"I Care a Lot" estabelece um conflito inicial interessante, mas perde parte de seu impacto ao apostar em reviravoltas poucos críveis em vez de desenvolver os aspectos psicológicos de seus personagens aversivos, mas fascinantes.
Rosamund Pike interpreta a lésbica perversa Marla, uma proposta politicamente incorreta refrescante depois da representação enfadonha e sacarina de pessoas gays simpáticas e fofas em "The Prom" (2020). Absolutamente inescrupulosa, a personagem almeja manipular pessoas idosas frágeis passando-se por cuidadora afim de roubar suas fortunas e, como todo bom perverso, executa suas artimanhas sempre fora da ética, mas dentro da lei. Pike, trajando um bob duro platinado e de sobrolho imóvel de águia, nos convence desde o princípio. Evitando a caracterização antipática de Carey Mulligan em "Promising Young Woman" (2020) que titubeia flácida entre vítima e predadora, Pike faz da perversão de Marla sua essência bruta e irremediável, não há equívoco senão por parte de quem a enfrenta desavisado.
Dianne Wiest (em ótima forma) interpreta Jennifer, o mais novo alvo de Marla. Diferente das demais, ela não é uma senhora boba, mas uma sinistra ex-mafiosa cujo filho - um poderoso criminoso interpretado por Peter Dinklage - não poupará esforços para retirá-la das mãos da vigarista. Ao estabelecer o conflito entre Marla e Jennifer o filme cria um cenário macabro saboroso, reminiscente do clássico "Whatever Happened to Aunt Alice" (1969) - filme de terror no qual uma senhora perversa mata suas empregadas afim de roubar suas finanças (até que uma delas, assim como em "I Care a Lot", se mostra mais esperta que as anteriores e coloca seus planos em perigo).
A primeira metade de "I Care a Lot" é espontaneamente divertida, pois coloca duas personagens nada afáveis, mas fascinantes (Marla e Jennifer), em um agressivo duelo de astúcia e, por sabermos que ambas são capazes de qualquer coisa para atingir seu objetivo, ficamos prazerosamente aflitos assistindo as duas serpentes se medindo, imaginando quem dará a próxima mordida e quando esta será fatal.
O filme começa a degringolar após uma cena envolvendo um sequestro e uma fuga reminiscente de um filme da saga "Mission Impossible". Quando o longa deveria apertar a tensão entre o triângulo protagonista (Marla, Jennifer e o filho) e trazer nuances a suas relações, ele resolve seus conflitos através de soluções mágicas, monólogos artificiais ou de cenas absurdas que irrompem o tom sarcástico, mas comedido que predominava até então. Os personagens param de se desenvolver e o filme se torna mirabolante, mas óbvio e murcho.
J Blakeson, diretor e roteirista do filme, compôs um roteiro repleto de situações tensas, mas fiquei desejando que seu estilo de direção fosse mais hitchcockiano, que a tensão se estendesse com parcimônia e calma através do ritmo da montagem e da sequência de planos cuidadosamente arquitetada e não que o horror dos atos cometidos pelos personagens fosse diluído em cenas apressadas ao som de sintetizadores anacrônicos.
Em seu terceiro ato, a trama satisfatoriamente não redime Marla, mas decepciona por escamotear a personagem de Dianne Wiest e por não levar o conflito entre os personagens de Peter Dinklage e Rosamund Pike a rumos mais criativos e perversos (pelo contrário, ele joga um balde de água fria em sua contenda). O filme recusa um clímax e se satisfaz com um epílogo trágico inesperado, mas alheio à parte suculenta da narrativa e, se conclui a estória com ironia, não a eleva às alturas estarrecedoras prometidas.
Ao contrário da imagem estampada em seu pôster, esta versão de 1981 de "The Postman Always Rings Twice" não evoca a luxúria desgovernada e perigosa que insinua e, apesar de apontar para isso em seu primeiro ato, vai se definhando de maneira desorientada até seu desfecho cabisbaixo.
O filme segura nossa atenção de maneira eficiente quando a trama gira em torno de Cora e Frank (Jessica Lange e Jack Nicholson) enquanto estes conspiram para matar o marido da moça e se devoram em uma tórrido e inesperado romance. Quando esta parte da trama se resolve (e ela o faz antes mesmo da metade do filme) o longa perde foco e os personagens vão se tornando gradativamente diluídos. As cenas de tribunal que recheiam o meio do longa são frouxas e confusas e o terceiro ato irritantemente flácido e falsamente dramático. As cenas eróticas quase pornográficas se tornam estranhamente insignificantes quando descobrimos que apenas pontuam o filme convencional e moderado de Bob Rafelson.
O personagem de Nicholson, um canastrão viril supostamente irresistível, parece estar vivendo uma situação ilícita e potencialmente devastadora com a preocupação de alguém que não lembra se pôs comida aos peixes; sua apatia mal se disfarça sob os cacoetes de sobrancelhas inquietas do ator, deslibidinado em piloto automático. Não sentimos preocupação pelo personagem que nunca parece, de fato, estar fascinado pela fascinante Jessica Lange. Já a atriz, apesar de não ter muito o que fazer com um personagem raso, mas emotivo, cativa o espectador graças a sua bela face buliçosa - que vai de górgona a anjo em segundos - e seu corpo ágil felídeo, prestes a dar o bote, mas simultaneamente frágil, redondo e sensual. Lange atua para além da trama e do personagem, centelhando uma intensidade ausente no roteiro ou na direção, que acabam, no final das contas, a aprisionando. Em seu primeiro grande papel dramático, a atriz parece estar testando seu arsenal dramático, às vezes atuando apenas com os dentes, outras apenas com o olhos ou com a boca. É um belo ensaio esquizofrênico que amadureceria em uma atuação visceral e integrada em "Frances" no ano seguinte.
"The Postman Always Rings Twice" peca por encerrar o seu maior atrativo logo no primeiro ato (a ferocidade eclodindo da insatisfação de Cora e seu desejo de matar insuflado pela presença traiçoeira de Frank) e tentar, durante o resto do filme, se configurar como uma espécie de drama pastoril elegante e ocasionalmente abalado por tragédias em vez de apostar na vulgaridade excitante e aventurosa insinuada de início, o que certamente tornaria o filme mais vivo e interessante.
Em 'The Rulling Class", um aristocrata poderoso falece e seu lugar na Câmara dos Lordes é ocupado pelo filho, um lunático recém-saído de uma clínica e que crê ser Jesus Cristo. A família do falecido o toma como alvo de suas ambições e planeja manipulá-lo para obter sua fortuna.
É um filme tão desassisado quanto o protagonista e que tenta ser muitas coisas: uma sátira social, uma discussão séria sobre poder e religião e também uma grande palhaçada. A primeira hora do filme sem dúvidas é a melhor: Peter O'Toole, no papel principal, domina a produção em ritmo maníaco e em constante descarrilamento esquizofrênico de associações. "Você a ama?", pergunta o padre casamenteiro ao pseudo-jesus, "Do fundo da minha alma até a ponta do meu pênis", responde ele intrépido. O problema do longa é que o diretor, Peter Medak, é tão louco quanto o próprio personagem: seu filme não tem forma e pula, de repente, de vaudeville insípido para drama simbólico surreal, de um stand-up de Peter O'Toole para observação sarcástica da burguesia e de suas neuroses pérfidas. Não há um eixo para estipular um limite, então o filme decola para além da estratosfera e nos deixa pra trás atônitos.
Com mais de duras horas de duração, "The Ruling Class" se torna insuportável se aproximando de seu final, quando o personagem de O'Toole deixa de se identificar com Jesus para assumir-se como Jack, O Estripador. A ironia do personagem ser mais aceito pela burguesia como um serial killer do que como homem divino é até curiosa, mas o filme aposta nesse ideia muito tarde na trama e de maneira óbvia. O resto do elenco principal, que conta com a presença marcante da estrigiforme Coral Browne, é mal aproveitado à sombra da performance estrambótica de O'Toole, a exceção talvez seja Arthur Lowe como o mordomo que surta em êxtase após liberto de sua função servil e se vê agora abastado com a herança do patrão falecido.
Apesar de gravemente inconsistente o filme tem, no entanto, uma cena genial: em determinado momento os aristocratas decidem, impacientes com o lunático não cooperativo, juntá-lo a outro louco chamado "O Messias de Alta Voltagem" - brilhantemente encarnado por Nigel Green - que também acredita ser Jesus. Os dois embatem em um hilário duelo de onipotências que eleva o filme a um delirante auge e que termina com o personagem de O'Toole atônito e esgotado após ter encontrado alguém cuja loucura astronômica ultrapassa até mesmo a sua.
"Soul" é uma animação psicotizante e pedagógica que atravessa expeditamente um roteiro burocrático e complicado para, no final das contas, passar a mera mensagem de autoajuda "aproveite cada instante" ou "viva a vida com leveza".
O longa começa muito bem ao nos introduzir a um jovem músico negro, Joe Gardner, cujo maior sonho é se tornar reconhecido pelo seu talento. A animação é belíssima e rica em detalhes e as expressões dos personagens transmitem uma impressionante autenticidade. Quando achamos que o filme se aprofundará em um dilema interno do protagonista e irá contextualizá-lo na cultura negra nova-iorquina e no mundo colorido do jazz, o personagem sofre um acidente e vai para uma espécie de além-da-vida onde se dá conta que não pode mais voltar para seu corpo e onde faz amizade com uma alma que nunca quis nascer. Ao mudar tão drasticamente de universo o filme piora em todos os sentidos e jamais se recupera: os personagens se tornam mais bobos, a animação mais infantilóide e básica e o roteiro se revela cada vez mais laborioso e artificial.
O filme vai, equivocadamente e gradativamente, complicando sua trama. Há um longa sessão em que nos é explicado o funcionamento deste além-da-vida e que mais soa como um tutorial de um game complicado do que um filme. Os personagens não têm sossego: suas almas vão e voltam da terra, entram no corpo errado, entram no corpo certo, voltam para o céu, voltam para a terra, retornam ao céu e etc. Tanta desordem e tantos níveis de realidade e de identidade vão tornando o filme enlouquecedor e desestruturalizante. Os segmentos que se passam na terra, nos quais conhecemos a família do protagonista e sua relação com a música são fantásticos e até emocionam, no entanto, são breves e pontuados pelos insuportáveis trechos "místicos" cujos personagens que o pululam são maníacos e irritantes.
"Soul" é aquele tipo de filme que, ao assisti-lo, é possível imaginar o quanto seu roteiro e seus personagens foram exaustivamente e mecanicamente hiper-pensados e calculados para máxima efetividade. É tudo muito amarrado e cheio de propósito, ao contrário da mensagem de leveza e espontaneidade que o filme almeja passar. A trama exaustiva é complicada demais para uma criança entender e mesmo em um nível estético o filme aborrece já que transita entre universos de maneira ansiosa, sem nos dar tempo para respirar e apreciar o que quer que seja. Enquanto o filme cumpre sua maratona e passa de uma cena para a próxima eu ainda tentava entender o que havia sido explicado anteriormente sobre o funcionamento do sistema de almas, de pontuações, passes e etc. Será que precisava de tanto para tão pouco? Pra quê um labirinto tão maçante e intrincado se sua saída é pelo lugar comum?
A personagem 22, a alma que o protagonista conhece quando chega ao céu e que se recusa a nascer, é uma reciclagem de outros alívios cômicos da Pixar como Olaf de "Frozen" e Dori de "Finding Nemo", mas infundido de uma arrogância necessária para seu arco de redenção e que não consegue capturar nossa afeição por ser tão irritantemente afetada. Joe Gardner, o personagem principal, simplesmente não é respeitado pelos autores do filme: além de ser proibido de realizar seu sonho quando morre cedo na trama ele ainda é catequizado pelo roteiro sádico-pueril que o obriga a se redimir mesmo quando ele finalmente atinge um de seus suados objetivos no terceiro ato.
O grande erro de "Soul" é, ironicamente, se preocupar mais em ser didático e esquemático do que em tocar a alma. Após ver o filme, lembrei-me de "The Lion King" (1994) para não ter ódio das animações em geral, um longa infinitamente superior e que toca no cerne. E o faz porque parece ser feito de uma matéria que antecede o racional, que não foi moída pelos estratagemas quase empresariais que alguns filmes da Pixar possuem com a finalidade de nos "emocionar" na marra; é um filme de pura expressão - toda a trajetória do protagonista Simba emociona porque é orgânica, é o pathos genuíno que a movimenta e que nos toca, não a burocracia e muito menos uma mensagem mastigada por um milhão de dentes pedagógicos.
Existem filmes desagradáveis bons e filmes desagradáveis ruins. Se os primeiros nos incomodam ao revelar algo oculto sobre nós mesmos e habilmente nos deixam tensos e aflitos enquanto presenciamos vicariamente outrem em perigo e angustia, certos filmes desagradáveis são simplesmente perda de tempo e se revelam um exercício sádico, entediante e vazio por parte dos realizadores. "The Last Tango in Paris" se encaixa nesta última categoria e, como de costume nas obras de Bertolucci, se apossa de um tema polêmico de maneira inescrupulosa (no caso um relacionamento abusivo entre uma jovem moça histérica e um crápula de meia idade) e, apesar do tom grave, jamais se torna denso.
Assistir aos personagens de Maria Schneider e Marlon Brando (excepcionalmente canastrão) enlaçados em um sadomasoquismo grotesco e brutal, pelas lentes de Bertolucci, é como testemunhar uma criança perversa colocar uma aranha e um escorpião em uma gaiola e vê-la assistindo aos animais se destroçarem até a morte com um sorriso no rosto. Falta sensibilidade ao diretor; jamais sentimos qualquer ternura pelos personagens destrutivos - são seres vis, narcísicos e exaustivos. Ambos os atores principais tem bons momentos dramáticos, em especial no último terço do longa quando sucumbem à angústia, mas jamais se revelam sujeitos de nuances, são apenas dispositivos dramáticos intensos e contritos, mas que não nos atingem.
Bertolucci, assim como Fellini, povoa seu universo de personagens bisonhos e adventícios, mas ao contrário do último que confere a eles uma aura onírica e fascinante, Bertolucci os exibe draconianos, impingindo dor e incompreensão a quem quer que atravesse seu caminho. Não são seres divididos, mas locomotivas caóticas rumo ao inferno. Sem ter por quem sentir empatia, assistimos a essas pessoas lunáticas mostrando-se repetidamente desagradáveis em pequenas variações. Um filme desta ordem, cujo cerne está na incapacidade da personagem de Maria Schneider de se desvencilhar do gozo perverso ao qual o personagem de Brando a submete, poderia ter sido interessante e um bom estudo da repetição neurótica masoquista, mas não encontra na abordagem e no roteiro de Bertolucci o lastro e as sutilezas necessárias. Os personagens e os diferentes núcleos são desconexos - em vez de uma teia de relações que se afetam, assistimos a fragmentos duros, nauseabundos e sem reverberação. Mesmo a protagonista gravemente histérica de Schneider não comove, ela é obstinadamente auto-obliteradora e jamais questiona seu sofrimento, a jovem apenas se angustia verdadeiramente quando tem de esperar demais pelo próximo esculacho, seja este vindo do personagem de Brando ou do igualmente insuportável pseudo-cineasta maníaco e pretensioso interpretado por Jean-Pierre Léaud.
Repleto de cenas desnecessárias, principalmente durante o tedioso primeiro ato (aquelas que envolvem um filme realizado pelo personagem cineasta são particularmente enfadonhas), "The Last Tango in Paris" é um filme extenuante e cuja ousadia jamais transcende o mero intuito de chocar. Muitas cenas de fato criam um incômodo, mas tal incômodo não ressona, já que ele vem do ato performado em si ou de meras palavras escatológicas e não do desenvolvimento da trama ou da tensão psicológica entre seus personagens (a famosa cena de sexo anal envolvendo um pedaço de manteiga é o ápice disto). Bertolucci, assim como o personagem de Brando, estupra o profano e o exibe, mas não o compreende, não o ilumina e muito menos o conecta ao sagrado como faz as grandes obras cinematográficas. Fica o gosto amargo de intermináveis duas horas e dez de duração.
Adaptado de uma história de Stephen King pelo próprio escritor, "Silver Bullet" é um dos melhores filmes do gênero lobisomem e influência estética clara em obras modernas como o seriado "Stranger Things" e o também excelente "Bad Moon" de 1996.
O longa funciona, pois oferece justamente aquilo que promete - cenas de suspense eficientes e um lobisomem bem feito e adequadamente assustador. No entanto, talvez o grande triunfo do filme seja estabelecer personagens centrais que despertam nossa simpatia e, assim, passamos a nos importar com seu destino. A trama foca no garoto paralítico Marty e sua irmã adolescente Megan, moradores de uma pequena cidade e que passam a testemunhar estranhos assassinatos e desaparecimentos noturnos. Os atores são convincentes e, misturando afeto e implicância, logram de uma relação típica entre irmãos. Garey Busey está excelente como o tio fanfarrão e infantilóide que, ao contrário dos pais circunspectos de Marty, traz humor e irreverência à vida do garoto (em certo momento ele monta para ele uma espécie de cadeira-de-rodas-harley-davidson chamada convenientemente de "Silver Bullet").
O filme possui um bom ritmo. Em vez de deixar as cenas mais impactantes para o final (como faz o irregular e superestimado "An American Werewolf in London" de 1981), ele intercala de maneira hábil momentos de violência com outros mais quietos, mas tensos - em que os personagens são desenvolvidos e passam a investigar as mortes misteriosas. Lá para a metade da projeção o longa opta por uma abordagem mais cartunesca (em determinado momento o lobisomem mata uma vítima usando um bastão de baseball) e que a principio causa estranhamento, já que anteriormente o filme se mostrara mais sério e cruento; no entanto, ele vai ajustando essas perspectivas no decorrer do caminho e vamos nos rendendo a seu tom peculiar: exatamente no limite do deboche e da sinceridade.
As mortes são filmadas com estilo à maneira Hitchockiana, com flashes rápidos de violência intercalados por closes de objetos e expressões aterradoras das vítimas. O lobisomem é exibido habilidosamente, suficientemente banhado em sombras para que não vejamos sua artificialidade, mas jamais de maneira confusa ou demasiado escura. A cada rompante mortal ele é mostrado em mais detalhes (a princípio vemos apenas dentes, garras e vultos) e seus ataques são sempre variados, inventivos e bem dirigidos por Daniel Attias (há uma ótima cena de perseguição na estrada ao estilo "Duel" de Steven Spielberg).
Misturando horror gráfico com uma perspectiva aventuresca e nostálgica, "Silver Bullet" é um divertido passatempo que, mesmo quando se torna piegas ou trapalhão, mantém um charme magnético, celebrando perversamente nosso fascínio infantil por monstros e criaturas fantásticas.
"The Devil All the Time" explora o ciclo vicioso da violência em um contexto de pós-guerra, ignorância e manipulação religiosa, mas recorre à violência como único dispositivo de impacto e vai se tornando gradativamente mais vazio e repetitivo.
A estória gira em torno do jovem Arvin Russell (Tom Holland) cuja herança paterna é a desilusão e a brutalidade. O diretor Antônio Campos situa seu filme em uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos entre a década de 50 e 60 e cria um cenário desolador de constantes tragédias e perene mal estar. O protagonista tem de lidar com uma horda de seres execráveis, incluindo padres psicóticos, policiais corruptos e um serial killer. O filme remete em tom e temática ao horror noventista "The Reflecting Skin" (1990), mas despido de suas imagens surrealistas e carregadas de simbolismo e consideravelmente menos denso em sua abordagem psicológica.
Apesar de extremamente violento, o longa é demasiado disperso e vápido para causar qualquer comoção. A narrativa retrata uma séries de personagens que nunca revelam qualquer nuance ou dimensão e se resumem a vilões estereotipados já vistos milhares de vezes em filmes superiores. Não há qualquer insight sobre essas pessoas e quando elas se revelam extremamente brutais, somos impactados pelo que há de explícito na cena, mas nunca pelo que há de implícito - nenhuma cena ressona para além de sua violência gráfica imediata.
Antônio Campos poderia ter sido mais bem sucedido caso tivesse optado por fazer de "The Devil All the Time" um exploitation moderno despretensioso (à maneira do divertido "Baby Driver" de 2017), mas em vez disso imbui seu filme de uma superciliosidade irritante que jamais encontra lastro em seu roteiro raso e de personagens inanes. Um elemento narrativo em especial me incomodou: há um voice-over melodramático durante quase toda a projeção que explica o que está acontecendo e o que os personagens estão sentindo e que se revela totalmente equivocado, pois não só abafa os outros elementos estéticos das cenas, mas esmiúça o óbvio como que duvidando da capacidade do espectador de interpretar o que está sendo mostrado.
Fiquei desejando que "The Devil All the Time" tivesse se resumido a um simples filme de vingança sem maiores pretensões, afinal, o longa tem uma abordagem brutal às cenas de violência até audaciosa, mas carecia de um roteiro mais enxuto e de uma construção dramática mais tensa. O filme às vezes parece ter sido feito por um adolescente em crise tentando chocar sua avó cristã com violência e heresia; ele parece crer que pelo mero fato de seus personagens doentios e cruentos estarem situados em um contexto de guerra e fanatismo religioso, eles automaticamente são dotados de profundidade ou servem de comentário político sagaz sobre esses tópicos.
No final das contas, o longa falha em um aspecto crucial: nunca passamos tempo suficiente na perspectiva de Alvin para que invistamos emocionalmente em sua jornada; trata-se de um personagem taciturno e inexpressivo que não invoca o "pathos" necessário para credibilizar a narrativa. O filme consiste basicamente em uma série de explosões violentas intercaladas com cenas frouxas que enfatizam aquilo que seus personagens têm de óbvio, mas que falham em complexificá-los e desenvolvê-los.
O longa carecia pelo menos de um senso de ironia ou estilo ao lidar com temas tão batidos. Ao contrário dos cinemas de Quentin Tarantino e Martin Scorsese, por exemplo, que também lidam com temáticas de violência e vingança, em "The Devil All the Time" não há personalidade por trás dos rompantes sangrentos, eles são meros exercícios de violência e isto, apenas, não basta.
Adaptado da obra literária de Marjorie Keller, "Tell Me That You Love Me, Junie Moon" é um dos filmes mais inusitados e fascinantes da década de 70. Desmerecido pelas críticas na época, o longa jamais encontrou seu público, talvez pro contemplar personagens demasiado idiossincráticos (até mesmo para uma época em que a contracultura eclodia impávida) retratados sob uma ótica quase romântica.
O final dos anos 60 foi uma época muito curiosa para a cultura popular americana, pois tratou-se de um período em que os "esquisitos" finalmente ganhavam alguma voz; com o sistema de estúdio em decadência e o glamour clássico ofuscado pelo cinema mais ousado, caótico e desinibido da "nova Hollywood", figuras que outrora seriam vistas como execráveis e indignas de exibição, ganhavam notoriedade e eram alvo de fascínio. Tiny Tim com sua voz hélica afeminada e trejeitos cartunescos virava sensação na TV e filmes como "Midnight Cowboy" (1969) e "Flesh" (1968) - que uma década antes seriam considerados heréticos - eram premiados, discutidos com afinco e traziam ao holofote personagens e mundos ignotos até então ao grande público.
"Tell Me That You Love Me, Junie Moon" parece existir em algum lugar entre a velha e a nova hollywood; apesar de personagens absurdamente inconvencionais, o filme não é politicamente afiado ou mesmo procura sacudir o sistema com suas idiossincrasias, mas propõe contar uma estória diferente sobre amizade entre pessoas peculiares que encontram uma na outras uma espécie de refúgio do mundo insensato e cruel. A estória gira em torno de Junie Moon (uma moça de rosto parcialmente desfigurado e interpretada com simpatia e charme por Liza Minnelli), Warren (um homem gay paraplégico sagaz, sestroso e irônico) e Arthur (um rapaz doce, rígido e instável que sofre de surtos epilépticos). Eles decidem morar juntos após se conhecerem no hospital onde recuperavam de suas mazelas.
O filme é introduzido de maneira excêntrica - seu prólogo consiste no cantor Peter Seeger cantando a música tema "Old Devil Time" enquanto caminha em uma floresta boreal com seu violão. A canção é um ode ao alento da amizade contra os intempéries da vida e introduz o filme de maneira bela e melancólica ainda que um pouco bizarra. Ela é tocada frequentemente durante o longa e vai se tornando uma espécie de hino acalentador dos personagens centrais.
O grande charme de "Junie Moon" talvez esteja justamente em sua natureza simultaneamente encantadora e bizarra, não digo isso apenas pela singularidade de seus personagens, mas porque o própria longa é estruturado de maneira peculiar - não há um arco dramático definido, mas pequenos conflitos que afloram em cenas do cotidiano. Acompanhamos os personagens enfrentar dificuldades financeiras, desentendimentos de convivência e entrar em contato com uma série de personagens coadjuvantes igualmente excêntricos (como o afável peixeiro Mario interpretado por James Coco e a moribunda melodramática Meenie vivida por Clarice Taylor). O destaque, é claro, vai para Lady Gregory (excelente aparição de Key Thompson em uma de suas pouquíssimas atuações no cinema), uma milionária desvairada que convida os protagonistas para uma festa em seu castelo; sua grande cena é tão idiossincrática e maníaca que é difícil crer que existe - culmina na personagem de Thompson dizendo que presenteará uma cruz encrostada de diamantes ao personagem de Warren caso ele seja capaz de andar sem sua cadeira de rodas. "Vamos lá, belezinha, se você conseguir andar viajaremos juntos a Europa!", brada a senhora lunática de túnica roxa.
Liza Minnelli, em um de seus primeiros papéis de protagonista, possui um charme inato na pele de Junie Moon e carrega em seu semblante notável melancolia (algo que talvez vá além da personagem e se relacione à perda de sua mãe, Judy Garland, no mesmo ano em que o filme foi feito). Suas cenas iniciais são de violência surpreendente - acompanhamos, em um flashback, seu fatídico encontro com um psicopata responsável por jogar ácido em seu rosto após se sentir ridicularizado pela jovem. Um aspecto que torna o filme inusitado é a forma como ele alterna cenas pungentes (como esta citada e outras envolvendo um delírio psicótico de Arthur) com outras de leveza vicejante (em determinado momento os personagens fazem uma viagem alegre a praia); nunca sabemos para que destino o filme caminhará, mas somos sempre surpreendidos e acabamos conhecendo mais seus personagens através de suas reações e comentários espirituosos a respeito do que vivem.
Robert Moore é fantástico como Warren, imbuindo o personagem de um charme irônico e matreiro e protagonizando os momentos mais cômicos do filme. Seja alfinetando e desorientando seus amigos com sua conduta caprichosa e sardônica ("pelo menos não sou um virgem ridículo!") ou flertando descaradamente com um praieiro negro viril que o carrega nos ombros para cima e para baixo (- "você me lembra um Deus", - "Que Deus?", - "Adônis, é claro!"), o personagem rouba todas as atenções. Warren também revela facetas mais vulneráveis por trás do verniz de deboche; em determinado momento, por exemplo, ele discorre sobre seu amor pelo falecido pai adotivo (também homossexual) que o mimara e protegera e, no decorrer do longa, vamos percebendo que por trás de todos seus atos cenosos há, junto ao exibicionismo, certa carência e medo de rejeição. Moore, muito conhecido como diretor de peças (dirigiu a fantástica "The Boys in the Band" de 1969), tem apenas a atuação neste filme em seus créditos; é uma pena, pois merecia prêmios pela sua performance como Warren e mais papéis na telona. Ken Howard também brilha como Arthur em seu primeiro papel no cinema e oferece um contraponto ao personagem de Warren, mostrando-se mais recatado, sério e ensimesmado. O romance que desenvolve com Junie Moon é descontraído e convincente e Howard e Minnelli logram de boa química.
"Tell Me That You Love Me, Junie Moon" é uma pérola esquecida que merece ser redescoberta e que ainda é atual em seu retrato charmoso e autêntico da vida de três pessoas à margem da sociedade em busca de amor e aceitação. Rever o filme é como visitar velhos amigos e serve de lembrete melancólico de que o que nos salva na vida são de fato as amizades. É como diz a música tema: "[...] E você que teme, ó amores se reúnam e poderemos levantar e cantar mais uma vez".
Peter O'Toole carrega nas costas este drama histórico supercilioso baseado na peça "Becket or the Honour of God" (1959) de Jean Anouilh e que narra a tumultuosa relação entre o Rei Henry II (O'Toole) e o cortesão Thomas a Becket (Richard Burton).
O Rei Henry e Thomas vivem uma vida de fanfarronice e companheirismo apesar de oriundos de contextos completamente diferentes: Henry herdou o trono inglês e Thomas é um saxão excepcional que, ao contrário de seu povo conquistado, caiu nas graças do rei e conquistou uma posição de prestígio na corte. Tudo vai bem até que uma ideia presumidamente genial que Henry tem de nomear Tomas como o próximo arcebispo (esperando que a presença do amigo no cargo alivie as tensões clero e corte) acaba os afastando ao escancarar a disparidade de seus ideais e prioridades. Tomas passa a colocar Deus acima de tudo e todos enquanto Henry, apegado a sua posição real de poder, sente a nova empreitada de Thomas como traição imperdoável.
Confesso que, após estabelecido o conflito central, imediatamente tomei partido do Rei Henry. Apesar de grosseiro e presunçoso, O'Toole imbui o personagem de tamanha espontaneidade que não nos importamos com seus ataques inescrupulosos à família, à corte e à igreja. Quando ele diz a seus filhos horríveis e emburrados que os odeia ou critica a petulante esposa acusando seu corpo de ser "um terrível deserto" onde caminhara perdido, encontramos humor em sua revolta, pois ele desmascara brutalmente o pudor e a dissimulação real de figuras antipáticas e emproadas.
Sentimos na cólera de Henry uma avidez por afeto verdadeiro, algo que encontrara em Becket e que em seu reino não há sequer uma gota. O'Toole, especialmente da metade do longa para o final, confere ao rei uma espetacular intensidade enquanto este definha amargurado pela relação de amor e ódio que cultiva por Becket - seu único verdadeiro amor. O personagem comove, pois ao contrário de Becket, cuja motivação se calca ou no poder ou na devoção abstrata a Deus, Henry sofre por questões muito mais sentimentais e básicas - ele deixa de ser rei e vira um garoto solitário e carente.
Richard Burton não funciona muito bem como Thomas Becket. Ele é canastrão demais desde o começo para nos convencer que colocaria Deus acima de tudo ou que sofre em seu cerne pela ausência de honra em sua vida; quando o personagem veste sua indumentária eclesiástica tudo o que vemos é um lobo sonso nas roupas largas da vovó. Sua atuação é de uma nota só e mesmo quando morre (não se trata de um spoiler, já que a primeira cena do filme já revela o fato) seu semblante é narcisista e impávido. Em vez de ambíguo e digno do fascínio de Henry, o personagem se revela demasiado inerte, beirando o cinismo em diversos momentos.
O longa é dirigido de maneira servil à estória, mas sem muita inventividade por Peter Glenville - sua câmera mantém basicamente um panorama de proscênio e confere aspecto de peça teatral à obra. O que realmente nos engaja, em um nível visceral, é a atuação de Peter O'Toole que desfruta ao máximo de alguns bons diálogos (em especial daqueles envolvendo altercações entre os membros reais). Alguns anos depois O'Toole reprisaria o papel de um Henry II mais velho no filme "The Lion in Winter" (1968) de maneira ainda mais desabrida, mas aqui já deixa sua marca enérgica em um personagem complexo e que facilmente poderia ter se tornado ominoso nas mãos de um outro ator menos monumental.
"The Gift" começa muito bem - convencional, mas habilidosamente tenso. Somos introduzidos a Robyn e Simon (Rebecca Hall e Jason Bateman), um casal que acaba de se mudar para uma nova vizinhança em busca de novos ares; ele é impaciente e um pouco controlador e ela sensível e instável (somos revelados que há pouco tempo sofrera um aborto). Certo dia, Simon encontra uma antigo colega de escola, Gordo (Joel Edgerton, também diretor do filme), um sujeito de semblante estranho e amigável em excesso. Gordon começa a se aproximar do casal, em especial de Robyn a quem dirige olhares sinuosos; ele passa a visitar a moça quando sabe que seu marido não está e ela, ingênua, recusa em acreditar que Gordon é um mau sujeito como o marido aponta. Sabemos, desde o princípio, que a loucura de Gordo não tardará a se manifestar de maneira perigosa - o sujeito presenteia o casal diariamente com algo diferente e parece obstinado a fazer parte de suas vidas mesmo sem reciprocidade. "Estou muito feliz por vocês", repete ele inúmeras vezes em tom duvidoso. O diretor brinca com nossas expectativas e toda cena envolvendo os três se torna uma antecipação tensa - qual gatilho finalmente levará Gordo a desmantelar sua fachada cortês e revelar quem realmente é?
O primeiro terço de "The Gift" é um filme que já vimos milhões de vezes e retoma a pegada de thrillers noventistas como "Unlawful Entry" (1992) e "The Hand That Rocks the Cradle" (1992), em que um casal tipicamente americano de boa condição financeira começa a sofrer nas mãos de um pseudo-bonzinho frustrado de intenções ocultas e nefastas. Lá pela sua metade, no entanto, o filme ganha um novo contorno interessante; não entrarei em detalhes, mas basicamente nos são revelados segredos sobre os personagens que alteram sua dinâmica e torna a tensão entre eles mais complexa. Infelizmente, é quando o filme ganha mais complexidade que ele também erra a mão em certos aspectos. Se os segredos que são revelados a princípio tornam o filme mais ambíguo - nos levando a repensar a ética e o posicionamento dos personagens - logo em seguida eles os empurram à extremidades não tão convincentes (um deles, de repente, começa a agir de maneira exageradamente violenta e o outro se torna demasiado contido).
Não obstante, o filme segue interessante e vamos descobrindo, paulatinamente, detalhes cada vez mais graves sobre o passado dos personagens e como este influencia suas ações, reações e conflitos. É somente em seu terceiro ato que o filme derrapa de maneira grave, pois em vez de apostar na angustia psicológica dos personagens e nas ramificações de seus conflitos internos, ele simplesmente cria uma situação sádica e inverossímil para concluir a narrativa, destituindo o filme da própria ambiguidade sugerida anteriormente e chamando mais atenção para seu roteiro "espertinho" do que para o desenvolvimento de seus protagonistas. A personagem de Rebecca Hall, por exemplo, tem um arco dramático interessante envolvendo bullying e um crescente desencanto com a própria vida que é pouco explorado e poderia ter levado o filme a um desenrolar mais sagaz e potente.
"The Gift" possuía todos os ingredientes necessários para se tornar um thriller mais sensível e original que os demais, mas acaba, no final das contas, mais mirabolantemente engenhoso do que psicologicamente ressonante.
"The Wild Bunch" levou o gênero faroeste a um novo extremo em 1969 pelas mãos de Sam Peckinpah. O irreverente diretor por pouco não teve seu filme barrado pela censura (os códigos se afrouxaram justamente na época de seu lançamento). Violento e amoral, o longa foca em um grupo de criminosos encabeçados por Pike e Dutch (William Holden e Ernest Borgnine) que, distantes de seus tempos áureos, almejam realizar sua última grande façanha em troca de ouro - um perigoso roubo de armas ordenado por uma facção mexicana.
Os personagens de Peckinpah parecem ser uma extensão de sua própria personalidade - apontado por muitos como um beberrão problemático, extravagante e bronco, o diretor articula a violência e as questões morais de seus personagens de maneira ambígua, ele saboreia e condena seus atos impudicos como que delegando suas fantasias obscenas a sua arte. E, de fato, os protagonistas criam esse efeito no espectador: nós os rechaçamos e ao mesmo tempo nos tornamos fascinados por sua conduta aberrante. Se em determinado momento o "grupo selvagem" massacra inocentes e antagonistas sem pestanejar, em outro tudo arriscam para salvar a vida de um seus companheiros e se indignam com a violência a qual ele é submetido nas mãos de certo crápula. São maneiras de ser dissonantes que conferem aos protagonistas um caráter especial: eles são extremamente antiéticos, mas possuem, no entanto, uma ética própria entre si que os impele a impasses e os complexifica.
Sam Peckinpah, como de costume, confere ao seu filme uma qualidade báquica: os personagens bebem vinho, transam, matam e gargalham em absoluto arroubo, dançando na fronteira do prazer e da morte - há uma excelente cena em que os personagens atiram em um barril de vinho suspenso e se banham na cascata roxa que irrompe. Apesar da brutalidade que permeia a relação entre os protagonistas, há entre eles uma camaradagem (evidenciada na cena em que dividem debochadamente uma garrafa de vinho após uma grande escapada) que os eleva a algo além de meros malfeitores - eles são, antes de tudo, bufões incorrigíveis.
As cenas de ação são explicitamente violentas e editadas freneticamente; às vezes se tornam confusas, mas convém uma brutalidade e um excesso espetacular. As tomadas em câmera lenta típicas do diretor eleva os massacres a uma qualidade quase elegíaca. Peckinpah parece almejar por uma certa aura mítica em sua obra que caminha sempre trágica e impiedosa ainda que seus personagens nunca de fato se tornem densos o suficiente para justificar tal grandeza. A magnífica trilha sonora de Jerry Fieding abarca uma miríade de humores se mantendo fiel à estética faroeste, incluindo uma melancólica versão da canção folclórica mexicana "La Golondrina", diversas lamúrias orquestrais intercaladas por solos de gaitas e guitarras flamencas e, é claro, o memorável e retumbante tema de cordas em staccato que entoa as cenas de ação. Aliás, é palpável a preocupação de Peckinpah em criar um ambiente verossímil em seus filmes, desde a trilha sonora evocativa da cultura mexicana aos cenários poeirentos, vivos, repleto de rostos legítimos, nativos e espontâneos - tudo transmite autenticidade; mesmo quando uma cena se encerra, sentimos que a cidade e suas pessoas continuam com suas vidas.
O longa é carregado de imagens fortes; frequentemente o diretor associa seus personagens à dinâmica bárbara da própria natureza. Logo no começo do longa vemos crianças se divertindo ao assistir um exército de formigas devorando grandes escorpiões; mais tarde tal cena ecoa quando observamos maltrapilhos saqueando corpos de soldados à maneira das formigas e quando constatamos que os protagonistas não tem outra escolha senão obliterar, saquear e ferroar para sobreviver, caso contrário terminarão feito os grandes escorpiões arruinados.
Pike e sua gangue estão no crepúsculo de uma vida indigna, mas inevitável e, quando chegamos ao desfecho, entendemos que é somente o código interno entre esses personagens, isto é, sua camaradagem, que permite a eles qualquer dignidade e que por mais violentos e indecorosos que sejam, não são tão desprezíveis quanto o general mexicano ou os caçadores de recompensa, afinal estes - além de truculentos - não se interessam por nada além do ouro e do poder. Aliás, o próprio líder dos caçadores, um sujeito que outrora fazia parte do grupo de Pike, se revela gradualmente mais saudosista de fazer parte do grupo, percebendo que ao menos entre eles havia um pertencimento, uma lealdade, uma tradição. Quando o "bando selvagem" entra em seu derradeiro conflito, cuja ocasião não é engendrada por ouro ou poder, mas pela lealdade ao amigo, o colocamos acima dos grupos que os antagoniza e passamos até a admirá-los, não porque viraram heróis, mas porque tiveram a coragem de exercer a honra em uma terra de monstros.
Conceber um remake de um filme muito conhecido e icônico não é tarefa fácil, pois nós, o público, inevitavelmente o experienciamos comparando-o ao filme original. Seguindo a mesma premissa básica da versão animada, "Mulan" narra a jornada de uma jovem chinesa que decide se disfarçar de guerreiro para tentar salvar a vida de seu pai, ocupando seu lugar na guerra à revelia de toda uma nação e provando-se uma excepcional guerreira.
A nova versão funciona bem quando alude nostalgicamente ao desenho animado - em determinado momento a protagonista chega ao cimo de uma montanha e escutamos o instrumental melancólico da canção "Reflection" e nos emocionamos. No entanto, no decorrer do longa, fica nítido que ao despi-lo das memoráveis canções presentes na versão animada e tornar os personagens mais centrados e circunspectos, o filme acaba perdendo muito de sua força dramática. Ele se torna mais resoluto, mas não ganha gravidade. Apesar da temática grandiosa envolvendo superação pessoal, guerra entre impérios e entreveros familiares, esta nova versão jamais empolga ou comove como deveria.
Yifei Liu está excelente como Mulan tanto física quanto emocionalmente, a atriz consegue conciliar vulnerabilidade e obstinação de maneira exímia (às vezes apenas com seu semblante), mas infelizmente o roteiro e a direção jamais conferem à jornada da personagem o devido peso - sua evolução é muito súbita, raramente transmitindo grande aflição ou esforço. Sua senda se revela burocrática e monótona em vez de calcada em um "páthos" genuíno. Na versão anterior, não havia esse problema, pois além da expressividade da animação, havia as músicas que serviam como expressão d'alma dos personagens - elas nos diziam sobre o que eles sentiam e agregavam à intenção da narrativa de maneira bela, vivaz e poética.
Nesta nova versão alguns personagens são anulados, outros rearranjados e há a inclusão de uma nova vilã interpretada por Gong Li. Apesar do visual imponente da atriz, sua personagem nunca provoca a tensão almejada, talvez porque ela mude tão facilmente de posição durante o longa - à mando do roteiro esquemático - que acaba perdendo sua credibilidade; quando Gong Li começa a "aquecer" - esboçando um trejeito ou uma característica interessante da poderosa feiticeira - logo é arremessada a um novo empreendimento que anula sua personalidade e intenção anterior. O vilão Bori Khan de Jason Scott Lee (baseado no mais sinistro Shan Yu da versão animada) não causa impacto, não tanto pela performance do ator, mas devido a uma caracterização fraca e pela maneira insossa como é introduzido, filmado e articulado na narrativa.
As cenas de ação são constantes e poderiam até ter sido divertidas, afinal são bem coreografadas e produzidas, no entanto, o diretor Niki Caro parece incapaz de deixar que um plano permaneça na tela por muito tempo, sua decupagem é tão hiperelaborada e a montagem tão ansiosa que não conseguimos absorver as cenas esteticamente (antes de um plano poder criar qualquer efeito em nós ele já é substituído por outro) - ficamos desorientados em vez de enlevados.
"Mulan" é muito extravagantemente produzido para se tornar completamente entediante e conta com um elenco competente, mas empalidece dramaticamente quando comparado à versão animada, carecendo de seu tom espirituoso e de sua emoção espontânea.
Quando um artista produz uma obra de arte, ele vira testemunha solene de um sofrimento. Em "Luz de Inverno", Ingmar Bergman vira testemunha ao conferir forma à dúvida que assombra a humanidade desde que o homem soube de si - Deus existe?
A narrativa gira em torno do padre Tomas, um sujeito que se encontra, após uma missa, não apenas distante de Deus, mas cada vez mais descrente de Sua existência. Abatido por uma doença que se manifesta por uma constante tosse, Tomas se revela doente também em espírito. "Deus se silenciou", ele constata. Sua conduta para com seus fiéis é avassaladora - ele leva um homem deprimido e ávido por consolo ao suicídio e maltrata a franzina Marta com palavras sádicas de desprezo; ela, apesar de ateia, tem Tomas como Deus e se assujeita aos seus mau tratos como obstinada mártir apaixonada.
Tomas, amargurado pela desilusão, se torna um anti-pastor, suas palavras viram armas mortais que destroem o outro com a mesma revolta que sua miséria espiritual o consome. Bergman habilmente cria um universo gélido e consternado e faz da igreja não a casa de Cristo, mas uma caverna do desamparo; pelas mãos do padre os ritos eclesiásticos surgem mecânicos e aéreos. Os planos do diretor são firmes e objetivos e a angustia de seus personagens é confrontada sem qualquer obliquidade. Os cenários também são impiedosos - desde os campos tristes soterrados de neve ao interior amplo e oco das igrejas. Os sons ou vêm das forças torrenciais da natureza (um rio violento e incessante, por exemplo) ou das palavras cortantes e dos silêncios que as intercedem. A atmosfera é de total angustia.
O título do longa não poderia ser mais perfeito. A luz de inverno é fraca, trêmula, distante e assim é Deus para o padre no inverno de sua fé. Ingmar Bergman foi consumido por toda sua vida pela dúvida a respeito da existência de Deus e tal questão sempre se manifestou em sua obra, algumas vezes de maneira esperançosa, outras desconsoladamente. Apesar do desamparo que Bergman nos faz encarar em "Luz de Inverno", sua querela com Deus não se conclui absoluta; surge na forma do personagem sacristão Argot - um sujeito corcunda e de peculiar serenidade - uma centelha de esperança. Ele é o único personagem que não busca consolo no padre: ele fala de sua dor física e até diz que a de Jesus não fora tão ruim quanto a sua ("durou apenas umas 4 horas, não foi?"). Argot conclui que a verdadeira dor de Jesus foi espiritual, que mesmo Ele tivera que lidar com severas desilusões, incluindo a traição de seus discípulos, a incerteza de que sua mensagem fora escutada e a maior delas - o silêncio de Deus no Seu momento de maior desespero frente à morte.
Há uma leveza na fala de Argot e em sua postura ausente no resto dos personagens, ele é trágico, mas não é um coitado; Argot revela uma empatia autêntica por Cristo e vê em Seu sofrimento um eco de sua dor, um testemunho de sua angustia; não que ele traga com tal reflexão um bálsamo ao desalento do padre (e que em certo nível é o desalento do próprio Bergman), mas ao menos insinua que a dor mais excruciante pode preceder o maior dos milagres e que, humanizando Cristo - aproximando-o de nós, também nos aproximamos do divino.
“(...) toda a verdade é o que não se pode dizer. É o que só se pode dizer com a condição de não levá-la até o fim, de só semi-dizê-la." (Jacques Lacan)
Em seu filme de estreia, "Pi", Aronofsky inicia com potência sua jornada fílmica contemplando sujeitos psiquicamente perturbados que parecem encontrar apenas em um ideal absoluto e impossível um alento para suas agonias arraigadas.
A trama gira em torno de Max, um matemático misantropo que vive enclausurado em seu pequeno apartamento obcecado por números e pela forma como eles compõe e secretamente ditam, segundo ele, a ordem do universo. Max fica fascinado pelo misterioso número Pi - infinito e sem padrões. Ao tentar decifrá-lo em um computador, de repente a máquina entra em pane e revela uma sequência de 216 números que, posteriormente, se revela de grande importância. O protagonista começa a agregar ao seu fascínio por números elementos religiosos e econômicos - um judeu, almejando atrair Max a sua seita através de sua tara por matemática, explica a ele que o Torá também é matemático e contém mensagens ocultas na forma de letras disfarçadas de números e, mais tarde, um grupo poderoso de negociantes oferece a Max um super computador para que ele decifre os padrões da bolsa de valores usando seus números secretos.
Darren Aronosfky aborda a trama de maneira Lynchiana, o personagem vai definhando psicologicamente, seu mundo vai desagregando em cadeia e ele passa a sofrer de alucinações aterrorizantes - passamos a não saber mais o que é realidade e o que é delírio. A fotografia granulada de alto contraste e em preto e branco confere ao longa aspecto de pesadelo lúgubre, assim como o faz a câmera aflita e caótica de Aronosfky. O diretor ainda iria refinar seu estilo em filmes futuros mais esteticamente eficazes, mas aqui já esboça o teor sufocante e babélico tão marcante em suas obras.
No decorrer do filme a obsessão de Max pelos números ganha proporções extremamente pungentes e existenciais. Ele não apenas teoriza suas ideias, ele as vive na carne, no real do corpo (inclusive o personagem chega a se ferir fisicamente em diversos momentos). Não é que Max tenha dificuldade com parte da realidade que escapa a sua compreensão, mas sua própria realidade é um buraco. Surge no número secreto a promessa de uma grande revelação, de um grande êxtase capaz de tapar sua ferida pulsante. Quanto mais Max se aproxima de seu objeto, mais ele despenca no furo da loucura e vamos percebendo que aquilo que ele procura onipotente sob a égide da razão é, na verdade, a busca pela própria morte - por aquilo que não registra, que escapa qualquer símbolo, número ou palavra.
Max nega tudo e todos que o afastem de seu grande objetivo, inclusive despreza sua amável vizinha que nutre por ele um carinho quase materno. Há uma recusa do personagem de se ligar aos outros de maneira afetiva - ele é narcisista, auto-erótico, seu gozo é restrito ao rigor do mundo numérico e ele também é um número. Já dizia Lúcio Cardoso: "A ciência é uma verdade solitária". À maneira da espiral (símbolo que se torna primordial em sua senda), o personagem converge todas suas energias em direção a um ponto enigmático, absoluto, final. Testemunhamos Max deixar de investigar a matemática e passar a ser investigado por ela - ele é invadido pelos números e em seguida pelo judaísmo e pelo capitalismo, personificados na forma de figuras persecutórias, ávidas em extrair dele o "grande segredo".
Em uma das cenas mais angustiantes do longa, um grupo de rabinos revela ao protagonista que a sequência de 216 números revela "o nome verdadeiro de Deus" e que Max fora escolhido para receber tal informação divina e deve dizê-la imediatamente a eles para que finalmente o homem se reencontre com seu criador divino. Max não consegue, algo o impede de dizer este "tudo", afinal, qual seria o preço de tudo se revelar? De se concretizar o encontro com a instância metafísica última da verdade? Não seria este outro absoluto a própria morte?
Após um ápice de loucura que quase lhe custa a própria vida (e talvez de fato tenha lhe custado, fazendo do epílogo uma possível fantasia), Max termina o filme sentado em um banco ao lado de uma garotinha também fascinada por números (ainda que, no caso dela, a fascinação não seja mais que uma singela diversão). Ela pergunta a ele a resposta de um cálculo qualquer e, mesmo sabendo a resposta, ele serenamente diz não saber. O desfecho sugere uma epifania por parte do personagem - ele contempla o farfalhar das árvores e parece ter chegado a assunção de que não entender tudo racionalmente ou numericamente não significa que não seja possível uma outra compreensão - mais inventada, mais prazerosa e menos "toda". E suspiramos juntos a ele...que alívio é não sermos capazes de tudo compreender!
"Dirty Harry", acompanhado de filmes como "The French Connection" do mesmo ano, mudaram a cara do cinema policial americano para sempre ao apostar em uma estética mais visceral, áspera e cruenta e trazer como protagonistas personagens excepcionalmente inescrupulosos, cínicos e irascíveis.
Clint Eastwood encarna o policial Callahan, um sujeito ávido em buscar justiça pelas próprias mãos à revelia da burocracia irritante da polícia americana. Sua personalidade impulsiva e debochada somada à direção enérgica e tensa de Don Siegel marcou época e é fácil ver a influência deste tipo de filme setentista em obras mais modernas de grande popularidade como a saga "Die Hard" (1988-2013) estrelada por Bruce Willis e os filmes policiais de Tarantino, "Jackie Brown" (1997) e "Reservoir Dogs" (1992).
Apesar de não possuir as nuances morais e o desfecho tétrico de "The French Connection", "Dirty Harry" é impecável como thriller e em diversos momentos seu tom se aproxima até mesmo do gênero horror, em grande parte graças ao repulsivo vilão Scorpio brilhantemente interpretado por Andrew Robinson e inspirado no "assassino do Zodíaco", um verídico serial killer responsável por dezenas de mortes no final da década de 60.
O filme explora a saga do policial Callaham versus o assassino Scorpio com brutalidade e de maneira linear (o longa é basicamente uma grande sequência de perseguição com breves interrupções para recuperarmos o fôlego); Don Siegel aborda o ambiente urbano em sua faceta mais sórdida e utiliza de seus cenários como sinistros campos de batalha entre os protagonistas.
Desde a excelente cena de abertura (envolvendo uma personagem sendo assassinada em uma piscina de cobertura por um atirador de longa distância) o filme já cria uma atmosfera de crueldade e perigo (a sensação é de que o atirador pode estar em qualquer lugar e ter passando despercebido). Siegel é hábil em manter tensão mesmo em momentos aparentemente inocentes - em determinado momento, por exemplo, dois personagens descem um grande lance de escadas a céu aberto e apesar de nada, na cena em si, indicar perigo, ficamos atentos e temerosos, imaginando se o assassino está a observá-los.
Não há descanso tanto para o policial Callaham quanto para o espectador, o filme dispensa subtramas ou explicações que humanizem o vilão Scorpio; ele é um perverso tão aversivo que passamos todo o longa ansiosos para que o personagem de Clint Eastwood dê a ele o que merece da maneira mais violenta possível. Apesar do anti-herói Callaham começar o longa moralmente dúbio (ele não hesita em disparar tiros contra alguns ladrões de banco negros), ele vai aos poucos mostrando seu lado humano e sua preocupação com a vida alheia, ainda que, no final das contas, seja o puro ódio pelo antagonista abjeto sua maior motivação e nós, também ávidos por vingança, o compreendemos.
"Deahtrap" é um filme similar a "Sleuth" de 1972 também estrelado por Michael Caine: ambos são adaptações teatrais que envolvem uma trama repleta de reviravoltas e têm como personagem central um autor de mistérios com intenções nefastas, no entanto, "Deathtrap" é muito superior a "Sleuth", trazendo uma trama dinâmica e espirituosa que funciona bem nas telonas e consegue transcender suas origens de palco.
A narrativa gira em torno de um escritor de peças renomado cujas últimas obras fracassaram. Ao receber por correio uma brilhante peça escrita por um antigo pupilo, ele começa a contemplar junto à esposa o assassinato deste afim de clamar a obra como sua e retomar seu sucesso de outrora. O filme conta com atuações carismáticas por parte de todo o elenco e ainda que os personagens jamais soem verossímeis ou que as relações entre eles não passem de mero artifício do roteiro, este consistentemente entretém e nos pega de surpresa.
Michael Caine se mostra adequadíssimo ao papel - sestroso e canastrão e se Christopher Reeves esbanja beleza e Dyan Cannon provê momentos histriônicos divertidos como a esposa de caráter dúbio, é Irene Worth quem rouba a cena como a vidente estrambólica que inusitadamente se envolve com o arranjo sinistro.
O longa alterna momentos de atmosfera jocosa com outros de genuína tensão e, apesar de nem sempre conciliá-los harmonicamente, sempre mantém o espectador curioso a respeito do próximo entrevero. A direção de Sidney Lumet é um pouco estática (em especial nos dois primeiros atos) e sua câmera pouco inventiva - o diretor mantém uma certa distância dos personagens e não diversifica muito seus planos previsíveis; não obstante, o roteiro chistoso aflora e "Deathtrap" se conclui como um ótimo passatempo.
"Shadow of a Doubt" é considerado o melhor filme de Hithcock pelo próprio Hithcock, no entanto, apesar de oferecer muitos dos famosos cacoetes estéticos do diretor, não é uma de suas tramas mais convincentes ou bem amarradas, ainda que seja uma experiência perenemente prazerosa e tensa.
A eficiência do filme vem da maneira como o diretor contrasta dois elementos distintos - o perigoso e furtivo Tio Charlie e a cidadezinha do interior Santa Rosa, um local onde pessoas amáveis e ingênuas vivem alheias aos horrores do mundo. Entre os dois universos surge a sobrinha de Charlie, de mesmo nome do tio e interpretada com candura por Therese Wright, uma moça que exibe certa ingenuidade típica da cidade, mas também se revela mais sagaz e audaciosa que sua família comoventemente pueril.
O fascínio que a jovem Charlie nutre pelo tio parece vir de um desejo de desbravar o além da vida morna e pacata de onde vive e quando começa a descobrir que seu tio é mais do que fascinante, mas facínora, nos comovemos ao ver seu enlevo se diluir em uma amuada decepção. O roteiro é demasiado ingênuo em certos pontos - os investigadores são tranquilos demais, a jovem Charlie reage com pouco furor aos óbvios perigos que enfrenta e algumas reviravoltas surgem um tanto quanto obnubiladas. No entanto, o filme apresenta muitos pontos fortes - a direção de Hitchcock é elegante como sempre e aqui o vemos utilizando seu arsenal estético de maneira típica e eficaz, seja através de seus zooms clínicos em pequenos objetos pivotais, seus planos holandeses que denunciam desconforto e perigo ou da maneira sinuosa como filma a escada íngreme da casa - sempre envolta em sombras e travessa na qual os personagens trocam olhares de suspeita. Hithcock insinua também, de maneria ousada para a época, uma certa tensão sexual incestuosa entre os protagonistas, nos deixando curiosos em relação até onde a sobrinha permitirá ser levada pelo tio já que, apesar de sua natureza gentil e de sua lealdade à reputação da família, se encontra desesperadamente eriçada pelo charme profano do antagonista.
Apesar de alguns cortes demasiado abruptos que interrompem as cenas antes delas se revelarem por completo (como, por exemplo, no emotivo monólogo de Patricia Collinge), o longa consegue gerar palpável tensão entre a jovem Charlie e seu tio, agravando paulatinamente a desconfiança da moça paralela a imprudência do tio e culminando em duas excelentes cenas no terceiro ato: uma envolvendo uma garagem e outra um trem em movimento. Joseph Cotten está excelente como o vilão, mostrando-se desde o princípio sedutor, desapegado e sórdido ao passo que Theresa Wright confere charme à protagonista, imbuindo-a de um carisma pudico essencial para que temamos por sua vida.
"Phenomena" é um dos melhores filmes de Dario Argento, não por possuir coerência ou porque seus personagens são bem desenvolvidos e seus conflitos interessantes, mas porque atinge um nível de exagero tão exorbitante e esteticamente bem conduzido que acaba nos cativando. O longa consiste em pelo menos três filmes diferentes amalgamados em um só: um envolvendo uma garota com poderes sobrenaturais capaz de controlar insetos, outro sobre um "serial killer" de adolescentes e um completamente à parte sobre uma mãe insana que esconde um terrível segredo.
A impressão que se tem ao assistir "Phenomena" é que se trata de um conto de fadas macabro acidentalmente trazido ao mundo moderno. Há um tom de fantasia em certas sequências como a que envolve a protagonista descendo um buraco sem fim atrás de um telefone (feito a Alice de Lewis Carroll) e outras envolvendo insetos e macacos que se comunicam quase como humanos. São elementos demasiado idiossincráticos e surreais para caberem confortavelmente em uma narrativa que a princípio parece se calcar na realidade de uma adolescente que, apesar de possuir uma característica sobrenatural, habita um mundo comum. Talvez se Dario Argento tivesse mergulhado de cabeça em um universo fantástico (de outra época, de outra natureza), seu filme tivesse sido mais bem sucedido e coeso.
O diretor confeccionou desatinadamente, mas nunca tediosamente, um filme de pedaços visualmente belos e brutais ancorados pela personagem de Jennifer Connelly (com rosto de princesa e um tanto inexpressiva); ao contrário de muitos de seus filmes Argento consegue em "Phenomena", ainda que minimamente, estabelecer personagens pelos quais nos importamos (algo que faltou gravemente em "Tenebre" de 1982, seu filme anterior) e a relação entre a protagonista e o cientista interpretado por Donald Pleasence confere certo afeto à trama mentecapta (ainda que a atuação de Jennifer Connelly falhe em transmitir a emoção necessária em diversos momentos).
Acompanhamos a personagem de Connelly descobrir sobre seus poderes envolvendo insetos, sofrer bullying por gostar deles (o filme alude a Carrie de 1976 em diversos momentos) e testemunhar uma série de assassinatos de jovens garotas que parecem de alguma forma estar conectados ao seu sonambulismo. Nunca sabemos que rumo a estória tomará e ficamos estupefatos com a progressiva adição de elementos bizarros, entre eles um macaco carismático e prestativo, uma repugnante piscina de vísceras e uma criança horripilante. A trilha sonora, como de costume nos filmes do diretor, é absurda e oscila entre sintetizadores ululantes e Iron Maiden e muitas vezes rompe qualquer tensão que haja nas cenas pela discrepância tonal. O roteiro (também de Dario Argento) não convence no que se refere às motivações dos personagens (frequentemente eles agem de maneira insensata e desconexa), aliás, nem o desfecho consegue explicar muita coisa, mas sua imprevisibilidade e a maneira elaborada e visualmente estimulante com a qual o diretor conduz suas cenas (sua decupagem é sempre inventiva e impressionante) acaba nos entretendo e deixando os mil pontos de interrogação camuflados pelo espetáculo.
O filme é demasiado longo e próximo de seu ato final perde um pouco o fôlego, no entanto, quando chegamos aos últimos 15 minutos somos bombardeados por uma série de acontecimentos bisonhos, espetaculares e repentinos que apesar de não fazerem muito sentido são inegavelmente divertidos e concluem o longa de maneira impactante e excêntrica. Aliás, o último plano (envolvendo um encontro de dois personagens) é fascinante, pois evoca uma inocência quase irônica e surreal visto os horrores que a precedem.
A rigidez da vida militar e a repressão da homossexualidade se encontram de maneira impactante nesta obra sensível e pungente de John Flynn (mais conhecido pelos seus inferiores filmes "exploitation"). Em "The Sergeant", acompanhamos a estória do sargento Albert Callan (interpretado por Rod Steiger), um veterano de guerra que começa a comandar um campo de soldados em uma região isolada da França. O longa se inicia com um prólogo em preto e branco no qual presenciamos o sargento matar obstinadamente e animalescamente alguns soldados inimigos; é uma cena forte que demonstra não só o ímpeto destrutivo do personagem, mas uma certa vazão erótica que tais atos sórdidos o propiciam - quando ele mata há um alívio em seu semblante e quando ele asfixia um homem e cai junto ao seu corpo no chão, seus gestos denunciam um homoerotismo, um carinho distorcido pelo soldado que matou.
O filme ganha cor e vemos o sargento iniciando seu trabalho no campo de soldados. Ele é implacável e autoritário, mas por trás de toda rigidez naturalmente há a perversão e quando digo perversão é óbvio que não falo da homossexualidade em si, mas na maneira torta pela qual se manifesta no contexto da vida do sargento - uma vida militar espartana de severa repressão. Durante uma inspeção o sargento de repente se vê fascinado por um dos soldados - um jovem atraente, alto, loiro e de físico atlético, o oposto do sargento atarracado e abatido. Diante súbita paixão, o sargento vai paulatinamente tentando aproximar-se do rapaz, convencendo-o a trabalhar para ele em seu escritório (um trabalho claramente inadequado a suas habilidades) e usando de sua autoridade e poder para garantir que o jovem não possa rejeitá-lo. O longa vai se tornando tenso, pois sabemos desde o começo que o jovem possui uma namorada e que a violência internalizada do sargento e seu próprio ódio de si não tolerarão rejeição de bom grado.
A relação entre o sargento e o jovem soldado se torna curiosa, pois o jovem não o rejeita inteiramente; apesar de um estranhamento inicial, ele também começa a gostar da companhia do sargento e até a admirá-lo, de maneira que por um breve momento supomos que ele também possa ter algum interesse para além da amizade e da profissão. No entanto, logo percebemos também que o soldado não é mais que um menino ingênuo e educado, completamente alheio as intenções românticas do sargento e que eventualmente, quando as coisas ficarem claras, algo violento certamente se manifestará, afinal o sargento é uma panela de pressão que explodirá ou no êxtase do desejo ou da violência.
Rod Steiger está excelente no papel e é surpreendente que não tenha sido indicado a prêmios americanos na época (talvez o tema controverso seja o motivo). O ator imbui o personagem de uma intensidade que o tempo inteiro ameaça romper seu verniz de diligência e austeridade. Seu sargento Callan acaba nos comovendo, pois apesar de saber que o desejo homossexual que sente pelo jovem soldado é inaceitável tanto para ele quanto para o mundo em que vive, este desejo se torna sua razão de viver, seu objetivo maior e, para atingi-lo, tudo vale menos dizer o que de fato sente ou expressar-se fisicamente e o que resta são estratagemas e sabotagens para manter o jovem soldado por perto, seja sabotando seus encontros com a namorada ou forçando-o a trabalhar horas extras apenas para aproveitar um pouco mais de sua presença. Todas suas patéticas atitudes passam a girar em torno do rapaz, seja para puni-lo por frustrar sua intenções ou simplesmente para mantê-lo à vista. Claro, é uma forma doentia de afeto, uma obsessão sinistra, mas é a única forma possível de "amor" para o miserável sargento.
É interessante também a maneira como "The Sergeant" explora a relação do soldado com ele mesmo, já que no decorrer do filme o vemos encarnar diversos papéis tipicamente masculinos - do beberrão inconveniente, do piadista fanfarrão, do machão tirânico, do mulherengo desapegado, do sargento implacável - e ainda assim, testemunhamos nenhum deles o servir, mas apenas camuflar sem qualquer convicção um interior marcado por carência, incompreensão e desejos recalcados. Quando o final trágico finalmente chega fica o mal estar e a constatação de que naquele mundo austero - surdo e cego à subjetividade -, mas encorajador da guerra e da violência, o resultado não poderia ter sido outro.
"Georgia" é um filme sobre relacionamento entre irmãs que consegue explorar uma dinâmica complexa de maneira inteligente e surpreendente. Jennifer Jason Leigh protagoniza o filme como Sadie, uma pseudo-cantora autodestrutiva que vive nas sombras da irmã aparentemente sã e talentosa - a cantora folk de sucesso Georgia, interpretada por Mare Winningham (indicada ao Oscar pelo papel).
O aspecto mais interessante do longa é que ele brinca com nossas expectativas em relação às irmãs. Se em determinado momento compreendemos a indignação de Sadie com a frieza e o descaso da irmã bem sucedida e de vida resolvida (ela parece ser antipaticíssima a princípio), logo em seguida também compreendemos Georgia quando fica evidente que Sadie é difícil, incorrigível e leva todos ao seu redor à fadiga emocional em um ciclo vicioso de melhoras e quedas envolvendo drogas, álcool e muita autocomiseração.
É um drama rico que jamais sucumbe ao melodrama graças ao roteiro verossímil escrito por Barbara Turner (mãe de Jennifer Jason Leigh na vida real) e inspirado em uma história de sua própria família. Jennifer Jason Leigh confere aqui uma das melhores atuações de sua versátil carreira, habilmente criando uma personagem infantiloide, sofrida, profundamente carente e desorientada. Sadie fascina, pois paradoxalmente nos causa repúdio e ternura. Ela é um buraco negro que demanda atenção de todos e pune aqueles que tentam ajudá-la ao frustrar qualquer fé que nela depositam. Apesar de suas falhas graves, sua admiração pela irmã acaba nos comovendo e é interessante como uma das primeiras cenas do filme (as duas irmãs pequenas dançando juntas e a mais nova imitando a mais velha de maneira inocente) antecipa em um contexto de alegria a dor que marca a vida adulta de ambas.
A própria falta de talento de Sadie é modulada de maneira sutil durante o filme. Ela de fato não sabe cantar, mas sua presença de palco às vezes cativa e percebemos sua vontade de se expressar pela arte (às vezes elas quase consegue) mais como um choro ávido pelo carinho e admiração da irmã do que uma ambição. Em outros momentos, no entanto, passamos vergonha ao vê-la bêbada ou completamente desafinada frente uma platéia e aí tomamos partido da irmã talentosa que, mesmo cansada de carregar Sadie nas costas, não consegue abandoná-la de vez (talvez por culpa) e constantemente tenta ajudá-la , através de seu sucesso, a engrenar ao menos um pouco sua carreira nada promissora.
É um filme que vai progressivamente se tornando mais devastador, não por reviravoltas no roteiro ou acontecimentos estrondosos, mas pelo peso da própria realidade dos personagens. O longa não os crucifica, mas também não concede a eles uma redenção hollywoodiana ou cenas resolutas de superação e epifanias. Nem o amor entre as irmãs é dado como garantido e sua relação oscila durante todo o filme (inclusive nos deixando ambivalente sobre qual das duas merece mais nossa simpatia). No final das contas, as dores de ambas as irmãs acabam nos tocando e o filme se encerra de maneira aberta e pungente, não oferecendo conclusões ou falsos alívios, mas escancarando seu ponto de angustia e mostrando que a vida segue mais ou menos igual, com a exceção de que agora conhecemos aquelas pessoas e, portanto, sentimos mais por elas do que quando o filme começou.
"Staircase", ao contrário do seminal "The Boys in the Band" lançado um ano depois, falha em explorar personagens homossexuais de maneira convincente ou mesmo divertida, mostrando-se equivocado do começo ao fim apesar de uma premissa interessante e muito ousada para a época.
O filme foca na relação do casal Harry e Charlie, juntos há muito tempo e enfrentando questões relacionadas ao declínio da juventude e à rejeição da sociedade (e no final das contas da insatisfação que sentem por si mesmos). O filme aborda temas relevantes e que a partir de um olhar mais sutil poderiam ter reverberado de maneria impactante, no entanto, a produção comete equívocos em muitos aspectos. Para começar, Rex Harrison e Richard Burton não convencem com suas atuações; há não só um exagero de trejeitos, mas um verniz de afetação e distância em seus personagens que parece defender e proteger a masculinidade dos atores, claramente desconfortáveis nos papéis. Jamais cremos por um instante que esses personagens se amam; o filme tenta estabelecer uma relação sado-masoquista entre os dois a partir do pressuposto de que por trás das agressões e ofensas que um submete o outro, eles na verdade se amam neuroticamente - não funciona e o filme se torna progressivamente mais deprimente e lúgubre em vez de sensível e revelador. Harrison está pavoroso, com semblante cínico e incapaz de um momento genuíno. Burton se sai um pouco melhor, mas ainda assim não transcende a caricatura, apesar de ao menos tentar imbuir o personagem de alguma sensibilidade.
O roteiro baseado na peça de Charles Dyer não é de todo ruim e possui alguns diálogos e situações que talvez funcionariam com outro diretor ou outro elenco. Stanley Donen, um diretor de senso estético apurado, dirigira alguns anos antes o excelente drama conjugal "Two for the Road", mas aqui parece sem inspiração, deixando clara as origens teatrais do roteiro e seu desinteresse pela estória. A trilha sonora obstrui desajeitadamente as cenas em vez de modulá-las e alguns momentos bizarros (como um envolvendo Burton trocando as roupas de sua mãe idosa que grita de dor e uma briga de tapas entre o casal) soam gratuitamente sádicos em vez de tocantes ou sensíveis; aliás, o filme nunca firma um tom coerente, alternando entre comédia parva e drama mórbido desassisadamente.
O fascinante cinema da "nova hollywood" abordou estórias de homens gays de maneira brilhante em muitos casos - vem à mente "Midnight Cowboy" (1969) e seu retrato da prostituição masculina, a repressão pungente da homossexualidade em "The Sergeant" (1968) e os entraves e afetos de um grupo de amigos gays no já citado "The Boys in the Band" (1970) - infelizmente "Staircase" cai no grupo dos fracassos, oferecendo um olhar limitado, cínico e depauperado de uma estória potencialmente interessante.
Tudo que Amy Seimetz consegue passar com "She Dies Tomorrow" é o quanto sua neurose existencial é irrisória e mal elaborada. A estória gira em torno de uma garota que, a partir de uma visão, assume que morrerá no dia seguinte; todos em contato com ela parecem sentir o mesmo e começam a vagar desconsolados e apáticos. O longa começa até interessante, criando uma atmosfera de isolamento e morbidez até pertinente com o momento de pandemia que vivemos, no entanto, na medida em que o filme progride ele vai se tornando cada vez mais inverossímil e tacanho.
Talvez o aspecto mais irritante do longa sejam seus personagens: todos conversam da mesma maneira - lacônicos e absortos; a sensação é de que a diretora e roteirista Amy Seimetz está falando pelos cotovelos através de seus personagens em vez de imbui-los de uma subjetividade própria, algo que confere a obra um aspecto narcisista, de neurose que em vez de ir pra terapia foi parar em película. A protagonista, uma moça adulta, mas infantilizada e anêmica, insiste em ter seu corpo transformado em uma jaqueta depois de morta, "quero ser útil de alguma forma", ela afirma monotônica e de semblante caído. Existe maneira de se expressar mais aborrecida e adolescentemente masoquista que essa?
Amy Seimetz aborda seu existencialismo de maneira demasiado perfunctória, jamais conferindo urgência ou angustia a sua narrativa, mantendo uma auto-complacência que vai drenando a vitalidade de seu filme, de forma que na última meia hora de projeção já nos encontramos fatigados e impacientes e completamente indiferentes ao destino dos personagens. Seus recursos visuais também não impressionam, se resumindo em flashes coloridos nos momentos de "revelação" e direção de arte direto do Pinterest.
O primeiro "Terminator", dirigido por James Cameron, é basicamente um eficiente filme de terror disfarçado de ficção científica; a futura heroína Sarah Connor nos era apresentada em 1984 como uma moça comum (completamente alheia ao futuro sombrio que a aguardava) enquanto o personagem facínora de Arnold Schwarzenegger consistia basicamente em um Michael Myers de aço. Em 1991 foi lançado o segundo filme da franquia, também dirigido por Cameron, mas que dessa vez optou por injetar na estória um teor dramático muito mais forte: as brilhantes cenas de ação e o cenário apocalíptico eram coadjuvantes de uma potente relação entre a mãe-leoa Sarah Connor e o filho John (ameaçado pelas máquinas, pois no futuro fora responsável por liderar uma revolução contra seu domínio). E talvez ainda mais potente surge a relação de John com o exterminador encarnado de maneira icônica por Schwarzenegger que, ao contrário da máquina predatória do primeiro filme, acaba cumprindo uma função paterna comovente para o garoto que, sem nunca ter tido um pai, agora via ao seu lado um protetor quase divino - infalível em lealdade e força e, ainda por cima, amavelmente cômico.
Se os dois primeiros filmes da saga cumprem seu papel de maneira exímia, as outras sequências sempre careceram de um lastro potente, apresentando algumas boas sequências de ação, mas falhando em erigir relações humanas marcantes ou mesmo acrescentar algo de novo na narrativa que parece infinitamente se repetir, ainda que sempre ornada com algum novo floreio.
"Terminator: Dark Fate" conta com um excelente recurso: a presença de Linda Hamilton; a heroína ainda possui impacto e sua cena inicial é sem dúvidas a melhor do filme, despertando não só uma nostalgia pela adorada personagem, mas mostrando que mesmo em seus 60 e crivada de rugas, continua destemida e obstinada. Infelizmente, além da presença de Linda, o filme não tem muito a oferecer. Desde a primeira cena ele incomoda, pois parece ignorar o desfecho do segundo filme e ainda por cima elimina um personagem importante de maneira demasiado perfunctória, sem o devido peso. Somos introduzidos à jovem futura heroína da vez e a novos homens-robôs do futuro, um deles uma mulher semi-humana que assume o papel de protetora e o outro uma nova versão do vilão-exterminador do segundo filme, ainda mais letal e desenvolvido.
"Dark Fate", apesar de tentar incrementar os velhos truques da saga, nunca de fato decola. Apesar da grande quantidade de cenas de ação, a maioria atinge um nível de exagero tão exorbitante que causa mais dormência do que empolgação (o clímax em particular parece interminável). Além disso, o filme possui um visual demasiado computadorizado (a sensação é de que o filme se metamorfoseia em um vídeo-game de tempos em tempos), em especial a partir de seu segundo ato quando basicamente se transforma em uma grande parafernália digital. A inverissimilidade de algumas cenas também incomoda - por que justamente quando o vilão tem a chance de matar um personagem importante ele se torna repentinamente incompetente? É claro que esta é uma característica comum em filmes do gênero, mas quando isto ocorre de maneira tão evidente é inevitável um certo cinismo.
A presença de Schwarzernegger, elemento icônico e vital dos dois primeiros filmes, surge de maneira decepcionante, já que o personagem reaparece como uma versão diluída do que fora em outros filmes - o próprio ator parece letárgico e um pouco envergonhado de encarnar o mesmo papel de antes, mas sem seu esplendor físico e importância na trama. As protagonistas, com exceção de Linda Hamilton, se mostram personagens insossos, artificiais e esquecíveis e seu arco dramático, apesar de ser insistentemente desenvolvido em cenas melosas, acaba se revelando progressivamente mais aborrecido e fingido.
"Dark Fate" se conclui como um passatempo mais cansativo do que vigoroso e prova, mais uma vez, que a franquia já se bastava com os dois excelentes primeiros capítulos, que, seja lá em que futuro, perdurarão como obras-primas do entretenimento.
"Come and See" narra a ascensão da Alemanha Nazista e sua ocupação na República Socialista Soviética da Bielorrússia pelos olhos do garoto Flyora que, se a princípio se mostra empolgado com a ideia de lutar pelo seu país e segura armas como um garoto segura um brinquedo, logo percebe que a guerra é muito mais insuportável e atroz do que antecipara.
O grande problema do filme não está na sua proposta (afinal, são muitos os filmes que se dispuseram a mostrar os horrores da guerra e suas consequências irreparáveis de maneira brilhante), mas na suas escolhas artísticas ao articular esta proposta. É um filme extremamente desconjuntado, que alterna momentos realistas e pungentes (como o extermínio de um grupo de inocentes em um casebre) com outros surrealistas e cartunescos (às vezes os personagens agem como se estivessem em um monólogo de uma peça de teatro cafona). O diretor Elem Klimov nunca se firma em um tom adequado e, vacilando entre estilos, acaba alienando seu próprio filme da dura realidade que procura retratar.
Os personagens se comportam amiúde de maneira caricata: os nazistas gargalham enquanto fuzilam pessoas e o protagonista, progressivamente mais besuntado de maquiagem e crivado de rugas, franze o sobrolho e faz bico como se estivesse em um filme mudo expressionista. Há uma teatralidade presente nas atuações que falha em conversar com os aspectos mais sérios e realistas do filme de modo que, às vezes, a sensação é de que estamos assistindo a uma obra esquizofrênica, sem eixo e até mesmo sem respeito pelo tema abordado (algo reforçado pela escolha do diretor de confeccionar planos belos e cosméticos totalmente dissonantes do cunho angustiante da narrativa). Aliás, o único momento do longa que de fato tem peso é quando o diretor exibe cenas reais do holocausto, um recurso gravemente apelativo e que acaba prejudicando ainda mais o próprio filme já que apenas evidencia a disparidade entre sua ficção sestrosa e a o real insuportável.
O longa se desenrola simultaneamente simplista e confuso, se movimentando por diferentes cenários e situações de maneira forjada e ilógica. O protagonista nunca é desenvolvido como alguém crível - dotado de uma subjetividade própria -, ele apenas reage e progressivamente vai se assemelhando a uma marionete capaz de expressar instantaneamente o que o filme pede. É, no final das contas, a mão pesada de Elem Klimov que acaba destruindo sua obra - a sensação que se tem é que o diretor não confia na sensibilidade do espectador (e consequentemente na sua própria) e precisa, então, bombardeá-lo esteticamente, seja através de sons estáticos ensurdecedores, closes bizarros de rostos consternados e muita gritaria afetada. É um filme tão esteticamente desmedido e sufocante que, em vez de nos sensibilizar, ele nos coloca em uma espécie de dormência, nos impossibilitando sentir, pensar e nos indignar, algo essencial em qualquer filme que propõe retratar o absurdo que é uma guerra.
Eu Me Importo
3.3 1,2K Assista Agora"I Care a Lot" estabelece um conflito inicial interessante, mas perde parte de seu impacto ao apostar em reviravoltas poucos críveis em vez de desenvolver os aspectos psicológicos de seus personagens aversivos, mas fascinantes.
Rosamund Pike interpreta a lésbica perversa Marla, uma proposta politicamente incorreta refrescante depois da representação enfadonha e sacarina de pessoas gays simpáticas e fofas em "The Prom" (2020). Absolutamente inescrupulosa, a personagem almeja manipular pessoas idosas frágeis passando-se por cuidadora afim de roubar suas fortunas e, como todo bom perverso, executa suas artimanhas sempre fora da ética, mas dentro da lei. Pike, trajando um bob duro platinado e de sobrolho imóvel de águia, nos convence desde o princípio. Evitando a caracterização antipática de Carey Mulligan em "Promising Young Woman" (2020) que titubeia flácida entre vítima e predadora, Pike faz da perversão de Marla sua essência bruta e irremediável, não há equívoco senão por parte de quem a enfrenta desavisado.
Dianne Wiest (em ótima forma) interpreta Jennifer, o mais novo alvo de Marla. Diferente das demais, ela não é uma senhora boba, mas uma sinistra ex-mafiosa cujo filho - um poderoso criminoso interpretado por Peter Dinklage - não poupará esforços para retirá-la das mãos da vigarista. Ao estabelecer o conflito entre Marla e Jennifer o filme cria um cenário macabro saboroso, reminiscente do clássico "Whatever Happened to Aunt Alice" (1969) - filme de terror no qual uma senhora perversa mata suas empregadas afim de roubar suas finanças (até que uma delas, assim como em "I Care a Lot", se mostra mais esperta que as anteriores e coloca seus planos em perigo).
A primeira metade de "I Care a Lot" é espontaneamente divertida, pois coloca duas personagens nada afáveis, mas fascinantes (Marla e Jennifer), em um agressivo duelo de astúcia e, por sabermos que ambas são capazes de qualquer coisa para atingir seu objetivo, ficamos prazerosamente aflitos assistindo as duas serpentes se medindo, imaginando quem dará a próxima mordida e quando esta será fatal.
O filme começa a degringolar após uma cena envolvendo um sequestro e uma fuga reminiscente de um filme da saga "Mission Impossible". Quando o longa deveria apertar a tensão entre o triângulo protagonista (Marla, Jennifer e o filho) e trazer nuances a suas relações, ele resolve seus conflitos através de soluções mágicas, monólogos artificiais ou de cenas absurdas que irrompem o tom sarcástico, mas comedido que predominava até então. Os personagens param de se desenvolver e o filme se torna mirabolante, mas óbvio e murcho.
J Blakeson, diretor e roteirista do filme, compôs um roteiro repleto de situações tensas, mas fiquei desejando que seu estilo de direção fosse mais hitchcockiano, que a tensão se estendesse com parcimônia e calma através do ritmo da montagem e da sequência de planos cuidadosamente arquitetada e não que o horror dos atos cometidos pelos personagens fosse diluído em cenas apressadas ao som de sintetizadores anacrônicos.
Em seu terceiro ato, a trama satisfatoriamente não redime Marla, mas decepciona por escamotear a personagem de Dianne Wiest e por não levar o conflito entre os personagens de Peter Dinklage e Rosamund Pike a rumos mais criativos e perversos (pelo contrário, ele joga um balde de água fria em sua contenda). O filme recusa um clímax e se satisfaz com um epílogo trágico inesperado, mas alheio à parte suculenta da narrativa e, se conclui a estória com ironia, não a eleva às alturas estarrecedoras prometidas.
O Destino Bate à Sua Porta
3.6 52 Assista AgoraAo contrário da imagem estampada em seu pôster, esta versão de 1981 de "The Postman Always Rings Twice" não evoca a luxúria desgovernada e perigosa que insinua e, apesar de apontar para isso em seu primeiro ato, vai se definhando de maneira desorientada até seu desfecho cabisbaixo.
O filme segura nossa atenção de maneira eficiente quando a trama gira em torno de Cora e Frank (Jessica Lange e Jack Nicholson) enquanto estes conspiram para matar o marido da moça e se devoram em uma tórrido e inesperado romance. Quando esta parte da trama se resolve (e ela o faz antes mesmo da metade do filme) o longa perde foco e os personagens vão se tornando gradativamente diluídos. As cenas de tribunal que recheiam o meio do longa são frouxas e confusas e o terceiro ato irritantemente flácido e falsamente dramático. As cenas eróticas quase pornográficas se tornam estranhamente insignificantes quando descobrimos que apenas pontuam o filme convencional e moderado de Bob Rafelson.
O personagem de Nicholson, um canastrão viril supostamente irresistível, parece estar vivendo uma situação ilícita e potencialmente devastadora com a preocupação de alguém que não lembra se pôs comida aos peixes; sua apatia mal se disfarça sob os cacoetes de sobrancelhas inquietas do ator, deslibidinado em piloto automático. Não sentimos preocupação pelo personagem que nunca parece, de fato, estar fascinado pela fascinante Jessica Lange. Já a atriz, apesar de não ter muito o que fazer com um personagem raso, mas emotivo, cativa o espectador graças a sua bela face buliçosa - que vai de górgona a anjo em segundos - e seu corpo ágil felídeo, prestes a dar o bote, mas simultaneamente frágil, redondo e sensual. Lange atua para além da trama e do personagem, centelhando uma intensidade ausente no roteiro ou na direção, que acabam, no final das contas, a aprisionando. Em seu primeiro grande papel dramático, a atriz parece estar testando seu arsenal dramático, às vezes atuando apenas com os dentes, outras apenas com o olhos ou com a boca. É um belo ensaio esquizofrênico que amadureceria em uma atuação visceral e integrada em "Frances" no ano seguinte.
"The Postman Always Rings Twice" peca por encerrar o seu maior atrativo logo no primeiro ato (a ferocidade eclodindo da insatisfação de Cora e seu desejo de matar insuflado pela presença traiçoeira de Frank) e tentar, durante o resto do filme, se configurar como uma espécie de drama pastoril elegante e ocasionalmente abalado por tragédias em vez de apostar na vulgaridade excitante e aventurosa insinuada de início, o que certamente tornaria o filme mais vivo e interessante.
A Classe Governante
3.9 14 Assista AgoraEm 'The Rulling Class", um aristocrata poderoso falece e seu lugar na Câmara dos Lordes é ocupado pelo filho, um lunático recém-saído de uma clínica e que crê ser Jesus Cristo. A família do falecido o toma como alvo de suas ambições e planeja manipulá-lo para obter sua fortuna.
É um filme tão desassisado quanto o protagonista e que tenta ser muitas coisas: uma sátira social, uma discussão séria sobre poder e religião e também uma grande palhaçada. A primeira hora do filme sem dúvidas é a melhor: Peter O'Toole, no papel principal, domina a produção em ritmo maníaco e em constante descarrilamento esquizofrênico de associações. "Você a ama?", pergunta o padre casamenteiro ao pseudo-jesus, "Do fundo da minha alma até a ponta do meu pênis", responde ele intrépido. O problema do longa é que o diretor, Peter Medak, é tão louco quanto o próprio personagem: seu filme não tem forma e pula, de repente, de vaudeville insípido para drama simbólico surreal, de um stand-up de Peter O'Toole para observação sarcástica da burguesia e de suas neuroses pérfidas. Não há um eixo para estipular um limite, então o filme decola para além da estratosfera e nos deixa pra trás atônitos.
Com mais de duras horas de duração, "The Ruling Class" se torna insuportável se aproximando de seu final, quando o personagem de O'Toole deixa de se identificar com Jesus para assumir-se como Jack, O Estripador. A ironia do personagem ser mais aceito pela burguesia como um serial killer do que como homem divino é até curiosa, mas o filme aposta nesse ideia muito tarde na trama e de maneira óbvia. O resto do elenco principal, que conta com a presença marcante da estrigiforme Coral Browne, é mal aproveitado à sombra da performance estrambótica de O'Toole, a exceção talvez seja Arthur Lowe como o mordomo que surta em êxtase após liberto de sua função servil e se vê agora abastado com a herança do patrão falecido.
Apesar de gravemente inconsistente o filme tem, no entanto, uma cena genial: em determinado momento os aristocratas decidem, impacientes com o lunático não cooperativo, juntá-lo a outro louco chamado "O Messias de Alta Voltagem" - brilhantemente encarnado por Nigel Green - que também acredita ser Jesus. Os dois embatem em um hilário duelo de onipotências que eleva o filme a um delirante auge e que termina com o personagem de O'Toole atônito e esgotado após ter encontrado alguém cuja loucura astronômica ultrapassa até mesmo a sua.
Soul
4.3 1,4K"Soul" é uma animação psicotizante e pedagógica que atravessa expeditamente um roteiro burocrático e complicado para, no final das contas, passar a mera mensagem de autoajuda "aproveite cada instante" ou "viva a vida com leveza".
O longa começa muito bem ao nos introduzir a um jovem músico negro, Joe Gardner, cujo maior sonho é se tornar reconhecido pelo seu talento. A animação é belíssima e rica em detalhes e as expressões dos personagens transmitem uma impressionante autenticidade. Quando achamos que o filme se aprofundará em um dilema interno do protagonista e irá contextualizá-lo na cultura negra nova-iorquina e no mundo colorido do jazz, o personagem sofre um acidente e vai para uma espécie de além-da-vida onde se dá conta que não pode mais voltar para seu corpo e onde faz amizade com uma alma que nunca quis nascer. Ao mudar tão drasticamente de universo o filme piora em todos os sentidos e jamais se recupera: os personagens se tornam mais bobos, a animação mais infantilóide e básica e o roteiro se revela cada vez mais laborioso e artificial.
O filme vai, equivocadamente e gradativamente, complicando sua trama. Há um longa sessão em que nos é explicado o funcionamento deste além-da-vida e que mais soa como um tutorial de um game complicado do que um filme. Os personagens não têm sossego: suas almas vão e voltam da terra, entram no corpo errado, entram no corpo certo, voltam para o céu, voltam para a terra, retornam ao céu e etc. Tanta desordem e tantos níveis de realidade e de identidade vão tornando o filme enlouquecedor e desestruturalizante. Os segmentos que se passam na terra, nos quais conhecemos a família do protagonista e sua relação com a música são fantásticos e até emocionam, no entanto, são breves e pontuados pelos insuportáveis trechos "místicos" cujos personagens que o pululam são maníacos e irritantes.
"Soul" é aquele tipo de filme que, ao assisti-lo, é possível imaginar o quanto seu roteiro e seus personagens foram exaustivamente e mecanicamente hiper-pensados e calculados para máxima efetividade. É tudo muito amarrado e cheio de propósito, ao contrário da mensagem de leveza e espontaneidade que o filme almeja passar. A trama exaustiva é complicada demais para uma criança entender e mesmo em um nível estético o filme aborrece já que transita entre universos de maneira ansiosa, sem nos dar tempo para respirar e apreciar o que quer que seja. Enquanto o filme cumpre sua maratona e passa de uma cena para a próxima eu ainda tentava entender o que havia sido explicado anteriormente sobre o funcionamento do sistema de almas, de pontuações, passes e etc. Será que precisava de tanto para tão pouco? Pra quê um labirinto tão maçante e intrincado se sua saída é pelo lugar comum?
A personagem 22, a alma que o protagonista conhece quando chega ao céu e que se recusa a nascer, é uma reciclagem de outros alívios cômicos da Pixar como Olaf de "Frozen" e Dori de "Finding Nemo", mas infundido de uma arrogância necessária para seu arco de redenção e que não consegue capturar nossa afeição por ser tão irritantemente afetada. Joe Gardner, o personagem principal, simplesmente não é respeitado pelos autores do filme: além de ser proibido de realizar seu sonho quando morre cedo na trama ele ainda é catequizado pelo roteiro sádico-pueril que o obriga a se redimir mesmo quando ele finalmente atinge um de seus suados objetivos no terceiro ato.
O grande erro de "Soul" é, ironicamente, se preocupar mais em ser didático e esquemático do que em tocar a alma. Após ver o filme, lembrei-me de "The Lion King" (1994) para não ter ódio das animações em geral, um longa infinitamente superior e que toca no cerne. E o faz porque parece ser feito de uma matéria que antecede o racional, que não foi moída pelos estratagemas quase empresariais que alguns filmes da Pixar possuem com a finalidade de nos "emocionar" na marra; é um filme de pura expressão - toda a trajetória do protagonista Simba emociona porque é orgânica, é o pathos genuíno que a movimenta e que nos toca, não a burocracia e muito menos uma mensagem mastigada por um milhão de dentes pedagógicos.
Último Tango em Paris
3.5 569Existem filmes desagradáveis bons e filmes desagradáveis ruins. Se os primeiros nos incomodam ao revelar algo oculto sobre nós mesmos e habilmente nos deixam tensos e aflitos enquanto presenciamos vicariamente outrem em perigo e angustia, certos filmes desagradáveis são simplesmente perda de tempo e se revelam um exercício sádico, entediante e vazio por parte dos realizadores. "The Last Tango in Paris" se encaixa nesta última categoria e, como de costume nas obras de Bertolucci, se apossa de um tema polêmico de maneira inescrupulosa (no caso um relacionamento abusivo entre uma jovem moça histérica e um crápula de meia idade) e, apesar do tom grave, jamais se torna denso.
Assistir aos personagens de Maria Schneider e Marlon Brando (excepcionalmente canastrão) enlaçados em um sadomasoquismo grotesco e brutal, pelas lentes de Bertolucci, é como testemunhar uma criança perversa colocar uma aranha e um escorpião em uma gaiola e vê-la assistindo aos animais se destroçarem até a morte com um sorriso no rosto. Falta sensibilidade ao diretor; jamais sentimos qualquer ternura pelos personagens destrutivos - são seres vis, narcísicos e exaustivos. Ambos os atores principais tem bons momentos dramáticos, em especial no último terço do longa quando sucumbem à angústia, mas jamais se revelam sujeitos de nuances, são apenas dispositivos dramáticos intensos e contritos, mas que não nos atingem.
Bertolucci, assim como Fellini, povoa seu universo de personagens bisonhos e adventícios, mas ao contrário do último que confere a eles uma aura onírica e fascinante, Bertolucci os exibe draconianos, impingindo dor e incompreensão a quem quer que atravesse seu caminho. Não são seres divididos, mas locomotivas caóticas rumo ao inferno. Sem ter por quem sentir empatia, assistimos a essas pessoas lunáticas mostrando-se repetidamente desagradáveis em pequenas variações. Um filme desta ordem, cujo cerne está na incapacidade da personagem de Maria Schneider de se desvencilhar do gozo perverso ao qual o personagem de Brando a submete, poderia ter sido interessante e um bom estudo da repetição neurótica masoquista, mas não encontra na abordagem e no roteiro de Bertolucci o lastro e as sutilezas necessárias. Os personagens e os diferentes núcleos são desconexos - em vez de uma teia de relações que se afetam, assistimos a fragmentos duros, nauseabundos e sem reverberação. Mesmo a protagonista gravemente histérica de Schneider não comove, ela é obstinadamente auto-obliteradora e jamais questiona seu sofrimento, a jovem apenas se angustia verdadeiramente quando tem de esperar demais pelo próximo esculacho, seja este vindo do personagem de Brando ou do igualmente insuportável pseudo-cineasta maníaco e pretensioso interpretado por Jean-Pierre Léaud.
Repleto de cenas desnecessárias, principalmente durante o tedioso primeiro ato (aquelas que envolvem um filme realizado pelo personagem cineasta são particularmente enfadonhas), "The Last Tango in Paris" é um filme extenuante e cuja ousadia jamais transcende o mero intuito de chocar. Muitas cenas de fato criam um incômodo, mas tal incômodo não ressona, já que ele vem do ato performado em si ou de meras palavras escatológicas e não do desenvolvimento da trama ou da tensão psicológica entre seus personagens (a famosa cena de sexo anal envolvendo um pedaço de manteiga é o ápice disto). Bertolucci, assim como o personagem de Brando, estupra o profano e o exibe, mas não o compreende, não o ilumina e muito menos o conecta ao sagrado como faz as grandes obras cinematográficas. Fica o gosto amargo de intermináveis duas horas e dez de duração.
A Hora do Lobisomem
3.5 321 Assista AgoraAdaptado de uma história de Stephen King pelo próprio escritor, "Silver Bullet" é um dos melhores filmes do gênero lobisomem e influência estética clara em obras modernas como o seriado "Stranger Things" e o também excelente "Bad Moon" de 1996.
O longa funciona, pois oferece justamente aquilo que promete - cenas de suspense eficientes e um lobisomem bem feito e adequadamente assustador. No entanto, talvez o grande triunfo do filme seja estabelecer personagens centrais que despertam nossa simpatia e, assim, passamos a nos importar com seu destino. A trama foca no garoto paralítico Marty e sua irmã adolescente Megan, moradores de uma pequena cidade e que passam a testemunhar estranhos assassinatos e desaparecimentos noturnos. Os atores são convincentes e, misturando afeto e implicância, logram de uma relação típica entre irmãos. Garey Busey está excelente como o tio fanfarrão e infantilóide que, ao contrário dos pais circunspectos de Marty, traz humor e irreverência à vida do garoto (em certo momento ele monta para ele uma espécie de cadeira-de-rodas-harley-davidson chamada convenientemente de "Silver Bullet").
O filme possui um bom ritmo. Em vez de deixar as cenas mais impactantes para o final (como faz o irregular e superestimado "An American Werewolf in London" de 1981), ele intercala de maneira hábil momentos de violência com outros mais quietos, mas tensos - em que os personagens são desenvolvidos e passam a investigar as mortes misteriosas. Lá para a metade da projeção o longa opta por uma abordagem mais cartunesca (em determinado momento o lobisomem mata uma vítima usando um bastão de baseball) e que a principio causa estranhamento, já que anteriormente o filme se mostrara mais sério e cruento; no entanto, ele vai ajustando essas perspectivas no decorrer do caminho e vamos nos rendendo a seu tom peculiar: exatamente no limite do deboche e da sinceridade.
As mortes são filmadas com estilo à maneira Hitchockiana, com flashes rápidos de violência intercalados por closes de objetos e expressões aterradoras das vítimas. O lobisomem é exibido habilidosamente, suficientemente banhado em sombras para que não vejamos sua artificialidade, mas jamais de maneira confusa ou demasiado escura. A cada rompante mortal ele é mostrado em mais detalhes (a princípio vemos apenas dentes, garras e vultos) e seus ataques são sempre variados, inventivos e bem dirigidos por Daniel Attias (há uma ótima cena de perseguição na estrada ao estilo "Duel" de Steven Spielberg).
Misturando horror gráfico com uma perspectiva aventuresca e nostálgica, "Silver Bullet" é um divertido passatempo que, mesmo quando se torna piegas ou trapalhão, mantém um charme magnético, celebrando perversamente nosso fascínio infantil por monstros e criaturas fantásticas.
O Diabo de Cada Dia
3.8 1,0K Assista Agora"The Devil All the Time" explora o ciclo vicioso da violência em um contexto de pós-guerra, ignorância e manipulação religiosa, mas recorre à violência como único dispositivo de impacto e vai se tornando gradativamente mais vazio e repetitivo.
A estória gira em torno do jovem Arvin Russell (Tom Holland) cuja herança paterna é a desilusão e a brutalidade. O diretor Antônio Campos situa seu filme em uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos entre a década de 50 e 60 e cria um cenário desolador de constantes tragédias e perene mal estar. O protagonista tem de lidar com uma horda de seres execráveis, incluindo padres psicóticos, policiais corruptos e um serial killer. O filme remete em tom e temática ao horror noventista "The Reflecting Skin" (1990), mas despido de suas imagens surrealistas e carregadas de simbolismo e consideravelmente menos denso em sua abordagem psicológica.
Apesar de extremamente violento, o longa é demasiado disperso e vápido para causar qualquer comoção. A narrativa retrata uma séries de personagens que nunca revelam qualquer nuance ou dimensão e se resumem a vilões estereotipados já vistos milhares de vezes em filmes superiores. Não há qualquer insight sobre essas pessoas e quando elas se revelam extremamente brutais, somos impactados pelo que há de explícito na cena, mas nunca pelo que há de implícito - nenhuma cena ressona para além de sua violência gráfica imediata.
Antônio Campos poderia ter sido mais bem sucedido caso tivesse optado por fazer de "The Devil All the Time" um exploitation moderno despretensioso (à maneira do divertido "Baby Driver" de 2017), mas em vez disso imbui seu filme de uma superciliosidade irritante que jamais encontra lastro em seu roteiro raso e de personagens inanes. Um elemento narrativo em especial me incomodou: há um voice-over melodramático durante quase toda a projeção que explica o que está acontecendo e o que os personagens estão sentindo e que se revela totalmente equivocado, pois não só abafa os outros elementos estéticos das cenas, mas esmiúça o óbvio como que duvidando da capacidade do espectador de interpretar o que está sendo mostrado.
Fiquei desejando que "The Devil All the Time" tivesse se resumido a um simples filme de vingança sem maiores pretensões, afinal, o longa tem uma abordagem brutal às cenas de violência até audaciosa, mas carecia de um roteiro mais enxuto e de uma construção dramática mais tensa. O filme às vezes parece ter sido feito por um adolescente em crise tentando chocar sua avó cristã com violência e heresia; ele parece crer que pelo mero fato de seus personagens doentios e cruentos estarem situados em um contexto de guerra e fanatismo religioso, eles automaticamente são dotados de profundidade ou servem de comentário político sagaz sobre esses tópicos.
No final das contas, o longa falha em um aspecto crucial: nunca passamos tempo suficiente na perspectiva de Alvin para que invistamos emocionalmente em sua jornada; trata-se de um personagem taciturno e inexpressivo que não invoca o "pathos" necessário para credibilizar a narrativa. O filme consiste basicamente em uma série de explosões violentas intercaladas com cenas frouxas que enfatizam aquilo que seus personagens têm de óbvio, mas que falham em complexificá-los e desenvolvê-los.
O longa carecia pelo menos de um senso de ironia ou estilo ao lidar com temas tão batidos. Ao contrário dos cinemas de Quentin Tarantino e Martin Scorsese, por exemplo, que também lidam com temáticas de violência e vingança, em "The Devil All the Time" não há personalidade por trás dos rompantes sangrentos, eles são meros exercícios de violência e isto, apenas, não basta.
Dize-me Que Me Ama, Junie Moon
3.4 4Adaptado da obra literária de Marjorie Keller, "Tell Me That You Love Me, Junie Moon" é um dos filmes mais inusitados e fascinantes da década de 70. Desmerecido pelas críticas na época, o longa jamais encontrou seu público, talvez pro contemplar personagens demasiado idiossincráticos (até mesmo para uma época em que a contracultura eclodia impávida) retratados sob uma ótica quase romântica.
O final dos anos 60 foi uma época muito curiosa para a cultura popular americana, pois tratou-se de um período em que os "esquisitos" finalmente ganhavam alguma voz; com o sistema de estúdio em decadência e o glamour clássico ofuscado pelo cinema mais ousado, caótico e desinibido da "nova Hollywood", figuras que outrora seriam vistas como execráveis e indignas de exibição, ganhavam notoriedade e eram alvo de fascínio. Tiny Tim com sua voz hélica afeminada e trejeitos cartunescos virava sensação na TV e filmes como "Midnight Cowboy" (1969) e "Flesh" (1968) - que uma década antes seriam considerados heréticos - eram premiados, discutidos com afinco e traziam ao holofote personagens e mundos ignotos até então ao grande público.
"Tell Me That You Love Me, Junie Moon" parece existir em algum lugar entre a velha e a nova hollywood; apesar de personagens absurdamente inconvencionais, o filme não é politicamente afiado ou mesmo procura sacudir o sistema com suas idiossincrasias, mas propõe contar uma estória diferente sobre amizade entre pessoas peculiares que encontram uma na outras uma espécie de refúgio do mundo insensato e cruel. A estória gira em torno de Junie Moon (uma moça de rosto parcialmente desfigurado e interpretada com simpatia e charme por Liza Minnelli), Warren (um homem gay paraplégico sagaz, sestroso e irônico) e Arthur (um rapaz doce, rígido e instável que sofre de surtos epilépticos). Eles decidem morar juntos após se conhecerem no hospital onde recuperavam de suas mazelas.
O filme é introduzido de maneira excêntrica - seu prólogo consiste no cantor Peter Seeger cantando a música tema "Old Devil Time" enquanto caminha em uma floresta boreal com seu violão. A canção é um ode ao alento da amizade contra os intempéries da vida e introduz o filme de maneira bela e melancólica ainda que um pouco bizarra. Ela é tocada frequentemente durante o longa e vai se tornando uma espécie de hino acalentador dos personagens centrais.
O grande charme de "Junie Moon" talvez esteja justamente em sua natureza simultaneamente encantadora e bizarra, não digo isso apenas pela singularidade de seus personagens, mas porque o própria longa é estruturado de maneira peculiar - não há um arco dramático definido, mas pequenos conflitos que afloram em cenas do cotidiano. Acompanhamos os personagens enfrentar dificuldades financeiras, desentendimentos de convivência e entrar em contato com uma série de personagens coadjuvantes igualmente excêntricos (como o afável peixeiro Mario interpretado por James Coco e a moribunda melodramática Meenie vivida por Clarice Taylor). O destaque, é claro, vai para Lady Gregory (excelente aparição de Key Thompson em uma de suas pouquíssimas atuações no cinema), uma milionária desvairada que convida os protagonistas para uma festa em seu castelo; sua grande cena é tão idiossincrática e maníaca que é difícil crer que existe - culmina na personagem de Thompson dizendo que presenteará uma cruz encrostada de diamantes ao personagem de Warren caso ele seja capaz de andar sem sua cadeira de rodas. "Vamos lá, belezinha, se você conseguir andar viajaremos juntos a Europa!", brada a senhora lunática de túnica roxa.
Liza Minnelli, em um de seus primeiros papéis de protagonista, possui um charme inato na pele de Junie Moon e carrega em seu semblante notável melancolia (algo que talvez vá além da personagem e se relacione à perda de sua mãe, Judy Garland, no mesmo ano em que o filme foi feito). Suas cenas iniciais são de violência surpreendente - acompanhamos, em um flashback, seu fatídico encontro com um psicopata responsável por jogar ácido em seu rosto após se sentir ridicularizado pela jovem. Um aspecto que torna o filme inusitado é a forma como ele alterna cenas pungentes (como esta citada e outras envolvendo um delírio psicótico de Arthur) com outras de leveza vicejante (em determinado momento os personagens fazem uma viagem alegre a praia); nunca sabemos para que destino o filme caminhará, mas somos sempre surpreendidos e acabamos conhecendo mais seus personagens através de suas reações e comentários espirituosos a respeito do que vivem.
Robert Moore é fantástico como Warren, imbuindo o personagem de um charme irônico e matreiro e protagonizando os momentos mais cômicos do filme. Seja alfinetando e desorientando seus amigos com sua conduta caprichosa e sardônica ("pelo menos não sou um virgem ridículo!") ou flertando descaradamente com um praieiro negro viril que o carrega nos ombros para cima e para baixo (- "você me lembra um Deus", - "Que Deus?", - "Adônis, é claro!"), o personagem rouba todas as atenções. Warren também revela facetas mais vulneráveis por trás do verniz de deboche; em determinado momento, por exemplo, ele discorre sobre seu amor pelo falecido pai adotivo (também homossexual) que o mimara e protegera e, no decorrer do longa, vamos percebendo que por trás de todos seus atos cenosos há, junto ao exibicionismo, certa carência e medo de rejeição. Moore, muito conhecido como diretor de peças (dirigiu a fantástica "The Boys in the Band" de 1969), tem apenas a atuação neste filme em seus créditos; é uma pena, pois merecia prêmios pela sua performance como Warren e mais papéis na telona. Ken Howard também brilha como Arthur em seu primeiro papel no cinema e oferece um contraponto ao personagem de Warren, mostrando-se mais recatado, sério e ensimesmado. O romance que desenvolve com Junie Moon é descontraído e convincente e Howard e Minnelli logram de boa química.
"Tell Me That You Love Me, Junie Moon" é uma pérola esquecida que merece ser redescoberta e que ainda é atual em seu retrato charmoso e autêntico da vida de três pessoas à margem da sociedade em busca de amor e aceitação. Rever o filme é como visitar velhos amigos e serve de lembrete melancólico de que o que nos salva na vida são de fato as amizades. É como diz a música tema: "[...] E você que teme, ó amores se reúnam e poderemos levantar e cantar mais uma vez".
Becket, O Favorito do Rei
3.8 24 Assista AgoraPeter O'Toole carrega nas costas este drama histórico supercilioso baseado na peça "Becket or the Honour of God" (1959) de Jean Anouilh e que narra a tumultuosa relação entre o Rei Henry II (O'Toole) e o cortesão Thomas a Becket (Richard Burton).
O Rei Henry e Thomas vivem uma vida de fanfarronice e companheirismo apesar de oriundos de contextos completamente diferentes: Henry herdou o trono inglês e Thomas é um saxão excepcional que, ao contrário de seu povo conquistado, caiu nas graças do rei e conquistou uma posição de prestígio na corte. Tudo vai bem até que uma ideia presumidamente genial que Henry tem de nomear Tomas como o próximo arcebispo (esperando que a presença do amigo no cargo alivie as tensões clero e corte) acaba os afastando ao escancarar a disparidade de seus ideais e prioridades. Tomas passa a colocar Deus acima de tudo e todos enquanto Henry, apegado a sua posição real de poder, sente a nova empreitada de Thomas como traição imperdoável.
Confesso que, após estabelecido o conflito central, imediatamente tomei partido do Rei Henry. Apesar de grosseiro e presunçoso, O'Toole imbui o personagem de tamanha espontaneidade que não nos importamos com seus ataques inescrupulosos à família, à corte e à igreja. Quando ele diz a seus filhos horríveis e emburrados que os odeia ou critica a petulante esposa acusando seu corpo de ser "um terrível deserto" onde caminhara perdido, encontramos humor em sua revolta, pois ele desmascara brutalmente o pudor e a dissimulação real de figuras antipáticas e emproadas.
Sentimos na cólera de Henry uma avidez por afeto verdadeiro, algo que encontrara em Becket e que em seu reino não há sequer uma gota. O'Toole, especialmente da metade do longa para o final, confere ao rei uma espetacular intensidade enquanto este definha amargurado pela relação de amor e ódio que cultiva por Becket - seu único verdadeiro amor. O personagem comove, pois ao contrário de Becket, cuja motivação se calca ou no poder ou na devoção abstrata a Deus, Henry sofre por questões muito mais sentimentais e básicas - ele deixa de ser rei e vira um garoto solitário e carente.
Richard Burton não funciona muito bem como Thomas Becket. Ele é canastrão demais desde o começo para nos convencer que colocaria Deus acima de tudo ou que sofre em seu cerne pela ausência de honra em sua vida; quando o personagem veste sua indumentária eclesiástica tudo o que vemos é um lobo sonso nas roupas largas da vovó. Sua atuação é de uma nota só e mesmo quando morre (não se trata de um spoiler, já que a primeira cena do filme já revela o fato) seu semblante é narcisista e impávido. Em vez de ambíguo e digno do fascínio de Henry, o personagem se revela demasiado inerte, beirando o cinismo em diversos momentos.
O longa é dirigido de maneira servil à estória, mas sem muita inventividade por Peter Glenville - sua câmera mantém basicamente um panorama de proscênio e confere aspecto de peça teatral à obra. O que realmente nos engaja, em um nível visceral, é a atuação de Peter O'Toole que desfruta ao máximo de alguns bons diálogos (em especial daqueles envolvendo altercações entre os membros reais). Alguns anos depois O'Toole reprisaria o papel de um Henry II mais velho no filme "The Lion in Winter" (1968) de maneira ainda mais desabrida, mas aqui já deixa sua marca enérgica em um personagem complexo e que facilmente poderia ter se tornado ominoso nas mãos de um outro ator menos monumental.
O Presente
3.4 832 Assista Agora"The Gift" começa muito bem - convencional, mas habilidosamente tenso. Somos introduzidos a Robyn e Simon (Rebecca Hall e Jason Bateman), um casal que acaba de se mudar para uma nova vizinhança em busca de novos ares; ele é impaciente e um pouco controlador e ela sensível e instável (somos revelados que há pouco tempo sofrera um aborto). Certo dia, Simon encontra uma antigo colega de escola, Gordo (Joel Edgerton, também diretor do filme), um sujeito de semblante estranho e amigável em excesso. Gordon começa a se aproximar do casal, em especial de Robyn a quem dirige olhares sinuosos; ele passa a visitar a moça quando sabe que seu marido não está e ela, ingênua, recusa em acreditar que Gordon é um mau sujeito como o marido aponta. Sabemos, desde o princípio, que a loucura de Gordo não tardará a se manifestar de maneira perigosa - o sujeito presenteia o casal diariamente com algo diferente e parece obstinado a fazer parte de suas vidas mesmo sem reciprocidade. "Estou muito feliz por vocês", repete ele inúmeras vezes em tom duvidoso. O diretor brinca com nossas expectativas e toda cena envolvendo os três se torna uma antecipação tensa - qual gatilho finalmente levará Gordo a desmantelar sua fachada cortês e revelar quem realmente é?
O primeiro terço de "The Gift" é um filme que já vimos milhões de vezes e retoma a pegada de thrillers noventistas como "Unlawful Entry" (1992) e "The Hand That Rocks the Cradle" (1992), em que um casal tipicamente americano de boa condição financeira começa a sofrer nas mãos de um pseudo-bonzinho frustrado de intenções ocultas e nefastas. Lá pela sua metade, no entanto, o filme ganha um novo contorno interessante; não entrarei em detalhes, mas basicamente nos são revelados segredos sobre os personagens que alteram sua dinâmica e torna a tensão entre eles mais complexa. Infelizmente, é quando o filme ganha mais complexidade que ele também erra a mão em certos aspectos. Se os segredos que são revelados a princípio tornam o filme mais ambíguo - nos levando a repensar a ética e o posicionamento dos personagens - logo em seguida eles os empurram à extremidades não tão convincentes (um deles, de repente, começa a agir de maneira exageradamente violenta e o outro se torna demasiado contido).
Não obstante, o filme segue interessante e vamos descobrindo, paulatinamente, detalhes cada vez mais graves sobre o passado dos personagens e como este influencia suas ações, reações e conflitos. É somente em seu terceiro ato que o filme derrapa de maneira grave, pois em vez de apostar na angustia psicológica dos personagens e nas ramificações de seus conflitos internos, ele simplesmente cria uma situação sádica e inverossímil para concluir a narrativa, destituindo o filme da própria ambiguidade sugerida anteriormente e chamando mais atenção para seu roteiro "espertinho" do que para o desenvolvimento de seus protagonistas. A personagem de Rebecca Hall, por exemplo, tem um arco dramático interessante envolvendo bullying e um crescente desencanto com a própria vida que é pouco explorado e poderia ter levado o filme a um desenrolar mais sagaz e potente.
"The Gift" possuía todos os ingredientes necessários para se tornar um thriller mais sensível e original que os demais, mas acaba, no final das contas, mais mirabolantemente engenhoso do que psicologicamente ressonante.
Meu Ódio Será Sua Herança
4.2 204 Assista Agora"The Wild Bunch" levou o gênero faroeste a um novo extremo em 1969 pelas mãos de Sam Peckinpah. O irreverente diretor por pouco não teve seu filme barrado pela censura (os códigos se afrouxaram justamente na época de seu lançamento). Violento e amoral, o longa foca em um grupo de criminosos encabeçados por Pike e Dutch (William Holden e Ernest Borgnine) que, distantes de seus tempos áureos, almejam realizar sua última grande façanha em troca de ouro - um perigoso roubo de armas ordenado por uma facção mexicana.
Os personagens de Peckinpah parecem ser uma extensão de sua própria personalidade - apontado por muitos como um beberrão problemático, extravagante e bronco, o diretor articula a violência e as questões morais de seus personagens de maneira ambígua, ele saboreia e condena seus atos impudicos como que delegando suas fantasias obscenas a sua arte. E, de fato, os protagonistas criam esse efeito no espectador: nós os rechaçamos e ao mesmo tempo nos tornamos fascinados por sua conduta aberrante. Se em determinado momento o "grupo selvagem" massacra inocentes e antagonistas sem pestanejar, em outro tudo arriscam para salvar a vida de um seus companheiros e se indignam com a violência a qual ele é submetido nas mãos de certo crápula. São maneiras de ser dissonantes que conferem aos protagonistas um caráter especial: eles são extremamente antiéticos, mas possuem, no entanto, uma ética própria entre si que os impele a impasses e os complexifica.
Sam Peckinpah, como de costume, confere ao seu filme uma qualidade báquica: os personagens bebem vinho, transam, matam e gargalham em absoluto arroubo, dançando na fronteira do prazer e da morte - há uma excelente cena em que os personagens atiram em um barril de vinho suspenso e se banham na cascata roxa que irrompe. Apesar da brutalidade que permeia a relação entre os protagonistas, há entre eles uma camaradagem (evidenciada na cena em que dividem debochadamente uma garrafa de vinho após uma grande escapada) que os eleva a algo além de meros malfeitores - eles são, antes de tudo, bufões incorrigíveis.
As cenas de ação são explicitamente violentas e editadas freneticamente; às vezes se tornam confusas, mas convém uma brutalidade e um excesso espetacular. As tomadas em câmera lenta típicas do diretor eleva os massacres a uma qualidade quase elegíaca. Peckinpah parece almejar por uma certa aura mítica em sua obra que caminha sempre trágica e impiedosa ainda que seus personagens nunca de fato se tornem densos o suficiente para justificar tal grandeza. A magnífica trilha sonora de Jerry Fieding abarca uma miríade de humores se mantendo fiel à estética faroeste, incluindo uma melancólica versão da canção folclórica mexicana "La Golondrina", diversas lamúrias orquestrais intercaladas por solos de gaitas e guitarras flamencas e, é claro, o memorável e retumbante tema de cordas em staccato que entoa as cenas de ação. Aliás, é palpável a preocupação de Peckinpah em criar um ambiente verossímil em seus filmes, desde a trilha sonora evocativa da cultura mexicana aos cenários poeirentos, vivos, repleto de rostos legítimos, nativos e espontâneos - tudo transmite autenticidade; mesmo quando uma cena se encerra, sentimos que a cidade e suas pessoas continuam com suas vidas.
O longa é carregado de imagens fortes; frequentemente o diretor associa seus personagens à dinâmica bárbara da própria natureza. Logo no começo do longa vemos crianças se divertindo ao assistir um exército de formigas devorando grandes escorpiões; mais tarde tal cena ecoa quando observamos maltrapilhos saqueando corpos de soldados à maneira das formigas e quando constatamos que os protagonistas não tem outra escolha senão obliterar, saquear e ferroar para sobreviver, caso contrário terminarão feito os grandes escorpiões arruinados.
Pike e sua gangue estão no crepúsculo de uma vida indigna, mas inevitável e, quando chegamos ao desfecho, entendemos que é somente o código interno entre esses personagens, isto é, sua camaradagem, que permite a eles qualquer dignidade e que por mais violentos e indecorosos que sejam, não são tão desprezíveis quanto o general mexicano ou os caçadores de recompensa, afinal estes - além de truculentos - não se interessam por nada além do ouro e do poder. Aliás, o próprio líder dos caçadores, um sujeito que outrora fazia parte do grupo de Pike, se revela gradualmente mais saudosista de fazer parte do grupo, percebendo que ao menos entre eles havia um pertencimento, uma lealdade, uma tradição. Quando o "bando selvagem" entra em seu derradeiro conflito, cuja ocasião não é engendrada por ouro ou poder, mas pela lealdade ao amigo, o colocamos acima dos grupos que os antagoniza e passamos até a admirá-los, não porque viraram heróis, mas porque tiveram a coragem de exercer a honra em uma terra de monstros.
Mulan
3.2 1,0K Assista AgoraConceber um remake de um filme muito conhecido e icônico não é tarefa fácil, pois nós, o público, inevitavelmente o experienciamos comparando-o ao filme original. Seguindo a mesma premissa básica da versão animada, "Mulan" narra a jornada de uma jovem chinesa que decide se disfarçar de guerreiro para tentar salvar a vida de seu pai, ocupando seu lugar na guerra à revelia de toda uma nação e provando-se uma excepcional guerreira.
A nova versão funciona bem quando alude nostalgicamente ao desenho animado - em determinado momento a protagonista chega ao cimo de uma montanha e escutamos o instrumental melancólico da canção "Reflection" e nos emocionamos. No entanto, no decorrer do longa, fica nítido que ao despi-lo das memoráveis canções presentes na versão animada e tornar os personagens mais centrados e circunspectos, o filme acaba perdendo muito de sua força dramática. Ele se torna mais resoluto, mas não ganha gravidade. Apesar da temática grandiosa envolvendo superação pessoal, guerra entre impérios e entreveros familiares, esta nova versão jamais empolga ou comove como deveria.
Yifei Liu está excelente como Mulan tanto física quanto emocionalmente, a atriz consegue conciliar vulnerabilidade e obstinação de maneira exímia (às vezes apenas com seu semblante), mas infelizmente o roteiro e a direção jamais conferem à jornada da personagem o devido peso - sua evolução é muito súbita, raramente transmitindo grande aflição ou esforço. Sua senda se revela burocrática e monótona em vez de calcada em um "páthos" genuíno. Na versão anterior, não havia esse problema, pois além da expressividade da animação, havia as músicas que serviam como expressão d'alma dos personagens - elas nos diziam sobre o que eles sentiam e agregavam à intenção da narrativa de maneira bela, vivaz e poética.
Nesta nova versão alguns personagens são anulados, outros rearranjados e há a inclusão de uma nova vilã interpretada por Gong Li. Apesar do visual imponente da atriz, sua personagem nunca provoca a tensão almejada, talvez porque ela mude tão facilmente de posição durante o longa - à mando do roteiro esquemático - que acaba perdendo sua credibilidade; quando Gong Li começa a "aquecer" - esboçando um trejeito ou uma característica interessante da poderosa feiticeira - logo é arremessada a um novo empreendimento que anula sua personalidade e intenção anterior. O vilão Bori Khan de Jason Scott Lee (baseado no mais sinistro Shan Yu da versão animada) não causa impacto, não tanto pela performance do ator, mas devido a uma caracterização fraca e pela maneira insossa como é introduzido, filmado e articulado na narrativa.
As cenas de ação são constantes e poderiam até ter sido divertidas, afinal são bem coreografadas e produzidas, no entanto, o diretor Niki Caro parece incapaz de deixar que um plano permaneça na tela por muito tempo, sua decupagem é tão hiperelaborada e a montagem tão ansiosa que não conseguimos absorver as cenas esteticamente (antes de um plano poder criar qualquer efeito em nós ele já é substituído por outro) - ficamos desorientados em vez de enlevados.
"Mulan" é muito extravagantemente produzido para se tornar completamente entediante e conta com um elenco competente, mas empalidece dramaticamente quando comparado à versão animada, carecendo de seu tom espirituoso e de sua emoção espontânea.
Luz de Inverno
4.3 173Quando um artista produz uma obra de arte, ele vira testemunha solene de um sofrimento. Em "Luz de Inverno", Ingmar Bergman vira testemunha ao conferir forma à dúvida que assombra a humanidade desde que o homem soube de si - Deus existe?
A narrativa gira em torno do padre Tomas, um sujeito que se encontra, após uma missa, não apenas distante de Deus, mas cada vez mais descrente de Sua existência. Abatido por uma doença que se manifesta por uma constante tosse, Tomas se revela doente também em espírito. "Deus se silenciou", ele constata. Sua conduta para com seus fiéis é avassaladora - ele leva um homem deprimido e ávido por consolo ao suicídio e maltrata a franzina Marta com palavras sádicas de desprezo; ela, apesar de ateia, tem Tomas como Deus e se assujeita aos seus mau tratos como obstinada mártir apaixonada.
Tomas, amargurado pela desilusão, se torna um anti-pastor, suas palavras viram armas mortais que destroem o outro com a mesma revolta que sua miséria espiritual o consome. Bergman habilmente cria um universo gélido e consternado e faz da igreja não a casa de Cristo, mas uma caverna do desamparo; pelas mãos do padre os ritos eclesiásticos surgem mecânicos e aéreos. Os planos do diretor são firmes e objetivos e a angustia de seus personagens é confrontada sem qualquer obliquidade. Os cenários também são impiedosos - desde os campos tristes soterrados de neve ao interior amplo e oco das igrejas. Os sons ou vêm das forças torrenciais da natureza (um rio violento e incessante, por exemplo) ou das palavras cortantes e dos silêncios que as intercedem. A atmosfera é de total angustia.
O título do longa não poderia ser mais perfeito. A luz de inverno é fraca, trêmula, distante e assim é Deus para o padre no inverno de sua fé. Ingmar Bergman foi consumido por toda sua vida pela dúvida a respeito da existência de Deus e tal questão sempre se manifestou em sua obra, algumas vezes de maneira esperançosa, outras desconsoladamente. Apesar do desamparo que Bergman nos faz encarar em "Luz de Inverno", sua querela com Deus não se conclui absoluta; surge na forma do personagem sacristão Argot - um sujeito corcunda e de peculiar serenidade - uma centelha de esperança. Ele é o único personagem que não busca consolo no padre: ele fala de sua dor física e até diz que a de Jesus não fora tão ruim quanto a sua ("durou apenas umas 4 horas, não foi?"). Argot conclui que a verdadeira dor de Jesus foi espiritual, que mesmo Ele tivera que lidar com severas desilusões, incluindo a traição de seus discípulos, a incerteza de que sua mensagem fora escutada e a maior delas - o silêncio de Deus no Seu momento de maior desespero frente à morte.
Há uma leveza na fala de Argot e em sua postura ausente no resto dos personagens, ele é trágico, mas não é um coitado; Argot revela uma empatia autêntica por Cristo e vê em Seu sofrimento um eco de sua dor, um testemunho de sua angustia; não que ele traga com tal reflexão um bálsamo ao desalento do padre (e que em certo nível é o desalento do próprio Bergman), mas ao menos insinua que a dor mais excruciante pode preceder o maior dos milagres e que, humanizando Cristo - aproximando-o de nós, também nos aproximamos do divino.
Pi
3.8 769 Assista Agora“(...) toda a verdade é o que não se pode dizer. É o que só
se pode dizer com a condição de não levá-la até o fim, de só semi-dizê-la." (Jacques Lacan)
Em seu filme de estreia, "Pi", Aronofsky inicia com potência sua jornada fílmica contemplando sujeitos psiquicamente perturbados que parecem encontrar apenas em um ideal absoluto e impossível um alento para suas agonias arraigadas.
A trama gira em torno de Max, um matemático misantropo que vive enclausurado em seu pequeno apartamento obcecado por números e pela forma como eles compõe e secretamente ditam, segundo ele, a ordem do universo. Max fica fascinado pelo misterioso número Pi - infinito e sem padrões. Ao tentar decifrá-lo em um computador, de repente a máquina entra em pane e revela uma sequência de 216 números que, posteriormente, se revela de grande importância. O protagonista começa a agregar ao seu fascínio por números elementos religiosos e econômicos - um judeu, almejando atrair Max a sua seita através de sua tara por matemática, explica a ele que o Torá também é matemático e contém mensagens ocultas na forma de letras disfarçadas de números e, mais tarde, um grupo poderoso de negociantes oferece a Max um super computador para que ele decifre os padrões da bolsa de valores usando seus números secretos.
Darren Aronosfky aborda a trama de maneira Lynchiana, o personagem vai definhando psicologicamente, seu mundo vai desagregando em cadeia e ele passa a sofrer de alucinações aterrorizantes - passamos a não saber mais o que é realidade e o que é delírio. A fotografia granulada de alto contraste e em preto e branco confere ao longa aspecto de pesadelo lúgubre, assim como o faz a câmera aflita e caótica de Aronosfky. O diretor ainda iria refinar seu estilo em filmes futuros mais esteticamente eficazes, mas aqui já esboça o teor sufocante e babélico tão marcante em suas obras.
No decorrer do filme a obsessão de Max pelos números ganha proporções extremamente pungentes e existenciais. Ele não apenas teoriza suas ideias, ele as vive na carne, no real do corpo (inclusive o personagem chega a se ferir fisicamente em diversos momentos). Não é que Max tenha dificuldade com parte da realidade que escapa a sua compreensão, mas sua própria realidade é um buraco. Surge no número secreto a promessa de uma grande revelação, de um grande êxtase capaz de tapar sua ferida pulsante. Quanto mais Max se aproxima de seu objeto, mais ele despenca no furo da loucura e vamos percebendo que aquilo que ele procura onipotente sob a égide da razão é, na verdade, a busca pela própria morte - por aquilo que não registra, que escapa qualquer símbolo, número ou palavra.
Max nega tudo e todos que o afastem de seu grande objetivo, inclusive despreza sua amável vizinha que nutre por ele um carinho quase materno. Há uma recusa do personagem de se ligar aos outros de maneira afetiva - ele é narcisista, auto-erótico, seu gozo é restrito ao rigor do mundo numérico e ele também é um número. Já dizia Lúcio Cardoso: "A ciência é uma verdade solitária". À maneira da espiral (símbolo que se torna primordial em sua senda), o personagem converge todas suas energias em direção a um ponto enigmático, absoluto, final. Testemunhamos Max deixar de investigar a matemática e passar a ser investigado por ela - ele é invadido pelos números e em seguida pelo judaísmo e pelo capitalismo, personificados na forma de figuras persecutórias, ávidas em extrair dele o "grande segredo".
Em uma das cenas mais angustiantes do longa, um grupo de rabinos revela ao protagonista que a sequência de 216 números revela "o nome verdadeiro de Deus" e que Max fora escolhido para receber tal informação divina e deve dizê-la imediatamente a eles para que finalmente o homem se reencontre com seu criador divino. Max não consegue, algo o impede de dizer este "tudo", afinal, qual seria o preço de tudo se revelar? De se concretizar o encontro com a instância metafísica última da verdade? Não seria este outro absoluto a própria morte?
Após um ápice de loucura que quase lhe custa a própria vida (e talvez de fato tenha lhe custado, fazendo do epílogo uma possível fantasia), Max termina o filme sentado em um banco ao lado de uma garotinha também fascinada por números (ainda que, no caso dela, a fascinação não seja mais que uma singela diversão). Ela pergunta a ele a resposta de um cálculo qualquer e, mesmo sabendo a resposta, ele serenamente diz não saber. O desfecho sugere uma epifania por parte do personagem - ele contempla o farfalhar das árvores e parece ter chegado a assunção de que não entender tudo racionalmente ou numericamente não significa que não seja possível uma outra compreensão - mais inventada, mais prazerosa e menos "toda". E suspiramos juntos a ele...que alívio é não sermos capazes de tudo compreender!
Perseguidor Implacável
3.9 266 Assista Agora"Dirty Harry", acompanhado de filmes como "The French Connection" do mesmo ano, mudaram a cara do cinema policial americano para sempre ao apostar em uma estética mais visceral, áspera e cruenta e trazer como protagonistas personagens excepcionalmente inescrupulosos, cínicos e irascíveis.
Clint Eastwood encarna o policial Callahan, um sujeito ávido em buscar justiça pelas próprias mãos à revelia da burocracia irritante da polícia americana. Sua personalidade impulsiva e debochada somada à direção enérgica e tensa de Don Siegel marcou época e é fácil ver a influência deste tipo de filme setentista em obras mais modernas de grande popularidade como a saga "Die Hard" (1988-2013) estrelada por Bruce Willis e os filmes policiais de Tarantino, "Jackie Brown" (1997) e "Reservoir Dogs" (1992).
Apesar de não possuir as nuances morais e o desfecho tétrico de "The French Connection", "Dirty Harry" é impecável como thriller e em diversos momentos seu tom se aproxima até mesmo do gênero horror, em grande parte graças ao repulsivo vilão Scorpio brilhantemente interpretado por Andrew Robinson e inspirado no "assassino do Zodíaco", um verídico serial killer responsável por dezenas de mortes no final da década de 60.
O filme explora a saga do policial Callaham versus o assassino Scorpio com brutalidade e de maneira linear (o longa é basicamente uma grande sequência de perseguição com breves interrupções para recuperarmos o fôlego); Don Siegel aborda o ambiente urbano em sua faceta mais sórdida e utiliza de seus cenários como sinistros campos de batalha entre os protagonistas.
Desde a excelente cena de abertura (envolvendo uma personagem sendo assassinada em uma piscina de cobertura por um atirador de longa distância) o filme já cria uma atmosfera de crueldade e perigo (a sensação é de que o atirador pode estar em qualquer lugar e ter passando despercebido). Siegel é hábil em manter tensão mesmo em momentos aparentemente inocentes - em determinado momento, por exemplo, dois personagens descem um grande lance de escadas a céu aberto e apesar de nada, na cena em si, indicar perigo, ficamos atentos e temerosos, imaginando se o assassino está a observá-los.
Não há descanso tanto para o policial Callaham quanto para o espectador, o filme dispensa subtramas ou explicações que humanizem o vilão Scorpio; ele é um perverso tão aversivo que passamos todo o longa ansiosos para que o personagem de Clint Eastwood dê a ele o que merece da maneira mais violenta possível. Apesar do anti-herói Callaham começar o longa moralmente dúbio (ele não hesita em disparar tiros contra alguns ladrões de banco negros), ele vai aos poucos mostrando seu lado humano e sua preocupação com a vida alheia, ainda que, no final das contas, seja o puro ódio pelo antagonista abjeto sua maior motivação e nós, também ávidos por vingança, o compreendemos.
Armadilha Mortal
3.8 40"Deahtrap" é um filme similar a "Sleuth" de 1972 também estrelado por Michael Caine: ambos são adaptações teatrais que envolvem uma trama repleta de reviravoltas e têm como personagem central um autor de mistérios com intenções nefastas, no entanto, "Deathtrap" é muito superior a "Sleuth", trazendo uma trama dinâmica e espirituosa que funciona bem nas telonas e consegue transcender suas origens de palco.
A narrativa gira em torno de um escritor de peças renomado cujas últimas obras fracassaram. Ao receber por correio uma brilhante peça escrita por um antigo pupilo, ele começa a contemplar junto à esposa o assassinato deste afim de clamar a obra como sua e retomar seu sucesso de outrora. O filme conta com atuações carismáticas por parte de todo o elenco e ainda que os personagens jamais soem verossímeis ou que as relações entre eles não passem de mero artifício do roteiro, este consistentemente entretém e nos pega de surpresa.
Michael Caine se mostra adequadíssimo ao papel - sestroso e canastrão e se Christopher Reeves esbanja beleza e Dyan Cannon provê momentos histriônicos divertidos como a esposa de caráter dúbio, é Irene Worth quem rouba a cena como a vidente estrambólica que inusitadamente se envolve com o arranjo sinistro.
O longa alterna momentos de atmosfera jocosa com outros de genuína tensão e, apesar de nem sempre conciliá-los harmonicamente, sempre mantém o espectador curioso a respeito do próximo entrevero. A direção de Sidney Lumet é um pouco estática (em especial nos dois primeiros atos) e sua câmera pouco inventiva - o diretor mantém uma certa distância dos personagens e não diversifica muito seus planos previsíveis; não obstante, o roteiro chistoso aflora e "Deathtrap" se conclui como um ótimo passatempo.
A Sombra de uma Dúvida
4.0 195 Assista Agora"Shadow of a Doubt" é considerado o melhor filme de Hithcock pelo próprio Hithcock, no entanto, apesar de oferecer muitos dos famosos cacoetes estéticos do diretor, não é uma de suas tramas mais convincentes ou bem amarradas, ainda que seja uma experiência perenemente prazerosa e tensa.
A eficiência do filme vem da maneira como o diretor contrasta dois elementos distintos - o perigoso e furtivo Tio Charlie e a cidadezinha do interior Santa Rosa, um local onde pessoas amáveis e ingênuas vivem alheias aos horrores do mundo. Entre os dois universos surge a sobrinha de Charlie, de mesmo nome do tio e interpretada com candura por Therese Wright, uma moça que exibe certa ingenuidade típica da cidade, mas também se revela mais sagaz e audaciosa que sua família comoventemente pueril.
O fascínio que a jovem Charlie nutre pelo tio parece vir de um desejo de desbravar o além da vida morna e pacata de onde vive e quando começa a descobrir que seu tio é mais do que fascinante, mas facínora, nos comovemos ao ver seu enlevo se diluir em uma amuada decepção. O roteiro é demasiado ingênuo em certos pontos - os investigadores são tranquilos demais, a jovem Charlie reage com pouco furor aos óbvios perigos que enfrenta e algumas reviravoltas surgem um tanto quanto obnubiladas. No entanto, o filme apresenta muitos pontos fortes - a direção de Hitchcock é elegante como sempre e aqui o vemos utilizando seu arsenal estético de maneira típica e eficaz, seja através de seus zooms clínicos em pequenos objetos pivotais, seus planos holandeses que denunciam desconforto e perigo ou da maneira sinuosa como filma a escada íngreme da casa - sempre envolta em sombras e travessa na qual os personagens trocam olhares de suspeita. Hithcock insinua também, de maneria ousada para a época, uma certa tensão sexual incestuosa entre os protagonistas, nos deixando curiosos em relação até onde a sobrinha permitirá ser levada pelo tio já que, apesar de sua natureza gentil e de sua lealdade à reputação da família, se encontra desesperadamente eriçada pelo charme profano do antagonista.
Apesar de alguns cortes demasiado abruptos que interrompem as cenas antes delas se revelarem por completo (como, por exemplo, no emotivo monólogo de Patricia Collinge), o longa consegue gerar palpável tensão entre a jovem Charlie e seu tio, agravando paulatinamente a desconfiança da moça paralela a imprudência do tio e culminando em duas excelentes cenas no terceiro ato: uma envolvendo uma garagem e outra um trem em movimento. Joseph Cotten está excelente como o vilão, mostrando-se desde o princípio sedutor, desapegado e sórdido ao passo que Theresa Wright confere charme à protagonista, imbuindo-a de um carisma pudico essencial para que temamos por sua vida.
Phenomena
3.7 246"Phenomena" é um dos melhores filmes de Dario Argento, não por possuir coerência ou porque seus personagens são bem desenvolvidos e seus conflitos interessantes, mas porque atinge um nível de exagero tão exorbitante e esteticamente bem conduzido que acaba nos cativando. O longa consiste em pelo menos três filmes diferentes amalgamados em um só: um envolvendo uma garota com poderes sobrenaturais capaz de controlar insetos, outro sobre um "serial killer" de adolescentes e um completamente à parte sobre uma mãe insana que esconde um terrível segredo.
A impressão que se tem ao assistir "Phenomena" é que se trata de um conto de fadas macabro acidentalmente trazido ao mundo moderno. Há um tom de fantasia em certas sequências como a que envolve a protagonista descendo um buraco sem fim atrás de um telefone (feito a Alice de Lewis Carroll) e outras envolvendo insetos e macacos que se comunicam quase como humanos. São elementos demasiado idiossincráticos e surreais para caberem confortavelmente em uma narrativa que a princípio parece se calcar na realidade de uma adolescente que, apesar de possuir uma característica sobrenatural, habita um mundo comum. Talvez se Dario Argento tivesse mergulhado de cabeça em um universo fantástico (de outra época, de outra natureza), seu filme tivesse sido mais bem sucedido e coeso.
O diretor confeccionou desatinadamente, mas nunca tediosamente, um filme de pedaços visualmente belos e brutais ancorados pela personagem de Jennifer Connelly (com rosto de princesa e um tanto inexpressiva); ao contrário de muitos de seus filmes Argento consegue em "Phenomena", ainda que minimamente, estabelecer personagens pelos quais nos importamos (algo que faltou gravemente em "Tenebre" de 1982, seu filme anterior) e a relação entre a protagonista e o cientista interpretado por Donald Pleasence confere certo afeto à trama mentecapta (ainda que a atuação de Jennifer Connelly falhe em transmitir a emoção necessária em diversos momentos).
Acompanhamos a personagem de Connelly descobrir sobre seus poderes envolvendo insetos, sofrer bullying por gostar deles (o filme alude a Carrie de 1976 em diversos momentos) e testemunhar uma série de assassinatos de jovens garotas que parecem de alguma forma estar conectados ao seu sonambulismo. Nunca sabemos que rumo a estória tomará e ficamos estupefatos com a progressiva adição de elementos bizarros, entre eles um macaco carismático e prestativo, uma repugnante piscina de vísceras e uma criança horripilante. A trilha sonora, como de costume nos filmes do diretor, é absurda e oscila entre sintetizadores ululantes e Iron Maiden e muitas vezes rompe qualquer tensão que haja nas cenas pela discrepância tonal. O roteiro (também de Dario Argento) não convence no que se refere às motivações dos personagens (frequentemente eles agem de maneira insensata e desconexa), aliás, nem o desfecho consegue explicar muita coisa, mas sua imprevisibilidade e a maneira elaborada e visualmente estimulante com a qual o diretor conduz suas cenas (sua decupagem é sempre inventiva e impressionante) acaba nos entretendo e deixando os mil pontos de interrogação camuflados pelo espetáculo.
O filme é demasiado longo e próximo de seu ato final perde um pouco o fôlego, no entanto, quando chegamos aos últimos 15 minutos somos bombardeados por uma série de acontecimentos bisonhos, espetaculares e repentinos que apesar de não fazerem muito sentido são inegavelmente divertidos e concluem o longa de maneira impactante e excêntrica. Aliás, o último plano (envolvendo um encontro de dois personagens) é fascinante, pois evoca uma inocência quase irônica e surreal visto os horrores que a precedem.
Na Solidão do Desejo
3.8 5A rigidez da vida militar e a repressão da homossexualidade se encontram de maneira impactante nesta obra sensível e pungente de John Flynn (mais conhecido pelos seus inferiores filmes "exploitation"). Em "The Sergeant", acompanhamos a estória do sargento Albert Callan (interpretado por Rod Steiger), um veterano de guerra que começa a comandar um campo de soldados em uma região isolada da França. O longa se inicia com um prólogo em preto e branco no qual presenciamos o sargento matar obstinadamente e animalescamente alguns soldados inimigos; é uma cena forte que demonstra não só o ímpeto destrutivo do personagem, mas uma certa vazão erótica que tais atos sórdidos o propiciam - quando ele mata há um alívio em seu semblante e quando ele asfixia um homem e cai junto ao seu corpo no chão, seus gestos denunciam um homoerotismo, um carinho distorcido pelo soldado que matou.
O filme ganha cor e vemos o sargento iniciando seu trabalho no campo de soldados. Ele é implacável e autoritário, mas por trás de toda rigidez naturalmente há a perversão e quando digo perversão é óbvio que não falo da homossexualidade em si, mas na maneira torta pela qual se manifesta no contexto da vida do sargento - uma vida militar espartana de severa repressão. Durante uma inspeção o sargento de repente se vê fascinado por um dos soldados - um jovem atraente, alto, loiro e de físico atlético, o oposto do sargento atarracado e abatido. Diante súbita paixão, o sargento vai paulatinamente tentando aproximar-se do rapaz, convencendo-o a trabalhar para ele em seu escritório (um trabalho claramente inadequado a suas habilidades) e usando de sua autoridade e poder para garantir que o jovem não possa rejeitá-lo. O longa vai se tornando tenso, pois sabemos desde o começo que o jovem possui uma namorada e que a violência internalizada do sargento e seu próprio ódio de si não tolerarão rejeição de bom grado.
A relação entre o sargento e o jovem soldado se torna curiosa, pois o jovem não o rejeita inteiramente; apesar de um estranhamento inicial, ele também começa a gostar da companhia do sargento e até a admirá-lo, de maneira que por um breve momento supomos que ele também possa ter algum interesse para além da amizade e da profissão. No entanto, logo percebemos também que o soldado não é mais que um menino ingênuo e educado, completamente alheio as intenções românticas do sargento e que eventualmente, quando as coisas ficarem claras, algo violento certamente se manifestará, afinal o sargento é uma panela de pressão que explodirá ou no êxtase do desejo ou da violência.
Rod Steiger está excelente no papel e é surpreendente que não tenha sido indicado a prêmios americanos na época (talvez o tema controverso seja o motivo). O ator imbui o personagem de uma intensidade que o tempo inteiro ameaça romper seu verniz de diligência e austeridade. Seu sargento Callan acaba nos comovendo, pois apesar de saber que o desejo homossexual que sente pelo jovem soldado é inaceitável tanto para ele quanto para o mundo em que vive, este desejo se torna sua razão de viver, seu objetivo maior e, para atingi-lo, tudo vale menos dizer o que de fato sente ou expressar-se fisicamente e o que resta são estratagemas e sabotagens para manter o jovem soldado por perto, seja sabotando seus encontros com a namorada ou forçando-o a trabalhar horas extras apenas para aproveitar um pouco mais de sua presença. Todas suas patéticas atitudes passam a girar em torno do rapaz, seja para puni-lo por frustrar sua intenções ou simplesmente para mantê-lo à vista. Claro, é uma forma doentia de afeto, uma obsessão sinistra, mas é a única forma possível de "amor" para o miserável sargento.
É interessante também a maneira como "The Sergeant" explora a relação do soldado com ele mesmo, já que no decorrer do filme o vemos encarnar diversos papéis tipicamente masculinos - do beberrão inconveniente, do piadista fanfarrão, do machão tirânico, do mulherengo desapegado, do sargento implacável - e ainda assim, testemunhamos nenhum deles o servir, mas apenas camuflar sem qualquer convicção um interior marcado por carência, incompreensão e desejos recalcados. Quando o final trágico finalmente chega fica o mal estar e a constatação de que naquele mundo austero - surdo e cego à subjetividade -, mas encorajador da guerra e da violência, o resultado não poderia ter sido outro.
Georgia
3.0 7 Assista Agora"Georgia" é um filme sobre relacionamento entre irmãs que consegue explorar uma dinâmica complexa de maneira inteligente e surpreendente. Jennifer Jason Leigh protagoniza o filme como Sadie, uma pseudo-cantora autodestrutiva que vive nas sombras da irmã aparentemente sã e talentosa - a cantora folk de sucesso Georgia, interpretada por Mare Winningham (indicada ao Oscar pelo papel).
O aspecto mais interessante do longa é que ele brinca com nossas expectativas em relação às irmãs. Se em determinado momento compreendemos a indignação de Sadie com a frieza e o descaso da irmã bem sucedida e de vida resolvida (ela parece ser antipaticíssima a princípio), logo em seguida também compreendemos Georgia quando fica evidente que Sadie é difícil, incorrigível e leva todos ao seu redor à fadiga emocional em um ciclo vicioso de melhoras e quedas envolvendo drogas, álcool e muita autocomiseração.
É um drama rico que jamais sucumbe ao melodrama graças ao roteiro verossímil escrito por Barbara Turner (mãe de Jennifer Jason Leigh na vida real) e inspirado em uma história de sua própria família. Jennifer Jason Leigh confere aqui uma das melhores atuações de sua versátil carreira, habilmente criando uma personagem infantiloide, sofrida, profundamente carente e desorientada. Sadie fascina, pois paradoxalmente nos causa repúdio e ternura. Ela é um buraco negro que demanda atenção de todos e pune aqueles que tentam ajudá-la ao frustrar qualquer fé que nela depositam. Apesar de suas falhas graves, sua admiração pela irmã acaba nos comovendo e é interessante como uma das primeiras cenas do filme (as duas irmãs pequenas dançando juntas e a mais nova imitando a mais velha de maneira inocente) antecipa em um contexto de alegria a dor que marca a vida adulta de ambas.
A própria falta de talento de Sadie é modulada de maneira sutil durante o filme. Ela de fato não sabe cantar, mas sua presença de palco às vezes cativa e percebemos sua vontade de se expressar pela arte (às vezes elas quase consegue) mais como um choro ávido pelo carinho e admiração da irmã do que uma ambição. Em outros momentos, no entanto, passamos vergonha ao vê-la bêbada ou completamente desafinada frente uma platéia e aí tomamos partido da irmã talentosa que, mesmo cansada de carregar Sadie nas costas, não consegue abandoná-la de vez (talvez por culpa) e constantemente tenta ajudá-la , através de seu sucesso, a engrenar ao menos um pouco sua carreira nada promissora.
É um filme que vai progressivamente se tornando mais devastador, não por reviravoltas no roteiro ou acontecimentos estrondosos, mas pelo peso da própria realidade dos personagens. O longa não os crucifica, mas também não concede a eles uma redenção hollywoodiana ou cenas resolutas de superação e epifanias. Nem o amor entre as irmãs é dado como garantido e sua relação oscila durante todo o filme (inclusive nos deixando ambivalente sobre qual das duas merece mais nossa simpatia). No final das contas, as dores de ambas as irmãs acabam nos tocando e o filme se encerra de maneira aberta e pungente, não oferecendo conclusões ou falsos alívios, mas escancarando seu ponto de angustia e mostrando que a vida segue mais ou menos igual, com a exceção de que agora conhecemos aquelas pessoas e, portanto, sentimos mais por elas do que quando o filme começou.
Os Delicados
3.4 6"Staircase", ao contrário do seminal "The Boys in the Band" lançado um ano depois, falha em explorar personagens homossexuais de maneira convincente ou mesmo divertida, mostrando-se equivocado do começo ao fim apesar de uma premissa interessante e muito ousada para a época.
O filme foca na relação do casal Harry e Charlie, juntos há muito tempo e enfrentando questões relacionadas ao declínio da juventude e à rejeição da sociedade (e no final das contas da insatisfação que sentem por si mesmos). O filme aborda temas relevantes e que a partir de um olhar mais sutil poderiam ter reverberado de maneria impactante, no entanto, a produção comete equívocos em muitos aspectos. Para começar, Rex Harrison e Richard Burton não convencem com suas atuações; há não só um exagero de trejeitos, mas um verniz de afetação e distância em seus personagens que parece defender e proteger a masculinidade dos atores, claramente desconfortáveis nos papéis. Jamais cremos por um instante que esses personagens se amam; o filme tenta estabelecer uma relação sado-masoquista entre os dois a partir do pressuposto de que por trás das agressões e ofensas que um submete o outro, eles na verdade se amam neuroticamente - não funciona e o filme se torna progressivamente mais deprimente e lúgubre em vez de sensível e revelador. Harrison está pavoroso, com semblante cínico e incapaz de um momento genuíno. Burton se sai um pouco melhor, mas ainda assim não transcende a caricatura, apesar de ao menos tentar imbuir o personagem de alguma sensibilidade.
O roteiro baseado na peça de Charles Dyer não é de todo ruim e possui alguns diálogos e situações que talvez funcionariam com outro diretor ou outro elenco. Stanley Donen, um diretor de senso estético apurado, dirigira alguns anos antes o excelente drama conjugal "Two for the Road", mas aqui parece sem inspiração, deixando clara as origens teatrais do roteiro e seu desinteresse pela estória. A trilha sonora obstrui desajeitadamente as cenas em vez de modulá-las e alguns momentos bizarros (como um envolvendo Burton trocando as roupas de sua mãe idosa que grita de dor e uma briga de tapas entre o casal) soam gratuitamente sádicos em vez de tocantes ou sensíveis; aliás, o filme nunca firma um tom coerente, alternando entre comédia parva e drama mórbido desassisadamente.
O fascinante cinema da "nova hollywood" abordou estórias de homens gays de maneira brilhante em muitos casos - vem à mente "Midnight Cowboy" (1969) e seu retrato da prostituição masculina, a repressão pungente da homossexualidade em "The Sergeant" (1968) e os entraves e afetos de um grupo de amigos gays no já citado "The Boys in the Band" (1970) - infelizmente "Staircase" cai no grupo dos fracassos, oferecendo um olhar limitado, cínico e depauperado de uma estória potencialmente interessante.
Vou Morrer Amanhã
2.6 60 Assista AgoraTudo que Amy Seimetz consegue passar com "She Dies Tomorrow" é o quanto sua neurose existencial é irrisória e mal elaborada. A estória gira em torno de uma garota que, a partir de uma visão, assume que morrerá no dia seguinte; todos em contato com ela parecem sentir o mesmo e começam a vagar desconsolados e apáticos. O longa começa até interessante, criando uma atmosfera de isolamento e morbidez até pertinente com o momento de pandemia que vivemos, no entanto, na medida em que o filme progride ele vai se tornando cada vez mais inverossímil e tacanho.
Talvez o aspecto mais irritante do longa sejam seus personagens: todos conversam da mesma maneira - lacônicos e absortos; a sensação é de que a diretora e roteirista Amy Seimetz está falando pelos cotovelos através de seus personagens em vez de imbui-los de uma subjetividade própria, algo que confere a obra um aspecto narcisista, de neurose que em vez de ir pra terapia foi parar em película. A protagonista, uma moça adulta, mas infantilizada e anêmica, insiste em ter seu corpo transformado em uma jaqueta depois de morta, "quero ser útil de alguma forma", ela afirma monotônica e de semblante caído. Existe maneira de se expressar mais aborrecida e adolescentemente masoquista que essa?
Amy Seimetz aborda seu existencialismo de maneira demasiado perfunctória, jamais conferindo urgência ou angustia a sua narrativa, mantendo uma auto-complacência que vai drenando a vitalidade de seu filme, de forma que na última meia hora de projeção já nos encontramos fatigados e impacientes e completamente indiferentes ao destino dos personagens. Seus recursos visuais também não impressionam, se resumindo em flashes coloridos nos momentos de "revelação" e direção de arte direto do Pinterest.
O Exterminador do Futuro: Destino Sombrio
3.1 725 Assista AgoraO primeiro "Terminator", dirigido por James Cameron, é basicamente um eficiente filme de terror disfarçado de ficção científica; a futura heroína Sarah Connor nos era apresentada em 1984 como uma moça comum (completamente alheia ao futuro sombrio que a aguardava) enquanto o personagem facínora de Arnold Schwarzenegger consistia basicamente em um Michael Myers de aço. Em 1991 foi lançado o segundo filme da franquia, também dirigido por Cameron, mas que dessa vez optou por injetar na estória um teor dramático muito mais forte: as brilhantes cenas de ação e o cenário apocalíptico eram coadjuvantes de uma potente relação entre a mãe-leoa Sarah Connor e o filho John (ameaçado pelas máquinas, pois no futuro fora responsável por liderar uma revolução contra seu domínio). E talvez ainda mais potente surge a relação de John com o exterminador encarnado de maneira icônica por Schwarzenegger que, ao contrário da máquina predatória do primeiro filme, acaba cumprindo uma função paterna comovente para o garoto que, sem nunca ter tido um pai, agora via ao seu lado um protetor quase divino - infalível em lealdade e força e, ainda por cima, amavelmente cômico.
Se os dois primeiros filmes da saga cumprem seu papel de maneira exímia, as outras sequências sempre careceram de um lastro potente, apresentando algumas boas sequências de ação, mas falhando em erigir relações humanas marcantes ou mesmo acrescentar algo de novo na narrativa que parece infinitamente se repetir, ainda que sempre ornada com algum novo floreio.
"Terminator: Dark Fate" conta com um excelente recurso: a presença de Linda Hamilton; a heroína ainda possui impacto e sua cena inicial é sem dúvidas a melhor do filme, despertando não só uma nostalgia pela adorada personagem, mas mostrando que mesmo em seus 60 e crivada de rugas, continua destemida e obstinada. Infelizmente, além da presença de Linda, o filme não tem muito a oferecer. Desde a primeira cena ele incomoda, pois parece ignorar o desfecho do segundo filme e ainda por cima elimina um personagem importante de maneira demasiado perfunctória, sem o devido peso. Somos introduzidos à jovem futura heroína da vez e a novos homens-robôs do futuro, um deles uma mulher semi-humana que assume o papel de protetora e o outro uma nova versão do vilão-exterminador do segundo filme, ainda mais letal e desenvolvido.
"Dark Fate", apesar de tentar incrementar os velhos truques da saga, nunca de fato decola. Apesar da grande quantidade de cenas de ação, a maioria atinge um nível de exagero tão exorbitante que causa mais dormência do que empolgação (o clímax em particular parece interminável). Além disso, o filme possui um visual demasiado computadorizado (a sensação é de que o filme se metamorfoseia em um vídeo-game de tempos em tempos), em especial a partir de seu segundo ato quando basicamente se transforma em uma grande parafernália digital. A inverissimilidade de algumas cenas também incomoda - por que justamente quando o vilão tem a chance de matar um personagem importante ele se torna repentinamente incompetente? É claro que esta é uma característica comum em filmes do gênero, mas quando isto ocorre de maneira tão evidente é inevitável um certo cinismo.
A presença de Schwarzernegger, elemento icônico e vital dos dois primeiros filmes, surge de maneira decepcionante, já que o personagem reaparece como uma versão diluída do que fora em outros filmes - o próprio ator parece letárgico e um pouco envergonhado de encarnar o mesmo papel de antes, mas sem seu esplendor físico e importância na trama. As protagonistas, com exceção de Linda Hamilton, se mostram personagens insossos, artificiais e esquecíveis e seu arco dramático, apesar de ser insistentemente desenvolvido em cenas melosas, acaba se revelando progressivamente mais aborrecido e fingido.
"Dark Fate" se conclui como um passatempo mais cansativo do que vigoroso e prova, mais uma vez, que a franquia já se bastava com os dois excelentes primeiros capítulos, que, seja lá em que futuro, perdurarão como obras-primas do entretenimento.
Vá e Veja
4.5 755 Assista Agora"Come and See" narra a ascensão da Alemanha Nazista e sua ocupação na República Socialista Soviética da Bielorrússia pelos olhos do garoto Flyora que, se a princípio se mostra empolgado com a ideia de lutar pelo seu país e segura armas como um garoto segura um brinquedo, logo percebe que a guerra é muito mais insuportável e atroz do que antecipara.
O grande problema do filme não está na sua proposta (afinal, são muitos os filmes que se dispuseram a mostrar os horrores da guerra e suas consequências irreparáveis de maneira brilhante), mas na suas escolhas artísticas ao articular esta proposta. É um filme extremamente desconjuntado, que alterna momentos realistas e pungentes (como o extermínio de um grupo de inocentes em um casebre) com outros surrealistas e cartunescos (às vezes os personagens agem como se estivessem em um monólogo de uma peça de teatro cafona). O diretor Elem Klimov nunca se firma em um tom adequado e, vacilando entre estilos, acaba alienando seu próprio filme da dura realidade que procura retratar.
Os personagens se comportam amiúde de maneira caricata: os nazistas gargalham enquanto fuzilam pessoas e o protagonista, progressivamente mais besuntado de maquiagem e crivado de rugas, franze o sobrolho e faz bico como se estivesse em um filme mudo expressionista. Há uma teatralidade presente nas atuações que falha em conversar com os aspectos mais sérios e realistas do filme de modo que, às vezes, a sensação é de que estamos assistindo a uma obra esquizofrênica, sem eixo e até mesmo sem respeito pelo tema abordado (algo reforçado pela escolha do diretor de confeccionar planos belos e cosméticos totalmente dissonantes do cunho angustiante da narrativa). Aliás, o único momento do longa que de fato tem peso é quando o diretor exibe cenas reais do holocausto, um recurso gravemente apelativo e que acaba prejudicando ainda mais o próprio filme já que apenas evidencia a disparidade entre sua ficção sestrosa e a o real insuportável.
O longa se desenrola simultaneamente simplista e confuso, se movimentando por diferentes cenários e situações de maneira forjada e ilógica. O protagonista nunca é desenvolvido como alguém crível - dotado de uma subjetividade própria -, ele apenas reage e progressivamente vai se assemelhando a uma marionete capaz de expressar instantaneamente o que o filme pede. É, no final das contas, a mão pesada de Elem Klimov que acaba destruindo sua obra - a sensação que se tem é que o diretor não confia na sensibilidade do espectador (e consequentemente na sua própria) e precisa, então, bombardeá-lo esteticamente, seja através de sons estáticos ensurdecedores, closes bizarros de rostos consternados e muita gritaria afetada. É um filme tão esteticamente desmedido e sufocante que, em vez de nos sensibilizar, ele nos coloca em uma espécie de dormência, nos impossibilitando sentir, pensar e nos indignar, algo essencial em qualquer filme que propõe retratar o absurdo que é uma guerra.