O formato do documentário de Grégory Monro é bastante engessado. Ao invés das tradicionais cabeças flutuantes ou de uma montagem mais dinâmica, o que vemos são cenas de filmes de Kubrick enquanto as entrevistas em áudio do genial diretor para o crítico Michel Ciment são tocadas em off.
A experiência não é nada cinematográfica, embora cenas dos filmes de Kubrick estejam ali. A estrutura me lembrou o que é feito em Listen to me Marlon, documentário de Stevan Riley sobre a trajetória de um dos grandes atores da história do cinema - se não o maior - Marlon Brando.
Ciment sabia que estava diante de um gênio bastante genioso e fez um registro único, afinal, Kubrick odiava entrevistas pelo simples fato de em muitas delas os entrevistadores parecerem querer tirar dele uma resposta genial para as intenções de seus filmes. Talvez, por isso, o documentário tenha essa estirpe de chapa branca, ora, imagine qualquer jornalista ou crítico, por mais atrevido que fosse, tendo a oportunidade de entrevistar alguém como Kubrick, é preciso cercá-lo de forma sutil e é o que Ciment faz aqui. Infelizmente, nem todo mundo é Mike Wallace.
Por isso, Kubrick passa de maneira breve e sem muitas explicações por sua filmografia que nem é tão extensa, mas bastante complexa, ele não se aprofunda como gostaríamos, ainda assim, o registro é interessante pela raridade do acontecimento.
Alguns filmes, como Lolita, ganham pouco tempo de atenção, já outros, como Glória Feita de Sangue, Barry Lyndon e Laranja Mecânica, ganham comentários que nos revelam mais ou menos como a mente de Kubrick funcionava e elucidam sua ideia de cinema.
Comentários de colegas de set e atores também contribuem para tal, mas fica impossível mergulhar naquela mente por completo, Kubrick sabia o que estava fazendo. É mais ou menos como Malcolm McDowell resume Kubrick, ele chegava no set sem nada pronto e se adequava às situações. Nesta entrevista, Kubrick fala o que quer e esconde o que não quer expor. Dessa forma, mantém seu legado de mistério e corrobora sua genialidade.
Há algo meio Ex-Pajé e Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos neste documentário da panamenha Ana Elena Tejera. Ela conta a história de Cebaldo, um homem de origem indígena que mora em Portugal e que, tantos anos depois, acabou se desvinculando de sua ancestralidade.
Em busca do seu eu, Cebaldo retorna à aldeia onde cresceu e, por meio de vários rituais e memórias resgatadas, se limpa do mundo para se conectar novamente consigo mesmo.
Citei Ex-Pajé pois Cebaldo busca sua cura nas águas após longa exposição ao mundo do homem branco, assim como o pajé do filme de Luiz Bolognesi mantém sua espiritualidade atrelada à natureza, embora esteja exposto à inquisição evangélica. Já em Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, o jovem Ihjãc é incumbido de encontrar paz para a alma de seu falecido pai, assim como Cebaldo vai em busca de paz para sua própria.
Dizem que águas passadas não movem moinhos, mas é justamente nas águas do passado que Cebaldo se reconecta à sua cultura e volta ao seu estado de espírito natural.
"O reflexo da alma habita na água" surge escrito na tela. Cebaldo resgata aquilo que lhe completa e que parecia perdido.
Tejera traça um interessante paralelo entre a história de Cebaldo com o mito de Panquiaco, indígena que conduziu o explorador espanhol Vasco Núñez de Balboa ao descobrimento do Oceano Pacífico e depois se jogou às águas do mar.
Se o filme é encenado, ao menos é possível identificar muita verdade nos conflitos internos de Cebaldo. O seu silêncio e contemplação são tomados pelo barulho das águas que lavam seu corpo e sua alma e lhe renovam.
Como será a vida de um influencer? Aquela persona que nos é apresentada por meio de stories, fotos e vídeos representa quanto da personalidade real de uma pessoa? Se nós mesmos nos enchemos de filtros e efeitos para uma simples foto no feed, imagine o quanto uma pessoa que tem milhões de seguidores não mascara?
Suor mostra o outro lado da vida de uma dessas influencers digitais. O suor do título pode ter dois sentidos, o primeiro deles porque, de fato, Sylwia sua com seus exercícios e rotina fitness, o segundo porque aqueles que a acompanham não conhecem os perrengues que ela enfrenta. É aquela frase popular: quem vê sucesso, não vê corre.
O diretor Magnus von Horn nos apresenta então a este lado mais íntimo de Sylwia. Cheia de dilemas, ela encara boa parte deles com bastante personalidade, expulsa um tarado que a persegue, convida um colega de trabalho para sua casa, e quando desabafa em um vídeo em sua rede social por não se sentir amada e ser sozinha, o vídeo viraliza e pega mal perante seu staff. Sylwia é julgada por ser verdadeira e honesta com seus fãs e por revelar uma faceta que ela supostamente deveria camuflar.
Propondo este estudo de personagem (e não um ataque aos malefícios das redes sociais como certo documentário óbvio lançado há algumas semanas propôs), von Horn nos aproxima de Sylwia desde o início com uma câmera que a acompanha a todo instante, somos praticamente sua única companhia e as únicas testemunhas de como ela realmente é sozinha - até mesmo em um almoço em família Sylwia é apenas a garota fitness. Ao final o que fica é: qual o problema em seu desabafo? Se ela sua, também chora.
Há exatamente um ano, em outubro de 2019, uma foto tirada por Susana Hidalgo durante os protestos no Chile viralizou nas redes sociais. Na foto, manifestantes estão ao topo de um monumento militar e, lá no alto, um homem empunha uma bandeira Mapuche, povo indígena originário daquele país, tornando-se um símbolo dos protestos contra a desigualdade social e o governo neoliberal do país.
Neste Nova Ordem, Michel Franco realiza algo sintomático a toda América Latina. Ao final - sem dar spoilers - a sombra verde-azulada que vai sobrepondo a bandeira mexicana funciona como um símbolo direto para a ameaça que açoita o país nesta distopia bem vinda aos nossos tempos. A tinta verde serve simbolicamente ao fato desta ser a cor da esperança a nível universal e também por estar presente na bandeira mexicana, a democracia do país sangra.
Conforme o caos é instaurado nos minutos iniciais, Nova Ordem vai se tornando sufocante. E Franco tira daqueles momentos uma intensidade invejável que nos últimos anos só vi no início de Os Miseráveis, de Ladj Ly. A violência surge como elemento surpresa - diria até cômica ou prazerosa - afinal, os pobres arrancam à força as propriedades da esnobe classe alta, algo que o homem branco sempre fez com os menos abastados.
O maior problema é como Franco cede ao statuos quo da desesperança e se encanta pela violência, fazendo desta um prato que nos é servido à força. Se por um lado esse é um artifício recorrente em seu cinema - basta ver Depois de Lúcia (2012) - por outro lado, ela enfraquece e sobrepõe a alegoria que estava sendo bem construída até então, tornando-a óbvia e rasa.
Isso me faz lembrar Pacote vendo as cabeças dos gringos decepadas em Bacurau e perguntando a Teresa se Lunga não havia exagerado. Lá ela diz "não", e realmente não, afinal, foi oferecido àqueles uma ida ao museu. Aqui eu digo que Franco exagera sim. Ele não parece muito interessado em hastear bandeiras.
A trilha punk rock do início, se não dá o tom do desenrolar da narrativa, ao menos, deixa clara uma coisa: Susanna Nicchiarelli promove a cinebiografia de Eleanor Marx, filha de Karl Marx, como uma forma de rebeldia. Ora, a pioneira do feminismo socialista não é tão reverenciada quanto o pai (pelo menos no cinema), por isso, um filme desse, pra chamar atenção, tem que chegar chutando algumas portas.
No entanto, a rebeldia do punk não se vê aplicada nos meandros que Nicchiarelli percorre neste recorte da vida de Eleanor, também conhecida como Tussy. Se por um lado a personagem principal é excelentemente interpretada por Romola Garai - aliás, mais uma cinebiografia de Nicchiarelli na qual a atriz principal se destaca, a exemplo de Trine Dyrholm em Nico, 1988 (2017) - por outro lado, a história é completamente refém de suas agendas, seja a feminista, a socialista, a polícia e a documental.
Espanta descobrir que apenas Nicchiarelli assina o roteiro, pois a unidade do filme parece comprometida no sentido de que alguns temas surgem mais para pontuar as lutas de Eleanor do que são desenvolvidos com naturalidade. Quando fala sobre o socialismo, Eleanor olha para a câmera e discursa um monólogo. Quando fala sobre o feminismo, ela interpreta num teatro cômico. Quando luta contra o trabalho infantil, surge uma cena em uma fábrica. Cabe espaço ainda para colagens de fotos antigas de greves que dão estofo ao tema.
Mesmo refém dos temas, Nicchiarelli destaca com legitimidade a importância de Eleanor para as lutas que travava seja o movimento feminista socialista ou as ações contra o trabalho infantil.
Dessa forma, Miss Marx vale como registro desta personagem histórica, já como cinema, mesmo com um design de produção caprichado e uma trilha sonora punk, não derruba tanto o sistema assim.
Quando assisti a O Jovem Ahmed, em 2019, também na Mostra de São Paulo, ouvi e li comentários de colegas de que os irmãos Dardenne se apropriaram do lugar de fala das pessoas que são adeptas do Islamismo e que vivem em seu dia a dia as ameaças do Estado Islâmico.
Neste Al-Shafaq - Quando o Céu Se Divide, a diretora turca Esen Işık conta a história de uma família que se muda da Turquia para a Suíça e que desmorona quando o filho mais novo decide servir à Guerra Santa na Síria. Se no projeto há esse "local de fala" em Işık, na aplicação da linguagem cinematográfica ela parece muito mais preocupada em articular uma engenhosa estrutura em espiral para edificar uma premissa bem simples.
Se por um lado esse exercício estilístico foge aos padrões tradicionais de uma linha temporal progressiva, por outro lado, não há nada ali que necessitasse tantas articulações, já que a própria abordagem de Işık evita surpresas ou reviravoltas.
Desde a primeira cena, fica evidente que Işık não quer somente nos chocar. Ela inicia seu filme com uma cena bastante dramática e, embora não saibamos quem são aqueles personagens, a empatia por eles é sintomática. Aos poucos, Işık vai dando nós na estrutura do filme para nos apresentar a pessoas e tempos distintos, isso causa até certa confusão no primeiro ato, mas conforme ela vai desatando alguns destes nós, a ideia fica mais clara e o filme vai crescendo narrativamente.
Işık faz bom uso da premissa bastante simples para propor um filme-denúncia sobre a realidade de muitas famílias que nos últimos anos perderam seus jovens para a Guerra Santa. Ela repete o que pode ser visto em Adeus à Noite, de André Téchiné e Meu Querido Filho, de Mohamed Ben Attia, e talvez invente mais do que precisava, mas ainda assim, Al-Shafaq é um filme que tem sua força dramática ao expor um dilema que ainda aflige muitas famílias do Oriente Médio.
O que mais impressiona neste longa de Liu Ze, é o fato deste ser o seu primeiro trabalho e mesmo tendo em mãos um tema tão delicado quanto a doença de Alzheimer, ele não se rende ao maniqueísmo e trata tudo com respeito à doença e, principalmente, aos seus personagens, mostrando como cada um deles são afetados conforme a doença do patriarca vai se agravando.
Liu Ze mostra que o Alzheimer é uma doença que acomete não só o diagnosticado, mas também aqueles que o cercam. Para o pai é desumana e difícil a batalha praticamente perdida para uma doença degenerativa. À esposa, fica a tarefa nada fácil de cuidar do parceiro até seus últimos dias. E às filhas, cada uma ao seu modo, a dedicação ao pai.
Se para uma delas dar dinheiro para ajudar nos cuidados médicos é o suficiente, para Xian Tian sua presença 24 horas por dia é essencial. Com isso, ela sai de um relacionamento com um homem casado e, por acaso, se envolve com um rapaz solteiro que se mostra presente, dedicado e compreensível.
Se não há nada de novo em Apenas Mortais, é justamente na simplicidade com que Liu Ze nos revela o dia a dia daquela família que reside a força do filme e daqueles personagens. Sem julgamentos e sem dramatizações exageradas, a história tem lá seus momentos de Amour, de Michael Haneke, afinal, o Alzheimer não é uma doença das mais agradáveis de lidar.
Acaba que Apenas Mortais é como subir ao ringue para uma luta que sabemos que iremos perder, ainda assim, estar ao lado dos entes queridos faz daqueles momentos não menos dolorosos, mas reveladores de quem está ao nosso lado.
Duas das principais características dos filmes e do cinema são a possibilidade de viajar aos países mais distantes e a contemplação que o audiovisual permite. De alguma forma, o armênio Limiar possibilita ambas.
Ir à Armênia jamais passou pela minha cabeça e a fotografia de Moeinoddin Jalali é belíssima, com paisagens do inverno do país e planos abertos que destacam toda a solidão do personagem principal (e quase único) em busca de locações para seu próximo filme.
No entanto, o contemplar e o viajar, não bastam para que Limiar saia do patamar de filme vazio. Assisti-lo é como ficar olhando um álbum de fotos que não nos significam nada. Faltou à dupla de diretores Rouzbeh Akhbari e Felix Kalmenson conectar o público nessa jornada também. E quando a arte não consegue nos impactar ou sensibilizar de alguma forma é um problema.
Por mais difícil que seja gostar deles, não sou o tipo de pessoa que cancela os remakes antes deles serem feitos, acho bobagem, prefiro assisti-los para, aí sim dar o veredito que o filme merece. Ao meu ver, não existem histórias que não podem ser contadas por outra perspectiva, embora concorde que o status de intocável de algumas obras se dê por motivos razoáveis, a exemplo da atemporalidade e uso da linguagem cinematográfica que acabam fazendo delas clássicos do cinema.
É o caso de Rebecca - A Mulher Inesquecível, clássico de Alfred Hitchcock de 1940, vencedor do Oscar de Melhor Filme, em 1941, e que permanece até hoje como a adaptação definitiva do romance homônimo escrito por Daphne Du Maurier, de 1938. Então, por que recontar tal história?
Ao final do filme pensei o mesmo. Por quê? Ora, se quer fazer um remake, seja pelo menos autêntico. Um exemplo é a recente versão de Suspiria, dirigida por Luca Guadagnino. O cineasta não fica à sombra do giallo setentista de Dario Argento, e dá uma nova roupagem à trama de bruxaria, fazendo de sua versão algo totalmente novo e contemporâneo. Ben Wheatley não consegue o mesmo com seu Rebecca. O respeito ao clássico está ali, em demasia. Com isso, seu filme esbarra em Hitchcock ao tentar ser uma versão do romance de Du Maurier.
Há mudanças, algumas leves e outras bem mais óbvias, como a fotografia colorida de Laurie Rose, que já havia trabalhado com Wheatley em outros de seus trabalhos, como o ótimo Kill List (2011) - inclusive, o diretor tenta trazer uma certa autenticidade em uma cena ritualística que é tão avulsa que não diz a que veio, apesar de ser um dos momentos mais interessantes do filme inteiro. Por isso, fica a decepção por Wheatley não ter colocado as asas de fora mais vezes.
Pelo fato de abandonar o preto e branco clássico que elucidava todo um ar gótico, Wheatley assume uma proposta bem mais romântica. No entanto, isso tira força de dois personagens essenciais à narrativa: a mansão Manderley e a ameaçadora Rebecca, que no clássico de 1940 agem quase como forças sobrenaturais. Aqui, tudo é sem vida e o resultado é um total desperdício. Melhor ficar com o clássico de Hitchcock - e alguém duvidava disso?
Tudo parece tão démodé e falso em Verlust, desde a explicação para o título do longa quanto os dramas de relacionamento entre a cantora Lenny (Marina Lima) e sua empresária Frederica (Andréa Beltrão).
É o típico filme white people problems que não tem como se sensibilizar, já que é difícil criar empatia por aquelas pessoas ou comprar seus dilemas, e sequer serve como uma crítica a este mundo elitizado.
E olha que o diretor Esmir Filho já tinha lidado com essa coisa da amizade num ambiente musical no bom Alguma Coisa Assim, só que aqui as relações têm todo o seu potencial desperdiçado.
Há um distanciamento intencional entre os personagens onde cada um parece viver no seu mundo, só que isso nos distancia de todo aquele universo e Filho não consegue deixar clara uma reaproximação entre eles, falta esse sol e essa gravidade para que haja uma união.
À exceção de Frederica, os demais personagens parecem existir apenas para que o filme pincele certos exageros.
O marido da empresária (Alfredo Castro) é um fotógrafo voyeur com motivações homossexuais, mas e aí?
O escritor João Wommer (Ismael Caneppele) que está escrevendo uma obra misteriosa é o gay que se identifica com a criatura que surge na praia, mas e aí?
A filha (Fernanda Pavanelli) de Frederica tenta defender a tal criatura num protesto ecológico, chegando a acampar na praia, mas e aí?
É tema em cima de tema que na realidade não dizem nada e transformam o filme numa bagunça só.
O que dizer então de Lenny? Marina Lima que ano passado foi premiada com o prêmio Ícone Mix no Festival Mix, onde teve exibição do documentário sobre sua vida e carreira intitulado Uma Garota Chamada Marina, serve apenas como antagonista à empresária interpretada por Beltrão.
Com pouquíssimas falas, algumas de suas canções servem à trilha, mas é pouco. Sua personagem repete boas vezes sobre o tal livro que está sendo escrito: não é uma biografia! O que é afinal este Verlust?
Falta justamente o que Filho queria transmitir: sutileza para que aquelas pessoas se entendam. Até o final é forçado. Tudo se resolve num sorriso seguido de beijo após uma discussão? Difícil de engolir.
Mamãe, Mamãe, Mamãe, primeiro trabalho de Sol Berruezo Pichon-Riviére mescla o estilo de Lucrécia Martel de O Pântano com a premissa do argentino Família Submersa (filme que assisti na Mostra de 2018) e pode ser definido como um coming of age feminino.
A jovem Cleo perde a irmã, afogada na piscina, e as primas Leoncia, Manuela e Nerina vão passar uma temporada na casa, onde a mãe de Cleo vive trancada no quarto, afundada em um luto depressivo. O que se vê então, são sopros de vida após uma tragédia que é capaz de arruinar com qualquer um.
Nesse universo bastante particular e idílico, as meninas passam por alguns dos muitos dilemas que as mulheres encaram na infância, a primeira menstruação, o primeiro beijo, o corpo em desenvolvimento, as brincadeiras, as histórias assustadoras e, obviamente, para Cleo, a saudade da mãe que, trancada no quarto, busca coragem para abrir a porta. Há vida lá fora.
Uma das principais características do cinema é sua capacidade de dar voz às minorias. Num documentário, este "local de fala" pode ganhar ainda mais potência e relevância quando é dada a possibilidade destas pessoas contarem sobre seus próprios dramas e mostrá-los para o mundo.
David France registra os dias difíceis da Rede LGBT Russa e do Centro Comunitário de Moscou para Iniciativas LGBTI+ em algumas de suas manobras para ajudar e socorrer pessoas que correm risco de vida na Chechênia somente por serem homossexuais e lhes conseguir asilo em outros países.
Com uma contextualização exemplar, compreendemos de onde vem o ódio pelos gays (na voz do líder da Chechnya eles são sub-humanos) e, infelizmente, assistimos a alguns vídeos de tortura e agressões (o documentário tem cenas fortes e explícitas, por isso, é recomendado para maiores de 18 anos).
Como num filme de sobrevivência, existem alguns momentos de tensão, a exemplo do resgate de uma jovem que corre o risco de ser interceptada ao tentar deixar o país, e também quando Maxim Lapunov decide ser a primeira vítima a expor seu rosto, como um herói que revela sua identidade secreta, e contar toda a crueldade que sofrera quando preso para entregar outros gays como ele.
E é exatamente aí, quando conhecemos quem são as pessoas que sofrem com tais ameaças diárias (com uma ótima aplicação de deepfake para proteger a identidade das vítimas), que o documentário humaniza e nos emociona.
Um registro doloroso e essencial para tempos nos quais governos cada vez mais extremistas vêm ocupando o poder de nações grandiosas e de dimensões continentais, como o Brasil. É revoltante ver tanta atrocidade em pleno 2020 ao mesmo tempo que é importante que este documentário se espalhe.
Dizem que quando estamos prestes a morrer, um filme de nossas vidas passa em nossa mente. Ora, como um filme de tudo o que vivemos poderia transcorrer diante de nós em milésimos de segundos? - pensa o questionador mais ávido. Esse questionador até tem razão, embora, nesta animação, Mariusz Wilczyński consiga nos exemplificar como seria o filme de sua vida.
Não que o diretor faça isso em milésimos de segundos, mas, em pouco mais de 80 minutos, Wilczyński traz memórias, personagens, lugares, sons, refaz momentos e creio que até gostaria de exalar aromas e cheiros, caso o cinema assim permitisse. É como se Mariusz Wilczyński fizesse o seu próprio "Quero Ser John Malkovich". O diretor abre a porta de sua mente e nos convida a adentrá-la. Passamos de cômodo em cômodo conhecendo e revivendo passagens marcantes da vida azul do artista.
O fundo de papel amassado em algumas destas passagens exibe o poder do audiovisual, e numa animação tão livre de amarras, onde imagens abstratas e metáforas visuais parecem ter saído do sonho mais estranho, tudo é tão anacrônico que não há nada que nos faça questionar o que é certo ou errado, o que faz sentido ou não.
Acaba que Mate-o e Deixe Esta Cidade é mesmo uma viagem sem roteiro à mente de Wilczyński, daquelas mais longas e difíceis, afinal, ele próprio levou em torno de 15 anos para conseguir finalizar o projeto. E nem vejo muito sentido em querer compreender tudo o que está ali, fica óbvio que muito do que se passa só faz sentido na mente do próprio Wilczyński.
Naqueles rascunhos das mais diferentes épocas, seja da infância com os pais ou da velhice com a mãe moribunda, o filme ganha força justamente por conseguir transmitir passagens da vida de uma pessoa de uma forma que só o cinema seria capaz.
Em 1992, o iraniano Abbas Kiarostami dirigiu a segunda parte da trilogia Koker. No filme intitulado E a Vida Continua, um diretor e seu filho viajam à região de Koker, atingida por um terremoto, local no qual o cineasta havia feito um filme há alguns anos e volta em busca daqueles que atuaram em seu longa.
A dois países dali, na Índia, é possível identificar algumas similaridades em Tremor, filme do diretor estreante Balaji Vembu Chelli. O protagonista é um jornalista que viaja à região de Kookal para realizar uma reportagem sobre um terremoto que, aparentemente, arruinou todo um vilarejo.
Em sua jornada, o jornalista parece viver seus dias de Alice ao seguir por estradas sinuosas e adentrar em uma vila cada vez mais coberta por uma densa neblina. As poucas pessoas que lhe aparecem são estranhas, algumas lhe dão informações desconexas, outras lhe pregam peças e outras lhe ameaçam.
A sensação de estranheza vai tomando conta da narrativa e, diante de tantas voltas, a impressão de que um curta estruturaria melhor a jornada do jornalista começa a ficar evidente. Chelli se interessa tanto pelos sons da natureza quanto pela trilha sonora sempre presente, o silêncio do protagonista diante de tanto estranhamento meio que evoca essa sensação de não pertencimento.
Por alguns momentos, há uma tentativa intrigante de seguir pelo caminho do realismo fantástico e essa, talvez, seja melhor recebida pelo público indiano. É um filme bastante regional, de idas e vindas, desencontros, desinformações e voltas em círculo que parece não chegar a lugar algum. O final é abrupto e, se não corresponde às expectativas criadas durante a jornada, pelo menos, o sorriso do jornalista deixa a impressão de que para ele valeu de algo.
O novo longa de Aaron Sorkin (roteirista do excelente A Rede Social e que estreou como diretor no bom A Grande Jogada, de 2017) é o exemplo de que algumas histórias, talvez, fiquem melhores nos livros.
O maior problema de Os 7 de Chicago é que Sorkin parece um diretor tão apegado à agenda daquele acontecimento histórico (estão ali os fatos, a contextualização da época e os principais personagens), que a direção carece de maior personalidade e os personagens são meras peças de um jogo ardiloso de poder e ideologias, sem quaisquer traços que poderia humanizá-los. Tudo parece muito asséptico, no sentido de que qualquer um poderia ter dirigido aquele filme, pior: a sensação é de que vê-lo e ler um resumo sobre o fato dá no mesmo.
O lado bom do roteiro de Sorkin é que ele evita explicações demasiadas (mas lá no final aquelas letrinhas explicando o que se deu com cada um daqueles homens aparecem). Dessa forma, já somos jogados diretamente no tribunal onde os sete homens, ou melhor, oito (o julgamento de um deles é anulado depois), estão sendo condenados por incitarem a violência e de conspirarem contra a Guerra do Vietnã em função da Convenção Nacional Democrata ocorrida em 1968, em Illinois, Chicago. Toda essa contextualização é exemplar, e Sorkin comprova que é um roteirista capaz de facilitar sem subestimar.
Se você não conhece a história dos Sete de Chicago, talvez queira pesquisar sobre ela depois (o filme não ajuda a entender as motivações de muitos lados da história), e assistindo ao filme é fácil compreender que as intenções de Sorkin estão em evidenciar como o governo norte-americano (e não só o de lá) sempre teve medo da ameaça comunista, esquerdista, ou seja lá como você queira defini-la. Fazendo daquele julgamento algo político para servir de exemplo a futuros revolucionários.
Não gosto de definir filmes como "chatos", e roteiros anteriores de Sorkin comprovam como ele é capaz de tornar dinâmicos alguns assuntos menos comuns nas discussões de brasileiros, como o beisebol (O Homem que Mudou o Jogo) e o pôquer (no já citado A Grande Jogada). Aqui, a dinâmica é limitada (culpa dos filmes de tribunais) dando espaço a um certo didatismo que não atrapalha, pelo contrário, o personagem de Mark Rylance é, inclusive, moldado para servir como um pilar aonde o espectador irá se apoiar para entender muito do que está sendo dito e retrucado aqui e ali (inclusive, não me espantaria se o ator fosse indicado ao Oscar).
No entanto, as demais atuações apenas cumprem protocolo. Sacha Baron Cohen é o alívio cômico (que tem algumas cenas extra tribunal que soam avulsas) e Eddie Redmayne está em seu personagem mais cru, livre de tiques ou de maquiagem pesada, desde que me lembro de tê-lo visto em algum filme pela primeira vez.
Ao final, Os 7 de Chicago parece aquele filme que servirá para os preguiçosos conhecerem um fato da História através da telona (ou da telinha, maldita pandemia), o resultado não chega a ser desastroso, só que a execução é tão truncada, e Sorkin já provou que pode superar a limitação cinematográfica de alguns temas, que o saldo é bem irregular.
Qual é o problema de nascer? Para nós, humanos, talvez essa pergunta nunca seja respondida. Para as inteligências artificiais, uma das perspectivas do tal problema pode ser vista nesta ficção científica distópica de Sandra Wollner.
A jovem Elli é uma androide que convive com um homem mais velho, aparentemente seu pai. Conforme a historia se desenvolve, algumas insinuações começam a acontecer. O filme vai ganhando um tom provocativo e incômodo, flertando com a pedofilia; os mais sensíveis, com certeza, abandonarão a sessão, como aconteceu na exibição do filme no Festival de Berlim. Assistindo ao filme em casa, em cabine on-line da 44ª Mostra de São Paulo, resisti para entender o propósito daquilo.
Fica evidente que há algo de estranho naquela relação, mesmo que Wollner evite explicitar, ainda assim, algumas sutilezas se sobressaem e acabamos pescando a verdade por detrás daquilo. Com algumas cenas acumuladas, fica difícil definir aonde Wollner quer chegar.
Seria uma crítica à exploração das máquinas pelo homem? Seria uma amostra de como é impossível preencher espaços que ficaram vazios pela ausência de um ente querido? Seria uma intencional provocação à questão da pedofilia como doença enquanto mentalizada e crime quando praticada? Mesmo com tantas perguntas, o longa não nos oferece muito sobre o que se pensar a respeito de cada uma dessas possibilidades, tudo fica pelo caminho.
Sem dúvida, Wollner traz um prisma diferente para a relação entre homem e máquina aonde nem Ex_Machina (2014) e o episódio Be Right Back, da segunda temporada de Black Mirror (2013), tiveram coragem de ir. Afinal, as crianças, mesmo que máquinas "sem vida", são seres imaculados. Por isso, parece que a intenção não é outra se não provocar e incomodar.
Com muitos silêncios, escuridão e um tom melancólico, O Problema de Nascer nos reserva ainda uma mudança de perspectiva no terceiro ato que também não diz muito a que veio, essa parece servir para lançar outra pergunta em cima do título: qual o problema em encarar a morte?
Eu adoro a comédia francesa "Eu Não Sou um Homem Fácil", da Netflix, na qual a diretora Éléonore Pourriat propõe uma sátira sobre os privilégios dos homens na sociedade. Em seu filme, Pourriat ridiculariza esta sociedade patriarcal mostrando o quanto é bizarro que o homem domine e tenha liberdades com as quais as mulheres sequer podem sonhar em repetir. O resultado é divertido e agradável, justamente por nunca propor que aquele seja o mundo no qual as feministas querem viver. Ela apenas provoca.
Neste Cozinhar F*der Matar, a diretora eslovaca Mira Fornay inicia com proposta semelhante, no entanto, seu filme vai se tornando cada vez mais desinteressante e confuso. Na história, o tímido e reprimido Jaroslav (Jaroslav Plesl) é colocado ao centro de uma trama onde ele é alheio às mulheres, sua esposa Blanka é uma policial e as mulheres da vizinhança são abusivas com ele. Seria divertido se a história seguisse por este caminho, podendo servir como crítica social, ainda mais em um país do leste europeu onde as mulheres geralmente são vistas como símbolos sexuais.
Só que a partir de certo acontecimento ao final do primeiro ato, Fornay mostra que sua intenção é emular uma estrutura narrativa no estilo de Corra, Lola, Corra. É dada outra chance a Jaroslav de tentar colocar as coisas nos eixos, obviamente, tudo piora. Errático e mais uma vez suscetível aos mandos e desmandos dos outros, Jaroslav já não tem autonomia nenhuma sobre aonde quer chegar, a ponto de exclamar: se tivesse nascido mulher nada disso teria acontecido.
É difícil identificar a proposta de Fornay e, claramente, a falta de coesão impossibilita essa tal identificação. O longa se arrasta entre escolhas gratuitas (culminando numa cena com uma criança em um lago, completamente desnecessária) e numa trama bizarra que beira ao insuportável. O resultado é absurdo e desconexo. O filme fica na intenção: causar desconforto, custe o que custar. Em mim causou somente indignação pelo tempo perdido.
Se você não conhece a história de Sherlock Holmes, talvez nem saiba que ele tem uma irmã: Enola Holmes; e é louvável que finalmente a personagem ganhe as telas - ainda mais no maior serviço de streaming do mundo - após tantas adaptações das histórias do irmão. No entanto, aplaudir o feito e achar a proposta bacana são uma coisa, e estou aqui para falar de sua execução que, a meu ver, fica devendo.
Baseado no primeiro livro da série de contos escritos por Nancy Springer, Enola Holmes é a história da jovem espirituosa que vive com a mãe Eudora (Helena Bonham Carter), de quem recebe ensinamentos de pintura e artes marciais, indo de desencontro aos modos da época: mulheres deveriam costurar e frequentar aulas de etiqueta e piano. No dia em que Enola (Millie Bobby Brown) completa 16 anos, sua mãe Eudora desaparece, deixando a garota sob a tutela do irmão mais velho, Mycroft (Sam Claflin), avesso à criação que Enola recebia. Para fugir do internato, Enola parte em busca da mãe, cruzando caminhos com um jovem lorde (Louis Partridge) que corre perigo.
Se por um lado a espirituosa Enola esbanja vitalidade e coragem, infelizmente, sua história não segue o mesmo ritmo. Do romancezinho com o jovem lorde aos vilões cheios de caras e bocas, tudo o que vemos aqui vem numa fórmula requentada que já foi contada centenas de vezes e da qual o diretor Harry Bradbeer não consegue fazer muito caldo. Até Henry Cavill, em dias de Sherlock Holmes, parece fazer uma ponta para ajudar na publicidade do filme - e não me interpretem mal, longe de mim querer protagonismo maior do Sherlock na história da irmã, mas não entendo a presença de um ator tão chamativo sendo que ele sequer é tão essencial à narrativa.
Decepciona ainda mais saber que Bradbeer é responsável pela direção de alguns episódios da originalíssima série Fleabag - como faz falta uma Phoebe Wallter-Bridge envolvida aqui. E como se não bastasse a fraca inspiração no roteiro de Jack Thorne - o humor e a ação, que poderiam ser um diferencial, praticamente inexistem - Bradbeer ainda usa o efeito de quebra da quarta parede exaustivamente, logo, o que parecia divertido vai se tornando cansativo, chegando ao ponto das quebras serem irritantes.
Em suma, o filme carece em coesão e originalidade, e o saldo final é uma história prolongada demais que vai se tornando cada vez mais genérica. O pano de fundo dos movimentos sufragistas da Londres do fim do século 19 e a busca pela mãe desaparecida eram tão mais promissores... Acaba que Enola Holmes padece sob uma fórmula batida que torna o filme medíocre. Francamente, já estou cansado do termo "padrão Netflix", só que é difícil não encaixar Enola Holmes nele.
Sou contra qualquer radicalismo do tipo: não lance esse filme ou não assista a esse filme. A arte está aí para nos fazer analisar e refletir e, dessa forma, refinar nosso gosto e expandir nossos horizontes. Ora, se você critica algo que sequer assistiu, você não está propondo um debate e muito menos pensando por si, você está apenas ecoando a ideia de outro.
No caso de Mignonnes, noto um exagero na onda de ódio que o filme sofreu. Por um lado, o primeiro pôster lançado pela Netflix realmente era de mau gosto, porém, no filme, as intenções da diretora Maïmouna Doucouré me parecem tão claras que não enxergo maldade alguma em sua direção. Sim, em algumas cenas de dança os closes passam do limite - proposital talvez? - Mesmo assim, considero o que ela faz bem diferente do que José Padilha faz ao filmar a violência de Tropa de Elite e se deslumbrar com ela - Padilha tem que comer muito arroz e feijão pra chegar aos pés do que Paul Verhoeven faz em Tropas Estelares, ali sim uma crítica contundente.
Só que Mignonnes não é um filme de guerra e suas atrizes (na faixa dos 11 anos) sequer estão ali para fazer coro de que elas têm autonomia sobre seus corpos para sair por aí desfilando como a nova geração feminista.
O que mais me deixa indignado, é ver pessoas que cresceram assistindo à banheira do Gugu em plena tarde de domingo e curtindo diversos grupos de axé que exploravam crianças em roupas ainda mais minúsculas querer falar sobre exposição de menores aqui. Hipócritas.
Longe de transparecer isso, o filme deve ser criticado, a meu ver, por Doucouré não conseguir ir tão a fundo quanto poderia em sua crítica. Ela facilita tanto para o espectador que é impossível pensarmos fora da caixinha. Sua mensagem é óbvia: crianças são moldadas pela sociedade e pelos pais, o que elas vêem e escutam, elas repetem. Falta perspectiva. Doucouré até tenta ousar com toques de realismo fantástico, propondo à protagonista vivida por Fathia Youssouf Abdillahi um rito de passagem, mas são cenas tímidas.
Ao final, a polêmica pode até ajudar o filme, pois quem tem a mente aberta e se propor a assisti-lo pode se surpreender com um filme sem qualquer tipo de apologia. Eu sou prova.
Após Estou Pensando em Acabar Com Tudo, drama que não facilita em nada a vida do espectador, a Netflix chega com mais uma obra espinhosa em 2020 – aquela que promete ser a temporada mais prolífica para o serviço de streaming nas premiações que estão por vir.
Durante sua ainda curta carreira cinematográfica, o diretor Antonio Campos vem lidando com assuntos delicados, seja a depressão (Christine, de 2016) ou as drogas (Depois da Escola, de 2008), passando até pelos filmes de gênero em um intrigante thriller psicológico em seu segmento na coletânea Feito em Casa (Homemade), também lançada pela Netflix este ano.
Chegando no serviço de streaming amanhã, 16 de setembro, O Diabo de Cada Dia é um filme desesperançoso, onde Campos segue com rigor seu estilo nada otimista de contar suas histórias.
Baseado no romance de Donald Ray Pollock, Campos toca na ferida com um filme repleto de violência e uma potente discussão acerca dos malefícios dos excessos da fé, evidenciando as corrupções diárias de pessoas que fazem do mundo um lugar tão doentio.
De cara, o elenco chama a atenção: do fiel pai de família de Bill Skarsgård ao pastor profano de Robert Pattinson, do casal perverso vivido por Jason Clarke e Riley Keough, ao xerife corrupto de Sebastian Stan. Neste mosaico coberto por um cenário pós-guerra, os moradores de Knockemstiff têm suas vidas entrelaçadas de forma bem sinistra.
E com um elenco tão estelar, é prazeroso notar como Campos sabe utilizá-los de forma crucial na narrativa, mesmo que pareça abandonar alguns deles.
Ora, quando lemos a Bíblia sabemos que Adão e Eva não irão nos acompanhar até o final, e é o mesmo que acontece aqui: quem aparece em tela nos traz uma mensagem clara e evidente.
E não faço essa alusão à Bíblia por acaso, aqui, observamos tudo aos olhos e voz do narrador (uma espécie de Deus: onisciente e onipresente) e, dentre tantos personagens, falhos, corruptos, vítimas, inocentes e justos, não há ninguém desperdiçado, ainda que alguns tenham mais destaque do que outros.
Assim, reside justamente no personagem de Tom Holland, o jovem Arvin Russell, a bússola moral de O Diabo de Cada Dia. Os personagens ao seu redor são tão cheios de imoralidade e crueldade que podemos traçar um paralelo entre Arvin e o Jó da Bíblia.
Jó era rico, paciente e temente a Deus. Vendo aquilo, o diabo confronta Deus dizendo que Jó só é temente a ele porque tem saúde, propriedades e riquezas, e faz um aviso: tirarei tudo dele para provar que sua fé é falível.
Deus concorda, e o diabo foi tirando tudo de Jó: seus animais, sua família, seus bens e sua saúde. Mesmo assim, Jó se manteve fiel a Deus, aceitando tudo: “se aceitamos os bens de Deus, por que não aceitar também os seus males?”.
Meio que sem querer, Arvin sofre com este diabo de cada dia e segue nessa via crucis como um rito de passagem. A devoção cega de seu pai, de alguma forma, reflete em sua trajetória árdua e sofrida. Calejado, mesmo tão jovem, ele abre os olhos quando mais precisa deles para sobreviver.
Neste minucioso trabalho, Antonio Campos articula como a religião e a própria fé, se manipuladas para tal, são capazes de causar sofrimento às pessoas inocentes. Acaba que a fé, naquela Knockemstiff, não é o caminho, mas uma ferramenta do mal nas mãos de pessoas fracas que cedem aos desejos do diabo e que sucumbem aos olhares de Deus.
Num elenco tão chamativo, meu destaque vai para Tom Holland, creio que no grande papel de sua carreira até aqui. Não que ele mereça uma indicação ao Oscar, mas seu personagem é difícil e ele convence. Já Pattinson tem pouco tempo de tela para mostrar algo a mais, sua participação me lembrou a ponta que teve em O Rei (The King, 2019), outro longa da Netflix, mesmo jeitão, preso ao forte sotaque e aos tiques.
Creio que o filme irá agradar aos fãs de Onde os Fracos Não Têm Vez e Animais Noturnos, Campos constrói muito bem essa áurea soturna, macabra e violenta, mas poderia ter ido além no humor. Não chego a classificar o filme como um neo-noir (li algo do tipo por aí), venderia como um drama ou thriller que vale a pena ser visto tanto pelo elenco encabeçado por um surpreendente Tom Holland quanto pela reflexão acerca dos malefícios do excesso da fé.
Quando assisti ao primeiro A Babá em 2017, tive a impressão de que o filme desperdiçava uma ótima oportunidade dentro do slasher, nada ali era novo e o grafismo das cenas e a ironia das falas só reforçavam sua pegada cool, como num exercício de homenagens jogadas a esmo, com isso, o filme se limitava a ser uma sessão pipoca divertidinha voltada ao público teen com referências retiradas de filmes e séries.
Com o lançamento desta sequência, decidi rever o primeiro filme para refrescar minha memória, só que a revisão não foi lá muito prazerosa. Como falei, ficou ainda mais claro que as referências são jogadas no meio da história, que já é um fiapo. Ao menos, o protagonista Cole (Judah Lewis) é um pré-adolescente bem menos irritante que os de outros filmes do gênero - como o de Better Watch Out - mas a força do filme estava no timing e carisma de Samara Weaving: hipnotizante como uma babá do mal deveria ser.
Para esta sequência, o diretor McG não conta mais com o roteirista Brian Duffield, agora o roteiro é de Dan Lagana, e a diferença é gritante. Estão ali novamente as referências que mostram a paixão da equipe por cultura pop, cinema e séries, mas aqui as referências funcionam com propósito na narrativa: uma música vira uma senha de acesso, uma referência ao terror contemporâneo soa hilária vinda de um personagem negro, enfim, há um capricho nos diálogos.
No que tange à violência, esta sequência vai além do primeiro, no sentido de exagerar mesmo (o que deixa tudo ainda mais divertido), algumas mortes são bem mais violentas que as do filme original e os momentos de vergonha alheia praticamente não existem - ridícula a sequência do primeiro filme na qual Max, o cara sem camisa, faz Cole se vingar de seu bully, péssima e só serve pra encher linguiça no filme que já é bem curto (menos de 90 minutos).
Aliás, este é outro trunfo desta sequência, por mais que demore um pouco a engrenar - e McG faz isso para nos apresentar à boa personagem Phoebe, vivida por Jenna Ortega, além de dar mais minutos à vizinha Melanie (Emily Alyn Lind), totalmente subutilizada no primeiro filme - na segunda metade, o filme entra numa reação em cadeia de acontecimentos que nos deixa meio aquém do que está acontecendo ali mas sem perder seu ritmo envolvente, nos levando junto de tanta loucura, gritaria e correria. É aquele tipo de exagero que dá certo.
Ao final, A Babá: Rainha da Morte não deixa de ser uma farofada, mas como diz Cole ao final do primeiro filme: é ficção científica, você pode fazer qualquer coisa. E aqui, McG leva isso ao pé da letra, com muitos exageros, acertando em cheio no humor, nas referências e dando um final digno para todos os personagens, essa é a sequência que os fãs e os nem tão fãs, como eu, esperavam. Tem ainda uma curta cena pós-créditos que não diz muito a que veio, mas com um possível sucesso desse é de se pensar que A Babá vire uma trilogia.
Charlie Kaufman roteirizou alguns dos filmes mais desafiadores dos últimos anos no cenário norte-americano, de Quero Ser John Malkovich a Anomalisa, histórias que manipulam o tempo, brincam com a metalinguagem e questionam a condição humana a partir da sensação de pertencimento dos personagens. Sua filmografia enquanto roteirista acabou consolidando sua imagem de autor, já como diretor, Kaufman ainda parece caminhar preso a alguns truques para facilitar ao espectador, vide o nome do hotel em Anomalisa.
Kaufman nos brinda com aquele que talvez seja seu filme mais difícil de ser definido. Não é a toa que ele o recheie com referências, não só cinematográficas: mais uma vez estão ali as facilidades para o espectador mais desatento. E confiem em mim, esse não é o tipo de filme que você irá ver somente uma vez.
Se lá em 1974 John Cassavetes realizava uma das análises mais cruas e realistas sobre a condição da mulher/mãe/esposa em Uma Mulher Sob Influência, aqui Kaufman nos entrega, ao seu modo, um dos filmes mais intrigantes e desconfortáveis do ano e que, de certa forma, também propõe uma análise do papel da mulher, repleto de ironias e metalinguagens que fariam David Foster Wallace ressuscitar para aplaudi-lo.
A diferença é que, no clássico de Cassavetes, o estranho parecia residir na Mabel de Gena Rowlands e percebíamos aquilo junto dos demais personagens (a cena da macarronada deixa claro como ela não estava bem). Aqui, a jovem interpretada pela ótima Jessie Buckley nota todo o estranhamento ao seu redor (também numa cena à mesa!) e quebra a quarta parede, não de modo descarado como a Fleabag de Phoebe Waller-Bridge, mas de forma bem mais sutil, indo até de desencontro com a pretensão de Kaufman.
Voltando às referências, Kaufman toma emprestado as palavras da crítica americana Pauline Kael acerca dos exageros de Gena Rowlands ao retratar uma mulher esquizofrênica em busca de sua libertação. Essa crítica, de certa forma, pode recair sobre Estou Pensando em Acabar com Tudo. Sem sutileza e novamente de forma pretensiosa, Kaufman nos desafia a ler e questionar seu próprio filme por uma perspectiva que já parece vir sinalizada (e isso pode ser um problema). Por outro lado, é uma muleta bem menos óbvia que ele busca para elucidar aonde quer chegar – ou por onde devemos ir.
Ao final, você pode fazer como Pauline Kael e criticar os excessos ou então embarcar na proposta ousada de Kaufman que, de modo bem mais sutil em seu subtexto (e aí está o que me fez gostar tanto do filme, ainda mais na segunda visita), fala também sobre o tempo (e como ele passa rápido), relacionamentos (os que não valorizamos e os que não somos valorizados) e também sobre a velhice de nossos corpos (um dia tão belos quanto uma sorveteria no meio do nada, outro dia tão necessitados de algo para chamar atenção como um balanço novo na frente de uma casa velha).
Estou Pensando em Acabar com Tudo é o tipo de filme autoral que a Netflix estava precisando.
Filmes de época nos quais a direção de arte é pomposa, os atores têm composições mais teatrais, os vestidos e penteados são chamativos e os textos são rápidos, rebuscados e cheios palavras que já saíram de moda têm se tornado cada vez mais escassos.
Emma. é baseado no romance homônimo de Jane Austen, publicado em 1815. Particularmente, prefiro quando essas obras subvertem o gênero, é o caso de As Patricinhas de Beverly Hills (uma versão moderna de Emma) e A Favorita (no qual Yorgos Lanthimos chacoalha a realeza com uma Emma Stone danadinha). Por isso, confesso, fui com o pé atrás neste longa de estreia da diretora Autumn de Wilde e roteiro de Eleanor Catton.
Quão grande foi a minha surpresa ao ir me deparando com a forma com que o filme de de Wilde assimila a ironia do texto de Austen aos nossos tempos mas também depende de toda a teatralidade que uma adaptação como essa exige, com isso, é difícil não se envolver com a personagem de Anya Taylor-Joy (ótima) que, assim como a Cher de Alicia Silverstone, conduz a trama e os personagens a seu bel prazer. Casamenteira, ela não quer (e nem espera) o mesmo para si, completamente independente, a ela só interessa cuidar do velho pai (vivido por Bill Nighy) e permanecer no centro das atenções.
Aos poucos, a "bonita, inteligente e rica" Emma é despida de todo esse tradicionalismo ao ir se envolvendo e conhecendo as maldades e fragilidades dos outros ao mesmo tempo que passa a enxergar as próprias, a personagem que nos é apresentada já pré-definida em uma linha com 3 palavras vai ganhando parágrafos, adjetivos e parênteses. Ora, aquele ponto final do título poderia muito bem ser uma vírgula, não?
No geral, Emma. não se preocupa em se livrar das amarras e do estilo clássico de Jane Austen, no entanto, o longa é de uma força incrível por justamente demonstrar uma autossuficiência dentro de um estilo já tão delimitado. Pode não ser tão bom quanto Orgulho e Preconceito (2005) - creio que a melhor adaptação de Jane Austen -, mas merece entrar para o hall de melhores adaptações da autora, e ponto final.
Kubrick por Kubrick
3.5 11O formato do documentário de Grégory Monro é bastante engessado. Ao invés das tradicionais cabeças flutuantes ou de uma montagem mais dinâmica, o que vemos são cenas de filmes de Kubrick enquanto as entrevistas em áudio do genial diretor para o crítico Michel Ciment são tocadas em off.
A experiência não é nada cinematográfica, embora cenas dos filmes de Kubrick estejam ali. A estrutura me lembrou o que é feito em Listen to me Marlon, documentário de Stevan Riley sobre a trajetória de um dos grandes atores da história do cinema - se não o maior - Marlon Brando.
Ciment sabia que estava diante de um gênio bastante genioso e fez um registro único, afinal, Kubrick odiava entrevistas pelo simples fato de em muitas delas os entrevistadores parecerem querer tirar dele uma resposta genial para as intenções de seus filmes. Talvez, por isso, o documentário tenha essa estirpe de chapa branca, ora, imagine qualquer jornalista ou crítico, por mais atrevido que fosse, tendo a oportunidade de entrevistar alguém como Kubrick, é preciso cercá-lo de forma sutil e é o que Ciment faz aqui. Infelizmente, nem todo mundo é Mike Wallace.
Por isso, Kubrick passa de maneira breve e sem muitas explicações por sua filmografia que nem é tão extensa, mas bastante complexa, ele não se aprofunda como gostaríamos, ainda assim, o registro é interessante pela raridade do acontecimento.
Alguns filmes, como Lolita, ganham pouco tempo de atenção, já outros, como Glória Feita de Sangue, Barry Lyndon e Laranja Mecânica, ganham comentários que nos revelam mais ou menos como a mente de Kubrick funcionava e elucidam sua ideia de cinema.
Comentários de colegas de set e atores também contribuem para tal, mas fica impossível mergulhar naquela mente por completo, Kubrick sabia o que estava fazendo. É mais ou menos como Malcolm McDowell resume Kubrick, ele chegava no set sem nada pronto e se adequava às situações. Nesta entrevista, Kubrick fala o que quer e esconde o que não quer expor. Dessa forma, mantém seu legado de mistério e corrobora sua genialidade.
Panquiaco
3.1 3Há algo meio Ex-Pajé e Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos neste documentário da panamenha Ana Elena Tejera. Ela conta a história de Cebaldo, um homem de origem indígena que mora em Portugal e que, tantos anos depois, acabou se desvinculando de sua ancestralidade.
Em busca do seu eu, Cebaldo retorna à aldeia onde cresceu e, por meio de vários rituais e memórias resgatadas, se limpa do mundo para se conectar novamente consigo mesmo.
Citei Ex-Pajé pois Cebaldo busca sua cura nas águas após longa exposição ao mundo do homem branco, assim como o pajé do filme de Luiz Bolognesi mantém sua espiritualidade atrelada à natureza, embora esteja exposto à inquisição evangélica. Já em Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, o jovem Ihjãc é incumbido de encontrar paz para a alma de seu falecido pai, assim como Cebaldo vai em busca de paz para sua própria.
Dizem que águas passadas não movem moinhos, mas é justamente nas águas do passado que Cebaldo se reconecta à sua cultura e volta ao seu estado de espírito natural.
"O reflexo da alma habita na água" surge escrito na tela. Cebaldo resgata aquilo que lhe completa e que parecia perdido.
Tejera traça um interessante paralelo entre a história de Cebaldo com o mito de Panquiaco, indígena que conduziu o explorador espanhol Vasco Núñez de Balboa ao descobrimento do Oceano Pacífico e depois se jogou às águas do mar.
Se o filme é encenado, ao menos é possível identificar muita verdade nos conflitos internos de Cebaldo. O seu silêncio e contemplação são tomados pelo barulho das águas que lavam seu corpo e sua alma e lhe renovam.
Suor
3.6 41 Assista AgoraComo será a vida de um influencer? Aquela persona que nos é apresentada por meio de stories, fotos e vídeos representa quanto da personalidade real de uma pessoa? Se nós mesmos nos enchemos de filtros e efeitos para uma simples foto no feed, imagine o quanto uma pessoa que tem milhões de seguidores não mascara?
Suor mostra o outro lado da vida de uma dessas influencers digitais. O suor do título pode ter dois sentidos, o primeiro deles porque, de fato, Sylwia sua com seus exercícios e rotina fitness, o segundo porque aqueles que a acompanham não conhecem os perrengues que ela enfrenta. É aquela frase popular: quem vê sucesso, não vê corre.
O diretor Magnus von Horn nos apresenta então a este lado mais íntimo de Sylwia. Cheia de dilemas, ela encara boa parte deles com bastante personalidade, expulsa um tarado que a persegue, convida um colega de trabalho para sua casa, e quando desabafa em um vídeo em sua rede social por não se sentir amada e ser sozinha, o vídeo viraliza e pega mal perante seu staff. Sylwia é julgada por ser verdadeira e honesta com seus fãs e por revelar uma faceta que ela supostamente deveria camuflar.
Propondo este estudo de personagem (e não um ataque aos malefícios das redes sociais como certo documentário óbvio lançado há algumas semanas propôs), von Horn nos aproxima de Sylwia desde o início com uma câmera que a acompanha a todo instante, somos praticamente sua única companhia e as únicas testemunhas de como ela realmente é sozinha - até mesmo em um almoço em família Sylwia é apenas a garota fitness. Ao final o que fica é: qual o problema em seu desabafo? Se ela sua, também chora.
Nova Ordem
3.0 45Há exatamente um ano, em outubro de 2019, uma foto tirada por Susana Hidalgo durante os protestos no Chile viralizou nas redes sociais. Na foto, manifestantes estão ao topo de um monumento militar e, lá no alto, um homem empunha uma bandeira Mapuche, povo indígena originário daquele país, tornando-se um símbolo dos protestos contra a desigualdade social e o governo neoliberal do país.
Neste Nova Ordem, Michel Franco realiza algo sintomático a toda América Latina. Ao final - sem dar spoilers - a sombra verde-azulada que vai sobrepondo a bandeira mexicana funciona como um símbolo direto para a ameaça que açoita o país nesta distopia bem vinda aos nossos tempos. A tinta verde serve simbolicamente ao fato desta ser a cor da esperança a nível universal e também por estar presente na bandeira mexicana, a democracia do país sangra.
Conforme o caos é instaurado nos minutos iniciais, Nova Ordem vai se tornando sufocante. E Franco tira daqueles momentos uma intensidade invejável que nos últimos anos só vi no início de Os Miseráveis, de Ladj Ly. A violência surge como elemento surpresa - diria até cômica ou prazerosa - afinal, os pobres arrancam à força as propriedades da esnobe classe alta, algo que o homem branco sempre fez com os menos abastados.
O maior problema é como Franco cede ao statuos quo da desesperança e se encanta pela violência, fazendo desta um prato que nos é servido à força. Se por um lado esse é um artifício recorrente em seu cinema - basta ver Depois de Lúcia (2012) - por outro lado, ela enfraquece e sobrepõe a alegoria que estava sendo bem construída até então, tornando-a óbvia e rasa.
Isso me faz lembrar Pacote vendo as cabeças dos gringos decepadas em Bacurau e perguntando a Teresa se Lunga não havia exagerado. Lá ela diz "não", e realmente não, afinal, foi oferecido àqueles uma ida ao museu. Aqui eu digo que Franco exagera sim. Ele não parece muito interessado em hastear bandeiras.
Miss Marx
3.3 13A trilha punk rock do início, se não dá o tom do desenrolar da narrativa, ao menos, deixa clara uma coisa: Susanna Nicchiarelli promove a cinebiografia de Eleanor Marx, filha de Karl Marx, como uma forma de rebeldia. Ora, a pioneira do feminismo socialista não é tão reverenciada quanto o pai (pelo menos no cinema), por isso, um filme desse, pra chamar atenção, tem que chegar chutando algumas portas.
No entanto, a rebeldia do punk não se vê aplicada nos meandros que Nicchiarelli percorre neste recorte da vida de Eleanor, também conhecida como Tussy. Se por um lado a personagem principal é excelentemente interpretada por Romola Garai - aliás, mais uma cinebiografia de Nicchiarelli na qual a atriz principal se destaca, a exemplo de Trine Dyrholm em Nico, 1988 (2017) - por outro lado, a história é completamente refém de suas agendas, seja a feminista, a socialista, a polícia e a documental.
Espanta descobrir que apenas Nicchiarelli assina o roteiro, pois a unidade do filme parece comprometida no sentido de que alguns temas surgem mais para pontuar as lutas de Eleanor do que são desenvolvidos com naturalidade. Quando fala sobre o socialismo, Eleanor olha para a câmera e discursa um monólogo. Quando fala sobre o feminismo, ela interpreta num teatro cômico. Quando luta contra o trabalho infantil, surge uma cena em uma fábrica. Cabe espaço ainda para colagens de fotos antigas de greves que dão estofo ao tema.
Mesmo refém dos temas, Nicchiarelli destaca com legitimidade a importância de Eleanor para as lutas que travava seja o movimento feminista socialista ou as ações contra o trabalho infantil.
Dessa forma, Miss Marx vale como registro desta personagem histórica, já como cinema, mesmo com um design de produção caprichado e uma trilha sonora punk, não derruba tanto o sistema assim.
Al-Shafaq - Quando o céu se divide
3.3 1Quando assisti a O Jovem Ahmed, em 2019, também na Mostra de São Paulo, ouvi e li comentários de colegas de que os irmãos Dardenne se apropriaram do lugar de fala das pessoas que são adeptas do Islamismo e que vivem em seu dia a dia as ameaças do Estado Islâmico.
Neste Al-Shafaq - Quando o Céu Se Divide, a diretora turca Esen Işık conta a história de uma família que se muda da Turquia para a Suíça e que desmorona quando o filho mais novo decide servir à Guerra Santa na Síria. Se no projeto há esse "local de fala" em Işık, na aplicação da linguagem cinematográfica ela parece muito mais preocupada em articular uma engenhosa estrutura em espiral para edificar uma premissa bem simples.
Se por um lado esse exercício estilístico foge aos padrões tradicionais de uma linha temporal progressiva, por outro lado, não há nada ali que necessitasse tantas articulações, já que a própria abordagem de Işık evita surpresas ou reviravoltas.
Desde a primeira cena, fica evidente que Işık não quer somente nos chocar. Ela inicia seu filme com uma cena bastante dramática e, embora não saibamos quem são aqueles personagens, a empatia por eles é sintomática. Aos poucos, Işık vai dando nós na estrutura do filme para nos apresentar a pessoas e tempos distintos, isso causa até certa confusão no primeiro ato, mas conforme ela vai desatando alguns destes nós, a ideia fica mais clara e o filme vai crescendo narrativamente.
Işık faz bom uso da premissa bastante simples para propor um filme-denúncia sobre a realidade de muitas famílias que nos últimos anos perderam seus jovens para a Guerra Santa. Ela repete o que pode ser visto em Adeus à Noite, de André Téchiné e Meu Querido Filho, de Mohamed Ben Attia, e talvez invente mais do que precisava, mas ainda assim, Al-Shafaq é um filme que tem sua força dramática ao expor um dilema que ainda aflige muitas famílias do Oriente Médio.
Apenas Mortais
3.8 4O que mais impressiona neste longa de Liu Ze, é o fato deste ser o seu primeiro trabalho e mesmo tendo em mãos um tema tão delicado quanto a doença de Alzheimer, ele não se rende ao maniqueísmo e trata tudo com respeito à doença e, principalmente, aos seus personagens, mostrando como cada um deles são afetados conforme a doença do patriarca vai se agravando.
Liu Ze mostra que o Alzheimer é uma doença que acomete não só o diagnosticado, mas também aqueles que o cercam. Para o pai é desumana e difícil a batalha praticamente perdida para uma doença degenerativa. À esposa, fica a tarefa nada fácil de cuidar do parceiro até seus últimos dias. E às filhas, cada uma ao seu modo, a dedicação ao pai.
Se para uma delas dar dinheiro para ajudar nos cuidados médicos é o suficiente, para Xian Tian sua presença 24 horas por dia é essencial. Com isso, ela sai de um relacionamento com um homem casado e, por acaso, se envolve com um rapaz solteiro que se mostra presente, dedicado e compreensível.
Se não há nada de novo em Apenas Mortais, é justamente na simplicidade com que Liu Ze nos revela o dia a dia daquela família que reside a força do filme e daqueles personagens. Sem julgamentos e sem dramatizações exageradas, a história tem lá seus momentos de Amour, de Michael Haneke, afinal, o Alzheimer não é uma doença das mais agradáveis de lidar.
Acaba que Apenas Mortais é como subir ao ringue para uma luta que sabemos que iremos perder, ainda assim, estar ao lado dos entes queridos faz daqueles momentos não menos dolorosos, mas reveladores de quem está ao nosso lado.
Limiar
2.4 3Duas das principais características dos filmes e do cinema são a possibilidade de viajar aos países mais distantes e a contemplação que o audiovisual permite. De alguma forma, o armênio Limiar possibilita ambas.
Ir à Armênia jamais passou pela minha cabeça e a fotografia de Moeinoddin Jalali é belíssima, com paisagens do inverno do país e planos abertos que destacam toda a solidão do personagem principal (e quase único) em busca de locações para seu próximo filme.
No entanto, o contemplar e o viajar, não bastam para que Limiar saia do patamar de filme vazio. Assisti-lo é como ficar olhando um álbum de fotos que não nos significam nada. Faltou à dupla de diretores Rouzbeh Akhbari e Felix Kalmenson conectar o público nessa jornada também. E quando a arte não consegue nos impactar ou sensibilizar de alguma forma é um problema.
Rebecca: A Mulher Inesquecível
2.9 333 Assista AgoraPor mais difícil que seja gostar deles, não sou o tipo de pessoa que cancela os remakes antes deles serem feitos, acho bobagem, prefiro assisti-los para, aí sim dar o veredito que o filme merece. Ao meu ver, não existem histórias que não podem ser contadas por outra perspectiva, embora concorde que o status de intocável de algumas obras se dê por motivos razoáveis, a exemplo da atemporalidade e uso da linguagem cinematográfica que acabam fazendo delas clássicos do cinema.
É o caso de Rebecca - A Mulher Inesquecível, clássico de Alfred Hitchcock de 1940, vencedor do Oscar de Melhor Filme, em 1941, e que permanece até hoje como a adaptação definitiva do romance homônimo escrito por Daphne Du Maurier, de 1938. Então, por que recontar tal história?
Ao final do filme pensei o mesmo. Por quê? Ora, se quer fazer um remake, seja pelo menos autêntico. Um exemplo é a recente versão de Suspiria, dirigida por Luca Guadagnino. O cineasta não fica à sombra do giallo setentista de Dario Argento, e dá uma nova roupagem à trama de bruxaria, fazendo de sua versão algo totalmente novo e contemporâneo. Ben Wheatley não consegue o mesmo com seu Rebecca. O respeito ao clássico está ali, em demasia. Com isso, seu filme esbarra em Hitchcock ao tentar ser uma versão do romance de Du Maurier.
Há mudanças, algumas leves e outras bem mais óbvias, como a fotografia colorida de Laurie Rose, que já havia trabalhado com Wheatley em outros de seus trabalhos, como o ótimo Kill List (2011) - inclusive, o diretor tenta trazer uma certa autenticidade em uma cena ritualística que é tão avulsa que não diz a que veio, apesar de ser um dos momentos mais interessantes do filme inteiro. Por isso, fica a decepção por Wheatley não ter colocado as asas de fora mais vezes.
Pelo fato de abandonar o preto e branco clássico que elucidava todo um ar gótico, Wheatley assume uma proposta bem mais romântica. No entanto, isso tira força de dois personagens essenciais à narrativa: a mansão Manderley e a ameaçadora Rebecca, que no clássico de 1940 agem quase como forças sobrenaturais. Aqui, tudo é sem vida e o resultado é um total desperdício. Melhor ficar com o clássico de Hitchcock - e alguém duvidava disso?
Verlust
2.5 8Tudo parece tão démodé e falso em Verlust, desde a explicação para o título do longa quanto os dramas de relacionamento entre a cantora Lenny (Marina Lima) e sua empresária Frederica (Andréa Beltrão).
É o típico filme white people problems que não tem como se sensibilizar, já que é difícil criar empatia por aquelas pessoas ou comprar seus dilemas, e sequer serve como uma crítica a este mundo elitizado.
E olha que o diretor Esmir Filho já tinha lidado com essa coisa da amizade num ambiente musical no bom Alguma Coisa Assim, só que aqui as relações têm todo o seu potencial desperdiçado.
Há um distanciamento intencional entre os personagens onde cada um parece viver no seu mundo, só que isso nos distancia de todo aquele universo e Filho não consegue deixar clara uma reaproximação entre eles, falta esse sol e essa gravidade para que haja uma união.
À exceção de Frederica, os demais personagens parecem existir apenas para que o filme pincele certos exageros.
O marido da empresária (Alfredo Castro) é um fotógrafo voyeur com motivações homossexuais, mas e aí?
O escritor João Wommer (Ismael Caneppele) que está escrevendo uma obra misteriosa é o gay que se identifica com a criatura que surge na praia, mas e aí?
A filha (Fernanda Pavanelli) de Frederica tenta defender a tal criatura num protesto ecológico, chegando a acampar na praia, mas e aí?
É tema em cima de tema que na realidade não dizem nada e transformam o filme numa bagunça só.
O que dizer então de Lenny? Marina Lima que ano passado foi premiada com o prêmio Ícone Mix no Festival Mix, onde teve exibição do documentário sobre sua vida e carreira intitulado Uma Garota Chamada Marina, serve apenas como antagonista à empresária interpretada por Beltrão.
Com pouquíssimas falas, algumas de suas canções servem à trilha, mas é pouco. Sua personagem repete boas vezes sobre o tal livro que está sendo escrito: não é uma biografia! O que é afinal este Verlust?
Falta justamente o que Filho queria transmitir: sutileza para que aquelas pessoas se entendam. Até o final é forçado. Tudo se resolve num sorriso seguido de beijo após uma discussão? Difícil de engolir.
Mamãe, Mamãe, Mamãe
3.5 7 Assista AgoraMamãe, Mamãe, Mamãe, primeiro trabalho de Sol Berruezo Pichon-Riviére mescla o estilo de Lucrécia Martel de O Pântano com a premissa do argentino Família Submersa (filme que assisti na Mostra de 2018) e pode ser definido como um coming of age feminino.
A jovem Cleo perde a irmã, afogada na piscina, e as primas Leoncia, Manuela e Nerina vão passar uma temporada na casa, onde a mãe de Cleo vive trancada no quarto, afundada em um luto depressivo. O que se vê então, são sopros de vida após uma tragédia que é capaz de arruinar com qualquer um.
Nesse universo bastante particular e idílico, as meninas passam por alguns dos muitos dilemas que as mulheres encaram na infância, a primeira menstruação, o primeiro beijo, o corpo em desenvolvimento, as brincadeiras, as histórias assustadoras e, obviamente, para Cleo, a saudade da mãe que, trancada no quarto, busca coragem para abrir a porta. Há vida lá fora.
Bem-Vindo à Chechênia
4.2 27 Assista AgoraUma das principais características do cinema é sua capacidade de dar voz às minorias. Num documentário, este "local de fala" pode ganhar ainda mais potência e relevância quando é dada a possibilidade destas pessoas contarem sobre seus próprios dramas e mostrá-los para o mundo.
David France registra os dias difíceis da Rede LGBT Russa e do Centro Comunitário de Moscou para Iniciativas LGBTI+ em algumas de suas manobras para ajudar e socorrer pessoas que correm risco de vida na Chechênia somente por serem homossexuais e lhes conseguir asilo em outros países.
Com uma contextualização exemplar, compreendemos de onde vem o ódio pelos gays (na voz do líder da Chechnya eles são sub-humanos) e, infelizmente, assistimos a alguns vídeos de tortura e agressões (o documentário tem cenas fortes e explícitas, por isso, é recomendado para maiores de 18 anos).
Como num filme de sobrevivência, existem alguns momentos de tensão, a exemplo do resgate de uma jovem que corre o risco de ser interceptada ao tentar deixar o país, e também quando Maxim Lapunov decide ser a primeira vítima a expor seu rosto, como um herói que revela sua identidade secreta, e contar toda a crueldade que sofrera quando preso para entregar outros gays como ele.
E é exatamente aí, quando conhecemos quem são as pessoas que sofrem com tais ameaças diárias (com uma ótima aplicação de deepfake para proteger a identidade das vítimas), que o documentário humaniza e nos emociona.
Um registro doloroso e essencial para tempos nos quais governos cada vez mais extremistas vêm ocupando o poder de nações grandiosas e de dimensões continentais, como o Brasil. É revoltante ver tanta atrocidade em pleno 2020 ao mesmo tempo que é importante que este documentário se espalhe.
Mate-o e Deixe Esta Cidade
3.3 6Dizem que quando estamos prestes a morrer, um filme de nossas vidas passa em nossa mente. Ora, como um filme de tudo o que vivemos poderia transcorrer diante de nós em milésimos de segundos? - pensa o questionador mais ávido. Esse questionador até tem razão, embora, nesta animação, Mariusz Wilczyński consiga nos exemplificar como seria o filme de sua vida.
Não que o diretor faça isso em milésimos de segundos, mas, em pouco mais de 80 minutos, Wilczyński traz memórias, personagens, lugares, sons, refaz momentos e creio que até gostaria de exalar aromas e cheiros, caso o cinema assim permitisse. É como se Mariusz Wilczyński fizesse o seu próprio "Quero Ser John Malkovich". O diretor abre a porta de sua mente e nos convida a adentrá-la. Passamos de cômodo em cômodo conhecendo e revivendo passagens marcantes da vida azul do artista.
O fundo de papel amassado em algumas destas passagens exibe o poder do audiovisual, e numa animação tão livre de amarras, onde imagens abstratas e metáforas visuais parecem ter saído do sonho mais estranho, tudo é tão anacrônico que não há nada que nos faça questionar o que é certo ou errado, o que faz sentido ou não.
Acaba que Mate-o e Deixe Esta Cidade é mesmo uma viagem sem roteiro à mente de Wilczyński, daquelas mais longas e difíceis, afinal, ele próprio levou em torno de 15 anos para conseguir finalizar o projeto. E nem vejo muito sentido em querer compreender tudo o que está ali, fica óbvio que muito do que se passa só faz sentido na mente do próprio Wilczyński.
Naqueles rascunhos das mais diferentes épocas, seja da infância com os pais ou da velhice com a mãe moribunda, o filme ganha força justamente por conseguir transmitir passagens da vida de uma pessoa de uma forma que só o cinema seria capaz.
O Tremor
3.1 2Em 1992, o iraniano Abbas Kiarostami dirigiu a segunda parte da trilogia Koker. No filme intitulado E a Vida Continua, um diretor e seu filho viajam à região de Koker, atingida por um terremoto, local no qual o cineasta havia feito um filme há alguns anos e volta em busca daqueles que atuaram em seu longa.
A dois países dali, na Índia, é possível identificar algumas similaridades em Tremor, filme do diretor estreante Balaji Vembu Chelli. O protagonista é um jornalista que viaja à região de Kookal para realizar uma reportagem sobre um terremoto que, aparentemente, arruinou todo um vilarejo.
Em sua jornada, o jornalista parece viver seus dias de Alice ao seguir por estradas sinuosas e adentrar em uma vila cada vez mais coberta por uma densa neblina. As poucas pessoas que lhe aparecem são estranhas, algumas lhe dão informações desconexas, outras lhe pregam peças e outras lhe ameaçam.
A sensação de estranheza vai tomando conta da narrativa e, diante de tantas voltas, a impressão de que um curta estruturaria melhor a jornada do jornalista começa a ficar evidente. Chelli se interessa tanto pelos sons da natureza quanto pela trilha sonora sempre presente, o silêncio do protagonista diante de tanto estranhamento meio que evoca essa sensação de não pertencimento.
Por alguns momentos, há uma tentativa intrigante de seguir pelo caminho do realismo fantástico e essa, talvez, seja melhor recebida pelo público indiano. É um filme bastante regional, de idas e vindas, desencontros, desinformações e voltas em círculo que parece não chegar a lugar algum. O final é abrupto e, se não corresponde às expectativas criadas durante a jornada, pelo menos, o sorriso do jornalista deixa a impressão de que para ele valeu de algo.
Os 7 de Chicago
4.0 580 Assista AgoraO novo longa de Aaron Sorkin (roteirista do excelente A Rede Social e que estreou como diretor no bom A Grande Jogada, de 2017) é o exemplo de que algumas histórias, talvez, fiquem melhores nos livros.
O maior problema de Os 7 de Chicago é que Sorkin parece um diretor tão apegado à agenda daquele acontecimento histórico (estão ali os fatos, a contextualização da época e os principais personagens), que a direção carece de maior personalidade e os personagens são meras peças de um jogo ardiloso de poder e ideologias, sem quaisquer traços que poderia humanizá-los. Tudo parece muito asséptico, no sentido de que qualquer um poderia ter dirigido aquele filme, pior: a sensação é de que vê-lo e ler um resumo sobre o fato dá no mesmo.
O lado bom do roteiro de Sorkin é que ele evita explicações demasiadas (mas lá no final aquelas letrinhas explicando o que se deu com cada um daqueles homens aparecem). Dessa forma, já somos jogados diretamente no tribunal onde os sete homens, ou melhor, oito (o julgamento de um deles é anulado depois), estão sendo condenados por incitarem a violência e de conspirarem contra a Guerra do Vietnã em função da Convenção Nacional Democrata ocorrida em 1968, em Illinois, Chicago. Toda essa contextualização é exemplar, e Sorkin comprova que é um roteirista capaz de facilitar sem subestimar.
Se você não conhece a história dos Sete de Chicago, talvez queira pesquisar sobre ela depois (o filme não ajuda a entender as motivações de muitos lados da história), e assistindo ao filme é fácil compreender que as intenções de Sorkin estão em evidenciar como o governo norte-americano (e não só o de lá) sempre teve medo da ameaça comunista, esquerdista, ou seja lá como você queira defini-la. Fazendo daquele julgamento algo político para servir de exemplo a futuros revolucionários.
Não gosto de definir filmes como "chatos", e roteiros anteriores de Sorkin comprovam como ele é capaz de tornar dinâmicos alguns assuntos menos comuns nas discussões de brasileiros, como o beisebol (O Homem que Mudou o Jogo) e o pôquer (no já citado A Grande Jogada). Aqui, a dinâmica é limitada (culpa dos filmes de tribunais) dando espaço a um certo didatismo que não atrapalha, pelo contrário, o personagem de Mark Rylance é, inclusive, moldado para servir como um pilar aonde o espectador irá se apoiar para entender muito do que está sendo dito e retrucado aqui e ali (inclusive, não me espantaria se o ator fosse indicado ao Oscar).
No entanto, as demais atuações apenas cumprem protocolo. Sacha Baron Cohen é o alívio cômico (que tem algumas cenas extra tribunal que soam avulsas) e Eddie Redmayne está em seu personagem mais cru, livre de tiques ou de maquiagem pesada, desde que me lembro de tê-lo visto em algum filme pela primeira vez.
Ao final, Os 7 de Chicago parece aquele filme que servirá para os preguiçosos conhecerem um fato da História através da telona (ou da telinha, maldita pandemia), o resultado não chega a ser desastroso, só que a execução é tão truncada, e Sorkin já provou que pode superar a limitação cinematográfica de alguns temas, que o saldo é bem irregular.
O Problema de Nascer
2.9 16Qual é o problema de nascer? Para nós, humanos, talvez essa pergunta nunca seja respondida. Para as inteligências artificiais, uma das perspectivas do tal problema pode ser vista nesta ficção científica distópica de Sandra Wollner.
A jovem Elli é uma androide que convive com um homem mais velho, aparentemente seu pai. Conforme a historia se desenvolve, algumas insinuações começam a acontecer. O filme vai ganhando um tom provocativo e incômodo, flertando com a pedofilia; os mais sensíveis, com certeza, abandonarão a sessão, como aconteceu na exibição do filme no Festival de Berlim. Assistindo ao filme em casa, em cabine on-line da 44ª Mostra de São Paulo, resisti para entender o propósito daquilo.
Fica evidente que há algo de estranho naquela relação, mesmo que Wollner evite explicitar, ainda assim, algumas sutilezas se sobressaem e acabamos pescando a verdade por detrás daquilo. Com algumas cenas acumuladas, fica difícil definir aonde Wollner quer chegar.
Seria uma crítica à exploração das máquinas pelo homem? Seria uma amostra de como é impossível preencher espaços que ficaram vazios pela ausência de um ente querido? Seria uma intencional provocação à questão da pedofilia como doença enquanto mentalizada e crime quando praticada? Mesmo com tantas perguntas, o longa não nos oferece muito sobre o que se pensar a respeito de cada uma dessas possibilidades, tudo fica pelo caminho.
Sem dúvida, Wollner traz um prisma diferente para a relação entre homem e máquina aonde nem Ex_Machina (2014) e o episódio Be Right Back, da segunda temporada de Black Mirror (2013), tiveram coragem de ir. Afinal, as crianças, mesmo que máquinas "sem vida", são seres imaculados. Por isso, parece que a intenção não é outra se não provocar e incomodar.
Com muitos silêncios, escuridão e um tom melancólico, O Problema de Nascer nos reserva ainda uma mudança de perspectiva no terceiro ato que também não diz muito a que veio, essa parece servir para lançar outra pergunta em cima do título: qual o problema em encarar a morte?
Cook, F**k, Kill
2.6 5Eu adoro a comédia francesa "Eu Não Sou um Homem Fácil", da Netflix, na qual a diretora Éléonore Pourriat propõe uma sátira sobre os privilégios dos homens na sociedade. Em seu filme, Pourriat ridiculariza esta sociedade patriarcal mostrando o quanto é bizarro que o homem domine e tenha liberdades com as quais as mulheres sequer podem sonhar em repetir. O resultado é divertido e agradável, justamente por nunca propor que aquele seja o mundo no qual as feministas querem viver. Ela apenas provoca.
Neste Cozinhar F*der Matar, a diretora eslovaca Mira Fornay inicia com proposta semelhante, no entanto, seu filme vai se tornando cada vez mais desinteressante e confuso. Na história, o tímido e reprimido Jaroslav (Jaroslav Plesl) é colocado ao centro de uma trama onde ele é alheio às mulheres, sua esposa Blanka é uma policial e as mulheres da vizinhança são abusivas com ele. Seria divertido se a história seguisse por este caminho, podendo servir como crítica social, ainda mais em um país do leste europeu onde as mulheres geralmente são vistas como símbolos sexuais.
Só que a partir de certo acontecimento ao final do primeiro ato, Fornay mostra que sua intenção é emular uma estrutura narrativa no estilo de Corra, Lola, Corra. É dada outra chance a Jaroslav de tentar colocar as coisas nos eixos, obviamente, tudo piora. Errático e mais uma vez suscetível aos mandos e desmandos dos outros, Jaroslav já não tem autonomia nenhuma sobre aonde quer chegar, a ponto de exclamar: se tivesse nascido mulher nada disso teria acontecido.
É difícil identificar a proposta de Fornay e, claramente, a falta de coesão impossibilita essa tal identificação. O longa se arrasta entre escolhas gratuitas (culminando numa cena com uma criança em um lago, completamente desnecessária) e numa trama bizarra que beira ao insuportável. O resultado é absurdo e desconexo. O filme fica na intenção: causar desconforto, custe o que custar. Em mim causou somente indignação pelo tempo perdido.
Enola Holmes
3.5 816 Assista AgoraSe você não conhece a história de Sherlock Holmes, talvez nem saiba que ele tem uma irmã: Enola Holmes; e é louvável que finalmente a personagem ganhe as telas - ainda mais no maior serviço de streaming do mundo - após tantas adaptações das histórias do irmão. No entanto, aplaudir o feito e achar a proposta bacana são uma coisa, e estou aqui para falar de sua execução que, a meu ver, fica devendo.
Baseado no primeiro livro da série de contos escritos por Nancy Springer, Enola Holmes é a história da jovem espirituosa que vive com a mãe Eudora (Helena Bonham Carter), de quem recebe ensinamentos de pintura e artes marciais, indo de desencontro aos modos da época: mulheres deveriam costurar e frequentar aulas de etiqueta e piano. No dia em que Enola (Millie Bobby Brown) completa 16 anos, sua mãe Eudora desaparece, deixando a garota sob a tutela do irmão mais velho, Mycroft (Sam Claflin), avesso à criação que Enola recebia. Para fugir do internato, Enola parte em busca da mãe, cruzando caminhos com um jovem lorde (Louis Partridge) que corre perigo.
Se por um lado a espirituosa Enola esbanja vitalidade e coragem, infelizmente, sua história não segue o mesmo ritmo. Do romancezinho com o jovem lorde aos vilões cheios de caras e bocas, tudo o que vemos aqui vem numa fórmula requentada que já foi contada centenas de vezes e da qual o diretor Harry Bradbeer não consegue fazer muito caldo. Até Henry Cavill, em dias de Sherlock Holmes, parece fazer uma ponta para ajudar na publicidade do filme - e não me interpretem mal, longe de mim querer protagonismo maior do Sherlock na história da irmã, mas não entendo a presença de um ator tão chamativo sendo que ele sequer é tão essencial à narrativa.
Decepciona ainda mais saber que Bradbeer é responsável pela direção de alguns episódios da originalíssima série Fleabag - como faz falta uma Phoebe Wallter-Bridge envolvida aqui. E como se não bastasse a fraca inspiração no roteiro de Jack Thorne - o humor e a ação, que poderiam ser um diferencial, praticamente inexistem - Bradbeer ainda usa o efeito de quebra da quarta parede exaustivamente, logo, o que parecia divertido vai se tornando cansativo, chegando ao ponto das quebras serem irritantes.
Em suma, o filme carece em coesão e originalidade, e o saldo final é uma história prolongada demais que vai se tornando cada vez mais genérica. O pano de fundo dos movimentos sufragistas da Londres do fim do século 19 e a busca pela mãe desaparecida eram tão mais promissores... Acaba que Enola Holmes padece sob uma fórmula batida que torna o filme medíocre. Francamente, já estou cansado do termo "padrão Netflix", só que é difícil não encaixar Enola Holmes nele.
Lindinhas
3.0 195 Assista AgoraSou contra qualquer radicalismo do tipo: não lance esse filme ou não assista a esse filme. A arte está aí para nos fazer analisar e refletir e, dessa forma, refinar nosso gosto e expandir nossos horizontes. Ora, se você critica algo que sequer assistiu, você não está propondo um debate e muito menos pensando por si, você está apenas ecoando a ideia de outro.
No caso de Mignonnes, noto um exagero na onda de ódio que o filme sofreu. Por um lado, o primeiro pôster lançado pela Netflix realmente era de mau gosto, porém, no filme, as intenções da diretora Maïmouna Doucouré me parecem tão claras que não enxergo maldade alguma em sua direção. Sim, em algumas cenas de dança os closes passam do limite - proposital talvez? - Mesmo assim, considero o que ela faz bem diferente do que José Padilha faz ao filmar a violência de Tropa de Elite e se deslumbrar com ela - Padilha tem que comer muito arroz e feijão pra chegar aos pés do que Paul Verhoeven faz em Tropas Estelares, ali sim uma crítica contundente.
Só que Mignonnes não é um filme de guerra e suas atrizes (na faixa dos 11 anos) sequer estão ali para fazer coro de que elas têm autonomia sobre seus corpos para sair por aí desfilando como a nova geração feminista.
O que mais me deixa indignado, é ver pessoas que cresceram assistindo à banheira do Gugu em plena tarde de domingo e curtindo diversos grupos de axé que exploravam crianças em roupas ainda mais minúsculas querer falar sobre exposição de menores aqui. Hipócritas.
Longe de transparecer isso, o filme deve ser criticado, a meu ver, por Doucouré não conseguir ir tão a fundo quanto poderia em sua crítica. Ela facilita tanto para o espectador que é impossível pensarmos fora da caixinha. Sua mensagem é óbvia: crianças são moldadas pela sociedade e pelos pais, o que elas vêem e escutam, elas repetem. Falta perspectiva. Doucouré até tenta ousar com toques de realismo fantástico, propondo à protagonista vivida por Fathia Youssouf Abdillahi um rito de passagem, mas são cenas tímidas.
Ao final, a polêmica pode até ajudar o filme, pois quem tem a mente aberta e se propor a assisti-lo pode se surpreender com um filme sem qualquer tipo de apologia. Eu sou prova.
O Diabo de Cada Dia
3.8 1,0K Assista AgoraApós Estou Pensando em Acabar Com Tudo, drama que não facilita em nada a vida do espectador, a Netflix chega com mais uma obra espinhosa em 2020 – aquela que promete ser a temporada mais prolífica para o serviço de streaming nas premiações que estão por vir.
Durante sua ainda curta carreira cinematográfica, o diretor Antonio Campos vem lidando com assuntos delicados, seja a depressão (Christine, de 2016) ou as drogas (Depois da Escola, de 2008), passando até pelos filmes de gênero em um intrigante thriller psicológico em seu segmento na coletânea Feito em Casa (Homemade), também lançada pela Netflix este ano.
Chegando no serviço de streaming amanhã, 16 de setembro, O Diabo de Cada Dia é um filme desesperançoso, onde Campos segue com rigor seu estilo nada otimista de contar suas histórias.
Baseado no romance de Donald Ray Pollock, Campos toca na ferida com um filme repleto de violência e uma potente discussão acerca dos malefícios dos excessos da fé, evidenciando as corrupções diárias de pessoas que fazem do mundo um lugar tão doentio.
De cara, o elenco chama a atenção: do fiel pai de família de Bill Skarsgård ao pastor profano de Robert Pattinson, do casal perverso vivido por Jason Clarke e Riley Keough, ao xerife corrupto de Sebastian Stan. Neste mosaico coberto por um cenário pós-guerra, os moradores de Knockemstiff têm suas vidas entrelaçadas de forma bem sinistra.
E com um elenco tão estelar, é prazeroso notar como Campos sabe utilizá-los de forma crucial na narrativa, mesmo que pareça abandonar alguns deles.
Ora, quando lemos a Bíblia sabemos que Adão e Eva não irão nos acompanhar até o final, e é o mesmo que acontece aqui: quem aparece em tela nos traz uma mensagem clara e evidente.
E não faço essa alusão à Bíblia por acaso, aqui, observamos tudo aos olhos e voz do narrador (uma espécie de Deus: onisciente e onipresente) e, dentre tantos personagens, falhos, corruptos, vítimas, inocentes e justos, não há ninguém desperdiçado, ainda que alguns tenham mais destaque do que outros.
Assim, reside justamente no personagem de Tom Holland, o jovem Arvin Russell, a bússola moral de O Diabo de Cada Dia. Os personagens ao seu redor são tão cheios de imoralidade e crueldade que podemos traçar um paralelo entre Arvin e o Jó da Bíblia.
Jó era rico, paciente e temente a Deus. Vendo aquilo, o diabo confronta Deus dizendo que Jó só é temente a ele porque tem saúde, propriedades e riquezas, e faz um aviso: tirarei tudo dele para provar que sua fé é falível.
Deus concorda, e o diabo foi tirando tudo de Jó: seus animais, sua família, seus bens e sua saúde. Mesmo assim, Jó se manteve fiel a Deus, aceitando tudo: “se aceitamos os bens de Deus, por que não aceitar também os seus males?”.
Meio que sem querer, Arvin sofre com este diabo de cada dia e segue nessa via crucis como um rito de passagem. A devoção cega de seu pai, de alguma forma, reflete em sua trajetória árdua e sofrida. Calejado, mesmo tão jovem, ele abre os olhos quando mais precisa deles para sobreviver.
Neste minucioso trabalho, Antonio Campos articula como a religião e a própria fé, se manipuladas para tal, são capazes de causar sofrimento às pessoas inocentes. Acaba que a fé, naquela Knockemstiff, não é o caminho, mas uma ferramenta do mal nas mãos de pessoas fracas que cedem aos desejos do diabo e que sucumbem aos olhares de Deus.
O Diabo de Cada Dia
3.8 1,0K Assista AgoraNum elenco tão chamativo, meu destaque vai para Tom Holland, creio que no grande papel de sua carreira até aqui. Não que ele mereça uma indicação ao Oscar, mas seu personagem é difícil e ele convence. Já Pattinson tem pouco tempo de tela para mostrar algo a mais, sua participação me lembrou a ponta que teve em O Rei (The King, 2019), outro longa da Netflix, mesmo jeitão, preso ao forte sotaque e aos tiques.
Creio que o filme irá agradar aos fãs de Onde os Fracos Não Têm Vez e Animais Noturnos, Campos constrói muito bem essa áurea soturna, macabra e violenta, mas poderia ter ido além no humor. Não chego a classificar o filme como um neo-noir (li algo do tipo por aí), venderia como um drama ou thriller que vale a pena ser visto tanto pelo elenco encabeçado por um surpreendente Tom Holland quanto pela reflexão acerca dos malefícios do excesso da fé.
Depois escrevo mais.
A Babá: Rainha da Morte
2.8 376 Assista AgoraQuando assisti ao primeiro A Babá em 2017, tive a impressão de que o filme desperdiçava uma ótima oportunidade dentro do slasher, nada ali era novo e o grafismo das cenas e a ironia das falas só reforçavam sua pegada cool, como num exercício de homenagens jogadas a esmo, com isso, o filme se limitava a ser uma sessão pipoca divertidinha voltada ao público teen com referências retiradas de filmes e séries.
Com o lançamento desta sequência, decidi rever o primeiro filme para refrescar minha memória, só que a revisão não foi lá muito prazerosa. Como falei, ficou ainda mais claro que as referências são jogadas no meio da história, que já é um fiapo. Ao menos, o protagonista Cole (Judah Lewis) é um pré-adolescente bem menos irritante que os de outros filmes do gênero - como o de Better Watch Out - mas a força do filme estava no timing e carisma de Samara Weaving: hipnotizante como uma babá do mal deveria ser.
Para esta sequência, o diretor McG não conta mais com o roteirista Brian Duffield, agora o roteiro é de Dan Lagana, e a diferença é gritante. Estão ali novamente as referências que mostram a paixão da equipe por cultura pop, cinema e séries, mas aqui as referências funcionam com propósito na narrativa: uma música vira uma senha de acesso, uma referência ao terror contemporâneo soa hilária vinda de um personagem negro, enfim, há um capricho nos diálogos.
No que tange à violência, esta sequência vai além do primeiro, no sentido de exagerar mesmo (o que deixa tudo ainda mais divertido), algumas mortes são bem mais violentas que as do filme original e os momentos de vergonha alheia praticamente não existem - ridícula a sequência do primeiro filme na qual Max, o cara sem camisa, faz Cole se vingar de seu bully, péssima e só serve pra encher linguiça no filme que já é bem curto (menos de 90 minutos).
Aliás, este é outro trunfo desta sequência, por mais que demore um pouco a engrenar - e McG faz isso para nos apresentar à boa personagem Phoebe, vivida por Jenna Ortega, além de dar mais minutos à vizinha Melanie (Emily Alyn Lind), totalmente subutilizada no primeiro filme - na segunda metade, o filme entra numa reação em cadeia de acontecimentos que nos deixa meio aquém do que está acontecendo ali mas sem perder seu ritmo envolvente, nos levando junto de tanta loucura, gritaria e correria. É aquele tipo de exagero que dá certo.
Ao final, A Babá: Rainha da Morte não deixa de ser uma farofada, mas como diz Cole ao final do primeiro filme: é ficção científica, você pode fazer qualquer coisa. E aqui, McG leva isso ao pé da letra, com muitos exageros, acertando em cheio no humor, nas referências e dando um final digno para todos os personagens, essa é a sequência que os fãs e os nem tão fãs, como eu, esperavam. Tem ainda uma curta cena pós-créditos que não diz muito a que veio, mas com um possível sucesso desse é de se pensar que A Babá vire uma trilogia.
Estou Pensando em Acabar com Tudo
3.1 1,0K Assista AgoraCharlie Kaufman roteirizou alguns dos filmes mais desafiadores dos últimos anos no cenário norte-americano, de Quero Ser John Malkovich a Anomalisa, histórias que manipulam o tempo, brincam com a metalinguagem e questionam a condição humana a partir da sensação de pertencimento dos personagens. Sua filmografia enquanto roteirista acabou consolidando sua imagem de autor, já como diretor, Kaufman ainda parece caminhar preso a alguns truques para facilitar ao espectador, vide o nome do hotel em Anomalisa.
Em Estou Pensando em Acabar com Tudo,
Kaufman nos brinda com aquele que talvez seja seu filme mais difícil de ser definido. Não é a toa que ele o recheie com referências, não só cinematográficas: mais uma vez estão ali as facilidades para o espectador mais desatento. E confiem em mim, esse não é o tipo de filme que você irá ver somente uma vez.
Se lá em 1974 John Cassavetes realizava uma das análises mais cruas e realistas sobre a condição da mulher/mãe/esposa em Uma Mulher Sob Influência, aqui Kaufman nos entrega, ao seu modo, um dos filmes mais intrigantes e desconfortáveis do ano e que, de certa forma, também propõe uma análise do papel da mulher, repleto de ironias e metalinguagens que fariam David Foster Wallace ressuscitar para aplaudi-lo.
A diferença é que, no clássico de Cassavetes, o estranho parecia residir na Mabel de Gena Rowlands e percebíamos aquilo junto dos demais personagens (a cena da macarronada deixa claro como ela não estava bem). Aqui, a jovem interpretada pela ótima Jessie Buckley nota todo o estranhamento ao seu redor (também numa cena à mesa!) e quebra a quarta parede, não de modo descarado como a Fleabag de Phoebe Waller-Bridge, mas de forma bem mais sutil, indo até de desencontro com a pretensão de Kaufman.
Voltando às referências, Kaufman toma emprestado as palavras da crítica americana Pauline Kael acerca dos exageros de Gena Rowlands ao retratar uma mulher esquizofrênica em busca de sua libertação. Essa crítica, de certa forma, pode recair sobre Estou Pensando em Acabar com Tudo. Sem sutileza e novamente de forma pretensiosa, Kaufman nos desafia a ler e questionar seu próprio filme por uma perspectiva que já parece vir sinalizada (e isso pode ser um problema). Por outro lado, é uma muleta bem menos óbvia que ele busca para elucidar aonde quer chegar – ou por onde devemos ir.
Ao final, você pode fazer como Pauline Kael e criticar os excessos ou então embarcar na proposta ousada de Kaufman que, de modo bem mais sutil em seu subtexto (e aí está o que me fez gostar tanto do filme, ainda mais na segunda visita), fala também sobre o tempo (e como ele passa rápido), relacionamentos (os que não valorizamos e os que não somos valorizados) e também sobre a velhice de nossos corpos (um dia tão belos quanto uma sorveteria no meio do nada, outro dia tão necessitados de algo para chamar atenção como um balanço novo na frente de uma casa velha).
Estou Pensando em Acabar com Tudo é o tipo de filme autoral que a Netflix estava precisando.
Emma.
3.4 290 Assista AgoraFilmes de época nos quais a direção de arte é pomposa, os atores têm composições mais teatrais, os vestidos e penteados são chamativos e os textos são rápidos, rebuscados e cheios palavras que já saíram de moda têm se tornado cada vez mais escassos.
Emma. é baseado no romance homônimo de Jane Austen, publicado em 1815. Particularmente, prefiro quando essas obras subvertem o gênero, é o caso de As Patricinhas de Beverly Hills (uma versão moderna de Emma) e A Favorita (no qual Yorgos Lanthimos chacoalha a realeza com uma Emma Stone danadinha). Por isso, confesso, fui com o pé atrás neste longa de estreia da diretora Autumn de Wilde e roteiro de Eleanor Catton.
Quão grande foi a minha surpresa ao ir me deparando com a forma com que o filme de de Wilde assimila a ironia do texto de Austen aos nossos tempos mas também depende de toda a teatralidade que uma adaptação como essa exige, com isso, é difícil não se envolver com a personagem de Anya Taylor-Joy (ótima) que, assim como a Cher de Alicia Silverstone, conduz a trama e os personagens a seu bel prazer. Casamenteira, ela não quer (e nem espera) o mesmo para si, completamente independente, a ela só interessa cuidar do velho pai (vivido por Bill Nighy) e permanecer no centro das atenções.
Aos poucos, a "bonita, inteligente e rica" Emma é despida de todo esse tradicionalismo ao ir se envolvendo e conhecendo as maldades e fragilidades dos outros ao mesmo tempo que passa a enxergar as próprias, a personagem que nos é apresentada já pré-definida em uma linha com 3 palavras vai ganhando parágrafos, adjetivos e parênteses. Ora, aquele ponto final do título poderia muito bem ser uma vírgula, não?
No geral, Emma. não se preocupa em se livrar das amarras e do estilo clássico de Jane Austen, no entanto, o longa é de uma força incrível por justamente demonstrar uma autossuficiência dentro de um estilo já tão delimitado. Pode não ser tão bom quanto Orgulho e Preconceito (2005) - creio que a melhor adaptação de Jane Austen -, mas merece entrar para o hall de melhores adaptações da autora, e ponto final.