numa viagem de navio o tempo é outro, e a fruição é também outra, o passeio marítimo não possui início, meio e fim, é tudo sempre incansavelmente mar, é uma sucessão de eterno-presente, de "agoras" reiterados; essas filmagens antigas de cinema puro, ou então, nesse caso, de paris vista sob o olhar do trem — onde a câmera maximiza os reflexos e os movimentos, distorce o tempo, alterna seus ângulos, analisa as arquiteturas e as estruturas com um olho eclético de criança curiosa — também não possui nenhuma linearidade temporal, a imperceptível passagem do tempo é sempre uma possibilidade de contemplação do agora, uma admiração cinemática deste instante; logo se percebe que uma história não é basilar, nem mesmo sentimos falta; a lente fotográfica atua aqui como uma projeção mais acurada do olho humano, assim explica-se paris vista de baixo pra cima, como quem investiga algo a partir de todos os pontos de vista possíveis para não deixar escapar nenhum pedaço; essa preciosidade, tal como todo o cinema, é uma aventura do olho
é inevitável desvincilhar-se da dramática teleologia que o arquétipo das escadarias significam; é diferente de apenas atravessar a rua, ir de um lado do parque para o outro, em suma, ir de um ponto 1 até outro ponto 2; os degraus são sempre um projeto, uma potencial novidade, uma excursão ao novo, um salto de contemporaneidade; achei super sofisticada a forma como o curta elabora uma batalha sísifica, uma labiríntica narratividade de não-finalidade, do passo que não leva a outro lugar, mas num eterno-aqui; esteticamente agradável e tormentoso; aliás, o homem é o único animal que sobe uma escada mesmo sabendo que não tem nada lá
murphy e leger conseguiram aglomerar tanta virtuosidade nesse compêndio de livres associações e experimentalismos que podemos chamar de dadaísmo no auge de seu amadurecimento artístico, aqui sim, "dadá é a alma-do-mundo", verdadeiramente alma-do-mundo, uma só coisa, sem distinção, tudo é potencialmente dança; há outras tantas subversividades vanguardistas — um futurismo resgatado através do frenesi da velocidade, da tão moderna modernidade da máquina e da existência urbana; o surrealismo manifestado pela espontaneidade do fluxo de imagens e delírios, e o cubismo enquanto dissolução da figura e distanciamento criativo da formalidade classicista do realismo; há também os objetos afastados de sua cotidianidade imediata que, sob um olhar mais forçoso, podem simbolizar um tipo de desprezo ao pragmatismo cego e às tendências tecnicistas, um padrão estilístico muito frequente nas obras de vanguarda da época, basta um olhar cuidadoso para os ready made do duchamp; tudo isso junto numa transa vertiginosa de 'não-narratividade' que compõe uma caprichada execução de um balé de geometrias, velocidade, movimento, sorrisos e máquinas
a impressão que tenho admirando as obras de gauguin é a de um movimento progressivamente ascendente em direção a um naturalismo existencial, sua vida foi uma eterna fuga para o campo, era um refugiado num desvio perpétuo do turbilhão de vozes da grande paris; a respeito de seus quadros, as cores têm algo de muito característico, poderíamos aludi-las como cores "gauguinianas", possuem uma configuração de argila — impressão estranhamente minha, indício da qual desconheço a origem — os corpos parecem dourados, os gramados de um verde vivíssimo, tanto quanto amarelados também; tais colorações e tonalidades promovem algum nível de tranquilidade e virgindade vital; de fato, seus retratos são mosaicos de tribos e de vivências imaculadas, cenas bonançosas, imagens sem nenhuma malícia metropolitana
o abstracionismo sintético das formas e o som computadorizado que acompanha o experimento eletrônico lembrando muito um ambiente dadaísta tardio florescendo no período entre guerras, como foi com hans richter e as primeiras composições de "música eletrônica"; as geometrias e as cores soam visuamente como um tipo de sequência de atividades quânticas ou como naquelas interações químicas ou de termodinâmica, de troca e emanações de energia; muito me agradam essas visualizações abstratas surgindo na arte moderna durante o séc.XX, porque vejo como uma renovação da consciência estética; um dos diagnósticos do abstrato na pintura, por exemplo, pode ser o surgimento da fotografia, que declara o fim da figuração na arte; e também, como investigam outros teóricos sob outros aspectos, a abstração burocrática das relações públicas refletindo na consciência moderna do fazer artístico
minha leitura de ônibus foi, por algum tempo, as cartas que van gogh direcionava para seu estimado irmão théo; acredito que tenha sido a leitura mais aprazível de que me recordo: aquelas páginas guardavam coleções de inseguranças, impulsos e paixões do pintor diante da sua realidade e dos tremores espirituais que sua obsessão por pintar lhe traziam; fiquei verdadeiramente aturdido ao perceber o domínio que van gogh tinha daquela atividade-de-espírito que ele se dedicava, ele falava das cores como quem fala sobre os móveis da própria casa; articulava seus discursos artísticos com prudência, dialogava com os mestres antigos como delacroix, bruegel e durer; isso demonstra uma tremenda lucidez dele e também o tesão pelos estudos de arte; terminei a leitura com a plena certeza de que ele era um estudioso miserável, um sujeito que seria capaz de vender sua alma pelas tintas, ou mesmo engolir tinta e se pintar por dentro
não é nenhuma novidade que as obras da deren são infladas de estudos experimentais sobre o movimento e a corporalidade, em suma, um exame estiloso sobre tudo aquilo que é indispensável para a execução de uma dança; uma coreografia pode ser traduzida pela capacidade de pensar e sentir o próprio corpo durante sua cinética fisiológica e em todas as suas tensões; diante de um trabalho com tanta mobilidade, músculos esticados e dinamismo, o único feitiço da qual fui acometido foi o de maravilhar-me com o espetáculo das danças em meio àquelas situações sociais, — as duas mulheres com um novelo, os dançarinos alternando seus pares a todo momento — que são meio-fatos, cenas incompletas, não revelam nenhum 'télos' narrativo, são ocasiões onde a finalidade da personagem e do enredo pouco importam, pois a atração principal não é a trama que espreita pelo novelo, ou a possível intriga entre os pares que dançam e se desviam rapidamente, mas antes a beleza cinética, é a dança que narra, o movimento é que nos encaminha uma história visual
encantador e lisérgico, hipnótico e lindo como olhar num caleidoscópio; sempre suspeitei que o cinema fosse uma superação do espaço e do tempo, um abraço estético-metafísico sobre a matéria, onde as lentes atuam como um fausto que captura a realidade embebido de todos os esoterismos disponíveis; a grandeza dessa obra reside em sua potência de jogar um turbilhão de novos olhares sobre os objetos; aqui a câmera fotografa o real sob outros ângulos, adultera a natureza com um manto de cores mais joviais e a descaracteriza atribuindo aos galopes e ao desfile aristocrático dos cavalos uma temporalidade inventada; fazer arte é também desvirtuar o tempo, (des)colorir corpos e fazer brotar um ato cosmogônico, parir outros cosmos
o caro senhor williamson tem o que podemos chamar de um espírito europeu científico, daqueles com largueza de alma o suficiente para experienciar-se em muitas áreas, desde farmácia, química e, por fim, cinema; é de se esperar que, como um pioneiro notável das filmagens, williamson deveria introduzir algo de inédito e fecundo ao processo do cinema, não somente no seu âmbito técnico e suas maquinarias, mas também incorporar novos estilos cinemáticos, modos de operar a câmera, estratégias de narrar e de acentuar a dramaticidade dos enredos; os close-ups demorados e os cortes sucintos entre uma cena e outra são soluções engenhosas para temperar as modestas tramas com ainda mais teatralidade de fluidez
quanta suntuosidade de espírito ele teve para pensar na ideia de um personagem aproximado ao extremo, tão rente ao 'olhar' da câmera a ponto de engoli-la: que noção metalínguistica apuradíssima pra essa época
hutton exercita uma filmagem contemplativa, direciona sua câmera para as folhas regidas pelo vento, para a luz solar que penetra curiosamente por entre as nuvens e a fumaça que se projeta tímida e quieta pra fora da terra; a beleza é tanta que a câmera pode se dar o luxo de permanecer fixa e deixar que a graciosidade das formas naturais protagonizem instintivamente o belo; parece haver até mesmo, em algum nível, um diálogo entre olho e cosmos ao longo desse tipo de encantamento da visão; não é nenhuma surpresa que o primeiro espanto fundamental da humanidade é com a magnitude e o charme do cosmos: estabelece-se uma conversa com o mundo, é possível escavar até alguns episódios dramáticos durante essas apreciações, então cria-se poesias, canções, odes ou então, pequenos curtas como esse
é um harmonioso estudo teatral sobre a mecânica dos movimentos e os gestos do tradicional treinamento de boxe chinês das escolas shaolin e wu tang capturado pelas lentes fotográficas; é o termo "cinemática" invocado em seu signo mais puro: movimento, velocidade, geometria do corpo; as artes marciais se confundem muitas vezes com o balé... sendo um pouco mais abrangente, misturam-se, por vezes, com a maestria e finesse corporal que uma dança bem coordenada exige; o combate marcial se transfigura numa espécie de poema-dança, onde os músculos que se contorce e os braços que ensaiam movimentos constroem versos e tecem estrofes
em termos de cenário, tudo o que se vê é a sombra do rapaz, que o acompanha durante a performance e uma flauta que fornece ainda mais espirituosidade e pomposidade para a cena, talvez evidenciando a preocupação da maya deren em contemplar esse aspecto das artes marciais: a desenvoltura lírica do corpo
estabeleço hoje meu primeiro contato com o cinema do grande sembene, aprecio apaixonadamente sua filmagem instintivamente denunciativa, suas narrativas sociais de uma senegal recortada pela desigualdade, traçada geograficamente por essa vida moderna que nunca chega às margens; ah o ideal moderno de existência digna e repleta de bonança! o cavalo pelo carro, o trabalho escravo pelo trabalho justo: suscedâneos de uma cultura colonialista que é ainda tão latente e continua a impregnar as cidades com segregações; a temática da religião também não é mero adorno fabulístico, a religiosidade muçulmana do protagonista parece revelar, do modo como vejo, um tipo de enfrentamento da realidade surrada por mazelas sociais, um escudo e uma possibilidade de transcendência da condição restrita da matéria e, portanto, uma via utópica
a experiência de assistir a essa obra dos anos quarenta trouxe à luz uma memória significativa que tenho de uma das aulas de estética na universidade; falávamos sobre hegel ou alguma coisa relacionada à historicidade da arte e meu professor citou goethe, que disse certa vez que a arquitetura é a música petrificada; hoje eu exercito o raciocínio contrário, que é tão válido quanto; não sei como ouvir a sonoridade celestial de um órgão e não imaginar suas ondas sonoras enrijecendo-se através do ar e moldando o concreto das paredes e a espessura e as cores dos vitrais do interior da igreja ou então o som de uma banda de rock progressivo, que do mesmo modo, eleva torres altíssimas ao longo da progressividade musical;
acho que esse curta é sobre equivaler a experiência auditiva e visual, fazendo os olhos consumirem a música com a mesma riqueza que os ouvidos são capazes
é muitíssimo compreensível conceber esse roteiro tão belo quanto esquizofrênico vindo de uma contribuição de pacientes de um hospício por meio do método cadáver esquisito; acho que o insuportável tormento de um transtorno mental e a incômoda estadia numa clínica deve render algumas visões do trágico e a plena sensação de estar sendo usado por algum senhor maquiavélico que veste roupas brancas e que lhe rouba algo de profundamente íntimo; sem mencionar os acessos de loucura e ansiedade que acompanham as alucinações visuais e auditivas; bem... todos esses temores e projeções esquizofrênicas resultaram num trabalho tão bonito e digno, um frankenstein pitoresco
assim como aqueles versinhos bukowskianos sobre as pequenas tragédias serem as mais nefastas, esse curta também captura o mal-estar de uma menininha durante três fases de sua vida; são pequenos-grandes falecimentos, desgostos magnânimos, fugacidades verdadeiramente nauseantes... ninguém está preparado para as tragédias menores, não há curas pedagógicas para elas; ninguém nos ensinou a lidar com as amarguras 'banalizadas' do cotidiano
uma grande tragédia ainda inspira algum pingo de honra e bravura, mas e essas minúsculas ruínas insignificantemente traumáticas, o que fazer com elas?
a arquitetura visual e a identidade estética desse curta faz lembrar do "cinco minutos de cinema puro", onde a primazia do imagético é essencial para a construção cinemática; a visualização contemplativa das formas, o vislumbre quase cerimonial das diversas incidências de luz, o contraste das sombras e a anatomia dos movimentos, tudo isso remonta um estilo puro de filmagem; a própria dulac se refere ao seu cinema como tentativa de atingir um cinema per si; a questão é: como recontar um filme que não delineia nenhuma narrativa? a sequência arabesca silenciosa e as imagens de um cinema impoluto substituem a narratividade textual... esse é o caso de étude cinégraphique sur une arabesque de 1929
minha primeira aproximação com o trabalho da yayoi kusama foi com suas instalações singulares: espaços implacavelmente rodeados por bolinhas e excessivamente saturados pelas cores; claro que fiquei entusiasmado com a singularidade da obra e excitado com a iminente descoberta; quem mais poderia venerar com tanto fatalismo aqueles pequenos círculos como a kusama?
é bonito porque no caso dela o elo artista-arte é completamente visível, nada é hermético, trata-se de uma sinceridade pública, a obra da kusama é uma propaganda da sua própria neurose, uma imposição psicológica; kusama dá corpo às suas pinturas, geografia às suas esculturas e estrutura às suas instalações porque é vítima de uma morbidez, de uma tara patológica, de uma obsessão fetichista e atormentadora; sua obra é uma antologia de belas fatalidades
um arranjo experimental sobre amor, intimidade e o toque capturados sob diversos close-ups que são muitas vezes tão imprecisos e vagos que os dois corpos mais se parecem com pinturas abstratas, uma só massa de pele e curvas amorfas; não é difícil arquitetar toda essa cena obscura e luxuriosa com algum ato cosmogônico primordial, eu duvido que algum dos deuses ou outro ser demiúrgico, enquanto fabricava esse cosmos, não torcia os dedos do pé de puro prazer e êxtase sublime
de gilberto freyre pode-se aprender, além da vasta extensão da sua obra sociológica e antropológica, um didatismo eclético bastante refinado; mas que dura vida contemplativa! desde então venho lendo tudo o que foge de minha ignóbil "especialidade", estendendo um rigor estético a tantas outras coisas possíveis, em suma, projetando um prazer mais interessado seja em gastronomia, poesia ou pintura
desvirtuar e desfigurar através do choque satírico aquelas fabulações tradicionais excessivamente fantasiosas e quiméricas dos contos de fadas, tal é a tarefa do cinema of transgression ilustrada nesse brevíssimo excerto do movimento; quase todos os folclores e mitologias conservam algum espaço para demônios sedutores e excitados e criaturas sexualmente exóticas e perversas sodomizando pobres coitados por aí
a fotografia delicadamente esverdeada, os relógios liricamente quebrados — imagens do esfacelamento da linearidade temporal e dum olhar de excentricidade jogado sobre a temporalidade — a música exaustivamente reiterada em suas batidas hipnóticas, quase como num transe de quebra do tempo profano... tudo isso harmonizado com as cenas de profunda estranheza dos japas fisiculturistas, a velha senhora e a cabra que vagueiam dum lado ao outro sem razão aparente, talvez numa atuação mimética de como os ponteiros do relógio dançam do 12 ao 12 sem cabimento; apenas alguns pormenores de um conflito entre o tempo como jaula ontológica e a (im)possibilidade ritualística de ruptura... a luta eterna entre homem e tempo, a eterna ampulheta impregnada na carne
o conto de laloux ilustrado pelo belíssimo traço surrealista do topor é terrivelmente absurdo, kafkiano o suficiente para competir com peças do teatro do absurdo; a ideia de animais ideologizados ruindo o interior das cidades, 'zumbis" massificados pelo fanatismo não me é estranha dentro desse ninho de crítica ao autoritarismo (os rinocerontes de ionesco)
a denúncia é de que há um ciclo infernal de opressão, uma ampulheta a virar num eterno retorno da miserável condição do oprimido dentro dos moldes de uma sociedade medicada pelo ideario da guerra e do patriotismo xenófobo e odioso
Jeux des reflets et de la vitesse
4.1 1numa viagem de navio o tempo é outro, e a fruição é também outra, o passeio marítimo não possui início, meio e fim, é tudo sempre incansavelmente mar, é uma sucessão de eterno-presente, de "agoras" reiterados; essas filmagens antigas de cinema puro, ou então, nesse caso, de paris vista sob o olhar do trem — onde a câmera maximiza os reflexos e os movimentos, distorce o tempo, alterna seus ângulos, analisa as arquiteturas e as estruturas com um olho eclético de criança curiosa — também não possui nenhuma linearidade temporal, a imperceptível passagem do tempo é sempre uma possibilidade de contemplação do agora, uma admiração cinemática deste instante; logo se percebe que uma história não é basilar, nem mesmo sentimos falta; a lente fotográfica atua aqui como uma projeção mais acurada do olho humano, assim explica-se paris vista de baixo pra cima, como quem investiga algo a partir de todos os pontos de vista possíveis para não deixar escapar nenhum pedaço; essa preciosidade, tal como todo o cinema, é uma aventura do olho
Schody
4.2 2é inevitável desvincilhar-se da dramática teleologia que o arquétipo das escadarias significam; é diferente de apenas atravessar a rua, ir de um lado do parque para o outro, em suma, ir de um ponto 1 até outro ponto 2; os degraus são sempre um projeto, uma potencial novidade, uma excursão ao novo, um salto de contemporaneidade; achei super sofisticada a forma como o curta elabora uma batalha sísifica, uma labiríntica narratividade de não-finalidade, do passo que não leva a outro lugar, mas num eterno-aqui; esteticamente agradável e tormentoso; aliás, o homem é o único animal que sobe uma escada mesmo sabendo que não tem nada lá
Balé Mecânico
3.9 20murphy e leger conseguiram aglomerar tanta virtuosidade nesse compêndio de livres associações e experimentalismos que podemos chamar de dadaísmo no auge de seu amadurecimento artístico, aqui sim, "dadá é a alma-do-mundo", verdadeiramente alma-do-mundo, uma só coisa, sem distinção, tudo é potencialmente dança; há outras tantas subversividades vanguardistas — um futurismo resgatado através do frenesi da velocidade, da tão moderna modernidade da máquina e da existência urbana; o surrealismo manifestado pela espontaneidade do fluxo de imagens e delírios, e o cubismo enquanto dissolução da figura e distanciamento criativo da formalidade classicista do realismo; há também os objetos afastados de sua cotidianidade imediata que, sob um olhar mais forçoso, podem simbolizar um tipo de desprezo ao pragmatismo cego e às tendências tecnicistas, um padrão estilístico muito frequente nas obras de vanguarda da época, basta um olhar cuidadoso para os ready made do duchamp; tudo isso junto numa transa vertiginosa de 'não-narratividade' que compõe uma caprichada execução de um balé de geometrias, velocidade, movimento, sorrisos e máquinas
Gauguin
3.9 1a impressão que tenho admirando as obras de gauguin é a de um movimento progressivamente ascendente em direção a um naturalismo existencial, sua vida foi uma eterna fuga para o campo, era um refugiado num desvio perpétuo do turbilhão de vozes da grande paris; a respeito de seus quadros, as cores têm algo de muito característico, poderíamos aludi-las como cores "gauguinianas", possuem uma configuração de argila — impressão estranhamente minha, indício da qual desconheço a origem — os corpos parecem dourados, os gramados de um verde vivíssimo, tanto quanto amarelados também; tais colorações e tonalidades promovem algum nível de tranquilidade e virgindade vital; de fato, seus retratos são mosaicos de tribos e de vivências imaculadas, cenas bonançosas, imagens sem nenhuma malícia metropolitana
Five Film Exercises: Film 2-3
3.9 1o abstracionismo sintético das formas e o som computadorizado que acompanha o experimento eletrônico lembrando muito um ambiente dadaísta tardio florescendo no período entre guerras, como foi com hans richter e as primeiras composições de "música eletrônica"; as geometrias e as cores soam visuamente como um tipo de sequência de atividades quânticas ou como naquelas interações químicas ou de termodinâmica, de troca e emanações de energia; muito me agradam essas visualizações abstratas surgindo na arte moderna durante o séc.XX, porque vejo como uma renovação da consciência estética; um dos diagnósticos do abstrato na pintura, por exemplo, pode ser o surgimento da fotografia, que declara o fim da figuração na arte; e também, como investigam outros teóricos sob outros aspectos, a abstração burocrática das relações públicas refletindo na consciência moderna do fazer artístico
Van Gogh
4.0 7minha leitura de ônibus foi, por algum tempo, as cartas que van gogh direcionava para seu estimado irmão théo; acredito que tenha sido a leitura mais aprazível de que me recordo: aquelas páginas guardavam coleções de inseguranças, impulsos e paixões do pintor diante da sua realidade e dos tremores espirituais que sua obsessão por pintar lhe traziam; fiquei verdadeiramente aturdido ao perceber o domínio que van gogh tinha daquela atividade-de-espírito que ele se dedicava, ele falava das cores como quem fala sobre os móveis da própria casa; articulava seus discursos artísticos com prudência, dialogava com os mestres antigos como delacroix, bruegel e durer; isso demonstra uma tremenda lucidez dele e também o tesão pelos estudos de arte; terminei a leitura com a plena certeza de que ele era um estudioso miserável, um sujeito que seria capaz de vender sua alma pelas tintas, ou mesmo engolir tinta e se pintar por dentro
Ritual In Transfigured Time
4.1 11não é nenhuma novidade que as obras da deren são infladas de estudos experimentais sobre o movimento e a corporalidade, em suma, um exame estiloso sobre tudo aquilo que é indispensável para a execução de uma dança; uma coreografia pode ser traduzida pela capacidade de pensar e sentir o próprio corpo durante sua cinética fisiológica e em todas as suas tensões; diante de um trabalho com tanta mobilidade, músculos esticados e dinamismo, o único feitiço da qual fui acometido foi o de maravilhar-me com o espetáculo das danças em meio àquelas situações sociais, — as duas mulheres com um novelo, os dançarinos alternando seus pares a todo momento — que são meio-fatos, cenas incompletas, não revelam nenhum 'télos' narrativo, são ocasiões onde a finalidade da personagem e do enredo pouco importam, pois a atração principal não é a trama que espreita pelo novelo, ou a possível intriga entre os pares que dançam e se desviam rapidamente, mas antes a beleza cinética, é a dança que narra, o movimento é que nos encaminha uma história visual
Berlin Horse
3.9 2encantador e lisérgico, hipnótico e lindo como olhar num caleidoscópio; sempre suspeitei que o cinema fosse uma superação do espaço e do tempo, um abraço estético-metafísico sobre a matéria, onde as lentes atuam como um fausto que captura a realidade embebido de todos os esoterismos disponíveis; a grandeza dessa obra reside em sua potência de jogar um turbilhão de novos olhares sobre os objetos; aqui a câmera fotografa o real sob outros ângulos, adultera a natureza com um manto de cores mais joviais e a descaracteriza atribuindo aos galopes e ao desfile aristocrático dos cavalos uma temporalidade inventada; fazer arte é também desvirtuar o tempo, (des)colorir corpos e fazer brotar um ato cosmogônico, parir outros cosmos
The Big Swallow
4.2 16o caro senhor williamson tem o que podemos chamar de um espírito europeu científico, daqueles com largueza de alma o suficiente para experienciar-se em muitas áreas, desde farmácia, química e, por fim, cinema; é de se esperar que, como um pioneiro notável das filmagens, williamson deveria introduzir algo de inédito e fecundo ao processo do cinema, não somente no seu âmbito técnico e suas maquinarias, mas também incorporar novos estilos cinemáticos, modos de operar a câmera, estratégias de narrar e de acentuar a dramaticidade dos enredos; os close-ups demorados e os cortes sucintos entre uma cena e outra são soluções engenhosas para temperar as modestas tramas com ainda mais teatralidade de fluidez
quanta suntuosidade de espírito ele teve para pensar na ideia de um personagem aproximado ao extremo, tão rente ao 'olhar' da câmera a ponto de engoli-la: que noção metalínguistica apuradíssima pra essa época
Landscape (for Manon)
4.0 2hutton exercita uma filmagem contemplativa, direciona sua câmera para as folhas regidas pelo vento, para a luz solar que penetra curiosamente por entre as nuvens e a fumaça que se projeta tímida e quieta pra fora da terra; a beleza é tanta que a câmera pode se dar o luxo de permanecer fixa e deixar que a graciosidade das formas naturais protagonizem instintivamente o belo; parece haver até mesmo, em algum nível, um diálogo entre olho e cosmos ao longo desse tipo de encantamento da visão; não é nenhuma surpresa que o primeiro espanto fundamental da humanidade é com a magnitude e o charme do cosmos: estabelece-se uma conversa com o mundo, é possível escavar até alguns episódios dramáticos durante essas apreciações, então cria-se poesias, canções, odes ou então, pequenos curtas como esse
Meditation on Violence
3.5 10é um harmonioso estudo teatral sobre a mecânica dos movimentos e os gestos do tradicional treinamento de boxe chinês das escolas shaolin e wu tang capturado pelas lentes fotográficas; é o termo "cinemática" invocado em seu signo mais puro: movimento, velocidade, geometria do corpo; as artes marciais se confundem muitas vezes com o balé... sendo um pouco mais abrangente, misturam-se, por vezes, com a maestria e finesse corporal que uma dança bem coordenada exige; o combate marcial se transfigura numa espécie de poema-dança, onde os músculos que se contorce e os braços que ensaiam movimentos constroem versos e tecem estrofes
em termos de cenário, tudo o que se vê é a sombra do rapaz, que o acompanha durante a performance e uma flauta que fornece ainda mais espirituosidade e pomposidade para a cena, talvez evidenciando a preocupação da maya deren em contemplar esse aspecto das artes marciais: a desenvoltura lírica do corpo
O Carroceiro
4.2 12estabeleço hoje meu primeiro contato com o cinema do grande sembene, aprecio apaixonadamente sua filmagem instintivamente denunciativa, suas narrativas sociais de uma senegal recortada pela desigualdade, traçada geograficamente por essa vida moderna que nunca chega às margens; ah o ideal moderno de existência digna e repleta de bonança! o cavalo pelo carro, o trabalho escravo pelo trabalho justo: suscedâneos de uma cultura colonialista que é ainda tão latente e continua a impregnar as cidades com segregações; a temática da religião também não é mero adorno fabulístico, a religiosidade muçulmana do protagonista parece revelar, do modo como vejo, um tipo de enfrentamento da realidade surrada por mazelas sociais, um escudo e uma possibilidade de transcendência da condição restrita da matéria e, portanto, uma via utópica
The Eye & the Ear
3.3 1a experiência de assistir a essa obra dos anos quarenta trouxe à luz uma memória significativa que tenho de uma das aulas de estética na universidade; falávamos sobre hegel ou alguma coisa relacionada à historicidade da arte e meu professor citou goethe, que disse certa vez que a arquitetura é a música petrificada; hoje eu exercito o raciocínio contrário, que é tão válido quanto; não sei como ouvir a sonoridade celestial de um órgão e não imaginar suas ondas sonoras enrijecendo-se através do ar e moldando o concreto das paredes e a espessura e as cores dos vitrais do interior da igreja ou então o som de uma banda de rock progressivo, que do mesmo modo, eleva torres altíssimas ao longo da progressividade musical;
acho que esse curta é sobre equivaler a experiência auditiva e visual, fazendo os olhos consumirem a música com a mesma riqueza que os ouvidos são capazes
Os Dentes do Macaco
3.4 4é muitíssimo compreensível conceber esse roteiro tão belo quanto esquizofrênico vindo de uma contribuição de pacientes de um hospício por meio do método cadáver esquisito; acho que o insuportável tormento de um transtorno mental e a incômoda estadia numa clínica deve render algumas visões do trágico e a plena sensação de estar sendo usado por algum senhor maquiavélico que veste roupas brancas e que lhe rouba algo de profundamente íntimo; sem mencionar os acessos de loucura e ansiedade que acompanham as alucinações visuais e auditivas; bem... todos esses temores e projeções esquizofrênicas resultaram num trabalho tão bonito e digno, um frankenstein pitoresco
Pequenas Mortes
3.9 16assim como aqueles versinhos bukowskianos sobre as pequenas tragédias serem as mais nefastas, esse curta também captura o mal-estar de uma menininha durante três fases de sua vida; são pequenos-grandes falecimentos, desgostos magnânimos, fugacidades verdadeiramente nauseantes... ninguém está preparado para as tragédias menores, não há curas pedagógicas para elas; ninguém nos ensinou a lidar com as amarguras 'banalizadas' do cotidiano
uma grande tragédia ainda inspira algum pingo de honra e bravura, mas e essas minúsculas ruínas insignificantemente traumáticas, o que fazer com elas?
Étude cinégraphique sur une arabesque
3.8 1a arquitetura visual e a identidade estética desse curta faz lembrar do "cinco minutos de cinema puro", onde a primazia do imagético é essencial para a construção cinemática; a visualização contemplativa das formas, o vislumbre quase cerimonial das diversas incidências de luz, o contraste das sombras e a anatomia dos movimentos, tudo isso remonta um estilo puro de filmagem; a própria dulac se refere ao seu cinema como tentativa de atingir um cinema per si; a questão é: como recontar um filme que não delineia nenhuma narrativa? a sequência arabesca silenciosa e as imagens de um cinema impoluto substituem a narratividade textual... esse é o caso de étude cinégraphique sur une arabesque de 1929
Kusama's Self-Obliteration
4.0 1minha primeira aproximação com o trabalho da yayoi kusama foi com suas instalações singulares: espaços implacavelmente rodeados por bolinhas e excessivamente saturados pelas cores; claro que fiquei entusiasmado com a singularidade da obra e excitado com a iminente descoberta; quem mais poderia venerar com tanto fatalismo aqueles pequenos círculos como a kusama?
é bonito porque no caso dela o elo artista-arte é completamente visível, nada é hermético, trata-se de uma sinceridade pública, a obra da kusama é uma propaganda da sua própria neurose, uma imposição psicológica; kusama dá corpo às suas pinturas, geografia às suas esculturas e estrutura às suas instalações porque é vítima de uma morbidez, de uma tara patológica, de uma obsessão fetichista e atormentadora; sua obra é uma antologia de belas fatalidades
um gato coberto de bolinhas fica tão gracioso
Ai
3.2 1um arranjo experimental sobre amor, intimidade e o toque capturados sob diversos close-ups que são muitas vezes tão imprecisos e vagos que os dois corpos mais se parecem com pinturas abstratas, uma só massa de pele e curvas amorfas; não é difícil arquitetar toda essa cena obscura e luxuriosa com algum ato cosmogônico primordial, eu duvido que algum dos deuses ou outro ser demiúrgico, enquanto fabricava esse cosmos, não torcia os dedos do pé de puro prazer e êxtase sublime
O Mestre de Apipucos
3.4 6de gilberto freyre pode-se aprender, além da vasta extensão da sua obra sociológica e antropológica, um didatismo eclético bastante refinado; mas que dura vida contemplativa! desde então venho lendo tudo o que foge de minha ignóbil "especialidade", estendendo um rigor estético a tantas outras coisas possíveis, em suma, projetando um prazer mais interessado seja em gastronomia, poesia ou pintura
Nymphomania
3.8 2desvirtuar e desfigurar através do choque satírico aquelas fabulações tradicionais excessivamente fantasiosas e quiméricas dos contos de fadas, tal é a tarefa do cinema of transgression ilustrada nesse brevíssimo excerto do movimento; quase todos os folclores e mitologias conservam algum espaço para demônios sedutores e excitados e criaturas sexualmente exóticas e perversas sodomizando pobres coitados por aí
A Jaula
3.9 7a fotografia delicadamente esverdeada, os relógios liricamente quebrados — imagens do esfacelamento da linearidade temporal e dum olhar de excentricidade jogado sobre a temporalidade — a música exaustivamente reiterada em suas batidas hipnóticas, quase como num transe de quebra do tempo profano... tudo isso harmonizado com as cenas de profunda estranheza dos japas fisiculturistas, a velha senhora e a cabra que vagueiam dum lado ao outro sem razão aparente, talvez numa atuação mimética de como os ponteiros do relógio dançam do 12 ao 12 sem cabimento; apenas alguns pormenores de um conflito entre o tempo como jaula ontológica e a (im)possibilidade ritualística de ruptura... a luta eterna entre homem e tempo, a eterna ampulheta impregnada na carne
Les berceaux
4.0 1Os berços - Sully Prudhomme
Ao longo do cais, os grandes barcos,
Que as vagas inclinam em silêncio,
Não prestam atenção os berços
Embalados pelas mãos das mulheres.
Mas virá o dia da despedida,
Para as mulheres chorarem,
E os homens curiosos
Os horizontes, que seduzem, tentarem.
E nesse dia os grandes barcos,
Deixando o porto que se torna mais pequeno,
Sentem a sua massa retida
Pelo som dos distantes berços.
Tradução - RDP - Maria de Nazaré Fonseca
Os Caracóis
4.0 16o conto de laloux ilustrado pelo belíssimo traço surrealista do topor é terrivelmente absurdo, kafkiano o suficiente para competir com peças do teatro do absurdo; a ideia de animais ideologizados ruindo o interior das cidades, 'zumbis" massificados pelo fanatismo não me é estranha dentro desse ninho de crítica ao autoritarismo (os rinocerontes de ionesco)
a denúncia é de que há um ciclo infernal de opressão, uma ampulheta a virar num eterno retorno da miserável condição do oprimido dentro dos moldes de uma sociedade medicada pelo ideario da guerra e do patriotismo xenófobo e odioso
Walter Franco Muito Tudo
3.9 3o
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