Em "On the Waterfront", Elia Kazan concilia influências do cinema neorrealista italiano - em vigor na década de 50 - com a narrativa de superação típica do cinema americano, apresentando um filme que se mostra comedido e preocupado com questões sociais e que concomitantemente coloca em seu centro a ascensão pessoal do anti-herói Terry Malloy (vivido por Marlon Brando), um trabalhador do porto envolvido em esquemas corruptos de mafiosos e que, paulatinamente, vai adquirindo uma consciência mais apurada de quem é e do mundo em que vive.
Ao contrário da maioria das produções hollywoodianas dá época que se acomodavam na redoma dos estúdios e eram marcadas por certa artificialidade cosmética, Kazan levou seu filme às ruas, enfatizando os aspectos desagradáveis da vida dos trabalhadores, a insalubridade do meio urbano e e a exploração da mão de obra por grupos poderosos e tiranos. Ao mesmo tempo que não romantiza as mazelas de seu universo e não recua frente o desagradável, o filme fomenta em seus personagens um enérgico senso de justiça e resiliência, algo que certamente cativou o público e a crítica americana, levando o filme a ganhar 8 Oscars (de 12 indicações) em 1955 - incluindo melhor filme - e a se tornar um sucesso de bilheteria.
O ponto nevrálgico do filme surge no conflito interno vivenciado pelo personagem de Marlon Brando que, após testemunhar o assassinato de um informante, começa a se angustiar e questionar os métodos ferrenhos do grupo criminoso com o qual compactua. Através de inusitados encontros com personagens-chave como Edie (a irmã do informante morto, vivida de maneira sensível e taciturna por Eve Marie Saint) e o obstinado padre Barry (Karl Maden, excelente), Terry começa a despertar para o significado de suas próprias posturas e o impacto que elas tem no mundo e em sua vida pessoal.
O filme atinge uma densidade admirável, pois o "despertar" de Terry jamais assume caráter didático ou de mensagem moral perfunctória, mas é incorporado de maneira natural à narrativa, afinal, o que o impulsiona não é tanto um altruísmo ético ou uma transformação catequética, mas um incômodo subjetivo que perpassa suas próprias angustias e vivências. Quando, por exemplo, Terry vê seu relacionamento com Edie florescer e de repente sucumbir quando ela descobre que ele estava envolvido no assassinato de seu irmão, o personagem se vê confrontado com as consequências pungentes e palpáveis de suas escolhas e passa a ter de se responsabilizar por elas, caso contrário tudo perderá. Em outra cena importante, Terry percebe, pesaroso, que seu outrora promissor futuro como pugilista fora "vendido" em prol dos interesses do grupo criminoso que forjava sua derrota em batalhas para ganhar dinheiro. O personagem vai progressivamente se "desobjetificando", isto é, reconhecendo seu valor enquanto sujeito dotado de desejos próprios, desejos que, para valerem, exigem que o personagem "traia" este grande outro excruciante que o grupo criminoso representa, ainda que isto ponha em risco sua própria integridade física.
Embasado por um roteiro bem construído e coerente, o longa erige cenas impactantes. O discurso do padre Berry nas docas - em que ele compara o assassinato de delatores pelos criminosos com a crucificação de cristo - evoca uma dignidade ética e memorável. Já a cena em que Edie conversa com Terry enquanto este se encontra dentro da jaula de pombos cria uma metáfora visual interessante, afinal, ela de fato o vê como um animal, imprudente e bronco, mas também desinibido e fascinante. Terry, por sua vez, se vê enlevado pela visão de mundo idealista e virtuosa de Edie. "Não é possível que você acredita nessa bobagem toda!", desdenha ele em determinado momento, mascarando seu óbvio encanto pela moça.
O longa culmina em uma sequência poderosa e tensa envolvendo Terry, os mafiosos e os trabalhadores. O desfecho é político e implica uma redenção do protagonista, mas não é um desfecho absoluto ou necessariamente feliz, já que não o estabelece como um herói jubiloso e glorificado, mas como um homem comum que sangra (por dentro e por fora) e cuja potência - agora despertada - torna um mundo mais justo e um povo menos assujeitado ideais possíveis, ainda que não iminentes.
Repleto de personagens venais e visualmente besuntado de suor e poeira, "Bring Me the Head of Alfredo Garcia" quase consegue ser algo além de um filme violento e meditabundo, estabelecendo no protagonista interpretado por Warren Oates um sujeito amoral, mas sofrido, cuja jornada facínora parece apenas gerar óbitos e desgraças, mas jamais uma recompensa espiritual ou mesmo materialmente satisfatória.
Bem atuado, especialmente por Isela Vega e Warren Oates, o filme cria uma atmosfera de total desolamento enquanto acompanhamos o gringo Beene dirigir pelas estradas mexicanas, ao lado da namorada, atrás de Alfredo Garcia: um sujeito procurado pela máfia e cuja morte vale uma grande quantia de dinheiro, desde que quem o mate apresente evidências. No universo do longa, nada e ninguém parece incapaz de impedir que o crime e o abuso cessem e deem espaço a coisas mais brandas e significativas como relacionamentos amorosos e uma vida profissional decente. É um paradigma impiedoso e Sam Peckinpah parece simultaneamente gozar disso (ele leva seus personagens a uma série de destinos sórdidos e resolve todo impasse com chacinas) e denunciar tal realidade, trazendo a ruína interna de seus personagens e as mazelas sociais como ponto incisivo de sua narrativa.
Utilizando de maneira brilhante seu espaço físico (as locações e os figurantes vibram com autenticidade), o filme parece nunca decidir se quer ser um cinema de entretenimento ao modo dos populares "exploitations" dos anos 70 ou se quer tecer um comentário social aprofundado com personagens complexos. Ele titubeia entre essas duas intenções e, de vez em quanto, até as atinge, mas fracassa em sustentar uma densidade em seu "pathos" ou mesmo uma tensão estética por muito tempo, ironicamente matando qualquer pretensão toda vez que extermina dezenas de seus personagens sem pestanejar.
Anestesiado amiúde pelos muitos rompantes de violência, o filme brilha mesmo quando permite seus personagens sentir alguma coisa em meio a situações absurdas e trágicas como, por exemplo, quando Bennie lamenta a morte de uma pessoa querida empapado de terra na vala de uma cova ou quando, angustiado pela sordidez de sua vida de cão, começa a desabafar com uma cabeça decepada em seu banco de passageiro, tratando-a de igual para igual, afinal ele há tempos também perdera a sua.
“Jurassic Park” é o cinema de entretenimento perfeito e um dos filmes mais icônicos de todos os tempos. É a primeira produção cinematográfica a usar efeitos especiais digitais em grande escala de maneira convincente, mas muito mais do que isso, é um obra conduzida com firmeza e habilidade ímpares por Steven Spielberg no auge de sua carreira.
Um dos motivos pelo qual o filme funciona tão bem é que Spielberg o modula em diversos níveis e todos se convergem de maneira natural e fluida. Há, primeiramente, o aspecto filosófico do livro de Michael Crichton (no qual o longa se baseia) que questiona a responsabilidade ética da ciência ao “brincar de Deus” quando traz os dinossauros de volta à vida. Tal aspecto é personificado no personagem Ian Malcolm – interpretado por Jeff Goldblum - um tipo sestroso, mas genuinamente preocupado com o rumo das experiências genéticas desenvolvidas no parque.
Em outro plano, temos os relacionamentos afetivos dos personagens que são apresentados de maneira sucinta, mas convincente. Os protagonistas paleontólogos Alan Grant e Ellie Sattler - vividos pro Sam Neil e Laura Dern – são pessoas “comuns” e simpáticas que, desde as primeiras cenas, apresentam um rapport natural e uma genuína paixão pelo que fazem, ainda que lhes faltem recursos monetários. O arco dramático de Alan que vai de alguém que detesta crianças para um protetor destemido dos netos de John Hammond é conduzido de maneira sensível, mas jamais pesarosa ou melodramática. Aliás, o personagem John Hammond – intepretado carismaticamente por Richard Attenborough - ao contrário do livro, surge como um sujeito essencialmente benevolente e afável apesar de suas ambições inconsequentes e excêntricas. Seus netos, Alex e Tim – Ariana Richards e Joseph Mazzello – são adoráveis e podem ser vistos, de certa forma, como uma projeção do próprio lado infantil, curioso e “geek” de Steven Spielberg, evidente nesta produção.
E temos, é claro, o lado espetáculo do longa, afinal, Spielberg é um pouco John Hammond e quer encantar e aterrorizar seus espectadores como sempre o fez em sua brilhante carreira. O diretor exibe as atrações do filme – os dinossauros – simultaneamente com parcimônia e arroubo, construindo cada cena de maneira meticulosa e envolvente e sempre usando os efeitos especiais à serviço do filme (e não o contrário como fazem muitos filmes de entretenimento, em especial nos dias de hoje).
Spielberg sabiamente nos coloca no mesmo nível dos protagonistas, isto é, suas primeiras descobertas e experiências com o parque dos dinossauros também se tornam as nossas. Desde o enlevo que os personagens sentem ao ver um braquiossauro pela primeira vez ao terror que experimentam durante o ataque do tiranossauro aos carros de excursão, cada cena incorpora uma estética própria - se a primeira, por exemplo, ocorre em pleno sol, em planos abertos e é acompanhada da majestosa e memorável trilha sonora de John Williams, a segunda se passa à noite, na chuva, em planos mais fechados e conta apenas com sons ambientes (os passos do tiranossauro se aproximando, o metal da cerca sendo retorcido por suas garras, os suspiros de aflição das crianças no carro e etc). Cenas como esta e a dos ataques dos raptores às crianças na cozinha são verdadeiras aulas de tensão, apresentando uma decupagem impecável e conciliando computação gráfica e efeitos práticos de maneira inspirada. Outro recurso curioso de Spielberg é a utilização de objetos triviais para transmitir a sensação de algo terrível se aproximando, sejam estes os copos de água que vibram com a chegada do imponente tiranossauro ou a geleia de Alex que freme na colher enquanto ela percebe a aproximação dos sorrateiros raptores.
“Jurassic Park” é aquele raro caso onde um filme é bem sucedido em todos seus elementos, sem exceções. Os incríveis “animatrônicos” de Steve Winston, os efeitos digitais cuidadosamente forjados pela Industrial Light & Magic, os belíssimos cenários havaianos em que grande parte da ação se passa, o design criativo do parque e de suas variadas instalações, o roteiro elaborado e dinâmico, a trilha sonora épica e contagiante de John Williams, o elenco cativante e afinado, a cornucópia de cenas criativas e icônicas e, é claro, a direção primorosa de Steven Spielberg, fazem do longa uma experiência cinematográfica empolgante, memorável e atemporal.
Vencedor de 5 Oscars em 1972 (incluindo melhor filme), "The French Connection" subverteu o cinema policial da época ao despi-lo de romance e de um idealismo ético ao apresentar o conflito polícia-criminoso sob uma ótica da violência enquanto puro dispêndio pulsional. Os personagens não agem por princípios heroicos ou mesmo são impulsionados por razões passionais conscientes (como uma vingança pessoal, por exemplo), mas avançam como locomotivas sem freio, à mercê da própria qualidade destrutiva - inerente ao ser humano.
Gene Hackman, em atuação pujante e afoita, encarna um policial que não conhece os próprios limites e que, paulatinamente, põe tudo e todos em risco em função de sua missão - cujo caráter pressupostamente civil e moral vai adquirindo tons sombrios e coléricos.
William Friedkin elaborou um filme áspero em que tanto o espaço físico quanto os personagens que o habitam são indecorosos, viscerais, purulentos. O diretor explora suas cenas de maneira quase documental, sua câmera fremente não hesita em se aproximar e confrontar seja lá o que ocorre, conferindo a toda produção um clima aflito e realista. As famosas cenas de perseguição são tensas e conduzidas com brutalidade e clareza.
O filme possui, também, um roteiro provocador, que não necessariamente encerra um arco dramático ou assume qualquer viés moralista, deixando - à maneira do cinema de arte europeu, grande influência em Friedkin - pontas soltas e uma sensação de impotência no espectador, que jamais é assegurado de seu bem estar ou de qualquer resolução para o caos que deflagra impiedoso a sua frente. O longa nos nega até mesmo uma catarse e nos abandona desconfortáveis e atônitos, nos lembrando que apenas tentamos ser civilizados e que, assim como na vida real, o cinema às vezes não satisfaz a uma agenda, mas simplesmente nos põe cara a cara com a dureza do inexorável.
"The Rapture" é um filme ousado e perturbador, cujo tortuoso caminho se revela inesperado e propõe questões difíceis, jamais se acomodando em resoluções reducionistas ou posicionamentos moralistas ao abordar temas pujantes como religião, Deus e morte.
AVISO DE SPOILERS: É difícil falar sobre o filme sem entrar em detalhes da trama e como ela discorre, por isso aviso aos que não assistiram que revelarei pontos cruciais a seguir...
Acompanhamos a trajetória da personagem Sharon - Mimi Rogers em brilhante atuação - uma telefonista promíscua e entediada com sua profissão enfadonha na qual passa a maior parte de seu dia repetindo a mesma frase robótica e sem qualquer possibilidade de real contato humano. Depois do trabalho, ela e seu parceiro (um homem vulgar com quem não parece lograr de qualquer afeto verdadeiro) fazem orgias com casais variados. Angustiada, Sharon começa a escutar, aqui e ali, pessoas falando sobre o "juízo final" e de como testemunham sinais inegáveis de que o grande dia se aproxima - incluindo crianças proféticas e sonhos sobre pérolas flutuantes. Desamparada e cada vez mais insatisfeita com suas tergiversações sexuais, a personagem parece rumo à morte quando, no último instante, "encontra Deus". Seu mundo de fato se transmuta completamente e ela passa a gozar de um amor transcendental.
Sharon abandona seu parceiro (ele ironiza sua fé e debocha de sua repentina mudança) e cria um laço inesperado com um de seus amantes. A princípio cético e racional, ela o convence de sua fé e ele também se torna religioso; uma filha nasce dessa união e seis anos depois os sinais de que o juízo final se aproxima estão mais fortes do que nunca; diante periclitante cenário, Sharon e sua família comungam de uma fé sinistramente rígida e onipotente. Assistimos, perplexos, Sharon gradativamente mais identificada com o discurso cristão e tomando atitudes cada vez mais literais em nome de Deus e do suposto amor que sente por Ele, ignorando até as intervenções de sua melhor amiga, preocupada com as decisões imprudentes de Sharon e de seu progressivo desligamento do mundo. É interessante como, neste ponto do filme, percebemos o fervor religioso de Sharon como um crescente delírio psicótico e prevemos um final trágico para a personagem - do cimo de seu amor fanático (que na falta vê a promessa do tudo) avistamos a fatídica queda da desilusão.
O marido de Sharon falece (assassinado durante um surto de um funcionário louco em sua empresa) e os atos de Sharon vão se tornando mais drásticos e violentos. Após receber um "sinal de Deus" através de visões, Sharon e a filha vão ao deserto onde aguardam a chamada do criador anunciando o paraíso; enquanto isso, ambas passam fome e parecem não se acovardar pela insolação, se mantendo convictas de que o amor de Deus compensará todas as aflições, ainda que os semblantes devastados e os pesadelos desesperadores da filha indiquem uma inevitável ruína. O longa vai progressivamente se assemelhando a um filme de terror onde o "monstro" é o próprio desamparo das protagonistas a mercê de suas convicções delirantes. O filme tensiona fé e sofrimento de maneira pungente e nos deixa aflitos e curiosos, nos questionando para onde o diretor Michael Tolkin conduzirá sua bizarra trama e seus eupáticos personagens. Desolada e como um último apelo, Sharon mata a própria filha com a intenção de enviá-la ao paraíso e, incapaz de se matar, dá tiros em direção ao céu, como que agredindo - em ato de desespero - o Deus impávido e mudo. "Quem vai perdoar Deus?", questiona a personagem.
O filme surpreende em seus desfecho, pois se até então sugere se tratar de um funesto estudo de personagem, de uma deterioração psicótica na qual a fé é o objeto de êxtase e de degradação, ele se revela, de supetão, completamente literal - de fato o juízo final chega. Trompetes bradam, as celas das prisões sucumbem, figuras encapuzadas em cavalos trotam no deserto e uma luz leva Sharon a outra dimensão. E, de repente, o filme se torna alegórico, propondo não apenas um estudo de personagem, mas uma provocação filosófica. Em uma espécie de purgatório, Sharon vê a filha que confirma a existência do paraíso e pede à mãe, em súplica, que ela proclame seu amor por Deus que irá, então, acolhê-la em seu reino. Indignada, Sharon se recusa a ir ao paraíso e a se submeter ao amor tirano de um Deus que a levou a matar a própria filha e a submeteu a regras intransponíveis e perversas. O longa termina com Sharon no vazio, aceitando a existência de Deus, mas não o perdoando.
É um final extremamente corajoso, ainda mais quando consideramos que se trata de uma produção americana. O diretor e também roteirista Tolkin leva Sharon aos extremos em sua jornada e arma um desfecho ambíguo, pois ao mostrar o juízo final concretamente, o filme simultaneamente revela o absurdo da profecia e ao mesmo tempo a torna real e tangível. Aliás, a decisão final de Sharon, de não perdoar Deus, também é enigmática, pois estaria tal decisão herética implicando orgulho ou coragem? Amor próprio ou derradeira dissolução? Aí me lembro do texto "Perdoando Deus" de Clarice Lispector, em que ela diz que o amor não é um cálculo matemático e que somente se ama a Deus verdadeiramente somando as incompreensões, não as compreensões. Caso contrário, de fato corremos o risco de ficarmos como Sharon, ou no limbo da revolta frente um mundo cão (onde ela termina sua jornada) ou, como estivera anteriormente - embalsamada no êxtase pueril do pseudoarauto que finge tudo saber.
"The Boys in the Band", peça de Mart Crowley de 1968, ganhou uma versão cinematográfica em 1970 pelas mãos de WIlliam Friedkin. Situado cronologicamente logo após as manifestações de Stonewall (marco da luta pelos direitos LGBT), o longa capta a angustia inerente a uma sociedade que escancaradamente rejeitava e extirpava a homossexualidade e, ao mesmo tempo, estabelece personagens que ultrapassam qualquer rótulo e data ao se revelarem sujeitos complexos de dores e desejos universais.
O longa se passa praticamente em apenas um ambiente - o apartamento do protagonista Michael. Junto a outros amigos ele planeja dar uma festa para um outro amigo em comum, Harold. Em meio aos preparativos uma ligação surpreende Michael, um antigo amigo presumidamente hétero, Alan, liga aos prantos implorando para que tenham uma conversa. Michael o convida para seu apartamento animado e curioso a respeito do significado deste encontro e ao mesmo tempo se vê aflito, pois teme a reação de Alan caso descubra sua homossexualidade ao vê-lo com seus amigos assumidamente gays.
A força do filme está na forma como ele arma uma situação tensa entre todos os personagens envolvidos. Através de trocas sorrateiras de olhares, comentários sinuosos e semblantes consternados, o filme nos enreda com pungente autenticidade no universo daquele grupo de amigos. Conflitos latentes, desejos reprimidos e angustias individuais erigem uma perigosa teia que envolve a todos e faz eclodir uma série de confrontos e revelações.
Um ponto chave do longa é a desilusão do protagonista Michael ao constatar que o viril Alan, por quem nutre uma paixão implícita e ilusória, não só é homofóbico e nega os próprios desejos homossexuais, mas se interessa mais pelo seu amigo do que por ele. Tal constatação deflagra sua crise até então relativamente contida e o joga no abismo - vemos uma transformação abrupta no personagem que se torna gradativamente odioso, perverso e destrutivo, sujeitando seus convidados a um crescente mal estar.
Os diálogos de "The Boys in the Band" são extremamente bem escritos, oscilando entre engraçados, fastidiosos e perspicazes em questão de instantes, conferindo às interações entre os personagens um impressionante dinamismo e autenticidade. O elenco de atores, repetindo seus respectivos papéis na peça, é impecável (sem exceções); Kenneth Nelson e Leonard Frey (como Michael e Harrold), em particular, dominam a cena e criam personagens memoráveis e causticantes. Cliff Gorman, no papel do amigo mais afeminado, nos faz rir e de repente nos comove ao se revelar muito mais vulnerável e romântico do que de antemão. Cada um dos personagens tem seu momento de acrescentar algo ao filme, o conduzindo a caminhos inesperados e frequentemente tocantes.
Se o roteiro é brilhante, é William Friedkin quem o traz à vida de maneira magistral. O diretor não só confere um ritmo rápido à produção, mas através da decupagem elaborada e de uma câmera intrusa e ansiosa cria uma sensação de intimidade que provavelmente jamais fora atingida na peça. O olhar de Friedkin é sensível, pois o diretor torna a narrativa visceral e intimista, evitando habilmente uma estética artificial e presa às raízes teatrais (algo que acontece com frequência em adaptações fílmicas de peças). É interessante, também, como a atmosfera das cenas se alterna de acordo com a gravidade do que acontece - se no começo o filme possui um tom até frívolo enquanto os protagonistas dançam e se divertem com gracinhas, de repente, simultâneo ao agravamento dos conflitos, sons de trovões ecoam ao fundo - um novo momento é anunciado. O ambiente se torna turvo e ameaçador e as tensões se agravam. À maneira da chuva que destrói os bibelôs festivos e confere a outrora agradável festa aspecto de sujeira e caos, os personagens também vão perdendo os adornos e mostrando seu lado "sujo" e sombrio. "Eu queria poder dar uma descarga em tudo isso", desabafa um dos rapazes em determinado momento.
"Boys in the Band" fascina, pois seus personagens não são de forma alguma agradáveis, mas são densos e revelam novas facetas a cada curva sinuosa do roteiro, manifestando-se inesperadamente frágeis, brutos, amáveis e loucos - humanos. O filme se conclui em uma nota catártica e angustiante, quando finalmente as projeções do protagonista caem e ele se vê - fremente - de encontro com o vazio e com o ódio de si (antes direcionado selvagemente aos outros). No entanto, é nesse encontro desolador com o vazio que o filme também se torna esperançoso, ao permitir que o personagem finalmente perca as fachadas e, abraçado com o único amigo que permaneceu, vislumbre um novo caminho, uma nova forma de amar e ser amado.
"Tesis" é um daqueles raros filmes de suspense - repletos de reviravoltas - que não desrespeitam a inteligência do espectador e nem comprometem sua integridade para chocá-lo ou surpreendê-lo de forma barata. Durante duas horas de projeção, Alejandro Amenábar sustenta um ritmo ágil e confere ao roteiro intrincado uma direção clara e precisa, concebendo engenhosamente um dos maiores suspenses da década de 90.
A estória do longa tem como foco a universitária Ángela, vivida por Ana Torrent, enquanto planeja sua tese sobre "violência no meio audiovisual" e que acaba, inesperadamente, descobrindo o mundo dos "snuffs": filmes de torturas e assassinatos verídicos que são vendidos para o mercado negro. Aliada a um colega de classe fissurado em filmes de horror, ela começa a investigar a morte de uma universitária cuja morte foi gravada em um vídeo e cuja fita foi acidentalmente encontrada em uma sessão secreta da filmoteca da universidade.
"Tesis" é um filme extremamente bem orquestrado. Desde a primeira cena vislumbramos o ponto nevrálgico do filme: o fascínio libidinoso e mortífero pela violência - na cena, acompanhamos Ángela descer do metrô após a notificação de um acidente nos trilhos e, paulatinamente (apesar das recomendações da polícia de que todos se afastem), tentar espiar o corpo mutilado com uma mistura de excitação e medo em seu semblante. O longa estabelece uma relação interessante entre a recatada e misteriosa Ángela e Chema, um rapaz ranzinza e declaradamente fanático por pornografia e filmes de terror, unindo-os afetivamente pelo mesmo fascínio, apesar de ambos lidarem com isso de maneiras diferentes.
O longa funciona, pois é bem sucedido em várias dimensões. Primeiramente, seus personagens são fascinantes e complexos, sempre introduzidos com alguma aura de mistério ou ambiguidade inerente. Com o desenvolver da trama, estes vão se revelando de maneira inesperada e sempre crível, ancorados por ótimas atuações de todo o elenco. É um filme que consegue ser também engraçado e cujo humor jamais soa como um artifício do roteiro, mas como algo que parece surgir espontaneamente de seus personagens, estes críveis e dotados de excentricidades, neuroses, medos e desejos recônditos.
"Tesis" brinca com nossas expectativas de maneira inteligente, revelando o absolutamente necessário para que a trama fique clara e, ao mesmo tempo, misteriosa, um equilibrismo ardiloso e impecavelmente executado. Articulando sexualidade e violência e explorando os limites cabalísticos entre a fantasia da violência e o insuportável do seu ato real, "Tesis" explora, de maneira tensa e envolvente, o perigoso terreno da sexualidade e o fascínio inerente do humano por suas vazões mais extremas e estarrecedoras - não só dos que diretamente aí se implicam, mas também daqueles que apenas de longe observam e gozam.
"The Neon Bible" é um filme que traz à mesa elementos interessantes, mas que jamais os aproveita como deveria. O longa narra as desventuras de um garoto nos anos 40 em uma pequena cidade sulista americana, explorando sua relação com uma tia glamourosa, uma mãe cada vez mais instável e um pai intratável.
O diretor Terence Davies jamais consegue conferir ritmo ao seu filme e arrasta sequências desinteressantes (como a que envolve uma missa, por exemplo) e falha em desenvolver outras promissoras, consequentemente perdendo foco do mais importante - seus personagens e a relação entre eles. O vínculo do menino com a personagem de Gena Rowlands, por exemplo, é mais explicado do que desenvolvido de maneira fluida dentro da narrativa; a lendária atriz acaba sendo desperdiçada em um papel que promete, mas que jamais engata como deveria - suas cenas são insatisfatoriamente curtas e mal elaboradas.
Utilizando-se praticamente apenas de planos médios ou gerais e de uma câmera estática, Davies confere ao filme uma atmosfera teatral e distante, impedindo que os dramas dos personagens tomem vigor. Os cenários surgem artificiais e, de tempo em tempo, o longa flerta com uma estética surrealista um tanto insossa.
Apesar de algumas cenas incisivas no terceiro ato (a câmera estática do diretor até funciona em momentos mais graves, ao nos obrigar a confrontar certos terrores de maneira direta e pungente), o filme falha em captar a intimidade de seus problemáticos protagonistas. Vemos a mãe do garoto enlouquecer, a personagem de Rowlands exibir seus talentos teatrais e sua irreverência, mas nada ocorre de maneira visceral ou densa; cenas potencialmente interessantes se tornam meros "flashes" e o longa termina sem deixar qualquer impacto.
Sádico e exuberantemente sangrento, "Haute Tension" ecoa "The Texas Chainsaw Massacre" em boa parte de sua duração, mas infelizmente não atinge sua estridência e impacto graças a alguns tropeços - alguns toleráveis, outros bastante equivocados.
O roteiro, linear e enxuto, acompanha duas amigas que, durante um fim de semana, visitam a casa de família de uma delas e, chegando lá, se deparam com inimagináveis horrores. O diretor Alexandre Aja é talentoso quando o assunto é tensão, agilidade e violência explícita. O longa não enrola e, depois de uma breve introdução aos personagens, já estamos inseridos no universo cruel dos filmes de Aja, onde o imperativo é uma violência física e mutilante que não poupa ninguém.
O ambiente rural, a agressividade pulsante e ríspida e a ausência de "background" dos personagens remete imediatamente a "Texas Chainsaw Massacre", no entanto, o diretor opta por escolhas estéticas que acabam prejudicando sua atmosfera: a fotografia saturadíssima com tons verdes e amarelos (por algum motivo popular no começo dos anos 2000) cria um ambiente artificial e acaba diminuindo o "realismo" do longa - uma fotografia de tons mais neutros e menos "trabalhada" certamente favoreceria sua atmosfera. Em certos momentos, Aja opta por uma eficaz trilha sonora minimalista e dissonante (escutamos o crepitar de metais e sons de interferência estática), no entanto, em outros o diretor aposta em uma estética que beira o "video clipe", utilizando músicas pop não diegéticas, edição frenética e movimentos de câmera estilosos que acabam deslocando o filme do clima angustiante que predomina na produção.
"Haute Tension" diverte com destreza durante sua maior parte, as mortes são criativas e perturbadoras e ao assumirmos o ponto de vista da personagem Marie em - praticamente - tempo real, nos envolvemos na sua trajetória de maneira visceral e apreensiva. O longa, após não ter mais nada a provar, infelizmente dá um grande tropeço em seu clímax. Não entrarei em detalhes, mas há uma reviravolta severa que surge de maneira abrupta e forçada, não só diminuindo o impacto de tudo que ocorrera até então, mas também desrespeitando a inteligência do espectador, já que insere um elemento tão destoante do resto da narrativa que parece até que estamos, de supetão, assistindo a um outro filme. Em vez da sensação de surpresa provavelmente almejada por Aja, fica o aborrecimento pelo filme não ter tido a coragem de permanecer simples e eficaz como havia habilmente se mostrado até então.
"L'Année Dernière à Marienbad" é o avô dos comerciais de perfume. Praticamente qualquer frame do longa é uma imagem cosmética atraente (há belíssimos figurinos, turnês arquitetônicas e paisagens majestosas). No entanto, se os comerciais de 15 segundos divertem pelo "nonsense" e logo desvanecem, este desfile de poses e afetações estilísticas de 90 minutos, mais do que tudo, aborrece.
Os elementos cinematográficos presentes em "L'Année Dernière à Marienbad" são comumente associados ao cinema de arte - a narrativa é esparsa e sem ordem cronológica, o sentido de ações e diálogos não são explicados ou desenvolvidos de maneira linear e sua estética - inesperadamente - se metamorfoseia em algo inusitado (em certo momento, por exemplo, os personagens congelam por instantes como estátuas). Tais elementos estão associados ao cinema de arte, mas não é porque estão associados a ele que isto os torna meros ingredientes e que sua utilização de forma desvairada e arbitrária confeccionará um bolo saboroso.
"L'Année Dernière à Marienbad", apesar de visualmente intrigante, jamais articula seus elementos estéticos a seu favor, até porque o longa parece completamente alheio a suas próprias intenções. O que o filme quer ser, afinal? Um retrato insuportavelmente obtuso sobre desencontro e solidão? Um mero experimento plástico? Uma desconstrução da linguagem cinematográfica? A verdade é que faço essas perguntas por pura educação, já que depois de meia hora de projeção conclui que não me importava.
A incompetência de "L'Année Dernière à Marienbad" não está na sua linguagem inusitada, afinal, quantos filmes nos surpreendem esteticamente e, se a princípio nos confundem, logo em seguida - em um golpe de mestre - nos acertam em cheio n'alma? O equívoco de longa está em não nos oferecer uma âncora qualquer que nos situe em seu universo. É uma obra sem gravidade, sem sentimento (apesar das grandes afetações de olhares e gestos). Sabemos da obsessão do consternado homem pela misteriosa dama, mas tal obsessão nunca encontra uma origem, uma resposta ou qualquer densidade. O próprio protagonista surge de maneira obnubilada (nunca entendemos quem ele é) e jamais nos é dado acesso a sequer lampejos de lucidez e coerência; enquanto isso, cenas vagas e repetitivas infinitamente se acumulam.
No final das contas, apesar do esplendor visual, os personagens de "L'Année Dernière à Marienbad" e seus conflitos se revelam gradativamente opacos e vápidos e, quanto mais o filme prossegue, mais fica claro que não há nada de consistente sendo construído, discutido ou metaforizado; resta apenas uma vaidade estilística à maneira da personagem de Delphine Seyrig - nebulosa, pomposa e esmaltada.
"Sleeping with the Enemy" é um thriller linear, bem atuado e envolvente, mas que, no final das contas, não apresenta nenhuma grande cena ou idiossincrasia que o torne memorável.
Julia Roberts interpreta uma jovem que, após anos vivendo com um marido abusivo em uma mansão à beira da praia, consegue finalmente escapar - forjando um suicídio - e começar uma nova vida em uma cidadezinha próxima. O marido descobre, é claro, e a procura para acertar as contas.
O longa conta com personagens extremamente unidimensionais - o novo caso amoroso da protagonista é um jovem bonito, gentil e compreensivo e sua mãe idosa, mesmo tendo sido abandonada por 6 meses pela moça sob a tirania do marido, se mostra estarrecedoramente compreensiva e angelical quando finalmente se encontram. O vilão, em grande contraste, é um homem descompensado e delirantemente possessivo, de olhos arregalados e sanguinários e cumpre apenas uma função no filme - ameaçar a vida da frágil protagonista que finalmente parece ter encontrado alguma paz.
O diretor Joseph Ruben é competente e sua decupagem, em especial no clímax, cria admirável tensão. O que impede "Sleeping With the Enemy" de se tornar um clássico do gênero é a falta de identidade do roteiro, que estabelece uma narrativa minimamente competente, mas jamais memorável. O arco dramático e o percurso até o clímax são demasiadamente simplórios e, apesar de nos envolver, o longa jamais vai longe o suficiente ou mesmo cumpre o terror que promete ao erigir como vilão um sujeito tão inescrupuloso e violento.
"Wolf" é um filme anômalo na carreira de Mike Nichols, cujos projetos geralmente abordam relacionamentos íntimos e angustiantes em um contexto ordinário. Aqui, o diretor forja uma espécie de fábula moderna romântica com nuances de terror. Não se trata de um filme dramático de personagens profundíssimos ou de um terror visceral com cenas bombásticas. Nichols mantém o longa (salvo o clímax Grand-Guinol) em um "meio do caminho", isto é, o diretor titubeia entre gêneros e cria um filme singular, focando na transformação da vida afetiva e social do protagonista (interpretado por Jack Nicholson) após este ter sido mordido por um lobo e começar a experienciar estranhas mudanças físicas e mentais.
Apesar de menos violento e atemorizante que a maioria dos filmes abordando lobisomens, "Wolf" não dispensa as convenções do gênero e é, em sua maior parte, um filme previsível. Sua previsibilidade, no entanto, não prejudica sua eficácia, visto que Nichols decide tornar cerne do filme o relacionamento de Jack Nicholson com as pessoas ao seu redor, em especial com a filha de seu chefe (Michelle Pfeiffer), com quem desenvolve um romance.
Acompanhamos o cotidiano do protagonista enquanto suas novas características animalescas o conferem uma vitalidade e coragem antes ausentes em suas relações, mas ao mesmo tempo o tornam gradativamente perigoso e isolado do mundo. Nichols é bem sucedido ao traçar um paralelo entre as selvagerias presentes nas relações profissionais com a selvageria literal do homem-lobo, cujas características acabam - ironicamente - adaptando o personagem de Jack Nicholson ao mundo dos négocios, lugar no qual - antes da transformação - ele era devorado pelos lobos (sejam estes na forma do chefe ou do inescrupuloso e escorregadio colega de trabalho).
"Wolf" se torna um entretenimento agradável em grande parte por causa de bons diálogos (alguns de autoria da subestimada Elaine May, que participou do roteiro em anonimato) e das carismáticas atuações dos protagonistas. Jack e Nicholson e Michelle Pfeiffer apresentam palpável química e Mike Nichols habilmente mantém uma atmosfera eufônica pontuada por momentos de tensão, conjecturando uma comédia romântica que, ao ser temperada por elementos sobrenaturais e sinistros, se torna mais atraente e diferente de tantas outras.
O primeiro filme em cores de Truffaut (e seu único americano) é uma de suas obras mais equivocadas, reunindo suas piores tendências sentimentais e falhando em explorar temáticas interessantes, como o papel da arte e a tensão subjetividade-autoritarismo, de maneira profunda.
Situado em uma distopia em que livros são proibidos e queimados quando encontrados, o longa estabelece desde o começo relações simplistas entre os personagens, estabelecendo os "nazistas dos livros" como personagens parvos e caricatos, com exceção do protagonista Montag que, após breve diálogo com a professora interpretada por Julie Christie, já inicia sua transmutação de bruto a sensível.
O filme possui uma mensagem política sincera (ainda que pueril), criticando o totalitarismo, a ignorância militar e o massacre da sensibilidade por governos que, repetidamente na história, exploram e subjugam povos em nome do dinheiro e do poder e cujo depauperamento ao menos alimenta a arte, pungente e memorável especialmente em tempos sombrios . Se a mensagem é clara, a execução de Truffaut é banal, desde a fotografia fosca mais digna de um sitcom meloso aos designs de set risíveis (o futuro é puro kitsch sessentista), nada convence. Os efeitos especiais são vergonhosos e a decupagem do diretor, geralmente ágil e criativa, aparece convencional e morosa.
Julie Christie, uma das atrizes mais carismáticas de sua época, aparece no longa sob um verniz de deboche e incomumente apática, como que descrente da produção. Aliás, a escolha do diretor de colocar Christie em um papel duplo - ela vive duas personagens de personalidade opostas - não passa de uma mera surpresa inicial, visto que o recurso se revela vazio e mera firula pseudoartística.
O grande problema de "Fahrenheit 451" está na sua incapacidade em desenvolver elementos potencialmente criativos; em determinado momento, por exemplo, o filme revela a existência do "povo do livro" - pessoas que, para imortalizar o legado da literatura, escolhem, cada um, uma obra literária para "decorar", de modo que mesmo que os livros sejam queimados e destruídos, continuariam vivos em quem leu. É uma ideia fascinante, mas que acaba mal aproveitada, visto que o longa falha em explorar o efeito do livro no leitor e como cada sujeito se relaciona intimamente com a obra de arte; o que ocorre então é que as pessoas "decoram" livros arbitrariamente e passam a repeti-los em solilóquios enquanto caminham zumbificadas.
Não seria mais interessante, por exemplo, se Truffaut explorasse o motivo pelo qual cada um escolheu o livro que escolheu? Ou que pelo menos criasse uma relação entre quem os personagens são e as obras que incorporaram? Em vez disso a assimilação dos livros aparece como um processo mecânico, como se o livro fosse um mero objeto de consumo e não uma expressão d'alma de alguém que conversa, de maneira singular, com outras almas.
O filme apresenta algumas imagens impactantes; ver grandes obras reduzidas às cinzas tem um impacto estético imediato por si só e a cena em que uma senhora opta por queimar-se junto a sua imensa biblioteca revela uma expressividade ausente no resto da produção. Infelizmente, "Fahrenheit" se conclui similar a um folheto, anunciando ideias interessantes, mas jamais conferindo a elas a densidade, poesia e ambiguidade presentes nas grandes obras literárias que tanto reverencia.
"The Last Wave" dá certa continuidade estilística à obra anterior do diretor, "Picnic at Hanging Rock". Ambos os filmes trabalham com a angustia do oculto e se utilizam do além da racionalidade para criar impacto. No entanto, em "The Last Wave", o diretor não encontra recursos narrativos tão eficazes para criar o clima de aflição que encerra sua obra anterior e superior (que assombra muito depois do término de sua projeção).
O longa dispõe de muitos elementos interessantes; para começar, a temática indígena é fascinante; Weir traz ao universo do filme símbolos, estórias e filosofias tribais que invadem inesperadamente o mundo do protagonista, um sujeito pragmático e curioso (Richard Chamberlain em excelente atuação) que, de repente, se vê envolvido na investigação de um crime envolvendo feitiçaria. Há palpável mistério e tensão nos dois primeiros terços do longa e a mise-en-scène do diretor é exímia ao nos imergir em um mundo curioso e singular, mas também progressivamente nocivo. Acompanhamos o personagem principal intimamente, descobrindo junto a ele inesperadas revelações sobre sua própria identidade e como estas impactam seu relacionamento com a família e até seu suposto lugar na sociedade e no mundo.
Há cenas memoráveis: os sonhos de precognição do protagonista, por exemplo, são atmosféricos e perturbadores. O momento mais memorável do longa, no entanto, fica por conta da cena em que o protagonista fica cara a cara com uma espécie de chefe ancião dos indígenas (um sujeito ominoso e cabalístico); fixados um no outro, o chefe, em tom grave e hipnótico, repetidamente pergunta "quem é você?" ao antropólogo; vemos, paulatinamente, o terror tomar conta de sua face enquanto ele percebe, em súbita angustia, a gravidade do conluio que gradativamente o enlaça.
Infelizmente, é no terceiro ato que Peter Weir perde a mão. Justamente antes deste terceiro ato, lembro-me de ter me indagado: "como o diretor conseguirá amarrar de maneira coesa todo o brilhante, mas bizarro desenvolvimento apresentado até então?". E a resposta é que Weir não consegue e parece ter conjecturado um final pelo simples fato do filme "ter" que ter um final, já que este surge como uma apêndice insípida e nebulosa, falhando em dar magnitude ou congruência ao que havia sido cuidadosamente arquitetado até então. Em vez do mistério, fica uma baldada perplexidez.
"E ninguém é eu. Ninguém é você. Esta é a solidão." (Clarice Lispector)
"O Deserto Vermelho" estabelece uma relação potente entre a subjetividade da protagonista Giuliana (interpretada por Monica Vitti) e o mundo que a rodeia. Vagando por um cenário industrial, a personagem surge desde a primeira cena ávida por um contato humano, a ponto de comprar um sanduíche mordido de um alguém qualquer, pelo simples fato de ser um sanduíche de alguém, um sanduíche "vivo", marcado por dente e saliva.
Antonioni filma as indústrias desérticas transformando-as em monumentais paisagens extraterrestres; são estruturas rígidas, geladas e geométricas que parecem dissonar com o interior disforme e movediço da protagonista. Em determinado momento, a moça revela seu encantamento com a abstração das ondas do mar que, similares a ela, não descansam e não se fixam. "Se eu olho demais para o mar, perco o interesse nas coisas da terra", diz ela.
Giuliana procura - vagando à maneira do jornal no qual pisa na rua, ao acaso - um outro que a dê respostas e afeto e parece suspeitar que, um colega de seu marido, possui algo disso. A relação dos dois repetidamente desenha algum esboço, mas parece não atingir nenhuma forma definitiva. Os dois trocam palavras de angústia e sentem que partilham um pouco dos mesmos sofrimentos; no entanto, esta sintonia oscilante, não sustenta Giuliana e, paulatinamente, ela vai se assistindo perder a forma e a função (confrontada por máquinas perfeitas e precisas).
Mãe de um filho pequeno, Giuliana, por um instante, parece encontrar um sentido: o filho adoece (não consegue mexer as pernas) e ela, enlevada pelo sofrimento materno que agora a ocupa de se preocupar com o filho, se veste da função e parece firmar um pouco os pés no chão. Dura pouco, no dia seguinte o filho se cura e ela, revoltada pela "gracinha" do menino, se vê novamente à esmo.
Na cidade industrial, navios colossais atravessam os oceanos quase que invadindo as casas pelas janelas. É como se a terra fosse dos navios e das máquinas e as pessoas não passassem de intrusas que as servem. Em determinada cena, Antonioni sublinha essa impressão - o marido de Giuliana instrui os funcionários de uma fábrica dentro de um grande armazém, dizendo a eles o que devem fazer, para onde devem ir e que estão absolutamente assujeitados às regras da empresa ("só podem ligar para sua esposa uma vez ao mês", ele diz); enquanto a câmera de Antonioni filma os funcionários sendo instruídos, seus rostos enfileirados vão oscilando com imagens de vidraças, metais e outros objetos enfileirados. À maneira do imperativo industrial, sujeitos viram objetos.
Em outra cena interessante, Giuliana narra a seu filho acometido pela paralisação das pernas uma fantasia em forma de estorinha - uma garota mora sozinha em uma ilha paradisíaca de água azul e areia límpida, um pequeno barco misterioso e sem passageiros aparece (como um animal curioso) e, depois de um tempo, vai embora. A garotinha nada plena entre rochas que parecem de carne e escuta uma misterioso cantarolar que, segundo Giuliana, vêm de "tudo". Em sua fantasia, Giuliana e o mundo são um só, ela está identificada às rochas e ao mar e a música que escuta é o mundo uníssono e perfeito; o barco (a máquina), ao contrário do que ocorre em sua realidade, é o estranho e o intruso.
No terceiro ato do longa, a angustia de Giuliana se intensifica e ela parece mais perdida do que nunca. O homem que a prometia alguma compreensão não é capaz de dar a ela mais do que sexo e, após vagar entre imensos navios no porto, ela chega ao real da incomunicabilidade: um estrangeiro desce do navio e fala com ela em língua estrangeira. O encontro dura pouco e ela, indiferente à total ausência de comunicação, desabafa com aquele que, certamente, nada entenderá: "Sou separada. Tudo o que acontece comigo é minha vida". Neste momento, a personagem parece ter aceitado, em algum nível e com alguma resignação, a solidão inerente do ser-humano.
No dia seguinte, Giuliana caminha com o filho e parece mais serena; o garoto questiona a cor amarela da fumaça que emana de uma chaminé da fábrica. A mãe diz que é porque a a fumaça é venenosa; o garoto se preocupa com os passarinhos: "se passarem na fumaça, podem morrer", ele diz. A mãe responde: "Os passarinhos já sabem e não passam mais nela". A conclusão de Giuliana parece transcender aquele momento - ela se vê como passarinho e sugere que tomará cuidado com os perigos de encarar demais o deserto e o vazio, também fatais à pessoa sensível.
"The Stepfather" é um thriller ágil, bem dirigido e sem grandes pretensões. O longa funciona em primeiro lugar graças à excelente atuação de Terry O'Quinn na pele de um psicopata. A compulsão sanguinária do antagonista consiste em se tornar membro de uma típica família americana (casando-se com uma mãe solteira), assassiná-los e, em seguida, mudar de identidade para repetir o ritual alhures.
Desde a primeira cena "The Stepfather" inaugura a brutalidade do protagonista; não se trata de um filme calcado em reviravoltas e ambiguidades, o que importa é como ele nos levará ao inevitável e nefasto fim. A direção firme de Joseph Ruben jamais deixa o longa cair no marasmo, acompanhando as estórias paralelas de maneira ágil e sem deixar que uma sobrepuje a outra.
Se as atrizes que dão vida às protagonistas não são sempre convincentes, nada importa quando Terry O'Quinn entra em cena. Seu arsenal de tiques, balbucias e olhares ora sinistramente desapegados e copistas e ora facínoras compõe um personagem temível a ao mesmo tempo fascinante de se assistir. Ainda que o roteiro não confira uma profundidade excepcional ao protagonista (e nem mesmo é sua intenção), há pequenas cenas interessantes que revelam um pouco de seu passado e de sua bizarra libido, elevando o longa a algo além de um mero "slasher".
Contando com um clímax divertido e tenso, "The Stepfather" é um pequeno clássico do gênero.
"Mute Witness" é um terror eficiente, mas que tropeça demasiadamente no roteiro para que se conclua como um ótimo exemplar do gênero.
O longa gira em torno de uma estudante de artes muda que, após presenciar um assassinato no estúdio onde frequenta, passa a ser perseguida pelos criminosos. A primeira metade do filme é sem dúvidas a mais eficaz; ao focar no jogo de gato e rato entre a protagonista e os vilões, o longa cria bons momentos de tensão nos quais, é claro, a mudez da garota surge como empecilho. Apesar do baixo orçamento, Anthony Waller sabe aproveitar os espaço dos cenários para criar perseguições bem coreografadas e divertidas.
Na segunda metade do roteiro, no entanto, a trama minimalista vai gradualmente se tornando mais tumultuada, envolvendo muitos personagens e estórias paralelas. A tensão criada no primeiro ato vai se esvaindo e o tom sinistro - que até então predominava na produção - cede a momentos de humor que acabam diminuindo seu impacto. Além da mudança brusca de tonalidade, o roteiro começa a apostar em acontecimentos pouco críveis para levar em frente a narrativa quando, na verdade, se houvesse mantido a simplicidade do primeiro ato certamente se tornaria um filme mais cativante.
Há problemas estéticos também - a trilha sonora histriônica parece vinda direto de um filme de terror B dos anos 50 e retira de muitas cenas qualquer potencial de sutileza; é como se o diretor não confiasse o suficiente no roteiro e nos elementos de sua mise-en-scène e quisesse se certificar de que o que está sendo presenciado é "horrível" ou "violento". Além disso, as cenas que exigem dublagem de pós-produção possuem uma artificialidade no áudio que incomoda em certos instantes.
Evocando o similar "Blind Terror" de 1971 (longa no qual uma deficiente visual é perseguida por um assassino), o filme cumpre o objetivo de fazer de uma vítima aparentemente frágil uma improvável heroína, mas peca por não confiar em seus atributos mais fortes (a fragilidade da moça e a brutalidade dos antagonistas) e querer "complicar" uma trama que na verdade só precisava estender seu primeiro ato de maneira criativa.
"Jacob's Ladder" é um filme de terror psicológico que durante a maior parte de sua projeção cria um clima de absoluto desconforto e terror, cuidadosamente construindo um mundo em que fantasia e realidade se alternam e cuja âncora é o personagem Jacob interpretado por Tim Robbins, um veterano da guerra do Vietnã que carrega o trauma de um massacre em combate (no qual ele quase morre) e da morte de um de seus filhos.
Afastado de sua família e agora morando com uma namorada, o protagonista emerge como um sujeito atormentado - ele vê figuras estranhas onde quer que vá, presencia fatos cada vez mais bizarros e paulatinamente começa a duvidar de si mesmo e de todos, sem saber ao certo o que é realidade e o que é fantasia. O quiroprata de Jacob (ótima atuação de Danny Aiello), um dos poucos que o escuta e demonstra afeto, surge como uma figura de apoio, um alívio em meio a grande perturbação vivida pelo protagonista, colocando-o "no lugar" tanto física quanto psicologicamente.
Dirigido com maestria por Adrian Lyne, o longa emprega seus elementos de terror de maneira pontual e marcante, jamais deixando que vejamos demais ou que as aparições macabras presenciadas por Jake tornem-se exageradas e ofusquem a trama. À maneira de clássicos do gênero, como "The Innocents" de 1961 ou "Repulsion" de 1965, os elementos sobrenaturais surgem oblíquos e ao mesmo tempo impiedosos, conjecturando imagens perturbadoras e esteticamente convincentes e que sempre dialogam de alguma maneira com o mundo interno do protagonista. No caso de Jacob, a culpa pelas atrocidades da guerra, a devastação perante a morte prematura do filho e um relacionamento mal resolvido com a ex-esposa formam um tripé de angustia que povoa seu inconsciente.
Um dos motivos pelo qual o longa funciona tão bem está sem dúvidas nas atuações magistrais de todo o elenco, em especial do protagonista Tim Robbins. Há uma cena em que o personagem - deitado em uma banheira - finalmente se dá conta de algo (que não mencionarei o que é para não dar spoilers), em que sua expressão de horror é tão convincente que é impossível não sentir junto a ele seu desolamento. Robbins é brilhante porque confere ao personagem, às vezes através de um simples semblante, um senso de normalidade e um carisma descontraído, atributos que conflitam com os absurdos que começa a presenciar, de modo que sua perda de lucidez e seu confronto com variados horrores pareçam ainda mais dolorosos, já que de pronto nos identificamos com o personagem.
Se o filme é impecável durante a maior parte de sua duração, nos últimos 20 minutos, no entanto, ele dá alguns tropeços. Não entrarei em detalhes da trama, mas o que ocorre é que se até então as alucinações, a realidade e a estória subjetiva de Jacob possuíam uma forte ligação e se complementavam de maneira ambígua e fascinante, nos últimos instantes, novas informações surgem que rompem essa ligação e diminuem o impacto do longa como um todo. É como se o filme pegasse todos os seus elementos cuidadosamente desenvolvidos até então e os jogasse em um mesmo saco - a narrativa é amarrada à força e às pressas, tornando o longa ao mesmo tempo mais simplório e mais nebuloso.
Final questionável à parte, "Jacob's Ladder" é um dos terrores psicológicos mais pungentes de todos os tempos, atingindo momentos de pura agonia e retratando uma subjetividade carcomida pela guerra e pela tragédia de maneira singular e inesquecível.
"Boys From Brazil" é um daqueles filmes que assisti-lo sem saber previamente do que se trata o torna mais envolvente. É uma trama absurda que não esmiuçarei para quem pretende assistir não perder a surpresa, mas que basicamente consiste em um grande plano maléfico prestes a ser executado por um líder nazista e cujo desenrolar começa a ser investigado por um célebre judeu militante.
É um longa dirigido de maneira impecável; Franklin J. Schaffner emprega um ritmo dinâmico e envolvente à produção, deixando o espectador se inteirar paulatinamente da trama quase que concomitantemente ao protagonista interpretado por Laurence Olivier. Aliás, as atuações de Olivier e Gregory Peck são magistrais e é um deleite ver dois gigantes do cinema se antagonizando e imbuindo personagens de peso com tanta personalidade.
Infelizmente, após as grandes revelações sobre o plano maléfico, o longa cai em uma situação absurda demais para ser levado a sério e, em sua conclusão, perde a oportunidade de criar um filme ambíguo e inteligente, confirmando a própria maluquice com seu epílogo desnecessário. O motivo pelo qual a grande conspiração do longa não convence é que pressupõe que a subjetividade do ser-humano se calca exclusivamente no DNA e no ambiente em que ele cresce, algo que leva qualquer um minimamente inteirado em psicologia a franzir o sobrolho, visto que o sujeito é muito mais aquilo que interpreta inconscientemente de suas vivências do que produto direto de um ambiente específico ou de uma pura genética.
Apesar do desvairamento do roteiro (em especial da metade para o final), "Boys From Brazil" é um excelente entretenimento, repleto de boas cenas tensas e impressionantes, personagens interessantes e um verdadeiro espetáculo de atuação por parte de todo elenco.
Crisântemo é uma flor trazida ao japão pelos budistas em 400 d.C. e desde então, devido à beleza e ordem de suas pétalas, tornou-se símbolo do império japonês, evocando a perfeição, a lealdade e a longevidade. "A História do Último Crisântemo", tradução literal do título da obra de Mizoguchi de 1939, retrata um amor trágico entre uma mulher pobre e um jovem abastado filho de um grande ator de teatro. A personagem da jovem se revela praticamente uma beata - ela é a única capaz de ser honesta com o jovem ator, criticando sua atuação (ao passo que os outros o lisonjeiam, mas o maldizem pelas costas) e passa o resto do filme obstinadamente elevando-o e guiando-o, com absoluto altruísmo, rumo a uma carreira de sucesso e ao prestígio familiar, ainda que ele não seja tão bom assim com ela ou mesmo que a família do rapaz não a aceite como digna de ser sua esposa.
A jovem benevolente surge aos olhos do diretor como flor perene; ela perdura frente às injustiças de uma sociedade rígida e tirana e, faça sol ou chuva, mantém firme a devoção e o amor pelo jovem ator. Apesar de Mizoguchi não deixar escancaradamente claro se seu filme é um ode ao aspecto de crisântemo da jovem ou uma crítica a desigualdade da mulher e seu assujeitamento na sociedade japonesa, o longa pende mais à primeira impressão, tornando a conduta ascética da protagonista mola-mestra da narrativa. Há, no entanto, algo a se refletir em relação ao contexto histórico do filme (em particular ao contemplarmos seu título). Seria o longa, ao retratar a morte da moça-crisântemo, um lamento de Mizoguchi diante do militarismo japonês que ganhava cada vez mais vigor no final da década de 30 e impingia toda uma nação a um culto a violência? Estaria Mizoguchi se despendido da inocência, da última flor, ameaçada pelas exorbitantes tensões pré-segunda guerra?
Do ponto de vista narrativo, o filme retrata um romance até aborrecido e que facilmente se tornaria sacarino, no entanto, a direção peculiar de Mizoguchi, que se recusa a melodramatizar a estória, transforma sua câmera em um observador discreto, elaborando planos longos que se recusam a se aproximar demais dos atores; às vezes, sua câmera chega até a se esconder atrás de objetos e muros, colocando os personagens no fundo do plano e conferindo um ar sagrado a sua intimidade. Tais escolhas estéticas somadas a ausência de trilha sonora e a presença marcante de cânticos alhures e do crepitar da natureza conferem a produção uma aura de realismo e dignidade.
Apesar de seu esplendor, não é um filme que particularmente me tocou. O arco dramático é demasiado simples e apesar da estética aguçada, falta dimensão aos personagens e a obra que, no final das contas, não vai muito além de uma elegia a um amor-perfeito.
Um ensaio do mau gosto refinado e brilhante que Peter Jackson atingiria com o clássico "Braindead" alguns anos depois. "Bad Taste" acompanha um grupo de extermínio de aliens enquanto investigam uma invasão a uma pequena cidade do interior da Nova Zelândia. É um roteiro simplório e sem ritmo, mas dirigido com vigor facínora pelo jovem diretor.
Os recursos estilísticos particulares do autor já aparecem aqui, como por exemplo os plongées e contra-plongées "na fuça" dos atores e a decupagem ágil e repleta de diferentes planos. A estética de Jackson em sua fase inicial é quase de um cartoon, ágil e caricata; o seu apreço pelo escatológico se faz presente do começo ao fim e marca diversas cenas grotescas. É um longa de aura amadora, às vezes parece que os atores e a produção estão se divertindo mais que o espectador.
"Bad Taste" talvez funcionaria melhor como um curta; com 90 minutos de projeção, o longa acaba soando, depois de certo tempo, como uma ideia engraçadinha levada longe demais. Em "Braindead", de 1992, Peter Jackson parece ter polido tudo o que experimentou aqui, erigindo personagens com mais personalidade, cenas mistas de horror-comédia impecavelmente dirigidas e uma narrativa mais inteligente e articulada.
Enorme sucesso de bilheteria em 1983, "Laços de Ternura" é um dramalhão novelesco que parece obstinado em empilhar uma desventura sobre outra enquanto seus personagens se descabelam histrionicamente.
Contando com um tempo de duração absolutamente desnecessário, o filme acompanha essencialmente duas personagens, mãe e filha, enquanto a vida as afasta e as une em uma série de circunstâncias. É um roteiro sem tempo para respirar e que abarca uma grande quantidade de fatos sem que, no final das contas, os personagens ganhem muita dimensão. Para um filme cujo lastro é a relação entre mãe e filha, é surpreendente que jamais um diálogo de fato denso ou revelador se desenvolva entre as duas, em vez disso, temos rápidas trocas de farpas e diálogos da sutileza de um elefante; em determinado momento, por exemplo, a filha revela que está grávida durante um jantar e a mãe braveja gigante e purulenta - "Você acha que quero ser avó?".
Debra Winger está competente o suficiente em seu papel e é crível particularmente nas suas cenas mais dramáticas no terceiro ato, no entanto, a atriz pesa um pouco a mão nas cenas descontraídas, insistindo em um cacoete duvidoso de tornar a voz abruptamente fanha. Shirley McLaine, mais caricata que o normal e servida de diálogos inanes, dá uma das atuações menos memoráveis da sua brilhante carreira (apesar de estranhamente ter levado o Oscar de melhor atriz pelo papel). Em determinado momento ela estapeia um garoto com a força de um urso e em outro berra pela injeção da filha em um hospital, mas mesmo com os ocasionais exageros é uma performance de mãe opulenta que não decola nem mesmo rumo ao "camp" de uma Faye Dunaway em "Mommie Dearest".
De trilha sonora melosa e direção pouco inspirada (às vezes a sensação é de que estamos assistindo a uma produção feita para TV), "Laços de Ternura" é um daqueles filmes americanos de drama típicos dos anos 80 em que os sucessivos acontecimentos dramáticos engolem os personagens, cujo destino parece ser definhar em uma maratona de sofrimentos e desgostos, para que no final perversamente pareçam merecedores de amor porque agonizaram por ele.
Há traços do talento de William Friedkin em Jade - a sinuosa cena de abertura que nos desliza pela cena de um crime e uma perseguição tensa envolvendo dois carros pelas ruas de São Francisco são, por exemplo, eficientes. No entanto, o longa decepciona ao falhar como simples exercício de gênero, é um thriller erótico que não empolga nem excita, falhando em atingir as alturas extravagantes de clássicos do gênero como "Basic Instinct" ou "Fatal Attraction".
Apesar de um elenco competente, o filme carece de cenas marcantes ou de personagens interessantes, já que a maioria deles surge tão obviamente como estratagemas do roteiro que logo sucumbem ao estado de caricaturas enfadonhas. Linda Fiorentino é uma atriz interessante e de semblante hermético, mas seu personagem permanece grande parte do longa em tangente e jamais é dada a atriz a chance de modular suas intenções dúbias ou mesmo sua sensualidade - as cenas "eróticas" aliás, são insípidas e genéricas.
O filme começa bem e até mantém algum mistério durante sua primeira metade, mas assim que as cartas começam a cair na mesa ele se torna consideravelmente menos interessante, pois falha em criar tensão entre os personagens, apostando apenas na resolução artificiosa de uma narrativa pouco interessante. Em um nível estético, o longa também decepciona em seu clímax truncado, apostando em uma terrível fotografia azulada para simular a noite.
Não é o pior dos passatempos (o filme tem boas sequências e prende de tempo em tempo), mas é um trabalho inferior na impressionante carreira de William Friedkin e empalidece até mesmo entre os muitos "thrillers eróticos" da época, falhando em erigir um momento icônico sequer.
"The Abyss" segue os passos de Spielberg em "Close Encounters of the Third Kind" e, em muitos aspectos, até o supera. O filme narra a jornada de um grupo de exploradores em uma missão cujo objetivo é explorar um submarino acidentado em um abismo oceânico; lá eles se deparam com ameaças humanas e um mistério sobrenatural.
Em seus dois primeiros atos, "The Abyss" é muito bem sucedido. James Cameron é extremamente hábil em criar tensão - sua decupagem é impecável e, em determinados momentos, sentimos na pele a tensão e o desespero dos personagens. A sua decisão de filmar muitas sessões do filme em baixo d'água (de verdade) causou muita polêmica e mal estar nos bastidores, mas o resultado é de fato impressionante, as cenas convencem e sua estética é deslumbrante. Além disso, as atuações soam críveis e apropriadamente desconsoladas em certos momentos (provável reflexo do sofrimento impingido por Cameron em seus atores, que aliás juraram nunca mais trabalhar com o diretor).
O ponto problemático de "The Abyss" é que ele tenta conciliar muitas perspectivas; é um filme de conflito entre homens bons e homens maus, é uma aventura sobre exploração marítima, é um drama conjugal e, no final das contas, uma lição de moral um tanto sentimental e absurda. Surpreendentemente, o longa dá conta de amarrar todas essas perspectivas, com exceção da última que, ocupando grande parte do terceiro ato, transforma o tom do filme de maneira brusca e o afrouxa em vez de elevá-lo, trazendo um mensagem anti-guerra um tanto pueril e insossa, dissolvendo todo o investimento que tivemos nos personagens e na trama.
"The Abyss" é, no final das contas, uma obra menor na carreira de James Cameron, mas que vale a pena graças a excelentes cenas de tensão, um elenco afiado e, com algumas exceções, excelente composição estética a frente de seu tempo.
Sindicato de Ladrões
4.2 295 Assista AgoraEm "On the Waterfront", Elia Kazan concilia influências do cinema neorrealista italiano - em vigor na década de 50 - com a narrativa de superação típica do cinema americano, apresentando um filme que se mostra comedido e preocupado com questões sociais e que concomitantemente coloca em seu centro a ascensão pessoal do anti-herói Terry Malloy (vivido por Marlon Brando), um trabalhador do porto envolvido em esquemas corruptos de mafiosos e que, paulatinamente, vai adquirindo uma consciência mais apurada de quem é e do mundo em que vive.
Ao contrário da maioria das produções hollywoodianas dá época que se acomodavam na redoma dos estúdios e eram marcadas por certa artificialidade cosmética, Kazan levou seu filme às ruas, enfatizando os aspectos desagradáveis da vida dos trabalhadores, a insalubridade do meio urbano e e a exploração da mão de obra por grupos poderosos e tiranos. Ao mesmo tempo que não romantiza as mazelas de seu universo e não recua frente o desagradável, o filme fomenta em seus personagens um enérgico senso de justiça e resiliência, algo que certamente cativou o público e a crítica americana, levando o filme a ganhar 8 Oscars (de 12 indicações) em 1955 - incluindo melhor filme - e a se tornar um sucesso de bilheteria.
O ponto nevrálgico do filme surge no conflito interno vivenciado pelo personagem de Marlon Brando que, após testemunhar o assassinato de um informante, começa a se angustiar e questionar os métodos ferrenhos do grupo criminoso com o qual compactua. Através de inusitados encontros com personagens-chave como Edie (a irmã do informante morto, vivida de maneira sensível e taciturna por Eve Marie Saint) e o obstinado padre Barry (Karl Maden, excelente), Terry começa a despertar para o significado de suas próprias posturas e o impacto que elas tem no mundo e em sua vida pessoal.
O filme atinge uma densidade admirável, pois o "despertar" de Terry jamais assume caráter didático ou de mensagem moral perfunctória, mas é incorporado de maneira natural à narrativa, afinal, o que o impulsiona não é tanto um altruísmo ético ou uma transformação catequética, mas um incômodo subjetivo que perpassa suas próprias angustias e vivências. Quando, por exemplo, Terry vê seu relacionamento com Edie florescer e de repente sucumbir quando ela descobre que ele estava envolvido no assassinato de seu irmão, o personagem se vê confrontado com as consequências pungentes e palpáveis de suas escolhas e passa a ter de se responsabilizar por elas, caso contrário tudo perderá. Em outra cena importante, Terry percebe, pesaroso, que seu outrora promissor futuro como pugilista fora "vendido" em prol dos interesses do grupo criminoso que forjava sua derrota em batalhas para ganhar dinheiro. O personagem vai progressivamente se "desobjetificando", isto é, reconhecendo seu valor enquanto sujeito dotado de desejos próprios, desejos que, para valerem, exigem que o personagem "traia" este grande outro excruciante que o grupo criminoso representa, ainda que isto ponha em risco sua própria integridade física.
Embasado por um roteiro bem construído e coerente, o longa erige cenas impactantes. O discurso do padre Berry nas docas - em que ele compara o assassinato de delatores pelos criminosos com a crucificação de cristo - evoca uma dignidade ética e memorável. Já a cena em que Edie conversa com Terry enquanto este se encontra dentro da jaula de pombos cria uma metáfora visual interessante, afinal, ela de fato o vê como um animal, imprudente e bronco, mas também desinibido e fascinante. Terry, por sua vez, se vê enlevado pela visão de mundo idealista e virtuosa de Edie. "Não é possível que você acredita nessa bobagem toda!", desdenha ele em determinado momento, mascarando seu óbvio encanto pela moça.
O longa culmina em uma sequência poderosa e tensa envolvendo Terry, os mafiosos e os trabalhadores. O desfecho é político e implica uma redenção do protagonista, mas não é um desfecho absoluto ou necessariamente feliz, já que não o estabelece como um herói jubiloso e glorificado, mas como um homem comum que sangra (por dentro e por fora) e cuja potência - agora despertada - torna um mundo mais justo e um povo menos assujeitado ideais possíveis, ainda que não iminentes.
Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia
4.0 101Repleto de personagens venais e visualmente besuntado de suor e poeira, "Bring Me the Head of Alfredo Garcia" quase consegue ser algo além de um filme violento e meditabundo, estabelecendo no protagonista interpretado por Warren Oates um sujeito amoral, mas sofrido, cuja jornada facínora parece apenas gerar óbitos e desgraças, mas jamais uma recompensa espiritual ou mesmo materialmente satisfatória.
Bem atuado, especialmente por Isela Vega e Warren Oates, o filme cria uma atmosfera de total desolamento enquanto acompanhamos o gringo Beene dirigir pelas estradas mexicanas, ao lado da namorada, atrás de Alfredo Garcia: um sujeito procurado pela máfia e cuja morte vale uma grande quantia de dinheiro, desde que quem o mate apresente evidências. No universo do longa, nada e ninguém parece incapaz de impedir que o crime e o abuso cessem e deem espaço a coisas mais brandas e significativas como relacionamentos amorosos e uma vida profissional decente. É um paradigma impiedoso e Sam Peckinpah parece simultaneamente gozar disso (ele leva seus personagens a uma série de destinos sórdidos e resolve todo impasse com chacinas) e denunciar tal realidade, trazendo a ruína interna de seus personagens e as mazelas sociais como ponto incisivo de sua narrativa.
Utilizando de maneira brilhante seu espaço físico (as locações e os figurantes vibram com autenticidade), o filme parece nunca decidir se quer ser um cinema de entretenimento ao modo dos populares "exploitations" dos anos 70 ou se quer tecer um comentário social aprofundado com personagens complexos. Ele titubeia entre essas duas intenções e, de vez em quanto, até as atinge, mas fracassa em sustentar uma densidade em seu "pathos" ou mesmo uma tensão estética por muito tempo, ironicamente matando qualquer pretensão toda vez que extermina dezenas de seus personagens sem pestanejar.
Anestesiado amiúde pelos muitos rompantes de violência, o filme brilha mesmo quando permite seus personagens sentir alguma coisa em meio a situações absurdas e trágicas como, por exemplo, quando Bennie lamenta a morte de uma pessoa querida empapado de terra na vala de uma cova ou quando, angustiado pela sordidez de sua vida de cão, começa a desabafar com uma cabeça decepada em seu banco de passageiro, tratando-a de igual para igual, afinal ele há tempos também perdera a sua.
Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros
3.9 1,7K Assista Agora“Jurassic Park” é o cinema de entretenimento perfeito e um dos filmes mais icônicos de todos os tempos. É a primeira produção cinematográfica a usar efeitos especiais digitais em grande escala de maneira convincente, mas muito mais do que isso, é um obra conduzida com firmeza e habilidade ímpares por Steven Spielberg no auge de sua carreira.
Um dos motivos pelo qual o filme funciona tão bem é que Spielberg o modula em diversos níveis e todos se convergem de maneira natural e fluida. Há, primeiramente, o aspecto filosófico do livro de Michael Crichton (no qual o longa se baseia) que questiona a responsabilidade ética da ciência ao “brincar de Deus” quando traz os dinossauros de volta à vida. Tal aspecto é personificado no personagem Ian Malcolm – interpretado por Jeff Goldblum - um tipo sestroso, mas genuinamente preocupado com o rumo das experiências genéticas desenvolvidas no parque.
Em outro plano, temos os relacionamentos afetivos dos personagens que são apresentados de maneira sucinta, mas convincente. Os protagonistas paleontólogos Alan Grant e Ellie Sattler - vividos pro Sam Neil e Laura Dern – são pessoas “comuns” e simpáticas que, desde as primeiras cenas, apresentam um rapport natural e uma genuína paixão pelo que fazem, ainda que lhes faltem recursos monetários. O arco dramático de Alan que vai de alguém que detesta crianças para um protetor destemido dos netos de John Hammond é conduzido de maneira sensível, mas jamais pesarosa ou melodramática. Aliás, o personagem John Hammond – intepretado carismaticamente por Richard Attenborough - ao contrário do livro, surge como um sujeito essencialmente benevolente e afável apesar de suas ambições inconsequentes e excêntricas. Seus netos, Alex e Tim – Ariana Richards e Joseph Mazzello – são adoráveis e podem ser vistos, de certa forma, como uma projeção do próprio lado infantil, curioso e “geek” de Steven Spielberg, evidente nesta produção.
E temos, é claro, o lado espetáculo do longa, afinal, Spielberg é um pouco John Hammond e quer encantar e aterrorizar seus espectadores como sempre o fez em sua brilhante carreira. O diretor exibe as atrações do filme – os dinossauros – simultaneamente com parcimônia e arroubo, construindo cada cena de maneira meticulosa e envolvente e sempre usando os efeitos especiais à serviço do filme (e não o contrário como fazem muitos filmes de entretenimento, em especial nos dias de hoje).
Spielberg sabiamente nos coloca no mesmo nível dos protagonistas, isto é, suas primeiras descobertas e experiências com o parque dos dinossauros também se tornam as nossas. Desde o enlevo que os personagens sentem ao ver um braquiossauro pela primeira vez ao terror que experimentam durante o ataque do tiranossauro aos carros de excursão, cada cena incorpora uma estética própria - se a primeira, por exemplo, ocorre em pleno sol, em planos abertos e é acompanhada da majestosa e memorável trilha sonora de John Williams, a segunda se passa à noite, na chuva, em planos mais fechados e conta apenas com sons ambientes (os passos do tiranossauro se aproximando, o metal da cerca sendo retorcido por suas garras, os suspiros de aflição das crianças no carro e etc). Cenas como esta e a dos ataques dos raptores às crianças na cozinha são verdadeiras aulas de tensão, apresentando uma decupagem impecável e conciliando computação gráfica e efeitos práticos de maneira inspirada. Outro recurso curioso de Spielberg é a utilização de objetos triviais para transmitir a sensação de algo terrível se aproximando, sejam estes os copos de água que vibram com a chegada do imponente tiranossauro ou a geleia de Alex que freme na colher enquanto ela percebe a aproximação dos sorrateiros raptores.
“Jurassic Park” é aquele raro caso onde um filme é bem sucedido em todos seus elementos, sem exceções. Os incríveis “animatrônicos” de Steve Winston, os efeitos digitais cuidadosamente forjados pela Industrial Light & Magic, os belíssimos cenários havaianos em que grande parte da ação se passa, o design criativo do parque e de suas variadas instalações, o roteiro elaborado e dinâmico, a trilha sonora épica e contagiante de John Williams, o elenco cativante e afinado, a cornucópia de cenas criativas e icônicas e, é claro, a direção primorosa de Steven Spielberg, fazem do longa uma experiência cinematográfica empolgante, memorável e atemporal.
Operação França
3.9 253 Assista AgoraVencedor de 5 Oscars em 1972 (incluindo melhor filme), "The French Connection" subverteu o cinema policial da época ao despi-lo de romance e de um idealismo ético ao apresentar o conflito polícia-criminoso sob uma ótica da violência enquanto puro dispêndio pulsional. Os personagens não agem por princípios heroicos ou mesmo são impulsionados por razões passionais conscientes (como uma vingança pessoal, por exemplo), mas avançam como locomotivas sem freio, à mercê da própria qualidade destrutiva - inerente ao ser humano.
Gene Hackman, em atuação pujante e afoita, encarna um policial que não conhece os próprios limites e que, paulatinamente, põe tudo e todos em risco em função de sua missão - cujo caráter pressupostamente civil e moral vai adquirindo tons sombrios e coléricos.
William Friedkin elaborou um filme áspero em que tanto o espaço físico quanto os personagens que o habitam são indecorosos, viscerais, purulentos. O diretor explora suas cenas de maneira quase documental, sua câmera fremente não hesita em se aproximar e confrontar seja lá o que ocorre, conferindo a toda produção um clima aflito e realista. As famosas cenas de perseguição são tensas e conduzidas com brutalidade e clareza.
O filme possui, também, um roteiro provocador, que não necessariamente encerra um arco dramático ou assume qualquer viés moralista, deixando - à maneira do cinema de arte europeu, grande influência em Friedkin - pontas soltas e uma sensação de impotência no espectador, que jamais é assegurado de seu bem estar ou de qualquer resolução para o caos que deflagra impiedoso a sua frente. O longa nos nega até mesmo uma catarse e nos abandona desconfortáveis e atônitos, nos lembrando que apenas tentamos ser civilizados e que, assim como na vida real, o cinema às vezes não satisfaz a uma agenda, mas simplesmente nos põe cara a cara com a dureza do inexorável.
O Juízo Final
2.7 20"The Rapture" é um filme ousado e perturbador, cujo tortuoso caminho se revela inesperado e propõe questões difíceis, jamais se acomodando em resoluções reducionistas ou posicionamentos moralistas ao abordar temas pujantes como religião, Deus e morte.
AVISO DE SPOILERS: É difícil falar sobre o filme sem entrar em detalhes da trama e como ela discorre, por isso aviso aos que não assistiram que revelarei pontos cruciais a seguir...
Acompanhamos a trajetória da personagem Sharon - Mimi Rogers em brilhante atuação - uma telefonista promíscua e entediada com sua profissão enfadonha na qual passa a maior parte de seu dia repetindo a mesma frase robótica e sem qualquer possibilidade de real contato humano. Depois do trabalho, ela e seu parceiro (um homem vulgar com quem não parece lograr de qualquer afeto verdadeiro) fazem orgias com casais variados. Angustiada, Sharon começa a escutar, aqui e ali, pessoas falando sobre o "juízo final" e de como testemunham sinais inegáveis de que o grande dia se aproxima - incluindo crianças proféticas e sonhos sobre pérolas flutuantes. Desamparada e cada vez mais insatisfeita com suas tergiversações sexuais, a personagem parece rumo à morte quando, no último instante, "encontra Deus". Seu mundo de fato se transmuta completamente e ela passa a gozar de um amor transcendental.
Sharon abandona seu parceiro (ele ironiza sua fé e debocha de sua repentina mudança) e cria um laço inesperado com um de seus amantes. A princípio cético e racional, ela o convence de sua fé e ele também se torna religioso; uma filha nasce dessa união e seis anos depois os sinais de que o juízo final se aproxima estão mais fortes do que nunca; diante periclitante cenário, Sharon e sua família comungam de uma fé sinistramente rígida e onipotente. Assistimos, perplexos, Sharon gradativamente mais identificada com o discurso cristão e tomando atitudes cada vez mais literais em nome de Deus e do suposto amor que sente por Ele, ignorando até as intervenções de sua melhor amiga, preocupada com as decisões imprudentes de Sharon e de seu progressivo desligamento do mundo. É interessante como, neste ponto do filme, percebemos o fervor religioso de Sharon como um crescente delírio psicótico e prevemos um final trágico para a personagem - do cimo de seu amor fanático (que na falta vê a promessa do tudo) avistamos a fatídica queda da desilusão.
O marido de Sharon falece (assassinado durante um surto de um funcionário louco em sua empresa) e os atos de Sharon vão se tornando mais drásticos e violentos. Após receber um "sinal de Deus" através de visões, Sharon e a filha vão ao deserto onde aguardam a chamada do criador anunciando o paraíso; enquanto isso, ambas passam fome e parecem não se acovardar pela insolação, se mantendo convictas de que o amor de Deus compensará todas as aflições, ainda que os semblantes devastados e os pesadelos desesperadores da filha indiquem uma inevitável ruína. O longa vai progressivamente se assemelhando a um filme de terror onde o "monstro" é o próprio desamparo das protagonistas a mercê de suas convicções delirantes. O filme tensiona fé e sofrimento de maneira pungente e nos deixa aflitos e curiosos, nos questionando para onde o diretor Michael Tolkin conduzirá sua bizarra trama e seus eupáticos personagens. Desolada e como um último apelo, Sharon mata a própria filha com a intenção de enviá-la ao paraíso e, incapaz de se matar, dá tiros em direção ao céu, como que agredindo - em ato de desespero - o Deus impávido e mudo. "Quem vai perdoar Deus?", questiona a personagem.
O filme surpreende em seus desfecho, pois se até então sugere se tratar de um funesto estudo de personagem, de uma deterioração psicótica na qual a fé é o objeto de êxtase e de degradação, ele se revela, de supetão, completamente literal - de fato o juízo final chega. Trompetes bradam, as celas das prisões sucumbem, figuras encapuzadas em cavalos trotam no deserto e uma luz leva Sharon a outra dimensão. E, de repente, o filme se torna alegórico, propondo não apenas um estudo de personagem, mas uma provocação filosófica. Em uma espécie de purgatório, Sharon vê a filha que confirma a existência do paraíso e pede à mãe, em súplica, que ela proclame seu amor por Deus que irá, então, acolhê-la em seu reino. Indignada, Sharon se recusa a ir ao paraíso e a se submeter ao amor tirano de um Deus que a levou a matar a própria filha e a submeteu a regras intransponíveis e perversas. O longa termina com Sharon no vazio, aceitando a existência de Deus, mas não o perdoando.
É um final extremamente corajoso, ainda mais quando consideramos que se trata de uma produção americana. O diretor e também roteirista Tolkin leva Sharon aos extremos em sua jornada e arma um desfecho ambíguo, pois ao mostrar o juízo final concretamente, o filme simultaneamente revela o absurdo da profecia e ao mesmo tempo a torna real e tangível. Aliás, a decisão final de Sharon, de não perdoar Deus, também é enigmática, pois estaria tal decisão herética implicando orgulho ou coragem? Amor próprio ou derradeira dissolução? Aí me lembro do texto "Perdoando Deus" de Clarice Lispector, em que ela diz que o amor não é um cálculo matemático e que somente se ama a Deus verdadeiramente somando as incompreensões, não as compreensões. Caso contrário, de fato corremos o risco de ficarmos como Sharon, ou no limbo da revolta frente um mundo cão (onde ela termina sua jornada) ou, como estivera anteriormente - embalsamada no êxtase pueril do pseudoarauto que finge tudo saber.
Os Rapazes da Banda
4.1 71"The Boys in the Band", peça de Mart Crowley de 1968, ganhou uma versão cinematográfica em 1970 pelas mãos de WIlliam Friedkin. Situado cronologicamente logo após as manifestações de Stonewall (marco da luta pelos direitos LGBT), o longa capta a angustia inerente a uma sociedade que escancaradamente rejeitava e extirpava a homossexualidade e, ao mesmo tempo, estabelece personagens que ultrapassam qualquer rótulo e data ao se revelarem sujeitos complexos de dores e desejos universais.
O longa se passa praticamente em apenas um ambiente - o apartamento do protagonista Michael. Junto a outros amigos ele planeja dar uma festa para um outro amigo em comum, Harold. Em meio aos preparativos uma ligação surpreende Michael, um antigo amigo presumidamente hétero, Alan, liga aos prantos implorando para que tenham uma conversa. Michael o convida para seu apartamento animado e curioso a respeito do significado deste encontro e ao mesmo tempo se vê aflito, pois teme a reação de Alan caso descubra sua homossexualidade ao vê-lo com seus amigos assumidamente gays.
A força do filme está na forma como ele arma uma situação tensa entre todos os personagens envolvidos. Através de trocas sorrateiras de olhares, comentários sinuosos e semblantes consternados, o filme nos enreda com pungente autenticidade no universo daquele grupo de amigos. Conflitos latentes, desejos reprimidos e angustias individuais erigem uma perigosa teia que envolve a todos e faz eclodir uma série de confrontos e revelações.
Um ponto chave do longa é a desilusão do protagonista Michael ao constatar que o viril Alan, por quem nutre uma paixão implícita e ilusória, não só é homofóbico e nega os próprios desejos homossexuais, mas se interessa mais pelo seu amigo do que por ele. Tal constatação deflagra sua crise até então relativamente contida e o joga no abismo - vemos uma transformação abrupta no personagem que se torna gradativamente odioso, perverso e destrutivo, sujeitando seus convidados a um crescente mal estar.
Os diálogos de "The Boys in the Band" são extremamente bem escritos, oscilando entre engraçados, fastidiosos e perspicazes em questão de instantes, conferindo às interações entre os personagens um impressionante dinamismo e autenticidade. O elenco de atores, repetindo seus respectivos papéis na peça, é impecável (sem exceções); Kenneth Nelson e Leonard Frey (como Michael e Harrold), em particular, dominam a cena e criam personagens memoráveis e causticantes. Cliff Gorman, no papel do amigo mais afeminado, nos faz rir e de repente nos comove ao se revelar muito mais vulnerável e romântico do que de antemão. Cada um dos personagens tem seu momento de acrescentar algo ao filme, o conduzindo a caminhos inesperados e frequentemente tocantes.
Se o roteiro é brilhante, é William Friedkin quem o traz à vida de maneira magistral. O diretor não só confere um ritmo rápido à produção, mas através da decupagem elaborada e de uma câmera intrusa e ansiosa cria uma sensação de intimidade que provavelmente jamais fora atingida na peça. O olhar de Friedkin é sensível, pois o diretor torna a narrativa visceral e intimista, evitando habilmente uma estética artificial e presa às raízes teatrais (algo que acontece com frequência em adaptações fílmicas de peças). É interessante, também, como a atmosfera das cenas se alterna de acordo com a gravidade do que acontece - se no começo o filme possui um tom até frívolo enquanto os protagonistas dançam e se divertem com gracinhas, de repente, simultâneo ao agravamento dos conflitos, sons de trovões ecoam ao fundo - um novo momento é anunciado. O ambiente se torna turvo e ameaçador e as tensões se agravam. À maneira da chuva que destrói os bibelôs festivos e confere a outrora agradável festa aspecto de sujeira e caos, os personagens também vão perdendo os adornos e mostrando seu lado "sujo" e sombrio. "Eu queria poder dar uma descarga em tudo isso", desabafa um dos rapazes em determinado momento.
"Boys in the Band" fascina, pois seus personagens não são de forma alguma agradáveis, mas são densos e revelam novas facetas a cada curva sinuosa do roteiro, manifestando-se inesperadamente frágeis, brutos, amáveis e loucos - humanos. O filme se conclui em uma nota catártica e angustiante, quando finalmente as projeções do protagonista caem e ele se vê - fremente - de encontro com o vazio e com o ódio de si (antes direcionado selvagemente aos outros). No entanto, é nesse encontro desolador com o vazio que o filme também se torna esperançoso, ao permitir que o personagem finalmente perca as fachadas e, abraçado com o único amigo que permaneceu, vislumbre um novo caminho, uma nova forma de amar e ser amado.
Morte ao Vivo
3.8 209 Assista Agora"Tesis" é um daqueles raros filmes de suspense - repletos de reviravoltas - que não desrespeitam a inteligência do espectador e nem comprometem sua integridade para chocá-lo ou surpreendê-lo de forma barata. Durante duas horas de projeção, Alejandro Amenábar sustenta um ritmo ágil e confere ao roteiro intrincado uma direção clara e precisa, concebendo engenhosamente um dos maiores suspenses da década de 90.
A estória do longa tem como foco a universitária Ángela, vivida por Ana Torrent, enquanto planeja sua tese sobre "violência no meio audiovisual" e que acaba, inesperadamente, descobrindo o mundo dos "snuffs": filmes de torturas e assassinatos verídicos que são vendidos para o mercado negro. Aliada a um colega de classe fissurado em filmes de horror, ela começa a investigar a morte de uma universitária cuja morte foi gravada em um vídeo e cuja fita foi acidentalmente encontrada em uma sessão secreta da filmoteca da universidade.
"Tesis" é um filme extremamente bem orquestrado. Desde a primeira cena vislumbramos o ponto nevrálgico do filme: o fascínio libidinoso e mortífero pela violência - na cena, acompanhamos Ángela descer do metrô após a notificação de um acidente nos trilhos e, paulatinamente (apesar das recomendações da polícia de que todos se afastem), tentar espiar o corpo mutilado com uma mistura de excitação e medo em seu semblante. O longa estabelece uma relação interessante entre a recatada e misteriosa Ángela e Chema, um rapaz ranzinza e declaradamente fanático por pornografia e filmes de terror, unindo-os afetivamente pelo mesmo fascínio, apesar de ambos lidarem com isso de maneiras diferentes.
O longa funciona, pois é bem sucedido em várias dimensões. Primeiramente, seus personagens são fascinantes e complexos, sempre introduzidos com alguma aura de mistério ou ambiguidade inerente. Com o desenvolver da trama, estes vão se revelando de maneira inesperada e sempre crível, ancorados por ótimas atuações de todo o elenco. É um filme que consegue ser também engraçado e cujo humor jamais soa como um artifício do roteiro, mas como algo que parece surgir espontaneamente de seus personagens, estes críveis e dotados de excentricidades, neuroses, medos e desejos recônditos.
"Tesis" brinca com nossas expectativas de maneira inteligente, revelando o absolutamente necessário para que a trama fique clara e, ao mesmo tempo, misteriosa, um equilibrismo ardiloso e impecavelmente executado. Articulando sexualidade e violência e explorando os limites cabalísticos entre a fantasia da violência e o insuportável do seu ato real, "Tesis" explora, de maneira tensa e envolvente, o perigoso terreno da sexualidade e o fascínio inerente do humano por suas vazões mais extremas e estarrecedoras - não só dos que diretamente aí se implicam, mas também daqueles que apenas de longe observam e gozam.
Memórias
3.3 3"The Neon Bible" é um filme que traz à mesa elementos interessantes, mas que jamais os aproveita como deveria. O longa narra as desventuras de um garoto nos anos 40 em uma pequena cidade sulista americana, explorando sua relação com uma tia glamourosa, uma mãe cada vez mais instável e um pai intratável.
O diretor Terence Davies jamais consegue conferir ritmo ao seu filme e arrasta sequências desinteressantes (como a que envolve uma missa, por exemplo) e falha em desenvolver outras promissoras, consequentemente perdendo foco do mais importante - seus personagens e a relação entre eles. O vínculo do menino com a personagem de Gena Rowlands, por exemplo, é mais explicado do que desenvolvido de maneira fluida dentro da narrativa; a lendária atriz acaba sendo desperdiçada em um papel que promete, mas que jamais engata como deveria - suas cenas são insatisfatoriamente curtas e mal elaboradas.
Utilizando-se praticamente apenas de planos médios ou gerais e de uma câmera estática, Davies confere ao filme uma atmosfera teatral e distante, impedindo que os dramas dos personagens tomem vigor. Os cenários surgem artificiais e, de tempo em tempo, o longa flerta com uma estética surrealista um tanto insossa.
Apesar de algumas cenas incisivas no terceiro ato (a câmera estática do diretor até funciona em momentos mais graves, ao nos obrigar a confrontar certos terrores de maneira direta e pungente), o filme falha em captar a intimidade de seus problemáticos protagonistas. Vemos a mãe do garoto enlouquecer, a personagem de Rowlands exibir seus talentos teatrais e sua irreverência, mas nada ocorre de maneira visceral ou densa; cenas potencialmente interessantes se tornam meros "flashes" e o longa termina sem deixar qualquer impacto.
Alta Tensão
3.5 570Sádico e exuberantemente sangrento, "Haute Tension" ecoa "The Texas Chainsaw Massacre" em boa parte de sua duração, mas infelizmente não atinge sua estridência e impacto graças a alguns tropeços - alguns toleráveis, outros bastante equivocados.
O roteiro, linear e enxuto, acompanha duas amigas que, durante um fim de semana, visitam a casa de família de uma delas e, chegando lá, se deparam com inimagináveis horrores. O diretor Alexandre Aja é talentoso quando o assunto é tensão, agilidade e violência explícita. O longa não enrola e, depois de uma breve introdução aos personagens, já estamos inseridos no universo cruel dos filmes de Aja, onde o imperativo é uma violência física e mutilante que não poupa ninguém.
O ambiente rural, a agressividade pulsante e ríspida e a ausência de "background" dos personagens remete imediatamente a "Texas Chainsaw Massacre", no entanto, o diretor opta por escolhas estéticas que acabam prejudicando sua atmosfera: a fotografia saturadíssima com tons verdes e amarelos (por algum motivo popular no começo dos anos 2000) cria um ambiente artificial e acaba diminuindo o "realismo" do longa - uma fotografia de tons mais neutros e menos "trabalhada" certamente favoreceria sua atmosfera. Em certos momentos, Aja opta por uma eficaz trilha sonora minimalista e dissonante (escutamos o crepitar de metais e sons de interferência estática), no entanto, em outros o diretor aposta em uma estética que beira o "video clipe", utilizando músicas pop não diegéticas, edição frenética e movimentos de câmera estilosos que acabam deslocando o filme do clima angustiante que predomina na produção.
"Haute Tension" diverte com destreza durante sua maior parte, as mortes são criativas e perturbadoras e ao assumirmos o ponto de vista da personagem Marie em - praticamente - tempo real, nos envolvemos na sua trajetória de maneira visceral e apreensiva. O longa, após não ter mais nada a provar, infelizmente dá um grande tropeço em seu clímax. Não entrarei em detalhes, mas há uma reviravolta severa que surge de maneira abrupta e forçada, não só diminuindo o impacto de tudo que ocorrera até então, mas também desrespeitando a inteligência do espectador, já que insere um elemento tão destoante do resto da narrativa que parece até que estamos, de supetão, assistindo a um outro filme. Em vez da sensação de surpresa provavelmente almejada por Aja, fica o aborrecimento pelo filme não ter tido a coragem de permanecer simples e eficaz como havia habilmente se mostrado até então.
O Ano Passado em Marienbad
4.2 156 Assista Agora"L'Année Dernière à Marienbad" é o avô dos comerciais de perfume. Praticamente qualquer frame do longa é uma imagem cosmética atraente (há belíssimos figurinos, turnês arquitetônicas e paisagens majestosas). No entanto, se os comerciais de 15 segundos divertem pelo "nonsense" e logo desvanecem, este desfile de poses e afetações estilísticas de 90 minutos, mais do que tudo, aborrece.
Os elementos cinematográficos presentes em "L'Année Dernière à Marienbad" são comumente associados ao cinema de arte - a narrativa é esparsa e sem ordem cronológica, o sentido de ações e diálogos não são explicados ou desenvolvidos de maneira linear e sua estética - inesperadamente - se metamorfoseia em algo inusitado (em certo momento, por exemplo, os personagens congelam por instantes como estátuas). Tais elementos estão associados ao cinema de arte, mas não é porque estão associados a ele que isto os torna meros ingredientes e que sua utilização de forma desvairada e arbitrária confeccionará um bolo saboroso.
"L'Année Dernière à Marienbad", apesar de visualmente intrigante, jamais articula seus elementos estéticos a seu favor, até porque o longa parece completamente alheio a suas próprias intenções. O que o filme quer ser, afinal? Um retrato insuportavelmente obtuso sobre desencontro e solidão? Um mero experimento plástico? Uma desconstrução da linguagem cinematográfica? A verdade é que faço essas perguntas por pura educação, já que depois de meia hora de projeção conclui que não me importava.
A incompetência de "L'Année Dernière à Marienbad" não está na sua linguagem inusitada, afinal, quantos filmes nos surpreendem esteticamente e, se a princípio nos confundem, logo em seguida - em um golpe de mestre - nos acertam em cheio n'alma? O equívoco de longa está em não nos oferecer uma âncora qualquer que nos situe em seu universo. É uma obra sem gravidade, sem sentimento (apesar das grandes afetações de olhares e gestos). Sabemos da obsessão do consternado homem pela misteriosa dama, mas tal obsessão nunca encontra uma origem, uma resposta ou qualquer densidade. O próprio protagonista surge de maneira obnubilada (nunca entendemos quem ele é) e jamais nos é dado acesso a sequer lampejos de lucidez e coerência; enquanto isso, cenas vagas e repetitivas infinitamente se acumulam.
No final das contas, apesar do esplendor visual, os personagens de "L'Année Dernière à Marienbad" e seus conflitos se revelam gradativamente opacos e vápidos e, quanto mais o filme prossegue, mais fica claro que não há nada de consistente sendo construído, discutido ou metaforizado; resta apenas uma vaidade estilística à maneira da personagem de Delphine Seyrig - nebulosa, pomposa e esmaltada.
Dormindo Com o Inimigo
3.4 303 Assista Agora"Sleeping with the Enemy" é um thriller linear, bem atuado e envolvente, mas que, no final das contas, não apresenta nenhuma grande cena ou idiossincrasia que o torne memorável.
Julia Roberts interpreta uma jovem que, após anos vivendo com um marido abusivo em uma mansão à beira da praia, consegue finalmente escapar - forjando um suicídio - e começar uma nova vida em uma cidadezinha próxima. O marido descobre, é claro, e a procura para acertar as contas.
O longa conta com personagens extremamente unidimensionais - o novo caso amoroso da protagonista é um jovem bonito, gentil e compreensivo e sua mãe idosa, mesmo tendo sido abandonada por 6 meses pela moça sob a tirania do marido, se mostra estarrecedoramente compreensiva e angelical quando finalmente se encontram. O vilão, em grande contraste, é um homem descompensado e delirantemente possessivo, de olhos arregalados e sanguinários e cumpre apenas uma função no filme - ameaçar a vida da frágil protagonista que finalmente parece ter encontrado alguma paz.
O diretor Joseph Ruben é competente e sua decupagem, em especial no clímax, cria admirável tensão. O que impede "Sleeping With the Enemy" de se tornar um clássico do gênero é a falta de identidade do roteiro, que estabelece uma narrativa minimamente competente, mas jamais memorável. O arco dramático e o percurso até o clímax são demasiadamente simplórios e, apesar de nos envolver, o longa jamais vai longe o suficiente ou mesmo cumpre o terror que promete ao erigir como vilão um sujeito tão inescrupuloso e violento.
Lobo
3.2 157 Assista Agora"Wolf" é um filme anômalo na carreira de Mike Nichols, cujos projetos geralmente abordam relacionamentos íntimos e angustiantes em um contexto ordinário. Aqui, o diretor forja uma espécie de fábula moderna romântica com nuances de terror. Não se trata de um filme dramático de personagens profundíssimos ou de um terror visceral com cenas bombásticas. Nichols mantém o longa (salvo o clímax Grand-Guinol) em um "meio do caminho", isto é, o diretor titubeia entre gêneros e cria um filme singular, focando na transformação da vida afetiva e social do protagonista (interpretado por Jack Nicholson) após este ter sido mordido por um lobo e começar a experienciar estranhas mudanças físicas e mentais.
Apesar de menos violento e atemorizante que a maioria dos filmes abordando lobisomens, "Wolf" não dispensa as convenções do gênero e é, em sua maior parte, um filme previsível. Sua previsibilidade, no entanto, não prejudica sua eficácia, visto que Nichols decide tornar cerne do filme o relacionamento de Jack Nicholson com as pessoas ao seu redor, em especial com a filha de seu chefe (Michelle Pfeiffer), com quem desenvolve um romance.
Acompanhamos o cotidiano do protagonista enquanto suas novas características animalescas o conferem uma vitalidade e coragem antes ausentes em suas relações, mas ao mesmo tempo o tornam gradativamente perigoso e isolado do mundo. Nichols é bem sucedido ao traçar um paralelo entre as selvagerias presentes nas relações profissionais com a selvageria literal do homem-lobo, cujas características acabam - ironicamente - adaptando o personagem de Jack Nicholson ao mundo dos négocios, lugar no qual - antes da transformação - ele era devorado pelos lobos (sejam estes na forma do chefe ou do inescrupuloso e escorregadio colega de trabalho).
"Wolf" se torna um entretenimento agradável em grande parte por causa de bons diálogos (alguns de autoria da subestimada Elaine May, que participou do roteiro em anonimato) e das carismáticas atuações dos protagonistas. Jack e Nicholson e Michelle Pfeiffer apresentam palpável química e Mike Nichols habilmente mantém uma atmosfera eufônica pontuada por momentos de tensão, conjecturando uma comédia romântica que, ao ser temperada por elementos sobrenaturais e sinistros, se torna mais atraente e diferente de tantas outras.
Fahrenheit 451
4.2 419O primeiro filme em cores de Truffaut (e seu único americano) é uma de suas obras mais equivocadas, reunindo suas piores tendências sentimentais e falhando em explorar temáticas interessantes, como o papel da arte e a tensão subjetividade-autoritarismo, de maneira profunda.
Situado em uma distopia em que livros são proibidos e queimados quando encontrados, o longa estabelece desde o começo relações simplistas entre os personagens, estabelecendo os "nazistas dos livros" como personagens parvos e caricatos, com exceção do protagonista Montag que, após breve diálogo com a professora interpretada por Julie Christie, já inicia sua transmutação de bruto a sensível.
O filme possui uma mensagem política sincera (ainda que pueril), criticando o totalitarismo, a ignorância militar e o massacre da sensibilidade por governos que, repetidamente na história, exploram e subjugam povos em nome do dinheiro e do poder e cujo depauperamento ao menos alimenta a arte, pungente e memorável especialmente em tempos sombrios . Se a mensagem é clara, a execução de Truffaut é banal, desde a fotografia fosca mais digna de um sitcom meloso aos designs de set risíveis (o futuro é puro kitsch sessentista), nada convence. Os efeitos especiais são vergonhosos e a decupagem do diretor, geralmente ágil e criativa, aparece convencional e morosa.
Julie Christie, uma das atrizes mais carismáticas de sua época, aparece no longa sob um verniz de deboche e incomumente apática, como que descrente da produção. Aliás, a escolha do diretor de colocar Christie em um papel duplo - ela vive duas personagens de personalidade opostas - não passa de uma mera surpresa inicial, visto que o recurso se revela vazio e mera firula pseudoartística.
O grande problema de "Fahrenheit 451" está na sua incapacidade em desenvolver elementos potencialmente criativos; em determinado momento, por exemplo, o filme revela a existência do "povo do livro" - pessoas que, para imortalizar o legado da literatura, escolhem, cada um, uma obra literária para "decorar", de modo que mesmo que os livros sejam queimados e destruídos, continuariam vivos em quem leu. É uma ideia fascinante, mas que acaba mal aproveitada, visto que o longa falha em explorar o efeito do livro no leitor e como cada sujeito se relaciona intimamente com a obra de arte; o que ocorre então é que as pessoas "decoram" livros arbitrariamente e passam a repeti-los em solilóquios enquanto caminham zumbificadas.
Não seria mais interessante, por exemplo, se Truffaut explorasse o motivo pelo qual cada um escolheu o livro que escolheu? Ou que pelo menos criasse uma relação entre quem os personagens são e as obras que incorporaram? Em vez disso a assimilação dos livros aparece como um processo mecânico, como se o livro fosse um mero objeto de consumo e não uma expressão d'alma de alguém que conversa, de maneira singular, com outras almas.
O filme apresenta algumas imagens impactantes; ver grandes obras reduzidas às cinzas tem um impacto estético imediato por si só e a cena em que uma senhora opta por queimar-se junto a sua imensa biblioteca revela uma expressividade ausente no resto da produção. Infelizmente, "Fahrenheit" se conclui similar a um folheto, anunciando ideias interessantes, mas jamais conferindo a elas a densidade, poesia e ambiguidade presentes nas grandes obras literárias que tanto reverencia.
A Última Onda
3.3 21"The Last Wave" dá certa continuidade estilística à obra anterior do diretor, "Picnic at Hanging Rock". Ambos os filmes trabalham com a angustia do oculto e se utilizam do além da racionalidade para criar impacto. No entanto, em "The Last Wave", o diretor não encontra recursos narrativos tão eficazes para criar o clima de aflição que encerra sua obra anterior e superior (que assombra muito depois do término de sua projeção).
O longa dispõe de muitos elementos interessantes; para começar, a temática indígena é fascinante; Weir traz ao universo do filme símbolos, estórias e filosofias tribais que invadem inesperadamente o mundo do protagonista, um sujeito pragmático e curioso (Richard Chamberlain em excelente atuação) que, de repente, se vê envolvido na investigação de um crime envolvendo feitiçaria. Há palpável mistério e tensão nos dois primeiros terços do longa e a mise-en-scène do diretor é exímia ao nos imergir em um mundo curioso e singular, mas também progressivamente nocivo. Acompanhamos o personagem principal intimamente, descobrindo junto a ele inesperadas revelações sobre sua própria identidade e como estas impactam seu relacionamento com a família e até seu suposto lugar na sociedade e no mundo.
Há cenas memoráveis: os sonhos de precognição do protagonista, por exemplo, são
atmosféricos e perturbadores. O momento mais memorável do longa, no entanto, fica por conta da cena em que o protagonista fica cara a cara com uma espécie de chefe ancião dos indígenas (um sujeito ominoso e cabalístico); fixados um no outro, o chefe, em tom grave e hipnótico, repetidamente pergunta "quem é você?" ao antropólogo; vemos, paulatinamente, o terror tomar conta de sua face enquanto ele percebe, em súbita angustia, a gravidade do conluio que gradativamente o enlaça.
Infelizmente, é no terceiro ato que Peter Weir perde a mão. Justamente antes deste terceiro ato, lembro-me de ter me indagado: "como o diretor conseguirá amarrar de maneira coesa todo o brilhante, mas bizarro desenvolvimento apresentado até então?". E a resposta é que Weir não consegue e parece ter conjecturado um final pelo simples fato do filme "ter" que ter um final, já que este surge como uma apêndice insípida e nebulosa, falhando em dar magnitude ou congruência ao que havia sido cuidadosamente arquitetado até então. Em vez do mistério, fica uma baldada perplexidez.
O Deserto Vermelho
4.0 95"E ninguém é eu. Ninguém é você. Esta é a solidão." (Clarice Lispector)
"O Deserto Vermelho" estabelece uma relação potente entre a subjetividade da protagonista Giuliana (interpretada por Monica Vitti) e o mundo que a rodeia. Vagando por um cenário industrial, a personagem surge desde a primeira cena ávida por um contato humano, a ponto de comprar um sanduíche mordido de um alguém qualquer, pelo simples fato de ser um sanduíche de alguém, um sanduíche "vivo", marcado por dente e saliva.
Antonioni filma as indústrias desérticas transformando-as em monumentais paisagens extraterrestres; são estruturas rígidas, geladas e geométricas que parecem dissonar com o interior disforme e movediço da protagonista. Em determinado momento, a moça revela seu encantamento com a abstração das ondas do mar que, similares a ela, não descansam e não se fixam. "Se eu olho demais para o mar, perco o interesse nas coisas da terra", diz ela.
Giuliana procura - vagando à maneira do jornal no qual pisa na rua, ao acaso - um outro que a dê respostas e afeto e parece suspeitar que, um colega de seu marido, possui algo disso. A relação dos dois repetidamente desenha algum esboço, mas parece não atingir nenhuma forma definitiva. Os dois trocam palavras de angústia e sentem que partilham um pouco dos mesmos sofrimentos; no entanto, esta sintonia oscilante, não sustenta Giuliana e, paulatinamente, ela vai se assistindo perder a forma e a função (confrontada por máquinas perfeitas e precisas).
Mãe de um filho pequeno, Giuliana, por um instante, parece encontrar um sentido: o filho adoece (não consegue mexer as pernas) e ela, enlevada pelo sofrimento materno que agora a ocupa de se preocupar com o filho, se veste da função e parece firmar um pouco os pés no chão. Dura pouco, no dia seguinte o filho se cura e ela, revoltada pela "gracinha" do menino, se vê novamente à esmo.
Na cidade industrial, navios colossais atravessam os oceanos quase que invadindo as casas pelas janelas. É como se a terra fosse dos navios e das máquinas e as pessoas não passassem de intrusas que as servem. Em determinada cena, Antonioni sublinha essa impressão - o marido de Giuliana instrui os funcionários de uma fábrica dentro de um grande armazém, dizendo a eles o que devem fazer, para onde devem ir e que estão absolutamente assujeitados às regras da empresa ("só podem ligar para sua esposa uma vez ao mês", ele diz); enquanto a câmera de Antonioni filma os funcionários sendo instruídos, seus rostos enfileirados vão oscilando com imagens de vidraças, metais e outros objetos enfileirados. À maneira do imperativo industrial, sujeitos viram objetos.
Em outra cena interessante, Giuliana narra a seu filho acometido pela paralisação das pernas uma fantasia em forma de estorinha - uma garota mora sozinha em uma ilha paradisíaca de água azul e areia límpida, um pequeno barco misterioso e sem passageiros aparece (como um animal curioso) e, depois de um tempo, vai embora. A garotinha nada plena entre rochas que parecem de carne e escuta uma misterioso cantarolar que, segundo Giuliana, vêm de "tudo". Em sua fantasia, Giuliana e o mundo são um só, ela está identificada às rochas e ao mar e a música que escuta é o mundo uníssono e perfeito; o barco (a máquina), ao contrário do que ocorre em sua realidade, é o estranho e o intruso.
No terceiro ato do longa, a angustia de Giuliana se intensifica e ela parece mais perdida do que nunca. O homem que a prometia alguma compreensão não é capaz de dar a ela mais do que sexo e, após vagar entre imensos navios no porto, ela chega ao real da incomunicabilidade: um estrangeiro desce do navio e fala com ela em língua estrangeira. O encontro dura pouco e ela, indiferente à total ausência de comunicação, desabafa com aquele que, certamente, nada entenderá: "Sou separada. Tudo o que acontece comigo é minha vida". Neste momento, a personagem parece ter aceitado, em algum nível e com alguma resignação, a solidão inerente do ser-humano.
No dia seguinte, Giuliana caminha com o filho e parece mais serena; o garoto questiona a cor amarela da fumaça que emana de uma chaminé da fábrica. A mãe diz que é porque a a fumaça é venenosa; o garoto se preocupa com os passarinhos: "se passarem na fumaça, podem morrer", ele diz. A mãe responde: "Os passarinhos já sabem e não passam mais nela". A conclusão de Giuliana parece transcender aquele momento - ela se vê como passarinho e sugere que tomará cuidado com os perigos de encarar demais o deserto e o vazio, também fatais à pessoa sensível.
O Padrasto
3.4 84 Assista Agora"The Stepfather" é um thriller ágil, bem dirigido e sem grandes pretensões. O longa funciona em primeiro lugar graças à excelente atuação de Terry O'Quinn na pele de um psicopata. A compulsão sanguinária do antagonista consiste em se tornar membro de uma típica família americana (casando-se com uma mãe solteira), assassiná-los e, em seguida, mudar de identidade para repetir o ritual alhures.
Desde a primeira cena "The Stepfather" inaugura a brutalidade do protagonista; não se trata de um filme calcado em reviravoltas e ambiguidades, o que importa é como ele nos levará ao inevitável e nefasto fim. A direção firme de Joseph Ruben jamais deixa o longa cair no marasmo, acompanhando as estórias paralelas de maneira ágil e sem deixar que uma sobrepuje a outra.
Se as atrizes que dão vida às protagonistas não são sempre convincentes, nada importa quando Terry O'Quinn entra em cena. Seu arsenal de tiques, balbucias e olhares ora sinistramente desapegados e copistas e ora facínoras compõe um personagem temível a ao mesmo tempo fascinante de se assistir. Ainda que o roteiro não confira uma profundidade excepcional ao protagonista (e nem mesmo é sua intenção), há pequenas cenas interessantes que revelam um pouco de seu passado e de sua bizarra libido, elevando o longa a algo além de um mero "slasher".
Contando com um clímax divertido e tenso, "The Stepfather" é um pequeno clássico do gênero.
Testemunha Muda
3.5 47"Mute Witness" é um terror eficiente, mas que tropeça demasiadamente no roteiro para que se conclua como um ótimo exemplar do gênero.
O longa gira em torno de uma estudante de artes muda que, após presenciar um assassinato no estúdio onde frequenta, passa a ser perseguida pelos criminosos. A primeira metade do filme é sem dúvidas a mais eficaz; ao focar no jogo de gato e rato entre a protagonista e os vilões, o longa cria bons momentos de tensão nos quais, é claro, a mudez da garota surge como empecilho. Apesar do baixo orçamento, Anthony Waller sabe aproveitar os espaço dos cenários para criar perseguições bem coreografadas e divertidas.
Na segunda metade do roteiro, no entanto, a trama minimalista vai gradualmente se tornando mais tumultuada, envolvendo muitos personagens e estórias paralelas. A tensão criada no primeiro ato vai se esvaindo e o tom sinistro - que até então predominava na produção - cede a momentos de humor que acabam diminuindo seu impacto. Além da mudança brusca de tonalidade, o roteiro começa a apostar em acontecimentos pouco críveis para levar em frente a narrativa quando, na verdade, se houvesse mantido a simplicidade do primeiro ato certamente se tornaria um filme mais cativante.
Há problemas estéticos também - a trilha sonora histriônica parece vinda direto de um filme de terror B dos anos 50 e retira de muitas cenas qualquer potencial de sutileza; é como se o diretor não confiasse o suficiente no roteiro e nos elementos de sua mise-en-scène e quisesse se certificar de que o que está sendo presenciado é "horrível" ou "violento". Além disso, as cenas que exigem dublagem de pós-produção possuem uma artificialidade no áudio que incomoda em certos instantes.
Evocando o similar "Blind Terror" de 1971 (longa no qual uma deficiente visual é perseguida por um assassino), o filme cumpre o objetivo de fazer de uma vítima aparentemente frágil uma improvável heroína, mas peca por não confiar em seus atributos mais fortes (a fragilidade da moça e a brutalidade dos antagonistas) e querer "complicar" uma trama que na verdade só precisava estender seu primeiro ato de maneira criativa.
Alucinações do Passado
3.9 257"Jacob's Ladder" é um filme de terror psicológico que durante a maior parte de sua projeção cria um clima de absoluto desconforto e terror, cuidadosamente construindo um mundo em que fantasia e realidade se alternam e cuja âncora é o personagem Jacob interpretado por Tim Robbins, um veterano da guerra do Vietnã que carrega o trauma de um massacre em combate (no qual ele quase morre) e da morte de um de seus filhos.
Afastado de sua família e agora morando com uma namorada, o protagonista emerge como um sujeito atormentado - ele vê figuras estranhas onde quer que vá, presencia fatos cada vez mais bizarros e paulatinamente começa a duvidar de si mesmo e de todos, sem saber ao certo o que é realidade e o que é fantasia. O quiroprata de Jacob (ótima atuação de Danny Aiello), um dos poucos que o escuta e demonstra afeto, surge como uma figura de apoio, um alívio em meio a grande perturbação vivida pelo protagonista, colocando-o "no lugar" tanto física quanto psicologicamente.
Dirigido com maestria por Adrian Lyne, o longa emprega seus elementos de terror de maneira pontual e marcante, jamais deixando que vejamos demais ou que as aparições macabras presenciadas por Jake tornem-se exageradas e ofusquem a trama. À maneira de clássicos do gênero, como "The Innocents" de 1961 ou "Repulsion" de 1965, os elementos sobrenaturais surgem oblíquos e ao mesmo tempo impiedosos, conjecturando imagens perturbadoras e esteticamente convincentes e que sempre dialogam de alguma maneira com o mundo interno do protagonista. No caso de Jacob, a culpa pelas atrocidades da guerra, a devastação perante a morte prematura do filho e um relacionamento mal resolvido com a ex-esposa formam um tripé de angustia que povoa seu inconsciente.
Um dos motivos pelo qual o longa funciona tão bem está sem dúvidas nas atuações magistrais de todo o elenco, em especial do protagonista Tim Robbins. Há uma cena em que o personagem - deitado em uma banheira - finalmente se dá conta de algo (que não mencionarei o que é para não dar spoilers), em que sua expressão de horror é tão convincente que é impossível não sentir junto a ele seu desolamento. Robbins é brilhante porque confere ao personagem, às vezes através de um simples semblante, um senso de normalidade e um carisma descontraído, atributos que conflitam com os absurdos que começa a presenciar, de modo que sua perda de lucidez e seu confronto com variados horrores pareçam ainda mais dolorosos, já que de pronto nos identificamos com o personagem.
Se o filme é impecável durante a maior parte de sua duração, nos últimos 20 minutos, no entanto, ele dá alguns tropeços. Não entrarei em detalhes da trama, mas o que ocorre é que se até então as alucinações, a realidade e a estória subjetiva de Jacob possuíam uma forte ligação e se complementavam de maneira ambígua e fascinante, nos últimos instantes, novas informações surgem que rompem essa ligação e diminuem o impacto do longa como um todo. É como se o filme pegasse todos os seus elementos cuidadosamente desenvolvidos até então e os jogasse em um mesmo saco - a narrativa é amarrada à força e às pressas, tornando o longa ao mesmo tempo mais simplório e mais nebuloso.
Final questionável à parte, "Jacob's Ladder" é um dos terrores psicológicos mais pungentes de todos os tempos, atingindo momentos de pura agonia e retratando uma subjetividade carcomida pela guerra e pela tragédia de maneira singular e inesquecível.
Os Meninos do Brasil
3.6 70 Assista Agora"Boys From Brazil" é um daqueles filmes que assisti-lo sem saber previamente do que se trata o torna mais envolvente. É uma trama absurda que não esmiuçarei para quem pretende assistir não perder a surpresa, mas que basicamente consiste em um grande plano maléfico prestes a ser executado por um líder nazista e cujo desenrolar começa a ser investigado por um célebre judeu militante.
É um longa dirigido de maneira impecável; Franklin J. Schaffner emprega um ritmo dinâmico e envolvente à produção, deixando o espectador se inteirar paulatinamente da trama quase que concomitantemente ao protagonista interpretado por Laurence Olivier. Aliás, as atuações de Olivier e Gregory Peck são magistrais e é um deleite ver dois gigantes do cinema se antagonizando e imbuindo personagens de peso com tanta personalidade.
Infelizmente, após as grandes revelações sobre o plano maléfico, o longa cai em uma situação absurda demais para ser levado a sério e, em sua conclusão, perde a oportunidade de criar um filme ambíguo e inteligente, confirmando a própria maluquice com seu epílogo desnecessário. O motivo pelo qual a grande conspiração do longa não convence é que pressupõe que a subjetividade do ser-humano se calca exclusivamente no DNA e no ambiente em que ele cresce, algo que leva qualquer um minimamente inteirado em psicologia a franzir o sobrolho, visto que o sujeito é muito mais aquilo que interpreta inconscientemente de suas vivências do que produto direto de um ambiente específico ou de uma pura genética.
Apesar do desvairamento do roteiro (em especial da metade para o final), "Boys From Brazil" é um excelente entretenimento, repleto de boas cenas tensas e impressionantes, personagens interessantes e um verdadeiro espetáculo de atuação por parte de todo elenco.
Crisântemos Tardios
4.1 25 Assista AgoraCrisântemo é uma flor trazida ao japão pelos budistas em 400 d.C. e desde então, devido à beleza e ordem de suas pétalas, tornou-se símbolo do império japonês, evocando a perfeição, a lealdade e a longevidade. "A História do Último Crisântemo", tradução literal do título da obra de Mizoguchi de 1939, retrata um amor trágico entre uma mulher pobre e um jovem abastado filho de um grande ator de teatro. A personagem da jovem se revela praticamente uma beata - ela é a única capaz de ser honesta com o jovem ator, criticando sua atuação (ao passo que os outros o lisonjeiam, mas o maldizem pelas costas) e passa o resto do filme obstinadamente elevando-o e guiando-o, com absoluto altruísmo, rumo a uma carreira de sucesso e ao prestígio familiar, ainda que ele não seja tão bom assim com ela ou mesmo que a família do rapaz não a aceite como digna de ser sua esposa.
A jovem benevolente surge aos olhos do diretor como flor perene; ela perdura frente às injustiças de uma sociedade rígida e tirana e, faça sol ou chuva, mantém firme a devoção e o amor pelo jovem ator. Apesar de Mizoguchi não deixar escancaradamente claro se seu filme é um ode ao aspecto de crisântemo da jovem ou uma crítica a desigualdade da mulher e seu assujeitamento na sociedade japonesa, o longa pende mais à primeira impressão, tornando a conduta ascética da protagonista mola-mestra da narrativa. Há, no entanto, algo a se refletir em relação ao contexto histórico do filme (em particular ao contemplarmos seu título). Seria o longa, ao retratar a morte da moça-crisântemo, um lamento de Mizoguchi diante do militarismo japonês que ganhava cada vez mais vigor no final da década de 30 e impingia toda uma nação a um culto a violência? Estaria Mizoguchi se despendido da inocência, da última flor, ameaçada pelas exorbitantes tensões pré-segunda guerra?
Do ponto de vista narrativo, o filme retrata um romance até aborrecido e que facilmente se tornaria sacarino, no entanto, a direção peculiar de Mizoguchi, que se recusa a melodramatizar a estória, transforma sua câmera em um observador discreto, elaborando planos longos que se recusam a se aproximar demais dos atores; às vezes, sua câmera chega até a se esconder atrás de objetos e muros, colocando os personagens no fundo do plano e conferindo um ar sagrado a sua intimidade. Tais escolhas estéticas somadas a ausência de trilha sonora e a presença marcante de cânticos alhures e do crepitar da natureza conferem a produção uma aura de realismo e dignidade.
Apesar de seu esplendor, não é um filme que particularmente me tocou. O arco dramático é demasiado simples e apesar da estética aguçada, falta dimensão aos personagens e a obra que, no final das contas, não vai muito além de uma elegia a um amor-perfeito.
Trash: Náusea Total
3.6 242 Assista AgoraUm ensaio do mau gosto refinado e brilhante que Peter Jackson atingiria com o clássico "Braindead" alguns anos depois. "Bad Taste" acompanha um grupo de extermínio de aliens enquanto investigam uma invasão a uma pequena cidade do interior da Nova Zelândia. É um roteiro simplório e sem ritmo, mas dirigido com vigor facínora pelo jovem diretor.
Os recursos estilísticos particulares do autor já aparecem aqui, como por exemplo os plongées e contra-plongées "na fuça" dos atores e a decupagem ágil e repleta de diferentes planos. A estética de Jackson em sua fase inicial é quase de um cartoon, ágil e caricata; o seu apreço pelo escatológico se faz presente do começo ao fim e marca diversas cenas grotescas. É um longa de aura amadora, às vezes parece que os atores e a produção estão se divertindo mais que o espectador.
"Bad Taste" talvez funcionaria melhor como um curta; com 90 minutos de projeção, o longa acaba soando, depois de certo tempo, como uma ideia engraçadinha levada longe demais. Em "Braindead", de 1992, Peter Jackson parece ter polido tudo o que experimentou aqui, erigindo personagens com mais personalidade, cenas mistas de horror-comédia impecavelmente dirigidas e uma narrativa mais inteligente e articulada.
Laços de Ternura
3.9 247 Assista AgoraEnorme sucesso de bilheteria em 1983, "Laços de Ternura" é um dramalhão novelesco que parece obstinado em empilhar uma desventura sobre outra enquanto seus personagens se descabelam histrionicamente.
Contando com um tempo de duração absolutamente desnecessário, o filme acompanha essencialmente duas personagens, mãe e filha, enquanto a vida as afasta e as une em uma série de circunstâncias. É um roteiro sem tempo para respirar e que abarca uma grande quantidade de fatos sem que, no final das contas, os personagens ganhem muita dimensão. Para um filme cujo lastro é a relação entre mãe e filha, é surpreendente que jamais um diálogo de fato denso ou revelador se desenvolva entre as duas, em vez disso, temos rápidas trocas de farpas e diálogos da sutileza de um elefante; em determinado momento, por exemplo, a filha revela que está grávida durante um jantar e a mãe braveja gigante e purulenta - "Você acha que quero ser avó?".
Debra Winger está competente o suficiente em seu papel e é crível particularmente nas suas cenas mais dramáticas no terceiro ato, no entanto, a atriz pesa um pouco a mão nas cenas descontraídas, insistindo em um cacoete duvidoso de tornar a voz abruptamente fanha. Shirley McLaine, mais caricata que o normal e servida de diálogos inanes, dá uma das atuações menos memoráveis da sua brilhante carreira (apesar de estranhamente ter levado o Oscar de melhor atriz pelo papel). Em determinado momento ela estapeia um garoto com a força de um urso e em outro berra pela injeção da filha em um hospital, mas mesmo com os ocasionais exageros é uma performance de mãe opulenta que não decola nem mesmo rumo ao "camp" de uma Faye Dunaway em "Mommie Dearest".
De trilha sonora melosa e direção pouco inspirada (às vezes a sensação é de que estamos assistindo a uma produção feita para TV), "Laços de Ternura" é um daqueles filmes americanos de drama típicos dos anos 80 em que os sucessivos acontecimentos dramáticos engolem os personagens, cujo destino parece ser definhar em uma maratona de sofrimentos e desgostos, para que no final perversamente pareçam merecedores de amor porque agonizaram por ele.
Jade
2.9 63Há traços do talento de William Friedkin em Jade - a sinuosa cena de abertura que nos desliza pela cena de um crime e uma perseguição tensa envolvendo dois carros pelas ruas de São Francisco são, por exemplo, eficientes. No entanto, o longa decepciona ao falhar como simples exercício de gênero, é um thriller erótico que não empolga nem excita, falhando em atingir as alturas extravagantes de clássicos do gênero como "Basic Instinct" ou "Fatal Attraction".
Apesar de um elenco competente, o filme carece de cenas marcantes ou de personagens interessantes, já que a maioria deles surge tão obviamente como estratagemas do roteiro que logo sucumbem ao estado de caricaturas enfadonhas. Linda Fiorentino é uma atriz interessante e de semblante hermético, mas seu personagem permanece grande parte do longa em tangente e jamais é dada a atriz a chance de modular suas intenções dúbias ou mesmo sua sensualidade - as cenas "eróticas" aliás, são insípidas e genéricas.
O filme começa bem e até mantém algum mistério durante sua primeira metade, mas assim que as cartas começam a cair na mesa ele se torna consideravelmente menos interessante, pois falha em criar tensão entre os personagens, apostando apenas na resolução artificiosa de uma narrativa pouco interessante. Em um nível estético, o longa também decepciona em seu clímax truncado, apostando em uma terrível fotografia azulada para simular a noite.
Não é o pior dos passatempos (o filme tem boas sequências e prende de tempo em tempo), mas é um trabalho inferior na impressionante carreira de William Friedkin e empalidece até mesmo entre os muitos "thrillers eróticos" da época, falhando em erigir um momento icônico sequer.
O Segredo do Abismo
3.7 252"The Abyss" segue os passos de Spielberg em "Close Encounters of the Third Kind" e, em muitos aspectos, até o supera. O filme narra a jornada de um grupo de exploradores em uma missão cujo objetivo é explorar um submarino acidentado em um abismo oceânico; lá eles se deparam com ameaças humanas e um mistério sobrenatural.
Em seus dois primeiros atos, "The Abyss" é muito bem sucedido. James Cameron é extremamente hábil em criar tensão - sua decupagem é impecável e, em determinados momentos, sentimos na pele a tensão e o desespero dos personagens. A sua decisão de filmar muitas sessões do filme em baixo d'água (de verdade) causou muita polêmica e mal estar nos bastidores, mas o resultado é de fato impressionante, as cenas convencem e sua estética é deslumbrante. Além disso, as atuações soam críveis e apropriadamente desconsoladas em certos momentos (provável reflexo do sofrimento impingido por Cameron em seus atores, que aliás juraram nunca mais trabalhar com o diretor).
O ponto problemático de "The Abyss" é que ele tenta conciliar muitas perspectivas; é um filme de conflito entre homens bons e homens maus, é uma aventura sobre exploração marítima, é um drama conjugal e, no final das contas, uma lição de moral um tanto sentimental e absurda. Surpreendentemente, o longa dá conta de amarrar todas essas perspectivas, com exceção da última que, ocupando grande parte do terceiro ato, transforma o tom do filme de maneira brusca e o afrouxa em vez de elevá-lo, trazendo um mensagem anti-guerra um tanto pueril e insossa, dissolvendo todo o investimento que tivemos nos personagens e na trama.
"The Abyss" é, no final das contas, uma obra menor na carreira de James Cameron, mas que vale a pena graças a excelentes cenas de tensão, um elenco afiado e, com algumas exceções, excelente composição estética a frente de seu tempo.