O maior problema de Harriet é o grande problema de várias outras cinebiografias, tenta dar conta de muitos anos e muitos acontecimentos em apenas 2 horas, e isso nunca é bom, o ritmo é apressado, as coisas vão acontecendo sem impacto, por isso, muito precisa ser dito pelos personagens, de maneira bem didática e expositiva. Apesar disso, gosto do tom que o filme assume a partir de certo ponto, retratando Harriet como uma lenda, um mito, uma heroína mesmo, alguém que desafiou seu triste destino sem medo de encontrar a morte e sonhando com sua liberdade e a de seus amigos e familiares. Cynthia Erivo está grandiosa em cena, só poderia ter cantado mais. É um filme que não ofende, mas também não ousa em nada. A diretora Kasi Lemmons entrega uma história formulaica apenas visando prêmios, pelo menos a música Stand Up é digna deles.
O cinema polonês - e do leste europeu - encanta a Academia, só a Polônia tem 4 indicações a filme estrangeiro/internacional nos últimos 9 anos, inclusive, levando o prêmio em 2015, com Ida. Por isso, não dá pra tratar Corpus Christi como uma surpresa, mesmo que ninguém apostasse nele - e levando em conta os filmes da shortlist aos quais eu assisti (só não vi o tcheco e o estoniano), pela média, ele estaria entre os meus 5 indicados.
O diretor Jan Komasa tem o filme nas mãos e sabe por onde embrenhar sua câmera e quando estagná-la, gosto muito da forma como ele conduz uma narrativa clássica (o pária jogado em uma sociedade segregadora e imbuído de consertá-la) enquanto vai abalando os pilares dessa estrutura justamente com seu principal elemento, trazendo uma visão moderninha e até ousada por meio da figura de Daniel (Bartosz Bielenia), permitindo arriscar em breves momentos cômicos - comicidade que se apresenta desde a sinopse: um detento que quer ser padre e que acaba assumindo esse papel ao chegar em um vilarejo e ser confundido como o novo pároco da igreja local.
Fala muito sobre olhar o passado para salvar o futuro, sobre aceitar as desculpas dos outros, sobre não assumirmos os nossos pecados e até onde seríamos capazes de ir sabendo que estamos em pecado - ou para os não-cristãos: sendo anti-éticos. O filme traz uma mensagem de fé e espiritualidade, uma parábola mesmo - que permite até a analogia com Jesus e seus apóstolos, do traidor à prostituta - Komasa valoriza a cinematografia, típico do cinema polonês, vide os recentes Ida e Guerra Fria, e aqui, a personalidade forte de David - presa em um corpo jovem, tatuado e prestes a explodir - luta para brilhar em meio ao verde opaco e granulado da fotografia que ganha um tom de vermelho bem ao final, a muito custo e com muita dor. Enfim, aquele corpo é livre, sua missão foi cumprida.
É a perfeição em termos de cinebiografia justamente por entender a complexidade de seu biografado, um símbolo da contracultura que reunia a força dos Beatles em um só, fugindo das convenções do gênero, esmiuçando as personas e fases de sua carreira de maneira ousada e original, como se espalhasse suas ideias, pensamentos e ideais como cartas sobre a mesa.
Tanta ousadia poderia dar muito errado justamente por não seguir uma cartilha - não há datas, nome das músicas, nem nomes reais -, e acaba sendo genial por Todd Haynes não subestimar o público - fã de Dylan ou não - que aos poucos vai percebendo o que está testemunhando - e alguns podem se decepcionar - passando a ansiar pelo que virá a seguir: qual carta será empunhada? Passamos de um garotinho a um senhor em questão de minutos.
A coisa toda ainda ganha um charme especial com o elenco de peso e diversificado, destaque para Cate Blanchett e Christian Bale que entendem bem as personalidades que devem representar, ela transformada no estilo próprio de Dylan - óculos escuro, respostas ácidas e cigarro na mão - ele na dublagem e nos palcos, e claro vale destacar também a fotografia e a montagem, essenciais para se fazer cinema e nos mergulhar na mente complexa de Bob Dylan .
Existem pelo menos dois momentos em Joias Brutas que me chamaram a atenção. O primeiro deles dura pouco e pode passar despercebido para muitos. Na sequência em que Howard, personagem de Adam Sandler, leva seu filho ao seu apartamento e lhe fala sobre um vizinho que fora um famoso da TV, e o tal vizinho - ninguém menos que John Amos - o responde grosseiramente, o filho de Howie (me permitam a intimidade) o chama de "babaca", eis que Howie fala: pare com isso, ele é uma lenda. Ponto. Todos sabemos que Sandler sempre foi atacado em toda sua carreira (sim, ele tem culpa pelas diversas escolhas que tomou), no entanto, ele nunca foi, de fato, um mau ator. Se ele não é um camaleão como Christian Bale, por exemplo, ele vai muito bem fazendo o homem médio norte-americano sofredor que sempre carrega consigo uma inocência quase infantil - e já havia deixado claro em Embriagado de Amor que trabalhando com as pessoas certas se sai bem.
O outro momento é quando Howard assiste a um jogo de basquete pela TV. Essa sequência logo me remeteu a uma passagem semelhante em Um Estranho no Ninho - e não só porque é fácil imaginar Sandler sendo intitulado como um estranho no ninho dividindo uma mesa com Robert De Niro, Leonardo DiCaprio e Joaquin Phoenix - quando Jack Nicholson torce, vibra e exclama diante de uma TV desligada para seus companheiros de enclausuramento, transmitindo a todos eles uma esperança, exaltação e felicidade que quaisquer esportes dão aos seus fãs. Nesta cena de Joias Brutas também está exposto nos berros, gritos e vibração de Howie todo seu sentimento de alívio, glória e libertação.
É por tudo isso que Sandler cai como uma luva no papel deste joalheiro judeu buscando se dar bem, mesmo que seja por meio do dinheiro, a assinatura dos irmãos Safdie tá ali a todo instante, da trilha sonora sintetizada à montagem acelerada, não há respiro e há pelo menos uns três momentos de puro sufoco para o protagonista. O resultado é uma experiência frenética que pode ser vista além da embalagem de thriller. Depois das muitas porradas, escolhas equivocadas e tentativas de dar a volta por cima, o momento de glória de Adam Sandler não poderia ter vindo em melhor hora, essa tour de force dignifica um dos atores mais subestimados de Hollywood. Que lhe sirva de chacoalhão.
Este poderia muito bem ser um capítulo do longa O Nó do Diabo (2017), antologia brasileira que reúne 5 histórias que se passam em um mesmo solo (que vai mudando de fazenda a engenho) onde o preconceito racial é tratado como uma herança incrustada em nossas raízes desde os primórdios do colonialismo.
A história de Açúcar se passa numa fazenda, localizada na Zona da Mata de Pernambuco, onde funcionava um engenho de açúcar, o Engenho Wanderley. O local pertence à família de Maria Bethânia (Maeve Jinkings) que retorna às suas terras para assumir os afazeres, pagar as contas e lidar com os trabalhadores remanescentes que reivindicam a propriedade sobre as terras.
Os diretores Renata Pinheiro e Sérgio de Oliveira não perdem tempo em expor seus elementos e seus propósitos, desde o início fica clara a alegoria deste confronto entre os herdeiros da terra e os herdeiros dos escravos que, literalmente, davam o sangue aos senhores de engenho. Em meio a disputas, mandos e desmandos, tensões sexuais e raciais, mistérios e revelações, o longa vai se encorpando como uma experiência fantasmagórica que pende para o lado fantástico e místico, assumindo de vez esse tom folclórico e ritualístico ao seu final.
A condução é justificadamente lenta, e a direção de arte e a fotografia dignificam a aura desoladora daquele engenho que já fora um provável local onde atrocidades eram cometidas e que agora está repleto de uma carga negativa, tudo potencializa o horror do Engenho Wanderley, e Bethânia vai sendo devorada por aquelas terras, que lhe deixaram marcas muito maiores do que ela imagina. É certo que a alegoria é deixada de lado em certo ponto, mas o terror e o sobrenatural entregues aqui me encheram os olhos.
17 anos após o segundo filme, com uma história rasa - e alguém esperava algo diferente disso? - e uma premissa de mocinhos contra vilões, bem no estilo novelão mexicano - sendo até motivo de piada entre os personagens -, os bad boys Mike Lowrey (Will Smith) e Marcus Burnett (Martin Lawrence) não tem mais o vigor físico dos velhos tempos, mesmo assim, devem se unir novamente, dessa vez ao lado de um grupo de jovens da nova geração e suas parafernálias eletrônicas, para uma última missão contra mercenários mexicanos liderados por uma bruxa (Kate del Castillo) com motivações bem pessoais.
Um dos maiores acertos deste Bad Boys Para Sempre é trazer sangue novo em diversos aspectos, da direção aos personagens, não seria exagero ver os diretores Adil El Arbi e Bilall Fallah ganhando mais oportunidades em Hollywood, eles emulam bem o estilo megalomaníaco de Michael Bay, entregando talvez o melhor filme de Michael Bay, sem Michael Bay dos últimos anos, enquanto o grupo de operações especiais liderados por Rita (Paola Nuñez) - ainda que não seja nada inovador para o gênero: já vimos coisa parecida em 007 Contra GoldenEye - diverte por reunir facetas da geração atual, do nerd (Alexander Ludwig), ao piadista moderninho (Charles Melton), e até Vanessa Hudgens fazendo as vezes da mulher que parte para a ação, proporcionando um embate entre o novo: bem mais organizado e munido de tecnologia, contra o antigo: tudo feito às pressas, sem planejamento.
No geral, Bad Boys Para Sempre é o que o público quer ver: Lawrence e Smith correndo, atirando, apanhando e batendo em sequências de ação empolgantes e um humor que, finalmente, funciona sem ofender muito a ninguém - ok, só um pouquinho - emulando o estilo exagerado de Michael Bay com a consciência de que os tempos são outros. O resultado é bem agradável.
O maior problema de VelociPastor não está nem na premissa absurda, típica de um filme B de baixo orçamento, mas sim em como algumas escolhas parecem querer escancarar a pobreza da produção se baseando no nonsense, no sentido de que este não é um filme para ser levado a sério - já que por algum tempo você até embarca na ideia - e sim um exploitation banal que quer a todo custo se tornar cult.
A direção de Brendan Steere se assemelha em alguns aspectos com o absurdismo de Quentin Dupieux, diretor de Rubber, O Pneu Assassino, a fotografia e a trilha são bem estilizados e aplicados, há um senso narrativo e estético ali que deixa a pulga atrás da orelha: afinal, esse filme é B mesmo ou apenas quer ser?
O fascínio da prostituta pelo padre que se transforma em velociraptor tem algo divino e moralista, enquanto ela enxerga no padre uma proximidade do perdão que até então nunca encontrara, o padre encontra na bela jovem a corrupção de sua fé.
É pena que Steere não dê conta desses temas, o filme parece fugir de qualquer profundidade, apelando ao exploitation sempre que o longa parece ficar sério demais. No geral é um filme divertido de se acompanhar, a trajetória da dupla é estúpida mas ambos têm carisma. Em suma, é um cult que sabe disso e que perde força justamente por querer ser menos quando poderia ser mais.
O controle espacial e sensorial de Lucrecia Martel é absurdo, e isso em seu filme de estreia deixa ainda mais claro porque ela viria a se tornar uma das cineastas mais respeitadas, não só da América Latina, mas também do mundo.
Não é um filme difícil de captar a mensagem, embora aos espectadores de primeira viagem, acomodados ao convencionalismo de outros tipos de cinema, algumas coisas podem não ser tão claras, é o tipo de história que deve ser revisitada de tempos em tempos, as trivialidades mostradas aqui são bem comuns na superfície, mas lá no fundo, há uma podridão a ser explorada. Os cortes bruscos, o trabalho de som impecável e a direção de arte que evidencia o fúnebre expõem a degradação da sociedade num microcosmo familiar.
E essa tal podridão fica bem clara até, principalmente na figura da matriarca Mecha, vivida por Graciela Borges, deitada na cama o tempo todo, disparando seus preconceitos e expondo suas feridas e cicatrizes, é a imagem da elite argentina em sua decadência, parada no tempo, relegada ao ostracismo e a uma Argentina em ruínas consumida e destruída por seus iguais; enquanto uma juventude em efervescência tenta se lavar da sujeira de seus antepassados, mas lhe é negada a imagem da santa, estão todos, afinal, presos naquele pântano sócio-cultural.
Dessas cinebiografias de músicos contemporâneos é a que tem uma das melhores atuações: Joaquin Phoenix está ótimo e incorporou bem o Johnny Cash, soltando até a voz. A narrativa é clássica, sem muitos malabarismos, pelo menos abandona logo o "flashback da infância" para focar no homem que teve muitos problemas com bebidas, drogas e mulheres e um talento que o tornou um dos grandes cantores da história. Falta um pouquinho dessa percepção do gênio por trás do homem ao longa de James Mangold, preocupado demais em cenas constrangedoras e os dilemas de Cash com a família, tornando-se um dramalhão da metade pro fim após um início promissor, mas o resultado final agrada pelo protagonista e por uma Reese Whiterspoon cativante.
Uma cinebiografia jukebox (mais próxima de Rocketman do que de Bohemian Rhapsody) bem digna e singela àquele que foi um dos grandes astros do cenário do rock nos anos 60. A narrativa em duas épocas distintas capta perfeitamente a essência das duas fases de Brian Wilson: o jovem gênio dos Beach Boys interpretado por Paul Dano (excelente na sutileza do personagem assim como quando precisa explodir) e o já diagnosticado com esquizofrenia na fase mais adulta vivido por John Cusack - ótimo também e quem nos cativa por sua relação com a personagem vivida por Elizabeth Banks.
Muitas das escolhas visuais fazem sentido quando notamos que o diretor de fotografia é Robert D. Yeoman, responsável por alguns trabalhos em filmes de Wes Anderson. Aliás, toda a equipe vem com uma bagagem de respeito que não nega o resultado obtido aqui, do roteirista de "Não Estou Lá" ao editor de "O Espião que Sabia Demais". O diretor Bill Pohlad não seguiu na carreira (pelo menos até agora) preferindo abrir a própria produtora, ao menos ele vem acertando: The Runaways, A Árvore da Vida, Na Natureza Selvagem e O Segredo de Brokeback Mountain estão entre os longas produzidos por ele.
Provavelmente uma das melhores cinebiografias de bandas que já vi. Conhecia o Mayhem só de nome, nunca tinha ouvido nada dos caras (não sou entusiasta de black metal), e o filme de Jonas Åkerlund consegue transpassar bem toda a insanidade e imaturidade dos membros da banda. Rory Culkin está ótimo e merece mais papéis. É um filme corajoso por ir a fundo em várias polêmicas - basta ir ao Google pesquisar que você encontrará várias - e também por mostrar ao final que eles não passavam de garotos querendo propagar uma ideia e uma marca a fim de virarem notícia e angariar seguidores do mundo todo. Bem, isso eles conseguiram.
Parece um filme todo lapidado para prêmios (ok, e qual filme não é?), o que quero dizer é que as escolhas aqui são simples não no sentido de tornar os acontecimentos naturais ou súbitos (como deveria se esperar de um filme passado na Segunda Guerra Mundial) mas no sentido de que tudo o que acontece parece seguir um cronograma pré-estabelecido e ensaiado, o que vai tornando a experiência maçante. O filme até começa bem, porém se enrola demais no final do segundo ato com a falsificação dos dólares. Vale para os completistas, já que ganhou o Oscar de filme estrangeiro, e pela direção de arte e a fotografia que expõem o cuidado dos envolvidos, mas é apenas um filme razoável que hoje em dia não surpreende mais.
É até estranho assistir ao último filme que me faltava para completar a filmografia de Sam Mendes e notar como ele tem cara de filme de estreia. Não por equívocos ou deslizes característicos de estreantes, mas talvez pela pegada indie baumbachiana e tom naturista que Mendes impõe na narrativa: um road movie onde um casal sai pelo país em busca de um lugar pra chamar de seu. Gozado que os roteiristas não fizeram mais nada de grande destaque, pois os diálogos aqui são ótimos.
Gosto muito de todos os coadjuvantes que vão surgindo, Allison Janney e Maggie Gyllenhaal estão ótimas e roubam a cena quando aparecem, mas o destaque vai todo pra dupla de irmãs interpretadas por Maya Rudolph e Carmen Ejogo (a cena da banheira é linda). Um feel good movie que me cativou.
Creio que o maior mérito de Um Lindo Dia na Vizinhança seja a forma com que a diretora Marielle Heller insere Fred Rogers na história, não como alguém a ser biografado, e sim como um personagem quase místico provido de algum poder sensorial e humano que poucos compreendem e até duvidam.
Há méritos e deméritos nessa abordagem, por um lado o longa flerta a todo instante com a auto-ajuda e o drama de superação - assumindo um viés piegas que hoje em dia talvez seja ingênuo demais -, por outro lado, Heller é capaz de ultrapassar esta barreira, com uma direção lúdica que emula o estilo do programa de Mister Rogers e inserções oníricas que realçam toda a espiritualidade emanada pela figura do apresentador e de seu programa infantil.
E ela foge acertadamente dessa cinebiografia mais clássica, já que o apresentador Fred Rogers, figura histórica da televisão norte-americana, ganhara recentemente, em 2018, um documentário dirigido por Morgan Melville, onde era abordado todo o legado deixado por ele, hábil em se comunicar com as crianças e tratar com elas sobre assuntos delicados.
Aqui, Fred Rogers é interpretado por Tom Hanks - e tem ator mais boa praça do que ele? - em 1968, ele vira capa da revista Esquire por sua entrevista dada a um jornalista (Matthew Rhys) que tem fama por suas reportagens nada sutis. Heller se baseia no artigo escrito pelo real jornalista Tom Junod para dramatizar a história, recheando-a com um drama comum a boa parte do público: o de um homem dedicado demais ao trabalho, com um bebê recém nascido e uma situação mal resolvida com o pai, ele precisará de Rogers para evoluir como pai, filho e pessoa mais do que imagina.
Assumindo toda uma estética cafona e narrativa de filme antigo - algo que a diretora já havia feito em Poderia me Perdoar? - Heller apresenta o espectador ao estilo de Rogers logo de cara, o longa abre com uma encenação de seu programa que nos transmite certo bem-estar, o tom de voz ameno de Hanks, as roupas confortáveis e a música melosa ditam os rumos da proposta do longa: Lloyd Vogel é o homem a ser "consertado" por Rogers.
Ao final, Um Lindo Dia na Vizinhança só perde pontos pelo fraco desempenho de Rhys, um ator mais seguro poderia render melhores embates quando na presença de Hanks, até mesmo Chris Cooper emociona mais que o protagonista, de qualquer forma, essa insegurança pode até ser proposital, deixando a cargo do Mr. Rogers de Tom Hanks o que o real Mr. Rogers sempre fazia: fazer as pessoas acreditarem em si mesmas com a força do amor e da compreensão.
Que Judy Garland é uma lenda do cinema é um consenso. O Mágico de Oz (1939) e Nasce Uma Estrela (1954) são marcos na carreira da atriz e no cinema, mas nem todo mundo conhece a história por trás da estrela que trilhou a calçada de tijolos amarelos tão rapidamente, por menos de meio século, com uma infância marcada por abusos e relações problemáticas que se refletiram em seus vícios e problemas psicológicos futuramente.
Uma coisa é certa sobre Judy: Muito Além do Arco Íris: a estrela da época de ouro do cinema merecia uma cinebiografia mais acachapante. O recorte trazido pelo diretor Rupert Goold é bem limitado no sentido de compreensão dos traumas da personagem, a edição abusa dos flashbacks para nos mostrar toda a carga dramática de sua vida, e faz isso de maneira corrida, estão ali os traumas da infância, os abusos sofridos pelos chefões da MGM, o vício em medicamentos contra o sono que, com o passar do tempo, evoluiu para outros tipos de drogas, se a cantora enchia palcos no auge, por dentro ela se via cada vez mais vazia, principalmente nos últimos anos de sua vida.
O longa se passa no inverno de 1968, quando Judy (Renée Zellweger) aceita estrelar uma turnê em Londres, por mais que tal trabalho a mantenha afastada dos filhos. Ao chegar, ela enfrenta a solidão e os conhecidos problemas com álcool e remédios, compensando o que deu errado em sua vida pessoal com a dedicação no palco.
Com uma narrativa superficial e corrida, o filme vai dando voltas ao redor de Judy e seus traumas sem saber muito bem para onde ir, quando Zellweger não está em cena o filme cai drasticamente, já que sua presença é o seu maior trunfo. Diferentemente de outras atuações em cinebiografias que tentam imitar figuras icônicas do cinema, Zellweger copia bem não só os trejeitos da atriz, carregando também toda a carga emocional de uma mulher bastante afetada pelos vícios e por suas inseguranças, quando ela sobe ao palco e solta a voz o filme atinge níveis elevados, ao menos o carinho e o respeito pela lenda são transmitidos.
Com tanta força em sua protagonista, todo o restante parece aquém dela, Goold até toma umas decisões interessantes, principalmente quando explora jogos de luzes embaçados que iluminam uma artista em decadência, no entanto, os coadjuvantes surgem sem muita força e qualquer minuto a mais dispensado neles parece uma perda de tempo enquanto Zellweger é quem realmente comanda o show. Em suma, Judy: Muito Além do Arco Íris é um longa com cara de telefilme que deverá ser lembrado somente pela atuação de Zellweger, que vem colecionando prêmios. Ao final, o pedido de Judy para que jamais se esqueçam dela já foi atendido, mas não por esse filme.
Os rumos que Larissa Manoela vem dando à sua carreira de atriz são promissores. Com um contrato de 3 anos assinado com a Netflix há de se esperar muito conteúdo da jovem na plataforma de streaming - para a alegria dos larináticos -, deixando claro que ela está antenada com seus fãs e com o que há de mais superlativo no mercado audiovisual. E assim também é sua personagem de Modo Avião, praticamente um alter ego de Larissa, Ana é uma influenciadora digital que trabalha para uma famosa marca de moda. Entretanto, seu vício no celular a distancia dos pais, das relações amorosas e de si própria, tudo ao seu redor parece falso ou acontecer em prol de likes - do namoro aos acidentes em que se envolve. Após uma grave batida de carro, Ana recebe a punição de passar uma temporada na casa do avô Germano (Erasmo Carlos), no interior da cidade, sem celular e sem internet.
A maior qualidade do longa de César Rodrigues é saber se comunicar com o público de Larissa Manoela, o texto da dupla Renato Fagundes e Alberto Bremer não é exageradamente bobo - evitando focar em intrigas juvenis ou disputas amorosas características em filmes do tipo - há mensagens muito genuínas sobre auto-conhecimento e sobre a importância da base familiar para a vida de uma pessoa. Dessa forma, Larissa Manoela demonstra estar amadurecendo aos poucos, é certo que a atriz ainda não é a mais adorada por aí, mas aos 19 anos quem saberia lidar com uma vida como a dela? É como diz sua personagem em certo instante "milhares de pessoas me seguem todos os dias, veem tudo o que eu faço, mas não fazem a menor ideia de quem eu sou."
Ainda que calcado em clichês - há um romancezinho forçado e um final bem novelesco -, Modo Avião é uma auto-crítica à exposição exagerada nas mídias sociais e até uma denúncia às empresas que manejam influencers para divulgar suas marcas, no meio disso tudo o mais interessante é notar como uma jovem como Larissa sabe bem o que sua marca representa para aqueles que a seguem e já demonstra isso em sua primeira parceria com a Netflix. Os únicos senões estão na direção apagada de César Rodrigues - falta a ele a delicadeza da direção de Caroline Fioratti (Meus 15 Anos) - e na presença decepcionante de Erasmo Carlos, bem aquém do esperado de um avô - para efeito de comparação, Arthur Kohl faz mais com menos no filme Eu Sou Mais Eu, com Kéfera (outra que faz filmes voltados para o público teen), de qualquer forma, há uma mensagem e ela é passada.
O cinema romântico e desesperançoso de Sam Mendes ecoa nas trincheiras, cartas e fotos de 1917. O britânico embarca mais uma vez no gênero da guerra, só que aqui de maneira diferente do que fizera no quase esquecido Jarhead, de 2005, um filme que nos aproximava dos personagens e mantinha uma distância melancólica da ação.
Mendes não se importa em seguir pelos caminhos tradicionais do gênero e o roteiro encontra soluções fáceis para o protagonista, não há tempo a perder, claramente seu maior interesse está em fazer de 1917 uma experiência cinematográfica sustentada pelo plano-sequência, o que dá um charme particular ao projeto, o trabalho de montagem de Lee Smith - grande parceiro de Christopher Nolan que montou Dunkirk e A Origem - foi meticuloso para deixar apenas um corte bem claro, a linha narrativa evolui sem grandes pausas dando uma sensação de que a corrida contra o tempo é crucial, algo também anunciado pela trilha incisiva de Thomas Newman.
Por exatas 2 horas, acompanhamos o cabo Schofield (George MacKay) e o tenente Blake (Dean-Charles Chapman) em uma "missão impossível" durante a Primeira Guerra Mundial: levar uma mensagem urgente a um pelotão a fim de evitar que mais de 1600 homens morram em uma armadilha. Embora calcado no realismo - há sequências fantásticas como a do avião e o "sprint" que está no trailer - Mendes sugere um surrealismo em meio àquele caos - algo que ele geralmente faz em seus filmes, como a sacola esvoaçante e as pétalas de rosa de Beleza Americana - é um momento idílico num cenário desolador, para logo depois sermos jogados na realidade nada agradável de corpos empilhados em decomposição.
Ao final, a experiência de 1917 ganha pontos não só pelo espetáculo audiovisual (a fotografia de Roger Deakins é arrebatadora na sequência noturna), mas também pela forma com que Mendes humaniza seus heróis, e a presença de um destemido MacKay em ascensão é crucial para tal. Não é demérito ser "apenas" um filme de guerra proposto em plano-sequência, é sim um grande mérito revigorar um gênero clássico do cinema norte-americano que cada vez mais cai no esquecimento enquanto os super-heróis dominam as bilheterias.
É notável como o documentário de Morgan Neville tem a mesma essência genuína do programa de Fred Rogers: falar de maneira simples e direta ao público e deixar a ele algo além daqueles minutos enquanto espectador, lhe proporcionando não só uma experiência cinematográfica - até porque o doc tem uma estrutura bem tradicional com entrevistas e imagens de arquivo - mas também lhe servindo a inspiração que Rogers deixou para toda uma geração.
Fred Rogers foi um cara muito à frente de seu tempo, em plena década de 60 seu programa debatia de maneira lúdica e sensível temas considerados, até hoje, pesados e desconfortáveis para se tratar com crianças, como morte, atentados, bullying e racismo. O documentário deixa bem claro as intenções de Fred e seu programa, ainda que evite se aprofundar em seus defeitos e fragilidades - obviamente todos temos - evidenciando o lado mais importante de um ser humano como ele que zelava pelas crianças como poucos apresentadores contemporâneos. Por mais Fred Rogers no mundo.
O primeiro questionamento sobre A Possessão de Mary é: por que Gary Oldman aceitou embarcar nessa furada? Escolhas pessoais à parte, não dá pra enxergar algo realmente louvável aqui, sequer na premissa: genérica já em sua sinopse. Oldman é David, um apaixonado por barcos que adquire o "Mary" em um leilão, um barco charmoso do tipo pelo qual ele sempre teve paixão quando criança. David embarca com a esposa (Emily Mortimer), as duas filhas e o amigo Mike (Manuel Garcia-Rulfo) em uma aventura pelo mar após revitalizar o barco.
O maior problema de A Possessão de Mary é a falta de capacidade do diretor Michael Goi em construir um clima de terror com elementos sobrenaturais que nunca são explicados. Ele apela para os jumpscares mais absurdos - quando a assombração salta na tela para NOS assustar - os efeitos inseridos na pós-produção são risíveis e tiram qualquer possibilidade de o espectador confiar que aquelas pessoas do barco estão realmente diante do maior terror de suas vidas. A estrutura em duas linhas narrativas também mais promete do que entrega, de fato, ela nos prepara para o terror em alto-mar, mas ao final vira apenas um gancho para uma improvável sequência.
Mesmo que batida, a história até tem uma certa coesão narrativa, embora seja executada de maneira preguiçosa, com intrigas bobas entre os membros da família e um espaço muito limitado para que a aventura se torne desesperadora para eles, tendo de recorrer à ameaça de uma tempestade e aos sustos forçados já que o sobrenatural por si só não é capaz de assustar nem mesmo uma criancinha.
S. Craig Zahler é um artista do caos, do desumano, da impotência, do vil, do cruel e da tragédia, em seu terceiro longa o diretor continua trilhando caminhos ousados em histórias sempre angustiantes e polêmicas - não sei porque ele ainda "não chegou lá", pra mim não precisa provar mais nada.
Aqui, uma dupla imoral de policiais (Mel Gibson e Vince Vaughn) desacreditada e afastada, após uma operação onde usaram de força excessiva, decidem ir por um caminho obscuro a fim de conseguirem dinheiro fácil. O cinema de Zahler é traiçoeiro, quem já viu seus filmes anteriores já se prepara para o pior, e ele sempre vem. A moral dos personagens nunca é questionada, suas ações são justificadas de maneira simples, ora, de um lado estão policiais questionados (e o personagem de Gibson diz em claras palavras o porquê de sua ira) e do outro lado estão os "bandidos" (Tory Kittles e Michael Jai White) relegados ao patamar mais baixo da pirâmide social, também a fim de dinheiro para melhorar suas vidas e as daqueles que lhes importam, o desespero de todos é compreensível.
Com uma fotografia soturna e violência e humor pontuais, Dragged Across Concrete é mais um acerto na carreira desse diretor que vem se provando fazer o melhor do cinema "brucutu" que havia se perdido nos últimos anos. Seu rigor técnico surpreende e o resultado final sempre nos deixa curioso para o que virá a seguir.
Um documentário forte e essencial. A luta de uma família para sobreviver em uma cidade em ruínas, sofrendo bombardeios diários. Waad al-Kateab nos leva para o coração de Aleppo e também para o seu coração, parafraseando Glauber Rocha "com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça", a mulher, mãe, esposa, diretora e brava sobrevivente filma por dias a fio cenas lamentáveis de morte e destruição enquanto a única esperança é sua gravidez, o "para Sama" se mostra a força deste documentário, uma carta de amor de uma mãe para um futuro incerto mas pelo qual vale a pena lutar.
O fator mais interessante de Instinto - longa de estreia da diretora Halina Reijn e pré-selecionado da Holanda ao Oscar internacional - é como toda a situação criada ao redor da protagonista Nicoline (Carice van Houten) é, ao mesmo tempo, ameaçadora e instigante. Ela é uma psicóloga renomada que começa a trabalhar em uma espécie de prisão hospitalar (confesso não ter entendido muito bem os mecanismos do local) acompanhando os detentos em sessões particulares junto de sua estagiária.
Assim que chega à clínica (?), Nicoline se encanta pelo corpulento Idris (Marwan Kenzari, o Jafar do live-action de Aladdin), um estuprador que não demonstra qualquer tipo de culpa ou remorso por seus crimes. Idris é um sedutor nato, tem facilidade tanto com as palavras quanto com os olhares e gestos; neste jogo de sedução, Nicoline vai estudando seu paciente favorito - ela sabe que está sendo enganada por ele e entra em seu jogo - a fim de provar aos demais colegas - que acreditam que ele possa ter saídas esporádicas - de que ele ainda é um perigo para a sociedade.
Conforme a situação vai se desenrolando - entre jogos de sedução e manipulação -, Elle, de Paul Verhoeven, é a primeira referência que vem à cabeça. Nicoline, a princípio, parece tão segura de si quanto a personagem interpretada magnificamente por Isabelle Huppert, mas logo seus segredos e angústias vão sendo revelados, seja em sua casa bagunçada de tons acinzentados, seus hábitos alimentares questionáveis, seu mórbido desejo pelo paciente estuprador, sua relação no mínimo estranha com a mãe e seu desempenho sexual que flerta com o animalesco, a exímia profissional é uma mulher cheia de traumas.
Neste cenário, Nicoline se mostra uma mulher complexa, em dado ponto é quase impossível compreendê-la e, acertadamente, Reijn e a roteirista Esther Gerritsen evitam as respostas, permanecendo no jogo doentio entre psicóloga e paciente que ultrapassa os limites do natural e poderá gerar opiniões controversas, embora o espectador mais atento deva observar momentos de devaneios de Nicoline (afinal, acompanhamos tudo por sua perspectiva, e só pela dela). Ao final, Instinto é um thriller provocativo que pode ser apenas a manifestação de uma mente perturbada (há muito tempo, não sabemos quanto) que decide agir quando se vê entocada, como se fosse um coelho indefeso prestes a ser devorado por uma raposa voraz.
É até irônico não aparecer o nome de Adam McKay nos créditos finais. Durante a sessão, a cada piadinha fora de hora, me vinha à minha cabeça: "tenho certeza que o McKay está envolvido nisso", e não está, mas parece que está fazendo escola, do pior tipo. Ao menos em seus filmes, McKay brinca com temas políticos e econômicos em narrativas didáticas que podem ou não funcionar com cada espectador. Em O Escândalo, o diretor Jay Roach, de Austin Powers (!) parece ser um aprendiz de McKay, ávido por tiradas sarcásticas, cortes bruscos, quebra da quarta parede e uma montagem ao estilo de esquetes de The Office. Não orna.
Um tema tão pesado quanto os casos de abuso sexual sofridos por funcionárias da Fox News pelo então CEO, Roger Ailes, merecia maior respeito e cuidado do roteirista Charles Randolph e de Roach - este sedento pelos closes nas pernas e em poses sensuais de suas protagonistas. Vislumbro uma tentativa de gerar desconforto no espectador nesses momento mais intrusivos - e realmente é horrível a cena em que a personagem de Margot Robbie se exibe para o patrão -, entretanto, os zooms emulam uma tensão típica de uma sitcom e as tiradinhas nada pertinentes de qualquer personagem secundário que está passando pelo corredor da redação trazem ao longa uma sucessão de má escolhas justamente pelo assunto debatido.
O projeto só não descamba totalmente graças ao trio de atrizes que está bem, Margot Robbie segura, Charlize Theron capricha na postura e no tom de voz da âncora Megyn Kelly, mas é Nicole Kidman quem entrega uma atuação muito mais enérgica, dada a importância de sua personagem para a explosão do tal escândalo.
Ao final, O Escândalo me lembra Green Book, uma história que aborda um tema delicado sendo contada pelas pessoas erradas - é revoltante saber que as mulheres envolvidas no caso sequer foram procuradas pela produção. Muitas pessoas vão assistir, se entreter e discutir os abusos da Fox News, e isso é bom, ponto para o filme, no entanto, poderia ter rendido algo muito mais incisivo caso as escolhas fossem mais maduras e Roach não brincasse com um tema tão espinhoso, não dá pra tratar abuso sexual como se estivesse dirigindo um filme do Austin Powers.
A força vital de As Loucuras de Rose (não fuja do filme por causa dessa tradução horrorosa para Wild Rose) está em Jessie Buckley, sua voz e sua presença são marcantes. O longa tem um roteiro bem clichê e é uma história que já foi contada algumas vezes: cantora de origem humilde e de grande talento, sem muitas oportunidades na vida, encontra alguém que aposta em sua voz e acredita no sonho da cantora, mas Jessie esbarra em seu passado nessa trilha para seguir em frente: família ou carreira? Recuperar o tempo perdido com os filhos ou ir atrás do sonho que não teve a oportunidade de viver? O passado de Rose é um fardo ou seu futuro já está fadado por um erro cometido há anos? Um filme que acredita em sua protagonista e que nos tira sorrisos e lágrimas em sua jornada embalada por ritmo country.
Harriet: O Caminho Para a Liberdade
3.7 217 Assista AgoraO maior problema de Harriet é o grande problema de várias outras cinebiografias, tenta dar conta de muitos anos e muitos acontecimentos em apenas 2 horas, e isso nunca é bom, o ritmo é apressado, as coisas vão acontecendo sem impacto, por isso, muito precisa ser dito pelos personagens, de maneira bem didática e expositiva. Apesar disso, gosto do tom que o filme assume a partir de certo ponto, retratando Harriet como uma lenda, um mito, uma heroína mesmo, alguém que desafiou seu triste destino sem medo de encontrar a morte e sonhando com sua liberdade e a de seus amigos e familiares. Cynthia Erivo está grandiosa em cena, só poderia ter cantado mais. É um filme que não ofende, mas também não ousa em nada. A diretora Kasi Lemmons entrega uma história formulaica apenas visando prêmios, pelo menos a música Stand Up é digna deles.
Corpus Christi
3.9 92 Assista AgoraO cinema polonês - e do leste europeu - encanta a Academia, só a Polônia tem 4 indicações a filme estrangeiro/internacional nos últimos 9 anos, inclusive, levando o prêmio em 2015, com Ida. Por isso, não dá pra tratar Corpus Christi como uma surpresa, mesmo que ninguém apostasse nele - e levando em conta os filmes da shortlist aos quais eu assisti (só não vi o tcheco e o estoniano), pela média, ele estaria entre os meus 5 indicados.
O diretor Jan Komasa tem o filme nas mãos e sabe por onde embrenhar sua câmera e quando estagná-la, gosto muito da forma como ele conduz uma narrativa clássica (o pária jogado em uma sociedade segregadora e imbuído de consertá-la) enquanto vai abalando os pilares dessa estrutura justamente com seu principal elemento, trazendo uma visão moderninha e até ousada por meio da figura de Daniel (Bartosz Bielenia), permitindo arriscar em breves momentos cômicos - comicidade que se apresenta desde a sinopse: um detento que quer ser padre e que acaba assumindo esse papel ao chegar em um vilarejo e ser confundido como o novo pároco da igreja local.
Fala muito sobre olhar o passado para salvar o futuro, sobre aceitar as desculpas dos outros, sobre não assumirmos os nossos pecados e até onde seríamos capazes de ir sabendo que estamos em pecado - ou para os não-cristãos: sendo anti-éticos. O filme traz uma mensagem de fé e espiritualidade, uma parábola mesmo - que permite até a analogia com Jesus e seus apóstolos, do traidor à prostituta - Komasa valoriza a cinematografia, típico do cinema polonês, vide os recentes Ida e Guerra Fria, e aqui, a personalidade forte de David - presa em um corpo jovem, tatuado e prestes a explodir - luta para brilhar em meio ao verde opaco e granulado da fotografia que ganha um tom de vermelho bem ao final, a muito custo e com muita dor. Enfim, aquele corpo é livre, sua missão foi cumprida.
Não Estou Lá
3.9 497 Assista AgoraÉ a perfeição em termos de cinebiografia justamente por entender a complexidade de seu biografado, um símbolo da contracultura que reunia a força dos Beatles em um só, fugindo das convenções do gênero, esmiuçando as personas e fases de sua carreira de maneira ousada e original, como se espalhasse suas ideias, pensamentos e ideais como cartas sobre a mesa.
Tanta ousadia poderia dar muito errado justamente por não seguir uma cartilha - não há datas, nome das músicas, nem nomes reais -, e acaba sendo genial por Todd Haynes não subestimar o público - fã de Dylan ou não - que aos poucos vai percebendo o que está testemunhando - e alguns podem se decepcionar - passando a ansiar pelo que virá a seguir: qual carta será empunhada? Passamos de um garotinho a um senhor em questão de minutos.
A coisa toda ainda ganha um charme especial com o elenco de peso e diversificado, destaque para Cate Blanchett e Christian Bale que entendem bem as personalidades que devem representar, ela transformada no estilo próprio de Dylan - óculos escuro, respostas ácidas e cigarro na mão - ele na dublagem e nos palcos, e claro vale destacar também a fotografia e a montagem, essenciais para se fazer cinema e nos mergulhar na mente complexa de Bob Dylan .
Joias Brutas
3.7 1,1K Assista AgoraExistem pelo menos dois momentos em Joias Brutas que me chamaram a atenção. O primeiro deles dura pouco e pode passar despercebido para muitos. Na sequência em que Howard, personagem de Adam Sandler, leva seu filho ao seu apartamento e lhe fala sobre um vizinho que fora um famoso da TV, e o tal vizinho - ninguém menos que John Amos - o responde grosseiramente, o filho de Howie (me permitam a intimidade) o chama de "babaca", eis que Howie fala: pare com isso, ele é uma lenda. Ponto. Todos sabemos que Sandler sempre foi atacado em toda sua carreira (sim, ele tem culpa pelas diversas escolhas que tomou), no entanto, ele nunca foi, de fato, um mau ator. Se ele não é um camaleão como Christian Bale, por exemplo, ele vai muito bem fazendo o homem médio norte-americano sofredor que sempre carrega consigo uma inocência quase infantil - e já havia deixado claro em Embriagado de Amor que trabalhando com as pessoas certas se sai bem.
O outro momento é quando Howard assiste a um jogo de basquete pela TV. Essa sequência logo me remeteu a uma passagem semelhante em Um Estranho no Ninho - e não só porque é fácil imaginar Sandler sendo intitulado como um estranho no ninho dividindo uma mesa com Robert De Niro, Leonardo DiCaprio e Joaquin Phoenix - quando Jack Nicholson torce, vibra e exclama diante de uma TV desligada para seus companheiros de enclausuramento, transmitindo a todos eles uma esperança, exaltação e felicidade que quaisquer esportes dão aos seus fãs. Nesta cena de Joias Brutas também está exposto nos berros, gritos e vibração de Howie todo seu sentimento de alívio, glória e libertação.
É por tudo isso que Sandler cai como uma luva no papel deste joalheiro judeu buscando se dar bem, mesmo que seja por meio do dinheiro, a assinatura dos irmãos Safdie tá ali a todo instante, da trilha sonora sintetizada à montagem acelerada, não há respiro e há pelo menos uns três momentos de puro sufoco para o protagonista. O resultado é uma experiência frenética que pode ser vista além da embalagem de thriller. Depois das muitas porradas, escolhas equivocadas e tentativas de dar a volta por cima, o momento de glória de Adam Sandler não poderia ter vindo em melhor hora, essa tour de force dignifica um dos atores mais subestimados de Hollywood. Que lhe sirva de chacoalhão.
Açúcar
3.2 25 Assista AgoraEste poderia muito bem ser um capítulo do longa O Nó do Diabo (2017), antologia brasileira que reúne 5 histórias que se passam em um mesmo solo (que vai mudando de fazenda a engenho) onde o preconceito racial é tratado como uma herança incrustada em nossas raízes desde os primórdios do colonialismo.
A história de Açúcar se passa numa fazenda, localizada na Zona da Mata de Pernambuco, onde funcionava um engenho de açúcar, o Engenho Wanderley. O local pertence à família de Maria Bethânia (Maeve Jinkings) que retorna às suas terras para assumir os afazeres, pagar as contas e lidar com os trabalhadores remanescentes que reivindicam a propriedade sobre as terras.
Os diretores Renata Pinheiro e Sérgio de Oliveira não perdem tempo em expor seus elementos e seus propósitos, desde o início fica clara a alegoria deste confronto entre os herdeiros da terra e os herdeiros dos escravos que, literalmente, davam o sangue aos senhores de engenho. Em meio a disputas, mandos e desmandos, tensões sexuais e raciais, mistérios e revelações, o longa vai se encorpando como uma experiência fantasmagórica que pende para o lado fantástico e místico, assumindo de vez esse tom folclórico e ritualístico ao seu final.
A condução é justificadamente lenta, e a direção de arte e a fotografia dignificam a aura desoladora daquele engenho que já fora um provável local onde atrocidades eram cometidas e que agora está repleto de uma carga negativa, tudo potencializa o horror do Engenho Wanderley, e Bethânia vai sendo devorada por aquelas terras, que lhe deixaram marcas muito maiores do que ela imagina. É certo que a alegoria é deixada de lado em certo ponto, mas o terror e o sobrenatural entregues aqui me encheram os olhos.
Bad Boys Para Sempre
3.4 395 Assista Agora17 anos após o segundo filme, com uma história rasa - e alguém esperava algo diferente disso? - e uma premissa de mocinhos contra vilões, bem no estilo novelão mexicano - sendo até motivo de piada entre os personagens -, os bad boys Mike Lowrey (Will Smith) e Marcus Burnett (Martin Lawrence) não tem mais o vigor físico dos velhos tempos, mesmo assim, devem se unir novamente, dessa vez ao lado de um grupo de jovens da nova geração e suas parafernálias eletrônicas, para uma última missão contra mercenários mexicanos liderados por uma bruxa (Kate del Castillo) com motivações bem pessoais.
Um dos maiores acertos deste Bad Boys Para Sempre é trazer sangue novo em diversos aspectos, da direção aos personagens, não seria exagero ver os diretores Adil El Arbi e Bilall Fallah ganhando mais oportunidades em Hollywood, eles emulam bem o estilo megalomaníaco de Michael Bay, entregando talvez o melhor filme de Michael Bay, sem Michael Bay dos últimos anos, enquanto o grupo de operações especiais liderados por Rita (Paola Nuñez) - ainda que não seja nada inovador para o gênero: já vimos coisa parecida em 007 Contra GoldenEye - diverte por reunir facetas da geração atual, do nerd (Alexander Ludwig), ao piadista moderninho (Charles Melton), e até Vanessa Hudgens fazendo as vezes da mulher que parte para a ação, proporcionando um embate entre o novo: bem mais organizado e munido de tecnologia, contra o antigo: tudo feito às pressas, sem planejamento.
No geral, Bad Boys Para Sempre é o que o público quer ver: Lawrence e Smith correndo, atirando, apanhando e batendo em sequências de ação empolgantes e um humor que, finalmente, funciona sem ofender muito a ninguém - ok, só um pouquinho - emulando o estilo exagerado de Michael Bay com a consciência de que os tempos são outros. O resultado é bem agradável.
The VelociPastor
2.8 67 Assista AgoraO maior problema de VelociPastor não está nem na premissa absurda, típica de um filme B de baixo orçamento, mas sim em como algumas escolhas parecem querer escancarar a pobreza da produção se baseando no nonsense, no sentido de que este não é um filme para ser levado a sério - já que por algum tempo você até embarca na ideia - e sim um exploitation banal que quer a todo custo se tornar cult.
A direção de Brendan Steere se assemelha em alguns aspectos com o absurdismo de Quentin Dupieux, diretor de Rubber, O Pneu Assassino, a fotografia e a trilha são bem estilizados e aplicados, há um senso narrativo e estético ali que deixa a pulga atrás da orelha: afinal, esse filme é B mesmo ou apenas quer ser?
O fascínio da prostituta pelo padre que se transforma em velociraptor tem algo divino e moralista, enquanto ela enxerga no padre uma proximidade do perdão que até então nunca encontrara, o padre encontra na bela jovem a corrupção de sua fé.
É pena que Steere não dê conta desses temas, o filme parece fugir de qualquer profundidade, apelando ao exploitation sempre que o longa parece ficar sério demais. No geral é um filme divertido de se acompanhar, a trajetória da dupla é estúpida mas ambos têm carisma. Em suma, é um cult que sabe disso e que perde força justamente por querer ser menos quando poderia ser mais.
O Pântano
3.8 94 Assista AgoraO controle espacial e sensorial de Lucrecia Martel é absurdo, e isso em seu filme de estreia deixa ainda mais claro porque ela viria a se tornar uma das cineastas mais respeitadas, não só da América Latina, mas também do mundo.
Não é um filme difícil de captar a mensagem, embora aos espectadores de primeira viagem, acomodados ao convencionalismo de outros tipos de cinema, algumas coisas podem não ser tão claras, é o tipo de história que deve ser revisitada de tempos em tempos, as trivialidades mostradas aqui são bem comuns na superfície, mas lá no fundo, há uma podridão a ser explorada. Os cortes bruscos, o trabalho de som impecável e a direção de arte que evidencia o fúnebre expõem a degradação da sociedade num microcosmo familiar.
E essa tal podridão fica bem clara até, principalmente na figura da matriarca Mecha, vivida por Graciela Borges, deitada na cama o tempo todo, disparando seus preconceitos e expondo suas feridas e cicatrizes, é a imagem da elite argentina em sua decadência, parada no tempo, relegada ao ostracismo e a uma Argentina em ruínas consumida e destruída por seus iguais; enquanto uma juventude em efervescência tenta se lavar da sujeira de seus antepassados, mas lhe é negada a imagem da santa, estão todos, afinal, presos naquele pântano sócio-cultural.
Johnny & June
4.0 1,0K Assista AgoraDessas cinebiografias de músicos contemporâneos é a que tem uma das melhores atuações: Joaquin Phoenix está ótimo e incorporou bem o Johnny Cash, soltando até a voz. A narrativa é clássica, sem muitos malabarismos, pelo menos abandona logo o "flashback da infância" para focar no homem que teve muitos problemas com bebidas, drogas e mulheres e um talento que o tornou um dos grandes cantores da história. Falta um pouquinho dessa percepção do gênio por trás do homem ao longa de James Mangold, preocupado demais em cenas constrangedoras e os dilemas de Cash com a família, tornando-se um dramalhão da metade pro fim após um início promissor, mas o resultado final agrada pelo protagonista e por uma Reese Whiterspoon cativante.
The Beach Boys: Uma História de Sucesso
3.9 169 Assista AgoraUma cinebiografia jukebox (mais próxima de Rocketman do que de Bohemian Rhapsody) bem digna e singela àquele que foi um dos grandes astros do cenário do rock nos anos 60. A narrativa em duas épocas distintas capta perfeitamente a essência das duas fases de Brian Wilson: o jovem gênio dos Beach Boys interpretado por Paul Dano (excelente na sutileza do personagem assim como quando precisa explodir) e o já diagnosticado com esquizofrenia na fase mais adulta vivido por John Cusack - ótimo também e quem nos cativa por sua relação com a personagem vivida por Elizabeth Banks.
Muitas das escolhas visuais fazem sentido quando notamos que o diretor de fotografia é Robert D. Yeoman, responsável por alguns trabalhos em filmes de Wes Anderson. Aliás, toda a equipe vem com uma bagagem de respeito que não nega o resultado obtido aqui, do roteirista de "Não Estou Lá" ao editor de "O Espião que Sabia Demais". O diretor Bill Pohlad não seguiu na carreira (pelo menos até agora) preferindo abrir a própria produtora, ao menos ele vem acertando: The Runaways, A Árvore da Vida, Na Natureza Selvagem e O Segredo de Brokeback Mountain estão entre os longas produzidos por ele.
Mayhem: Senhores Do Caos
3.5 280Provavelmente uma das melhores cinebiografias de bandas que já vi. Conhecia o Mayhem só de nome, nunca tinha ouvido nada dos caras (não sou entusiasta de black metal), e o filme de Jonas Åkerlund consegue transpassar bem toda a insanidade e imaturidade dos membros da banda. Rory Culkin está ótimo e merece mais papéis.
É um filme corajoso por ir a fundo em várias polêmicas - basta ir ao Google pesquisar que você encontrará várias - e também por mostrar ao final que eles não passavam de garotos querendo propagar uma ideia e uma marca a fim de virarem notícia e angariar seguidores do mundo todo. Bem, isso eles conseguiram.
Os Falsários
4.0 190 Assista AgoraParece um filme todo lapidado para prêmios (ok, e qual filme não é?), o que quero dizer é que as escolhas aqui são simples não no sentido de tornar os acontecimentos naturais ou súbitos (como deveria se esperar de um filme passado na Segunda Guerra Mundial) mas no sentido de que tudo o que acontece parece seguir um cronograma pré-estabelecido e ensaiado, o que vai tornando a experiência maçante. O filme até começa bem, porém se enrola demais no final do segundo ato com a falsificação dos dólares. Vale para os completistas, já que ganhou o Oscar de filme estrangeiro, e pela direção de arte e a fotografia que expõem o cuidado dos envolvidos, mas é apenas um filme razoável que hoje em dia não surpreende mais.
Por uma Vida Melhor
3.7 211 Assista AgoraÉ até estranho assistir ao último filme que me faltava para completar a filmografia de Sam Mendes e notar como ele tem cara de filme de estreia. Não por equívocos ou deslizes característicos de estreantes, mas talvez pela pegada indie baumbachiana e tom naturista que Mendes impõe na narrativa: um road movie onde um casal sai pelo país em busca de um lugar pra chamar de seu. Gozado que os roteiristas não fizeram mais nada de grande destaque, pois os diálogos aqui são ótimos.
Gosto muito de todos os coadjuvantes que vão surgindo, Allison Janney e Maggie Gyllenhaal estão ótimas e roubam a cena quando aparecem, mas o destaque vai todo pra dupla de irmãs interpretadas por Maya Rudolph e Carmen Ejogo (a cena da banheira é linda). Um feel good movie que me cativou.
Um Lindo Dia Na Vizinhança
3.5 273 Assista AgoraCreio que o maior mérito de Um Lindo Dia na Vizinhança seja a forma com que a diretora Marielle Heller insere Fred Rogers na história, não como alguém a ser biografado, e sim como um personagem quase místico provido de algum poder sensorial e humano que poucos compreendem e até duvidam.
Há méritos e deméritos nessa abordagem, por um lado o longa flerta a todo instante com a auto-ajuda e o drama de superação - assumindo um viés piegas que hoje em dia talvez seja ingênuo demais -, por outro lado, Heller é capaz de ultrapassar esta barreira, com uma direção lúdica que emula o estilo do programa de Mister Rogers e inserções oníricas que realçam toda a espiritualidade emanada pela figura do apresentador e de seu programa infantil.
E ela foge acertadamente dessa cinebiografia mais clássica, já que o apresentador Fred Rogers, figura histórica da televisão norte-americana, ganhara recentemente, em 2018, um documentário dirigido por Morgan Melville, onde era abordado todo o legado deixado por ele, hábil em se comunicar com as crianças e tratar com elas sobre assuntos delicados.
Aqui, Fred Rogers é interpretado por Tom Hanks - e tem ator mais boa praça do que ele? - em 1968, ele vira capa da revista Esquire por sua entrevista dada a um jornalista (Matthew Rhys) que tem fama por suas reportagens nada sutis. Heller se baseia no artigo escrito pelo real jornalista Tom Junod para dramatizar a história, recheando-a com um drama comum a boa parte do público: o de um homem dedicado demais ao trabalho, com um bebê recém nascido e uma situação mal resolvida com o pai, ele precisará de Rogers para evoluir como pai, filho e pessoa mais do que imagina.
Assumindo toda uma estética cafona e narrativa de filme antigo - algo que a diretora já havia feito em Poderia me Perdoar? - Heller apresenta o espectador ao estilo de Rogers logo de cara, o longa abre com uma encenação de seu programa que nos transmite certo bem-estar, o tom de voz ameno de Hanks, as roupas confortáveis e a música melosa ditam os rumos da proposta do longa: Lloyd Vogel é o homem a ser "consertado" por Rogers.
Ao final, Um Lindo Dia na Vizinhança só perde pontos pelo fraco desempenho de Rhys, um ator mais seguro poderia render melhores embates quando na presença de Hanks, até mesmo Chris Cooper emociona mais que o protagonista, de qualquer forma, essa insegurança pode até ser proposital, deixando a cargo do Mr. Rogers de Tom Hanks o que o real Mr. Rogers sempre fazia: fazer as pessoas acreditarem em si mesmas com a força do amor e da compreensão.
Judy: Muito Além do Arco-Íris
3.4 356Que Judy Garland é uma lenda do cinema é um consenso. O Mágico de Oz (1939) e Nasce Uma Estrela (1954) são marcos na carreira da atriz e no cinema, mas nem todo mundo conhece a história por trás da estrela que trilhou a calçada de tijolos amarelos tão rapidamente, por menos de meio século, com uma infância marcada por abusos e relações problemáticas que se refletiram em seus vícios e problemas psicológicos futuramente.
Uma coisa é certa sobre Judy: Muito Além do Arco Íris: a estrela da época de ouro do cinema merecia uma cinebiografia mais acachapante. O recorte trazido pelo diretor Rupert Goold é bem limitado no sentido de compreensão dos traumas da personagem, a edição abusa dos flashbacks para nos mostrar toda a carga dramática de sua vida, e faz isso de maneira corrida, estão ali os traumas da infância, os abusos sofridos pelos chefões da MGM, o vício em medicamentos contra o sono que, com o passar do tempo, evoluiu para outros tipos de drogas, se a cantora enchia palcos no auge, por dentro ela se via cada vez mais vazia, principalmente nos últimos anos de sua vida.
O longa se passa no inverno de 1968, quando Judy (Renée Zellweger) aceita estrelar uma turnê em Londres, por mais que tal trabalho a mantenha afastada dos filhos. Ao chegar, ela enfrenta a solidão e os conhecidos problemas com álcool e remédios, compensando o que deu errado em sua vida pessoal com a dedicação no palco.
Com uma narrativa superficial e corrida, o filme vai dando voltas ao redor de Judy e seus traumas sem saber muito bem para onde ir, quando Zellweger não está em cena o filme cai drasticamente, já que sua presença é o seu maior trunfo. Diferentemente de outras atuações em cinebiografias que tentam imitar figuras icônicas do cinema, Zellweger copia bem não só os trejeitos da atriz, carregando também toda a carga emocional de uma mulher bastante afetada pelos vícios e por suas inseguranças, quando ela sobe ao palco e solta a voz o filme atinge níveis elevados, ao menos o carinho e o respeito pela lenda são transmitidos.
Com tanta força em sua protagonista, todo o restante parece aquém dela, Goold até toma umas decisões interessantes, principalmente quando explora jogos de luzes embaçados que iluminam uma artista em decadência, no entanto, os coadjuvantes surgem sem muita força e qualquer minuto a mais dispensado neles parece uma perda de tempo enquanto Zellweger é quem realmente comanda o show. Em suma, Judy: Muito Além do Arco Íris é um longa com cara de telefilme que deverá ser lembrado somente pela atuação de Zellweger, que vem colecionando prêmios. Ao final, o pedido de Judy para que jamais se esqueçam dela já foi atendido, mas não por esse filme.
Modo Avião
2.8 243 Assista AgoraOs rumos que Larissa Manoela vem dando à sua carreira de atriz são promissores. Com um contrato de 3 anos assinado com a Netflix há de se esperar muito conteúdo da jovem na plataforma de streaming - para a alegria dos larináticos -, deixando claro que ela está antenada com seus fãs e com o que há de mais superlativo no mercado audiovisual. E assim também é sua personagem de Modo Avião, praticamente um alter ego de Larissa, Ana é uma influenciadora digital que trabalha para uma famosa marca de moda. Entretanto, seu vício no celular a distancia dos pais, das relações amorosas e de si própria, tudo ao seu redor parece falso ou acontecer em prol de likes - do namoro aos acidentes em que se envolve. Após uma grave batida de carro, Ana recebe a punição de passar uma temporada na casa do avô Germano (Erasmo Carlos), no interior da cidade, sem celular e sem internet.
A maior qualidade do longa de César Rodrigues é saber se comunicar com o público de Larissa Manoela, o texto da dupla Renato Fagundes e Alberto Bremer não é exageradamente bobo - evitando focar em intrigas juvenis ou disputas amorosas características em filmes do tipo - há mensagens muito genuínas sobre auto-conhecimento e sobre a importância da base familiar para a vida de uma pessoa. Dessa forma, Larissa Manoela demonstra estar amadurecendo aos poucos, é certo que a atriz ainda não é a mais adorada por aí, mas aos 19 anos quem saberia lidar com uma vida como a dela? É como diz sua personagem em certo instante "milhares de pessoas me seguem todos os dias, veem tudo o que eu faço, mas não fazem a menor ideia de quem eu sou."
Ainda que calcado em clichês - há um romancezinho forçado e um final bem novelesco -, Modo Avião é uma auto-crítica à exposição exagerada nas mídias sociais e até uma denúncia às empresas que manejam influencers para divulgar suas marcas, no meio disso tudo o mais interessante é notar como uma jovem como Larissa sabe bem o que sua marca representa para aqueles que a seguem e já demonstra isso em sua primeira parceria com a Netflix. Os únicos senões estão na direção apagada de César Rodrigues - falta a ele a delicadeza da direção de Caroline Fioratti (Meus 15 Anos) - e na presença decepcionante de Erasmo Carlos, bem aquém do esperado de um avô - para efeito de comparação, Arthur Kohl faz mais com menos no filme Eu Sou Mais Eu, com Kéfera (outra que faz filmes voltados para o público teen), de qualquer forma, há uma mensagem e ela é passada.
1917
4.2 1,8K Assista AgoraO cinema romântico e desesperançoso de Sam Mendes ecoa nas trincheiras, cartas e fotos de 1917. O britânico embarca mais uma vez no gênero da guerra, só que aqui de maneira diferente do que fizera no quase esquecido Jarhead, de 2005, um filme que nos aproximava dos personagens e mantinha uma distância melancólica da ação.
Mendes não se importa em seguir pelos caminhos tradicionais do gênero e o roteiro encontra soluções fáceis para o protagonista, não há tempo a perder, claramente seu maior interesse está em fazer de 1917 uma experiência cinematográfica sustentada pelo plano-sequência, o que dá um charme particular ao projeto, o trabalho de montagem de Lee Smith - grande parceiro de Christopher Nolan que montou Dunkirk e A Origem - foi meticuloso para deixar apenas um corte bem claro, a linha narrativa evolui sem grandes pausas dando uma sensação de que a corrida contra o tempo é crucial, algo também anunciado pela trilha incisiva de Thomas Newman.
Por exatas 2 horas, acompanhamos o cabo Schofield (George MacKay) e o tenente Blake (Dean-Charles Chapman) em uma "missão impossível" durante a Primeira Guerra Mundial: levar uma mensagem urgente a um pelotão a fim de evitar que mais de 1600 homens morram em uma armadilha. Embora calcado no realismo - há sequências fantásticas como a do avião e o "sprint" que está no trailer - Mendes sugere um surrealismo em meio àquele caos - algo que ele geralmente faz em seus filmes, como a sacola esvoaçante e as pétalas de rosa de Beleza Americana - é um momento idílico num cenário desolador, para logo depois sermos jogados na realidade nada agradável de corpos empilhados em decomposição.
Ao final, a experiência de 1917 ganha pontos não só pelo espetáculo audiovisual (a fotografia de Roger Deakins é arrebatadora na sequência noturna), mas também pela forma com que Mendes humaniza seus heróis, e a presença de um destemido MacKay em ascensão é crucial para tal. Não é demérito ser "apenas" um filme de guerra proposto em plano-sequência, é sim um grande mérito revigorar um gênero clássico do cinema norte-americano que cada vez mais cai no esquecimento enquanto os super-heróis dominam as bilheterias.
Fred Rogers: O Padrinho da Criançada
4.3 43É notável como o documentário de Morgan Neville tem a mesma essência genuína do programa de Fred Rogers: falar de maneira simples e direta ao público e deixar a ele algo além daqueles minutos enquanto espectador, lhe proporcionando não só uma experiência cinematográfica - até porque o doc tem uma estrutura bem tradicional com entrevistas e imagens de arquivo - mas também lhe servindo a inspiração que Rogers deixou para toda uma geração.
Fred Rogers foi um cara muito à frente de seu tempo, em plena década de 60 seu programa debatia de maneira lúdica e sensível temas considerados, até hoje, pesados e desconfortáveis para se tratar com crianças, como morte, atentados, bullying e racismo. O documentário deixa bem claro as intenções de Fred e seu programa, ainda que evite se aprofundar em seus defeitos e fragilidades - obviamente todos temos - evidenciando o lado mais importante de um ser humano como ele que zelava pelas crianças como poucos apresentadores contemporâneos. Por mais Fred Rogers no mundo.
A Possessão de Mary
1.8 83 Assista AgoraO primeiro questionamento sobre A Possessão de Mary é: por que Gary Oldman aceitou embarcar nessa furada? Escolhas pessoais à parte, não dá pra enxergar algo realmente louvável aqui, sequer na premissa: genérica já em sua sinopse. Oldman é David, um apaixonado por barcos que adquire o "Mary" em um leilão, um barco charmoso do tipo pelo qual ele sempre teve paixão quando criança. David embarca com a esposa (Emily Mortimer), as duas filhas e o amigo Mike (Manuel Garcia-Rulfo) em uma aventura pelo mar após revitalizar o barco.
O maior problema de A Possessão de Mary é a falta de capacidade do diretor Michael Goi em construir um clima de terror com elementos sobrenaturais que nunca são explicados. Ele apela para os jumpscares mais absurdos - quando a assombração salta na tela para NOS assustar - os efeitos inseridos na pós-produção são risíveis e tiram qualquer possibilidade de o espectador confiar que aquelas pessoas do barco estão realmente diante do maior terror de suas vidas. A estrutura em duas linhas narrativas também mais promete do que entrega, de fato, ela nos prepara para o terror em alto-mar, mas ao final vira apenas um gancho para uma improvável sequência.
Mesmo que batida, a história até tem uma certa coesão narrativa, embora seja executada de maneira preguiçosa, com intrigas bobas entre os membros da família e um espaço muito limitado para que a aventura se torne desesperadora para eles, tendo de recorrer à ameaça de uma tempestade e aos sustos forçados já que o sobrenatural por si só não é capaz de assustar nem mesmo uma criancinha.
Justiça Brutal
3.7 153 Assista AgoraS. Craig Zahler é um artista do caos, do desumano, da impotência, do vil, do cruel e da tragédia, em seu terceiro longa o diretor continua trilhando caminhos ousados em histórias sempre angustiantes e polêmicas - não sei porque ele ainda "não chegou lá", pra mim não precisa provar mais nada.
Aqui, uma dupla imoral de policiais (Mel Gibson e Vince Vaughn) desacreditada e afastada, após uma operação onde usaram de força excessiva, decidem ir por um caminho obscuro a fim de conseguirem dinheiro fácil. O cinema de Zahler é traiçoeiro, quem já viu seus filmes anteriores já se prepara para o pior, e ele sempre vem. A moral dos personagens nunca é questionada, suas ações são justificadas de maneira simples, ora, de um lado estão policiais questionados (e o personagem de Gibson diz em claras palavras o porquê de sua ira) e do outro lado estão os "bandidos" (Tory Kittles e Michael Jai White) relegados ao patamar mais baixo da pirâmide social, também a fim de dinheiro para melhorar suas vidas e as daqueles que lhes importam, o desespero de todos é compreensível.
Com uma fotografia soturna e violência e humor pontuais, Dragged Across Concrete é mais um acerto na carreira desse diretor que vem se provando fazer o melhor do cinema "brucutu" que havia se perdido nos últimos anos. Seu rigor técnico surpreende e o resultado final sempre nos deixa curioso para o que virá a seguir.
Para Sama
4.4 109Um documentário forte e essencial. A luta de uma família para sobreviver em uma cidade em ruínas, sofrendo bombardeios diários. Waad al-Kateab nos leva para o coração de Aleppo e também para o seu coração, parafraseando Glauber Rocha "com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça", a mulher, mãe, esposa, diretora e brava sobrevivente filma por dias a fio cenas lamentáveis de morte e destruição enquanto a única esperança é sua gravidez, o "para Sama" se mostra a força deste documentário, uma carta de amor de uma mãe para um futuro incerto mas pelo qual vale a pena lutar.
Instinto
2.7 48 Assista AgoraO fator mais interessante de Instinto - longa de estreia da diretora Halina Reijn e pré-selecionado da Holanda ao Oscar internacional - é como toda a situação criada ao redor da protagonista Nicoline (Carice van Houten) é, ao mesmo tempo, ameaçadora e instigante. Ela é uma psicóloga renomada que começa a trabalhar em uma espécie de prisão hospitalar (confesso não ter entendido muito bem os mecanismos do local) acompanhando os detentos em sessões particulares junto de sua estagiária.
Assim que chega à clínica (?), Nicoline se encanta pelo corpulento Idris (Marwan Kenzari, o Jafar do live-action de Aladdin), um estuprador que não demonstra qualquer tipo de culpa ou remorso por seus crimes. Idris é um sedutor nato, tem facilidade tanto com as palavras quanto com os olhares e gestos; neste jogo de sedução, Nicoline vai estudando seu paciente favorito - ela sabe que está sendo enganada por ele e entra em seu jogo - a fim de provar aos demais colegas - que acreditam que ele possa ter saídas esporádicas - de que ele ainda é um perigo para a sociedade.
Conforme a situação vai se desenrolando - entre jogos de sedução e manipulação -, Elle, de Paul Verhoeven, é a primeira referência que vem à cabeça. Nicoline, a princípio, parece tão segura de si quanto a personagem interpretada magnificamente por Isabelle Huppert, mas logo seus segredos e angústias vão sendo revelados, seja em sua casa bagunçada de tons acinzentados, seus hábitos alimentares questionáveis, seu mórbido desejo pelo paciente estuprador, sua relação no mínimo estranha com a mãe e seu desempenho sexual que flerta com o animalesco, a exímia profissional é uma mulher cheia de traumas.
Neste cenário, Nicoline se mostra uma mulher complexa, em dado ponto é quase impossível compreendê-la e, acertadamente, Reijn e a roteirista Esther Gerritsen evitam as respostas, permanecendo no jogo doentio entre psicóloga e paciente que ultrapassa os limites do natural e poderá gerar opiniões controversas, embora o espectador mais atento deva observar momentos de devaneios de Nicoline (afinal, acompanhamos tudo por sua perspectiva, e só pela dela). Ao final, Instinto é um thriller provocativo que pode ser apenas a manifestação de uma mente perturbada (há muito tempo, não sabemos quanto) que decide agir quando se vê entocada, como se fosse um coelho indefeso prestes a ser devorado por uma raposa voraz.
O Escândalo
3.6 459 Assista AgoraÉ até irônico não aparecer o nome de Adam McKay nos créditos finais. Durante a sessão, a cada piadinha fora de hora, me vinha à minha cabeça: "tenho certeza que o McKay está envolvido nisso", e não está, mas parece que está fazendo escola, do pior tipo. Ao menos em seus filmes, McKay brinca com temas políticos e econômicos em narrativas didáticas que podem ou não funcionar com cada espectador. Em O Escândalo, o diretor Jay Roach, de Austin Powers (!) parece ser um aprendiz de McKay, ávido por tiradas sarcásticas, cortes bruscos, quebra da quarta parede e uma montagem ao estilo de esquetes de The Office. Não orna.
Um tema tão pesado quanto os casos de abuso sexual sofridos por funcionárias da Fox News pelo então CEO, Roger Ailes, merecia maior respeito e cuidado do roteirista Charles Randolph e de Roach - este sedento pelos closes nas pernas e em poses sensuais de suas protagonistas. Vislumbro uma tentativa de gerar desconforto no espectador nesses momento mais intrusivos - e realmente é horrível a cena em que a personagem de Margot Robbie se exibe para o patrão -, entretanto, os zooms emulam uma tensão típica de uma sitcom e as tiradinhas nada pertinentes de qualquer personagem secundário que está passando pelo corredor da redação trazem ao longa uma sucessão de má escolhas justamente pelo assunto debatido.
O projeto só não descamba totalmente graças ao trio de atrizes que está bem, Margot Robbie segura, Charlize Theron capricha na postura e no tom de voz da âncora Megyn Kelly, mas é Nicole Kidman quem entrega uma atuação muito mais enérgica, dada a importância de sua personagem para a explosão do tal escândalo.
Ao final, O Escândalo me lembra Green Book, uma história que aborda um tema delicado sendo contada pelas pessoas erradas - é revoltante saber que as mulheres envolvidas no caso sequer foram procuradas pela produção. Muitas pessoas vão assistir, se entreter e discutir os abusos da Fox News, e isso é bom, ponto para o filme, no entanto, poderia ter rendido algo muito mais incisivo caso as escolhas fossem mais maduras e Roach não brincasse com um tema tão espinhoso, não dá pra tratar abuso sexual como se estivesse dirigindo um filme do Austin Powers.
As Loucuras de Rose
3.5 46A força vital de As Loucuras de Rose (não fuja do filme por causa dessa tradução horrorosa para Wild Rose) está em Jessie Buckley, sua voz e sua presença são marcantes. O longa tem um roteiro bem clichê e é uma história que já foi contada algumas vezes: cantora de origem humilde e de grande talento, sem muitas oportunidades na vida, encontra alguém que aposta em sua voz e acredita no sonho da cantora, mas Jessie esbarra em seu passado nessa trilha para seguir em frente: família ou carreira? Recuperar o tempo perdido com os filhos ou ir atrás do sonho que não teve a oportunidade de viver? O passado de Rose é um fardo ou seu futuro já está fadado por um erro cometido há anos? Um filme que acredita em sua protagonista e que nos tira sorrisos e lágrimas em sua jornada embalada por ritmo country.