem não conseguirá suprir suas necessidades de afeto e também de dinheiro. Ela conhece um carinha lindo e rico que sua mãe com certeza aprovaria. Termina o relacionamento com o antigo namorado jogando na cara dele todos os ensinamentos de sua mãe (leia-se sociedade machista patriarcal). Ela aborta o filho que esperava dele apoiada pelo novo namorado. Mas enquanto estão no estacionamento da clínica são flagrados pelo pai da criança. Dezenove anos se passam... Ela está num casamento infeliz com o bonitão e rico namorado de adolescência. Transformou-se numa marchand renomada, mas que não vê muito sentido nas coisas. Entope-se de remédios pra dormir e é traída na cara dura. Um belo dia... Ela recebe uma encomenda em casa. É o manuscrito de um livro escrito por seu antigo namorado. O livro se chama “Animais Noturnos” e é dedicado a ela. Mais tarde saberemos que o nome que dá título ao livro era o apelido que ele a chamava por ela ter dificuldades para dormir. Em linhas gerais, o livro conta a história de uma família feliz (mamãe, papai e filhinha adolescente) que estão indo viajar para o Texas e que são importunados por uma gangue na estrada. Eles batem no pai. Sequestram, estupram e matam a mãe e a filha. Tony sobrevive e busca justiça e encontra no delegado local, que está prester a morrer de câncer, muito mais que isso: vingança. O tempo passa. O delegado consegue prender os responsáveis pelos crimes, mas são soltos porque não se tem provas suficientes para incriminá-los. O delegado propõe um plano e o tal homem injustiçado aceita. Eles perseguem os criminosos e levam-nos para um lugar distante. O delegado coloca uma arma na mão do pai de família que não consegue atirar neles. Os bandidos fogem. Na perseguição, o delegado mata um dos bandidos e depois se separam. Tony recebe uma arma e passa a procurar o algoz de sua família. Acha. Diante dele, vacila mais uma vez e é golpeado, mas antes consegue atirar duas vezes no bandido. Horas depois, acorda bastante ferido e morre. Sua morte não fica evidente se aconteceu por descuido ou suicídio. Fim do Livro. Susan fica absolutamente fascinada e aterrorizada pelo que lê. Tanto que escreve um email com loas para o ex, inclusive chamando-o para um encontro. Ele aceita. Ela se arruma toda. Ela espera durante horas por ele que não aparece. Fim do filme!
Desculpe o resumo, mas era necessário para mostrar o quanto as socializações que recebemos desde a infância por mais que não nos damos conta acabam por dominar nossas decisões. De Edward é exigido que ele seja forte, que sustente e proteja sua família. De Susan, que seja frágil e submissa ao marido. Eles simplesmente não se encaixam nesses esteriótipos de gênero. E sofrem com as pressões necessárias para que se tornem aquilo que se espera deles. Dezenove anos depois, a formatação está pronta. Ele culpa-a por todo o mal. Ela se ressente e aceita essa culpa. Ele se torna forte e ela se fragiliza e busca nele aquilo que acredita ter perdido. Ele nega. Ela fica sozinha. Sim, porque agora ele aprendeu a lição e matou aquele antigo homem com o livro. E todos sabemos que a socialização masculina se baseia na dominação e nos privilégios em relação às mulheres. Preste atenção nos homens do filme! Olhe o atual marido de Susan e o da amiga dela que aparece numa festa. A todo o momento, Susan parece receber um ensinamento de como se sujeitar ao mundo como ele é e nunca questionar. Essa é a socialização feminina. Agora olhe as mulheres do filme! São escravas da estética e aprendem que precisar se adequar aos padrões para serem aceitas e ou amadas. Simone de Beauvoir definiu muito bem o processo civilizatório de uma mulher:
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino”.
O filme é assombroso em mostrar o peso dessas socializações na vida prática de homens e mulheres, inclusive tem uma cena assustadora de uma colega que trabalha com Susan que acabou de ter uma filha e que para se sentir mais próxima da criança e poder vigiar a babá, instala um aparelho onde ela pode acompanhar tudo o que acontece a distância. Susan dá uma olhada no celular da moça e vê algo ali que nos faz dar um pulo de medo. É um aviso! Um doloroso aviso às mulheres!
“Mate-me por favor” é um filme estranho. Cru. Cruel. Incômodo. Extremamente simbólico e ao mesmo tempo realista. É uma confusão de gêneros, não se prendendo a nenhum deles. É uma obra provocativa, delirante, rodrigueana. Que retrata o universo adolescente e sua sexualidade sem rosto, despidos dos maneirismos ficcionais tão característicos. É uma obra assumidamente pós-dramática onde cada aspecto do filme é importante. Luz e som aqui ganham dimensão de personagens quase principais. É um cinema climático sim, mas que assume isso de uma maneira a la David Lynch. O filme toca em temas absurdamente contemporâneos e é assustador constatar que estamos todos imersos nesse contexto, nesse rescaldo cultural, midiático e político. Em que nos transformamos todos em zumbis, condenados à uma indiferença brutal. Ao contrário de alguns críticos que acusam o filme de ser excessivamente formalista, acredito que por trás de todas as cenas o que está presente é uma crítica bastante contundente ao desaparecimento de algo que não sabemos direito o que é. Parece que todos nós perdemos algo que já não lembramos mais o que é. Não somente no âmbito individual, mas no social também. Há um desespero por achar algo que dê algum significado para esse vazio todo que nada nem ninguém parece ser capaz de aplacar. E é aqui que o filme faz sua crítica mais contundente. Estamos nos transformando todos em psicopatas. Uma legião de psicopatas. Incapazes de sentir qualquer coisa, mas buscando um êxtase delirante prometido que não vem, não virá, nunca. Como muito bem definiu Baudrillard, já não estamos mais na crise, mas em plena catástrofe. Não estamos mais na falta, mas na saturação.
”Tantas coisas são produzidas e acumuladas, que nunca mais terão tempo de servir. (...) Tantas mensagens e sinais são produzidos e difundidos, que nunca mais terão tempo de ser lidos. Sorte nossa! Porque a ínfima parte que absorvemos já nos põe em estado de eletrocução permamente.”
Isso tudo Baudrillard escreve em 1990. Pasmem!!!!! Fico imaginando o que ele escreveria vendo-nos absorvidos pelos celulares, propagando notícias que nem sequer lemos no facebook, ou perdidos no meio de tantas opções nos canais de televisão e serviços de streaming, pulando de relacionamento em relacionamento na esperança de achar alguém que valha a pena depositarmos todas as nossas fichas.
”Todas essas memórias, todos esses arquivos, toda essa documentação que não consegue dar à luz uma ideia; toda essa documentação, programas, decisões que não conseguem dar à luz um fato...”
Esse é o estado que vivem aquelas personagens. Há desencanto, desalento, uma espécie peculiar de desespero nos gestos de cada uma delas. Estão presas em suas liberdades que não sabem usar. O funk, o sexo, a igreja, evangélica e até mesmo os poemas de Augusto dos Anjos ajudam a compor esse ambiente fatalista.
Tudo é exacerbado. Propositalmente saturado. Compondo assim um retrato (sur)real e cru(el) de uma nova espécie de violência “oriunda do paradoxo de uma sociedade permissiva e apaziguada”. Quem é a vítima? Quem é o algoz? O mais perturbador disso tudo é que já nem sabemos mais como enunciar isso. “Somos todos cúmplices na espera de um roteiro fatal, mesmo se ficamos emocionados ou transtornados quando ele se realiza”. Belíssima e provocativa estreia de Anita Rocha Silveira.
Marvin
3.7 71 Assista Agora"Marvin" da diretora Anne Fontaine, é um acerto de contas com um passado de bullying e homofobia e de como a escrita e o teatro podem salvar um ser-humano. É um filme bonito que mostra como a família e a escola podem ser instituições perversas, que revelam o pior de nós. E como o olhar de uma educadora para um aluno tímido e talentoso pode fazer toda a diferença. O mais belo da trajetória de Marvim é como as várias pessoas cruzam seu caminho vão conduzindo-no para a construção de um novo eu, encarando sua infância difícil, o preconceito e a violência de seu pai e irmão, o descaso de sua mãe e o bullyng de meninos mais velhos na escola. Eis que o teatro surge como potencial catalizador de tudo isso. Isabelle Huppert surge no papel dela mesma, como uma espécie de tutora e como atriz do espetáculo que Marvin escreveu. As cenas teatrais são lindíssimas e extremamente simbólicas. Mas junto com o sucesso da peça, vem também um necessário reencontro com seus familiares. Recomendo! O filme faz parte da programação do Festival Varilux de Cinema Francês.
O Conto
4.1 338 Assista AgoraQuantas mentiras sobre o nosso passado contamos para nós mesmos? Quanta romantização somos capazes de inventar para não sofrer tanto? “The Tale” é um acerto de contas com esse passado romantizado. É um filme duro e cru(el). Tudo começa a desabar quando a mãe de Jennifer acha uma caixa no porão com textos e cartas que ela escrevera quando criança. A mãe se surpreende com o conteúdo e questiona a filha. Ela aparentemente não liga muito, mas quando relê um conto que escreveu sobre o relacionamento feliz que vivenciou com seus treinadores (um homem e uma mulher) quando ela tinha apenas 13 anos de idade, tudo muda. Aos poucos, Jennifer adulta vai escavando seu passado para entender o que aconteceu com a Jennifer criança. O processo é extremamente doloroso e ela se vê sozinha, e as marcas desse relacionamento abusivo ainda fazem parte de sua personalidade, mesmo que ela tenha calado durante tanto tempo. O mais interessante de toda a obra é a maneira como a diretora conta essa história. Ela é uma documentarista e esse é seu primeiro filme de ficção, então muito de sua experiência nos documentários servem muito bem aqui. Já que a história é totalmente baseada nas experiências reais da diretora. A personagem principal tem o mesmo nome e sobrenome da diretora. E isso só aumenta ainda mais toda a tensão. Não é um filme palatável. É uma obra corajosa num momento em que precisamos cada vez mais de pessoas corajosas no mundo. E ah, Laura Dern está excepcional. Assim como o todo elenco. Recomendo só para os fortes.
A Transfiguração
3.2 83 Assista AgoraA sacada do diretor Michael O'Sea é genial. Ele se utiliza das histórias de terror sobre vampiros para fazer um tratado sobre pessoas psicopatas. Algo angustiante como se a própria sociedade forjasse variados estágios e formas de materializar crueldade e frieza. Um mundo extremamente abusivo e sem afeto, habitado por pessoas depressivas. Eu adoro filmes lentos, esse ultrapassa um pouquinho o limite da lentidão, mas não deixa de ser um bom filme.
Eu Sou Culpado
3.3 7A adolescência é aquela fase intermediária que ninguém parece se entender direito. Some-se a isso todas as pressões inerentes ao "ter que se encontrar", "ter que ser alguém na vida", "ter que arrumar um(a) namorado(a)", "ter que arrumar um emprego". Sim. Nossa sociedade é totalmente baseado num suposto desempenho todo ele já desenhado desde que o mundo é mundo. Não há muita coisa além disso. Ou há muita coisa além disso. Ou ainda, só há alguma coisa além disso. Mas o quê? O filme Falscher Bekenner retrata a vida de um adolescente perdido no meio de tudo isso. Ele acabou de sair da escola e seus pais estão pressionando-o para que arranje logo um emprego. Ele até participa de algumas entrevistas, mas fracassa miseravelmente, pq não possui nenhuma habilidade para a interação social. O diretor Christoph Hochhauser provoca ao mostrar o esdrúxulo de todo o processo seletivo e mostra como uma personalidade solitária e introvertida do garoto vai pouco a pouco mergulhando numa espécie de limbo emocional, onde ele se projeta como culpado de crimes que não cometeu e fazendo sexo fetichista com homens mais velhos. Tudo é bastante desencantado, sem trilha sonora, firulas visuais ou finais felizes.
Thelma
3.5 342 Assista Agora"Thelma", do diretor Joachim Trier é um filme híbrido, que mistura gêneros de maneira bem orquestrada. A história é bem simples, mas camada após camada, o diretor vai tecendo uma visão de mundo bastante pessoal e complexa. Garota criada por pais religiosos se muda de cidade para estudar na Faculdade. Lá ela se apaixona por uma garota e eventos estranhos começam a acontecer. Resumidamente é isso, mas como disse, é um filme bastante ousado no tratamento da sexualidade, culpa, adolescência, conservadorismo religioso e sobra até para a indústria farmacológica. A atriz Eili Harboe tem um desempenho assombroso.
Jonas e o Circo sem Lona
4.2 33Muito mais que um mero documentário sobre a paixão de um menino pelo universo circense, “Jonas e o Circo sem Lona” questiona os processos de condicionamento de nossa sociedade e o quanto isso pode ser nocivo para o potencial criativo de nossas crianças e para o mundo que queremos construir. Jonas é um adolescente que mora no interior da Bahia. Ele é apaixonado pelo mundo do circo. Ele é filho e neto de artistas circenses. Mas sua mãe abandonou o circo e hoje sobrevive de maneira precária. Ela quer que o menino estude “para ser alguém na vida”, mas o menino nitidamente possui outros planos. Sua paixão pelo circo é tanta, que em suas férias escolares, ele monta um para si mesmo no quintal de sua casa. Para isso, chama uns amigos e os ensina alguns truques e palhaçadas. Aos poucos, o talento nato do menino vai aparecendo. É ele quem administra, ensina, diz o que cada irá fazer, escolhe trilha sonora, figurino e tudo o mais. Ele também se apresenta como palhaço, malabarista, trapezista e ainda imita Michael Jackson. Tudo vai bem.... Até que as férias terminam e seus colegas se dispersam e ele se vê sozinho novamente. Jonas é, em essência, um incompreendido. Sua mãe, seus amigos, a diretora do seu colégio, todos parecem duvidar de seu talento. Até ele mesmo às vezes se questiona dos porquês de se estar produzindo um documentário sobre sua vida e sonhos. E aos poucos, aquele menino tão vivaz, tão criativo, vai minguando, sumindo, se entristecendo. Esse é o processo de condicionamento que todos passam numa vivência em sociedade. O que Jonas precisava era de auxílio no desenvolvimento de suas potencialidades. Mas não. A sociedade não tolera isso. Todos querem segurança. Todos querem a criança adestrada. Todos querem a morte do potencial criativo. Trocamos tudo isso por dinheiro, por segurança, status. É triste! Triste demais! Como evitar que isso aconteça? Deixa a resposta com o Osho:
“Eu gostaria que vocês tivessem respeito pelas crianças. As crianças merecem todo o respeito que você for capaz de dar porque elas são tão frescas, tão inocentes, tão próximas da divindade. Está na hora de respeitá-las, e não de forçá-las a respeitar todos os tipos de corruptos – astutos, trapaceiros – simplesmente porque são velhos.
Eu gostaria de inverter a coisa toda: respeito para com as crianças porque elas estão mais próximas da fonte, você está distante. Elas ainda são originais, você já é uma cópia carbono.”
Lady Bird: A Hora de Voar
3.8 2,1K Assista AgoraAh, Lady Bird... Ah, Christine... Ah, Greta... Ah, Saoirse... Que filme lindo! Quantas camadas podem caber na simplicidade? Sim. É um filme simplicíssimo, mas que nos comunica tantas coisas, tantas possibilidades. Que nos toca, emociona. Nos faz refletir. É essa capacidade artística que falta (me desculpa comparar, mas será necessário) em "Me Chame Pelo Seu Nome". Lá tudo empolado, hermético, pretensioso, quase blasé... E aqui não. Tudo, apesar de simples, é luminoso, vibrante, habitado. A diretora Greta Gerwing fez um filme terno, poderoso, visceral sobre o rito de passagem de uma garota comum de uma cidade pequena para a vida adulta. Os sonhos, as idealizações, as insatisfações com a cidade, com a escola, com a mãe, com o irmão, as fantasias amorosas e as subsequentes desilusões com os meninos, estão todos representados naquela garota ao mesmo tempo tão frágil e tão forte. É um mergulho encantador na jornada de autoconhecimento dessa garota. E quantas lições ela (e tb nós) aprendemos. É só uma questão de prestar atenção. Pq sim, isso é uma forma de amor tb.
Desencanto
4.4 171 Assista Agora"Isto não pode durar. Esta infelicidade não pode durar. Devo recordar-me disso e controlar-me. Não há nada que dure, nem a felicidade, nem o desespero. Nem a vida dura muito tempo. Tempos virão, no futuro, em que isto não me incomodará. Tempos em que poderei pensar nisso com calma e boa disposição. Não, não quero que este dia chegue nunca. Quero me recordar de cada minuto... até o fim dos meus dias."
Pq eu não assisti esse filme antes? É uma das coisas mais lindas e triste que já vi na vida! "Desencanto" é um filme de 1945, dirigido por David Lean e que tem uma proposta bem ousada para a época em que foi filmado e é referencial até hoje para os filmes de amor. A história é bem simples, mas a maneira como o roteiro e direção vão tecendo as coisas é que é genial. O filme começa pelo final e numa primorosa narração em off vamos acompanhando como tudo se sucedeu. Laura é uma dona de casa que toda quinta-feira vai fazer compras, passear e ir ao cinema numa cidade próxima a sua. Um belo dia ao esperar o trem um cisco entra no seu olho e o médico Alec a ajuda a tirar. Uma série de coincidências faz com que eles se encontrem algumas vezes e o prazer de estarem juntos vai crescendo de forma natural. O problema é que ambos são casados, com filhos e uma vida estabilizada. O sentimento de culpa será maior que o amor que eles sentem? Celia Johnson é a protagonista absoluta e tem um desempenho excepcional. Acompanhamos seus conflitos, medos e sonhos pelo ponto de vista psicológico da personagem. Ela pouco verbaliza isso, mas seus fluxos de consciência nos permitem saber tudo o que ela sente. É uma coisa tão angustiante e tão bonita que nos assombra. Já se tornou um dos meus filmes prediletos!
Lucky
4.1 193 Assista AgoraUma meditação profunda sobre a beleza que há na impermanência da vida. E ainda tem David Lynch no elenco. Precisa escrever mais o quê?
Certas Mulheres
3.1 76 Assista AgoraTrês histórias autônomas com um olhar melancólico sobre ser mulher numa sociedade machista. A diretora Kelly Reichardt concebe um filme minimalista, delicado e quase anticlimático, em que as entrelinhas e o que está além da história são os elementos mais importantes. Com um elenco estelar, o destaque fica com a menos conhecida das 4 atrizes principais. Lily Gladstone nos arrebata com uma personagem misteriosa, que parece descobrir que há possibilidades longe de sua vida tediosa. É lindo e triste acompanhar sua jornada de autoconhecimento.
Três Anúncios Para um Crime
4.2 2,0K Assista Agora“Três anúncios para um crime” é um filme grosseiro, rocambolesco, com personagens caricaturais. Fiquei com vergonha por aquele roteiro absolutamente feito nas coxas. Sabe que parece que o diretor teve uma ideia e quis encher o filme de cenas chocantes e misturou umas bizarrices e achou que a receita estava deliciosa. Filme sem rumo, sem identidade, apelativo, que quer atirar para todos os lados e não chega a lugar nenhum. Sinceramente, não sei como esse filme está sendo tão premiado. Nem a interpretação da protagonista é tão maravilhosa assim. É o típico filme que vai ganhar por causa do tema. Tipo “Spotlight” que é uma bomba, mas ganhou pelo tema e coisa e tal. Sai do cinema decepcionado. Juro!
Happy End
3.5 93 Assista AgoraZygmunt Bauman em seu livro “44 cartas do mundo líquido moderno” dedica alguns capítulos para falar sobre o advento da internet, dos aplicativos e redes sociais, num deles cunha a expressão “sozinhos no meio da multidão” e foi esse texto que fiquei pensando o tempo todo ao assistir “Happy End” do diretor Michael Haneke. SIM! Haneke disseca daquela maneira fria e desfamiliarizada dele essa sensação ao mostrar pessoas que convivem dentro de uma mesma casa, mas que não se conhecem direito. Embora as relações sejam próximas (pai, filhos e netos) eles não se conhecem (ou não se deixam conhecer?). Tudo está meio que ruindo e eles fingem não ver. Há uma permanente sensação de vazio que é aplacada pela tecnologia. Relações mediadas por telas, sejam de computadores e ou de celulares. É ali, que esses personagens revelam seus desejos mais recônditos. Mas Haneke não joga toda a culpa nos aparelhos eletrônicos. O diretor sabe que eles respondem a uma necessidade que não criaram. O medo da solidão já estava lá desde sempre. Só foi cooptada para essa dependência quase que doentia. Diante disso, soa irônico que o personagem do avô, apesar de já estar quase senil, seja o mais consciente de sua solidão. A iminência da morte faz com que ele enxergue tudo de maneira diferente. Assim como a personagem da criança, cujo único desejo é não ser abandonada. Esses dois personagens funcionam como espelho de uma humanidade falhada, errática e cruel. Tudo parece ter dado errado, apesar do esforço tremendo para tudo parecer bem. No meio disso tudo, Haneke ainda cutuca com a questão dos imigrantes, que funcionam como uma espécie de válvula de escape para o incômodo que esses personagens se negam a olhar. Haneke nunca é óbvio em suas observações e isso é o mais rico em seu cinema. Ele nos dá tempo, nos dá espaço para que possamos fazer nossas próprias reflexões. E isso é tão raro no cinema atual ou indo além, no mundo atual. Talvez seja por isso que assisti-lo é sempre como levar um soco em plena boca do estômago. Haneke, juntamente com Lars Von Trier, Bèla Tarr e Yorgos Lanthimos, nos mostra esse mundo em franca desagregação, em que todos os ideais de felicidade e segurança perderam sua função e nos encontramos diante de uma crise existencial absurda. A pergunta que os filmes desses diretores levantam parece ser “Como escapar dessa crise?”. E a resposta talvez seja “Não há escapatórias”. Por isso, é que a personagem da garota seja tão cruel dentro do prognóstico geral do mundo. Ela é o sintoma de um mundo que perdeu todas as suas ilusões e sonhos. Ela e o Velho. Os mais conscientes de que esse mundo já foi para o brejo faz tempo. A cena final é uma das mais impactantes que já vi na minha vida. Meus pelos do corpo se arrepiam só de lembrar.
Projeto Flórida
4.1 1,0KEsses dias vi "Projeto Flórida". Outro filme que está com um "hype" imenso. Demorei a escrever, pq estou com medo de falar minha opinião e tirarem minha carteirinha de cinéfilo. HAHAHAHA. Mas, gente, eu não gostei. Achei chato! De verdade. Me entediou. Achei aquelas crianças um pé no saco. Então, é isso. Não sei o que tá acontecendo comigo. HAHAHAHAHA
Roda Gigante
3.3 309TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME NÃO LEIA!
Melodrama é um gênero teatral caracterizado por carregar nas tintas dos vícios e virtudes de seus personagens. Digo isso, porque só é possível entender “Roda Gigante” do diretor Woody Allen dentro desse contexto. É um melodrama assumido. Daqueles bem rasgados. Também é estudo de personagens e de uma época. Sim. Estamos nos anos 50 e somos apresentados aos seguintes personagens:
Uma mulher de quase 40 anos que vive com um marido bem mais velho que ela nos fundos de um parque de diversão. Ela tem um filho entrando na adolescência com tendências piromaníacas. A história dessa mulher hoje relegada a trabalhar como garçonete naquele local é das mais interessantes. Ela foi atriz, teve um namoro e um filho com um baterista que a deixou porque foi traído por ela. Sem eira nem beira, foi salva por sua beleza. Essa mulher é Ginny. E seu anjo da guarda é Humpty, um operador de carrossel, que lhe dá teto e a ajuda criar seu filho. Mais ela quer mais. Acha pouco essa vidinha média. E é ai que entra Mickey. Nos seus acessos diários de tédio, Ginny sai para dar uma volta na praia e lá é vista por esse homem que trabalha como salva-vidas do local, mas que sonha em ser dramaturgo. Ele a aborda e iniciam um romance. Tudo vai bem até aparece a filha de Humpty. Ela que saiu de casa aos 20 anos de idade para se casar com m gangster italiano, depois de algum tempo, se dá conta da furada da situação e decidi botar um fim na relação e agora está sendo procurada por ele. O pai reluta em aceitá-la de volta, mas acaba deixando ela ficar. Pronto! Lógico que a chegada de Carolina desperta interesse em Mickey e o caos está armado.
Fiz esse resumo para que possamos entender a razão do conflito e onde ele se inicia. Para mim, tudo tem origem na maneira como educamos meninos e meninas. Nessa diferenciação cultural. Está tudo aí. E isso cobra o seu preço. E normalmente, altíssimo. O que começa com um caso de verão, aos poucos vai ganhando contornos cada mais vez mais dramáticos. Ginny quer segurança, quer fugir dali, quer outra vida. Mickey também parece quer isso. Mas hiperdimensiona um pouco as coisas para impressionar aquela mulher. Mulheres são educadas para serem as mantenedoras da vida, enquanto os homens são Ícaros. Sonhando com asas em busca do sol. Mas a realidade é que como no mito, estão presos, como punição, naquele labirinto. Reféns de seus desejos. Mickey conhece Carolina e se apaixona por ela. E não sabe muito bem o que fazer, então ele mente. Mente tanto para Ginny, quanto para a outra. Essa é também uma socialização masculina. E é aqui que um comportamento bastante ligado ao universo feminino aparece. Ao notar o interesse de Mickey em Carolina, Ginny se desespera. E pouco a pouco, vai se tornando o estereótipo da mulher histérica. Além disso, ela vê seu marido mudando de comportamento com ela e mimando em demasia a filha. E é aqui que que a tal propagada rivalidade entre mulheres aparece com força total Sim. Porque mesmo sem Carolina saber do caso de seu affair com a sua madrasta, elas estão disputando Mickey. E é claro, que contornos machistas vão aparecendo cada vez mais. Ginny sabe que não terá armas para competir com a juventude e beleza de sua enteada, e ela, então, começa a tramar contra aquela relação. Para isso, usa as armas que tem; se faz de amiga dela, dá conselhos, fala mal de Mickey, etc, etc... Mas nada disso parece dar certo. A angústia e o desespero de não conseguir sair daquele parque de diversão a consomem. A personagem enlouquece e se desliga totalmente da realidade e passa a habitar em seu idílio amoroso. Não é mais uma mulher, mas uma fantasmagoria. Todos serão punidos de alguma forma. Não há saída possível. Todos serão mandados de volta para seus próprios labirintos. E essa punição se dá porque ousaram se deslumbrar com suas asas e com a beleza do sol.
Me Chame Pelo Seu Nome
4.1 2,6K Assista AgoraJuro que não entendo o "hype" em cima desse filme. Achei os personagens chatos, o roteiro enfadonho e as interpretações bem medianas (o menino que faz o protagonista é bom, mas o personagem é muito chato, gente). São 2h12 de filme! E eu ficava assim: "Calma, daqui a pouco vai melhorar" e nada, nada, nada. Pra falar a verdade, só teve uma cena que me tocou e foi bem perto do final. Na realidade mesmo, achei o filme bastante problemático. O personagem Oliver é um babaca, irresponsável emocionalmente e o ator que dá a vida ao personagem é bem bonito, mas só tb. A maneira como as mulheres são representadas na obra tb achei problemática. Ou são enganadas, ou são submissas, ou são histéricas. E nada além disso. Há uma romantização exagerada de uma relação que flerta com o abusivo tb. Enfim, poderia ficar aqui falando horas. Queria muito ter gostado. Mas não deu!
The Square - A Arte da Discórdia
3.6 318 Assista AgoraÉ muito interessante perceber o quanto o enredo do filme “The Square” possui um paralelo com a onda conservadora que se apresentou no Brasil no ano de 2017. Estão lá a polêmica dos museus envolvendo crianças e os limites da arte contemporânea. É engraçado e triste ao mesmo tempo. Mas essa é a forma que o diretor sueco Ruben Östlund encontrou para contar sua história ou explicitar sua visão de mundo. O filme conta a história de Christian, um diretor de um conceituado museu que se vê às voltas com a organização de uma nova exposição intitulada “The Square”. O projeto é ao mesmo tempo extremamente simples e ambicioso. Simples porque a obra que dá título à exposição é composta apenas por quadrado luminoso no chão. Já a ambição se dá porque há grandes teorias e expectativas sobre a tal obra. A crítica aqui se dá na lacuna existente entre a ideia e sua concretização. O quanto de exagero e hipocrisia pode existir no discurso artístico e todo o mercado que se monta em volta do artista e da obra. O pensador francês Jean Baudrillard escreveu que "A Arte se integrou ao círculo da banalidade” e é esse o ponto nevrálgico de toda a provocação e reflexão suscitados pelo filme.
Mas de quem é a culpa? Se é que há um culpado? Ruben Östlund cutuca esse vespeiro de forma bastante crítica: sim, existe hoje um amontoado de “obras” consideradas de arte que só ganham destaque porque são legitimadas pelo mercado (leia-se marchands, galeristas, acionistas) e aduladas pelos críticos dos grandes jornais e revistas. Uma arte burguesa, submissa, tatibitate e que não encontra nenhuma reverberação crítica, política ou estética. Pura masturbação egoíca.
Existe uma saída? Sim! E isso fica visível na excelente cena da performance de um ator que imita um macaco num jantar de gente rica. O lugar da arte não é agradável, bonitinha e perfurmada. NÃO! É selvagem. Libertária. Livre. Errática. Cruel. Artaud escreveu que "se falta enxofre à nossa vida, quer dizer, se lhe falta uma magia constante, é porque nos apraz contemplar os nossos atos e nos perdermos em considerações sobre as formas sonhadas de nossos atos, ao invés de sermos impulsionados por eles". É exatamente isso que o personagem principal do filme irá aprender na marra lá pelas tantas. E o mais belo de tudo isso é que essa lição é ensinada por uma criança. Nossas palavras, ações e gestos possuem reverberação no mundo real. E é preciso saber lidar com isso. Não cabendo mais aqui se esconder atrás de um suposto mundinho artístico. Essa atitude só pode gerar uma arte ingênua, ou pior, pessoas letárgicas e covardes.
Não Devore Meu Coração
2.5 27Mais um filme da excelente safra de cinema brasileiro de 2017. "Não devore meu coração" é um filme híbrido, com ecos do diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn (com um Cauã Reymond a evocar Ryan Gosling nos excelentes "Drive" e "Apenas Deus Perdoa"), numa história que bebe na fonte shakespeariana do amor impossível entre famílias rivais de "Romeu e Julieta" e com pitadas do realismo fantástico do Apichatpong Weerasethakul . O cineasta Felipe Bragança mesmo não contrapondo violência versus beleza, concebe um filme bastante violento e absolutamente estético, de uma beleza avassaladora. Raras vezes vi cenas tão belas num filme brasileiro. Sai do cinema embasbacado com o apuro técnico dessa obra. O elenco tb é muito bom. Cauã surpreende num papel díficil, mas o filme é todo de Adeli Benitez, garota que vive uma índia guarani. Ao final, "Não devore meu coração" é quase um apelo para que os fantasmas que carregamos ao longo de nossas vidas não acabem por devorar nossa humanidade.
Demônio de Neon
3.2 1,2K Assista Agora“Você é comida ou sexo?"
Insano. Cruel. Psicológico. Submerso em signos e simbologias. "Demônio de Neon" é um filme para ser contemplado sem desejo e sem memória. Um conto de fadas perverso e contemporâneo. Um delírio visual illuminati.
Como Nossos Pais
3.8 444"NÃO QUERO MAIS FINGIR QUE SOU UMA MULHER QUE DÁ CONTA DE TUDO. EU NÃO DOU CONTA DE TUDO.
À primeira vista “Como nossos pais” pode parecer um filme simples, até mesmo novelesco. Mas à medida que o enredo vai se desenrolando, vemos que as intenções de Laís Bodanzki são muito mais sutis e importantes do que aparentam. De certa forma, é o retrato preciso de uma geração de mulheres que estão se dando conta que existe toda uma estrutura de sociedade que é voltada contra elas. Que fabrica mentiras contadas repetidas vezes que são compradas como verdades absolutas e que só traz sofrimento. No entanto, essa ficha demora a cair. A lucidez cobra seu preço e é preciso rever todos os conceitos e, sobretudo, questionar tudo o que fomos ensinadas. Isso inclui família, emprego, casamento, amor, tesão, filhos, valores, etc, etc, etc. E sim, a questão aqui é feminina. O ponto de vista é delas. Os homens do filme são como os homens da nossa contemporaneidade; em sua esmagadora maioria uma cambada de bananas. A grande reflexão que o filme me causou é algo que já venho diagnosticando já a um bom tempo. A importância do masculino em nossas vidas foi totalmente superestimada. Aprendemos desde sempre que mulheres precisam dos homens e que eles são seres livres, autônomos e maravilhosos e que nosso espaço na vida deles é algo sem nenhuma isonomia. A relação é quase sempre desigual e cheia de possíveis abusos. Somos enfraquecidas em nossa potência através de sucessivos processos que na maioria das vezes nem nos damos conta. Por isso, chega a ser irônico que a personagem principal seja uma dramaturga castrada em sua criatividade e que ao mesmo seja quem provem a casa, enquanto seu marido tenta salvar o mundo. Foi esse sempre o lugar do feminino. A manutenção de todos esses valores passa pelo ideal da maternidade e não é a toda que o filme remeta a isso logo em seu título. Em nome de manter as relações familiares todas as gerações de mulheres são silenciadas em inúmeras questões. O mito da maternidade é algo vendido como o ideal de felicidade para todas as mulheres. A polícia de gênero cumpre seu papel desde a mais tenra idade. Reduzindo todo o potencial feminino a reprodução do papel de mãe. Observe o que todos os brinquedos comercializados como para meninas comunicam. Todos visam a criar essa falsa ilusão de que você só será completa quando engravidar, gerar e cuidar de sua própria prole.
O aprendizado de Rosa, a protagonista do filme, é extremamente doloroso e inclui colocar em xeque todas essas supostas estabilidades. Pois são elas, as maiores responsáveis por criar esse padrão do que é ser mulher. Impossível não pensar em Simone de Beauvoir e sua frase clássica (“Não se nasce mulher, torna-se”) e todos os seus milhares de significado. A jornada dessa mulher contemporânea é se dar conta de todos esses processos sociais normalizadores que inventam essas classificações e que acabam por gerar toda essa ansiedade e sofrimento por esse sujeito social estável.
Várias e várias referências pululam aqui e acolá o tempo todo fazendo com que essa casca de comportamentos coerentes e regulares seja rompida. A maior delas é a obra teatral “A Casa de Bonecas” escrita pelo dramaturgo norueguês Henrik Ibsen em 1879. Tanto lá quanto cá, as protagonistas são mulheres submissas que vivem para a casa estendendo até mesmo para seus maridos o papel de mãe. Mas as divergências são ainda mais assustadoras. Apesar de trabalhar e ser a responsável pelo sustento da casa, Rosa ainda vive de acordo com que a sociedade acha que deve ser. Seu papel de mãe acaba por confinar seus desejos dentro daquelas paredes domésticas e tudo que se afasta desse ideal acaba por gerar mentiras e culpas. Essa frustração de algo que poderia ter sido e que não foi é o que sobra dessas vidas comercializadas como perfeitas. Dois contrapontos preciosos são apresentados nos papéis da Mãe de Rosa e de sua meia-irmã mais nova. Clarice, a mãe, é uma mulher austera, fria, bastante egocêntrica, que vive sua vida da maneira como quer, diagnosticada com câncer não consegue deixar o prazer de fumar. Numa leitura esteoritipada de gêneros seria vista como masculinizada. Já a meia-irmã dela, possui algo de silencioso, daquelas que não precisam fazer alarde de suas verdades, até mesmo por não as ter ainda. O aspecto mais simbólico é que elas representam a velhice e a juventude. Já Rosa é a representante da vida adulta. Aquela que supostamente deve saber se comportar dentro dos padrões esperados. Tanto Nora de “A Casa de Bonecas”, quanto Rosa vão aos poucos se dando conta que não são pessoas se verdade. Se a metáfora proposta por Ibsen é a das bonecas, Bodanzky cutuca ainda mais fundo. Sim. Rosa é um fantoche daqueles confeccionados pelo seu próprio pai e usado para entretê-la em sua infância. A cutucada é mais profunda, porque se a boneca é apenas um objeto inanimado, o fantoche só ganha vida quando manipulado por outra pessoa. Se a trajetória de Nora é não mais brincar de casinha, a de Rosa é não mais aceitar ser manipulada pelos homens de sua vida. Isso inclui seu pai de criação aparentemente inofensivo, mas que é um aproveitador de marca maior, seu marido igualmente inofensivo, mas que a sobrecarrega com a rotina doméstica enquanto viaja pra cá e pra lá e quando está em casa fica na cobrança por sexo, seu pai biológico, um político importante que comanda o país, mas que não é capaz de ter qualquer atitude em sua vida privada e até mesmo um pai de um aluno da mesma escola de suas filhas que ela idealiza por vê-lo sempre fazendo compras, ou na reunião escolar, mas que pode esconder um comportamento machista por trás de todo o discurso libertário. Essa frustração com o masculino é extremamente importante para todo o processo que se seguirá e até mesmo para enxergar com olhos mais humanos para sua mãe prestes a morrer e sua filha mais rebelde. O ponto onde quero chegar com todo esse texto é exatamente esse. As mulheres são manipuladas para enxergar o risco, a ameaça, o medo em outras mulheres. Essa técnica visa impedir que elas compartilhem experiências e se apóiem. Essa impossibilidade de dividir o peso com outras mulheres acaba por criar desigualdade na relação entre homens e mulheres e até mesmo gerar esse sentimento de incompletude quando não se tem um representante do sexo masculino do lado. O mais extraordinário do filme é que toda essa questão é desencandeada após a revelação da mãe que Rosa não é filha do homem que ela acreditou a vida inteira ser seu pai. Aqui se faz preciso destacar que toda a ideia de propriedade privada que perdura até hoje é totalmente atrelada à descoberta do homem que ele participava do processo de concepção da vida. Até então as mulheres eram endeusadas e as crianças eram criadas por toda a comunidade. Ao observar os animais essa noção se desfaz e o medo de criar a prole de um outro homem gera todo esse cerceamento da liberdade feminina. Nascem ai o patriarcado, o machismo e toda essa noção e performance de gênero que carregamos até hoje. Sua manutenção é feita por todo um arsenal de artefatos e pirotecnias simbólicas que nos dizem a todo momento o que devemos fazer para ser um homem ou uma mulher. A filósofa queer Judith Butler escreveu que nós recebemos essas informações “pelas mídias, pelos filmes ou através de nosso pais, nós as perpetuamos através de nossos fantasmas e nossas escolhas de vidas” e que temos que negociar a todo instante com essas ideias e concluí:
”Alguns de nós as adoram e as encarnam apaixonadamente. Outros as rejeitam. Alguns detestam mas se conformam. Outros brincam da ambivalência… Eu me interesso pela distância entre essas normas e as diferentes formas de responder a ela."
Creio que esse interesse e resposta às normas seja o norte de toda ação libertária de Nora, Rosa e algumas muitas mulheres. A beleza do filme reside aí.
PS: Que trabalho lindo o de Maria Ribeiro, uma atriz que até então não tivera tido chance de mostrar seu talento. Sua Rosa é um transbordamento de existir. É uma flor de lótus que da lama floresce algo sublime.
Mãe!
4.0 3,9K Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
“Eles não ouvem”
Lá pelas tantas a personagem da atriz Jennifer Lawrence solta essa frase aos berros. Ela se refere aos “visitantes” que estão destruindo seu sonho de casamento perfeito. É uma frase extremamente simbólica para todo o périplo que o diretor Darren Aronofsvky mostrará em sua obra controversa. Controversa no sentido que ou as pessoas vão amar ou odiar o que o diretor está propondo. Não há meio termo. É uma provocação. Uma experiência. E cada um vai ver apenas o que quiser ou puder ver. SIM! É uma relação de espelhamento. E ao mesmo tempo exige de nós, espectadores, um estado de não identificação. Quase como se meditássemos. Ou participássemos de uma espécie de ritual. Algumas coisas não farão sentido. A maioria delas. Porque a linguagem acessada aqui não é a da realidade, mas a de um ponto de vista muito bem determinado pela práxis cinematográfica de toda a obra. Criação. Manutenção. Destruição. Ou poderia ser: Gênesis. Evangelho. Apocalipse. Sim. Aronofsky remonta toda história bíblica para nos mostrar como chegamos até aqui. E aqui deve se entender como toda a merda que estamos vivendo atualmente... ou seria desde sempre? Daí que a história é até mesmo simples. Ele, personagem de Javier Bardem, é um escritor entediado que mora numa casa no meio do nada. Ele é casado com Mãe. (Acostume-se os personagens não possuem nomes e são assim grafados no final do filme) O filme começa mostrando que a casa onde eles moram passou por incêndio e que Mãe restaurou cada parede da casa. Eles parecem viver bem, mas Ele não parece se importar muito com ela. Já Mãe vive para Ele. Um dia, do nada, aparece Homem e Ele o recebe de braços abertos e o convida para morar em sua casa. Mãe se ressente porque nem mesmo foi consultada. Homem é um daqueles caras que vivem a vida adoidado, bebe demais, fuma demais e possuí uma admiração quase infantil por Ele. Ele por sua vez se deixa fascinar completamente por essa admiração. No dia seguinte, aparece Mulher. Ela é extremamente ardilosa, dissimulada e invasiva. Mãe vira um fantasma dentro de sua própria casa. Tanto Homem quanto Mulher podem entrar em qualquer cômodo da casa, menos no escritório onde Ele escreve e exibe um misterioso amuleto (uma pedra preciosa, a única coisa que sobrou do incêndio). Lógico que Homem e Mulher não respeitam a exortação de Ele e invadem o local e quebram o amuleto. E É AQUI QUE TUDO DESANDA. No dia seguinte, aparecem os filhos, que estão brigando pelo testamento de Homem. A briga é tão intensa que um deles acaba sendo morto pelo próprio irmão. Não é preciso prolongar o resumo para entender que o diretor está recriando o seu Gênesis particular e que Ele representa a imagem e semelhança de Deus, Mãe representa a Terra, Homem e Mulher são Adão e Eva e seus filhos Caim e Abel. E o tal escritório e o amuleto representam a árvore e o fruto do conhecimento do bem e do mal. A força dessa situação mítica é dolorosa, porque demonstra a solidão, o tédio e a carência desse Deus que cria a humanidade para mera bajulação. Mãe não importa nada para Ele. É um mero acessório. Ele é fascinado pelos homens e mulheres que o bajulam constantemente. Esse é o primeiro ato. Aquele que representa a Criação ou Gênesis.
O segundo ato começa com a gravidez de Mãe. Após muitas brigas e ressentimentos, eles transam e ela engravida e tudo meio que volta a ser como era antes. Ele e Mãe vivem numa espécie de lua de mel. Ele até volta a escrever. Mas novamente é traído por seu ego enorme. Aqui tem inicio o Evangelho ou O Nascimento e Morte de Jesus, aquele que veio para salvar a Terra (Mãe) da iniqüidade. A megalomania do personagem Ele logo é tentada ao escrever e publicar o poema inspirado pela gravidez de Mãe. Ele começa a ser procurado por jornalistas e fãs que querem conversar sobre sua obra. Mais uma vez ele esquece de Mãe e se joga nos braços de seus adoradores. Mãe se ressente novamente. E é aqui que começa o Apocalipse. Que eu não vou comentar aqui porque é uma das coisas mais doidas já produzidas pelo cinema. Aronofsky nos esfrega na cara todo o estado atual das coisas É como se houvesse uma libertação de todas as coisas, signos, ideias, conceitos, essência, valor, referência, origem e finalidade. E isso tudo se resvala num delírio, pesadelo, caos. Onde cada um pode enfim libertar-se de sua máscara e revelar sua face mais hedionda. O resultado disso é uma confusão total. O CAOS REINA. E nem mesmo o nascimento de Jesus é capaz de aplacar essa balbúrdia. Muito pelo contrário. Porque o ego divino só enxerga ai a possibilidade de adoração barata. E nesse mundinho particular materializado nessa casa no meio do nada é que toda nossa humanidade mais primitiva vem à tona. SIM! Como afirmou o pensador Jean Baudrillard, nós somos criaturas ávidas por imagens, embora secretamente sejamos iconoclastas. “Não desses que destroem imagens, mas desses que fabricam uma profusão de imagens em que não há mais nada para ser visto.” E é essa a provocação do filme!!!!!! Porque chegamos a um tal nível em que já não é mais possível fazer nenhum julgamento. Mas NÃO. NÃO! Aronosfvy quer que não sejamos indiferentes e possamos nos posicionar diante de seu filme e indo além, nos posicionar perante a vida. Não é pouca coisa!!!
A Longa Caminhada de Billy Lynn
2.8 99 Assista AgoraSinceramente não consigo entender a quantidade de crítica negativa sobre “A Longa Caminhada de Billy Lynn”. O novo filme de Ang Lee é praticamente um estudo sociológico sobre a mentalidade americana. Não é meramente um filme de guerra. Não é sobre a jornada de um herói. Esqueça! É sobre os interesses obscuros e escusos por trás da guerra. É um filme de bastidores. Não é a toa que grande parte do filme se passa durante o show do intervalo de um jogo de futebol americano. Billy é um soldado que tem uma ação considerada heróica filmada por emissoras de televisão. Em pouco tempo, ele e seus amigos combatentes virão ídolos nacionais e são usados pelo governo americano com o objetivo de aumentar o apoio às tropas norte-americanas. Uma turnê é organizada e eles são saudados por toda a América. Nesse meio tempo, Billy reencontra sua família e sua irmã o pressiona para que ele não retorne mais para a guerra. Sentimentos ambivalentes tomam conta do jovem de 19 anos e ele se vê dividido. Baudrillard em “A Transparência do Mal” escreve que uma vez desviado de seu principio, o esporte pode ser explorado para qualquer fim, inclusive ser transformado em estratégia de guerra fria. E é isso que Ang Lee esmiúça e expõe de forma bastante contundente e irônica. O que está em jogo é poder e o dinheiro e aqueles pobres moços são meros joguetes nas mãos de quem comanda o show. E não existe maneira mais eficaz de dominação do que designar o outro como inimigo. Sim. O velho dividir para governar. O mais triste é que parece não existir uma saída para esse estado de lavagem cerebral.
A Bruta Flor do Querer
2.7 46“Quem nunca projetou todos os sonhos numa pessoa que nem conhece. Em outras palavras, quem nunca usou essa perigosa droga chamada amor platônico”.
“A Bruta Flor do Querer” é um filme contemporâneo. Fala sobre nós. Sobre a juventude que Baudrillard definiria como pós-orgia. Onde tudo aparentemente está liberado mas ainda encontramo-nos todos perdidos diante da tal pergunta: O que fazer com esse tédio monumental que vem seguido da orgia? No filme cujo diretores escreveram o roteiro, bolaram a iluminação e a excelente trilha sonora e ainda atuaram como protagonistas, vemos dois amigos diante da realidade do mundo atual. Eles até tinham sonhos, mas a urgência dos dias e a necessidade de sobrevivência cobram seu preço. Diego acabou de concluir a faculdade de cinema, já fez alguns curtas, mas se vê tendo que gravar casamentos para ganhar algum dinheiro. Sua vida pessoal também vai de mal a pior. Acalenta uma paixão platônica por uma menina que trabalha no sebo que ele freqüenta, mas não tem ideia de como trocar qualquer palavra com ela. Seu melhor amigo é outro que parece não ter grandes perspectivas. Ouve seus desabafos amorosos, aconselha às vezes, mas nada além disso. Os dois usam muita droga para aplacar alguma melancolia mal resolvida e vivem atrás de pegar mulher. Seus diálogos são rasos, quase sem nenhuma eloquência, soando como monólogos ou fluxo de (in)consciência. De forma bastante contundente, o que nos é apresentado é um registro do estado das coisas enquanto elas acontecem. É um filme duro, cru, obsessivo, fétido, pestilento. Diego é atormentado pelo fantasma da mulher independente que não lhe dá moral e personifica todas as suas frustrações amorosas e seus medos em Diana. Em seu delírio, chega a enxergá-la como sua oponente numa luta de boxe. Ela o massacra. Sua socialização machista não permite que ele a enxergue em sua totalidade. Ele precisa idealizá-la para sobreviver. Ela é mais um de seus vícios. Ele vive num estado de simulação em que já não é mais possível distinguir o que é real do que é não é. Assim como nós (espectadores) também não conseguimos decifrar direito o que é ficção e o que é documental no filme. Essa hibridez é fascinante e corrobora para o entendimento de que estamos no território do simulacro.
”Quando as coisas, os signos, as ações são libertadas de sua ideia, de seu conceito, de sua essência, de seu valor, de sua referência, de sua origem e de sua finalidade, entram então numa auto-reprodução ao infinito. As coisas continuam a funcionar ao passo que a ideia delas já desapareceu há muito. Continuam a funcionar numa indiferença total a seu próprio conteúdo. E o paradoxo é que elas funcionam melhor ainda”.
Recorro novamente a Baudrillard para tentar dar conta da urgência que a obra me causou. “Qualquer coisa que perca a própria ideia é como o homem que perdeu a sombra – cai num delírio em que se perde”. Mas acho que o que o filme retrata é algo ainda pior. São homens que se transformaram em suas próprias sombras. Fantasmas de um mundo perdido. Que até tentam enxergar algum significado nisso tudo, mas falham miseravelmente. Impossível não fazer uma leitura sobre os sexos e gêneros diante do que é apontado na obra. Os dois amigos e todos os outros homens retratados no filme possuem aquela inabilidade afetiva típica. Parecem não enxergar nada nem ninguém diante dos seus olhos. Vêem aquilo que querem ver e só. É assustador! Falta-lhes empatia. Um olhar mais atento pra si próprios e para os outros. Mas estão cegos demais, anestesiados demais para tal intento.
Já as mulheres parecem não aceitar mais esse tipo infantilizado de homem, a não ser para uma transa ou uma ficada na balada. Diana não quer nada com Diego. O amigo foi traído e abandonado pela namorada. E assim vai. Estranhos que eventualmente podem até trocar saliva e porra, mas que acaba ali. Não tem nada além de uma sexualidade sem nome ou rosto. O problema é que todos (homens e mulheres) fomos socializados para essa necessidade de ter alguém e esse vazio provoca ainda mais sofrimento. Ficamos então nesse estado em que as coisas parecem não possuir início nem fim, apenas meio. Algo que nunca começa nem termina direito, mas que também impede que qualquer outra coisa surja. Repito, é assustador!
Animais Noturnos
4.0 2,2K Assista AgoraTEM SPOILER! SE VOCÊ NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Diferentemente de “Elle” que é um estudo de um personagem especifico vivido com imenso brilhantismo por Isabelle Huppert, “Animais Noturnos” é um filme que mostra a sociedade como ela é: misógina e vazia de sentido. Não é um filme sobre vingança. Esqueça! É a história de um cara que não aceitou levar o “não” de uma garota. Sim. Conhecemos tantas dessas histórias por aí... Mas vamos do começo! Susan é uma garota idealista que namora um jovem escritor sem eira nem beira. Sua mãe é a responsável por reproduzir todos os ensinamentos de uma sociedade machista. Fragilizando-a e fazendo com que ela titubeei em suas decisões. Essa é a socialização feminina. Você é frágil e depende de um homem forte ao seu lado que te sustente financeira e sentimentalmente. Susan nega, debate, fulmina a mãe com o olhar, mas o peso daquelas palavras passam a acompanhá-la como uma espécie de fantasmagoria. Ela já não enxerga no seu namorado mais as mesmas qualidades de outrora. Ela engravida e se dá conta de que aquele homem não conseguirá suprir suas necessidades de afeto e também de dinheiro. Ela conhece um carinha lindo e rico que sua mãe com certeza aprovaria. Termina o relacionamento com o antigo namorado jogando na cara dele todos os ensinamentos de sua mãe (leia-se sociedade machista patriarcal). Ela aborta o filho que esperava dele apoiada pelo novo namorado. Mas enquanto estão no estacionamento da clínica são flagrados pelo pai da criança. Dezenove anos se passam... Ela está num casamento infeliz com o bonitão e rico namorado de adolescência. Transformou-se numa marchand renomada, mas que não vê muito sentido nas coisas. Entope-se de remédios pra dormir e é traída na cara dura. Um belo dia... Ela recebe uma encomenda em casa. É o manuscrito de um livro escrito por seu antigo namorado. O livro se chama “Animais Noturnos” e é dedicado a ela. Mais tarde saberemos que o nome que dá título ao livro era o apelido que ele a chamava por ela ter dificuldades para dormir. Em linhas gerais, o livro conta a história de uma família feliz (mamãe, papai e filhinha adolescente) que estão indo viajar para o Texas e que são importunados por uma gangue na estrada. Eles batem no pai. Sequestram, estupram e matam a mãe e a filha. Tony sobrevive e busca justiça e encontra no delegado local, que está prester a morrer de câncer, muito mais que isso: vingança. O tempo passa. O delegado consegue prender os responsáveis pelos crimes, mas são soltos porque não se tem provas suficientes para incriminá-los. O delegado propõe um plano e o tal homem injustiçado aceita. Eles perseguem os criminosos e levam-nos para um lugar distante. O delegado coloca uma arma na mão do pai de família que não consegue atirar neles. Os bandidos fogem. Na perseguição, o delegado mata um dos bandidos e depois se separam. Tony recebe uma arma e passa a procurar o algoz de sua família. Acha. Diante dele, vacila mais uma vez e é golpeado, mas antes consegue atirar duas vezes no bandido. Horas depois, acorda bastante ferido e morre. Sua morte não fica evidente se aconteceu por descuido ou suicídio. Fim do Livro. Susan fica absolutamente fascinada e aterrorizada pelo que lê. Tanto que escreve um email com loas para o ex, inclusive chamando-o para um encontro. Ele aceita. Ela se arruma toda. Ela espera durante horas por ele que não aparece. Fim do filme!
Desculpe o resumo, mas era necessário para mostrar o quanto as socializações que recebemos desde a infância por mais que não nos damos conta acabam por dominar nossas decisões. De Edward é exigido que ele seja forte, que sustente e proteja sua família. De Susan, que seja frágil e submissa ao marido. Eles simplesmente não se encaixam nesses esteriótipos de gênero. E sofrem com as pressões necessárias para que se tornem aquilo que se espera deles. Dezenove anos depois, a formatação está pronta. Ele culpa-a por todo o mal. Ela se ressente e aceita essa culpa. Ele se torna forte e ela se fragiliza e busca nele aquilo que acredita ter perdido. Ele nega. Ela fica sozinha. Sim, porque agora ele aprendeu a lição e matou aquele antigo homem com o livro. E todos sabemos que a socialização masculina se baseia na dominação e nos privilégios em relação às mulheres. Preste atenção nos homens do filme! Olhe o atual marido de Susan e o da amiga dela que aparece numa festa. A todo o momento, Susan parece receber um ensinamento de como se sujeitar ao mundo como ele é e nunca questionar. Essa é a socialização feminina. Agora olhe as mulheres do filme! São escravas da estética e aprendem que precisar se adequar aos padrões para serem aceitas e ou amadas. Simone de Beauvoir definiu muito bem o processo civilizatório de uma mulher:
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino”.
O filme é assombroso em mostrar o peso dessas socializações na vida prática de homens e mulheres, inclusive tem uma cena assustadora de uma colega que trabalha com Susan que acabou de ter uma filha e que para se sentir mais próxima da criança e poder vigiar a babá, instala um aparelho onde ela pode acompanhar tudo o que acontece a distância. Susan dá uma olhada no celular da moça e vê algo ali que nos faz dar um pulo de medo. É um aviso! Um doloroso aviso às mulheres!
Mate-me Por Favor
3.0 232 Assista Agora“Mate-me por favor” é um filme estranho. Cru. Cruel. Incômodo. Extremamente simbólico e ao mesmo tempo realista. É uma confusão de gêneros, não se prendendo a nenhum deles. É uma obra provocativa, delirante, rodrigueana. Que retrata o universo adolescente e sua sexualidade sem rosto, despidos dos maneirismos ficcionais tão característicos. É uma obra assumidamente pós-dramática onde cada aspecto do filme é importante. Luz e som aqui ganham dimensão de personagens quase principais. É um cinema climático sim, mas que assume isso de uma maneira a la David Lynch. O filme toca em temas absurdamente contemporâneos e é assustador constatar que estamos todos imersos nesse contexto, nesse rescaldo cultural, midiático e político. Em que nos transformamos todos em zumbis, condenados à uma indiferença brutal. Ao contrário de alguns críticos que acusam o filme de ser excessivamente formalista, acredito que por trás de todas as cenas o que está presente é uma crítica bastante contundente ao desaparecimento de algo que não sabemos direito o que é. Parece que todos nós perdemos algo que já não lembramos mais o que é. Não somente no âmbito individual, mas no social também. Há um desespero por achar algo que dê algum significado para esse vazio todo que nada nem ninguém parece ser capaz de aplacar. E é aqui que o filme faz sua crítica mais contundente. Estamos nos transformando todos em psicopatas. Uma legião de psicopatas. Incapazes de sentir qualquer coisa, mas buscando um êxtase delirante prometido que não vem, não virá, nunca. Como muito bem definiu Baudrillard, já não estamos mais na crise, mas em plena catástrofe. Não estamos mais na falta, mas na saturação.
”Tantas coisas são produzidas e acumuladas, que nunca mais terão tempo de servir. (...) Tantas mensagens e sinais são produzidos e difundidos, que nunca mais terão tempo de ser lidos. Sorte nossa! Porque a ínfima parte que absorvemos já nos põe em estado de eletrocução permamente.”
Isso tudo Baudrillard escreve em 1990. Pasmem!!!!! Fico imaginando o que ele escreveria vendo-nos absorvidos pelos celulares, propagando notícias que nem sequer lemos no facebook, ou perdidos no meio de tantas opções nos canais de televisão e serviços de streaming, pulando de relacionamento em relacionamento na esperança de achar alguém que valha a pena depositarmos todas as nossas fichas.
”Todas essas memórias, todos esses arquivos, toda essa documentação que não consegue dar à luz uma ideia; toda essa documentação, programas, decisões que não conseguem dar à luz um fato...”
Esse é o estado que vivem aquelas personagens. Há desencanto, desalento, uma espécie peculiar de desespero nos gestos de cada uma delas. Estão presas em suas liberdades que não sabem usar. O funk, o sexo, a igreja, evangélica e até mesmo os poemas de Augusto dos Anjos ajudam a compor esse ambiente fatalista.
Tudo é exacerbado. Propositalmente saturado. Compondo assim um retrato (sur)real e cru(el) de uma nova espécie de violência “oriunda do paradoxo de uma sociedade permissiva e apaziguada”. Quem é a vítima? Quem é o algoz? O mais perturbador disso tudo é que já nem sabemos mais como enunciar isso. “Somos todos cúmplices na espera de um roteiro fatal, mesmo se ficamos emocionados ou transtornados quando ele se realiza”. Belíssima e provocativa estreia de Anita Rocha Silveira.