O filme tinha tudo para ter nota máxima, mas Juan Antonio Bayona adora apelar a recursos melodramáticos indesculpáveis. Colocar Numa como narrador dessa história
Brasil, cerca de 1570. É este o contexto histórico-social anunciado no início do filme. "Desmundo" começa com uma breve ação em plano e contraplano na qual o olhar de uma jovem nos apresenta a superfície de uma caravela. O universo diegético é construído a partir da perspectiva desta jovem, chamada Oribela. Pela fresta da porta que dá para o porão do navio, Oribela vê homens içando velas, deitados, comendo e conversando. Ao final da cena, a jovem abaixa a cabeça e se fecha dentro do porão.
A vaca amarrada e com cabresto, primeira imagem após os créditos iniciais, ilustra sua condição social
. Logo constatamos que ela era uma dentre as órfãs que o reino de Portugal e dos Algarves havia enviado para seus colonos na América. Enquanto Oribela aporta em terras brasileiras com suas conterrâneas portuguesas, ouvimos a leitura da carta enviada a Portugal pelo membro da Companhia de Jesus que solicitou o envio daquelas órfãs. A justificativa apresentada pelo jesuíta – “para afastar os homens do pecado em que agora vivem” – sublinha duas informações importantes acerca do Brasil colonial: 1) a associação entre Monarquia portuguesa e Igreja Católica na ocupação da nova terra; 2) a exploração sexual de indígenas (e, posteriormente, pretas) escravizadas na base da formação de uma sociedade miscigenada. Esta última informação será reforçada na sequência em que as órfãs são apresentadas a seus futuros maridos, quando um colono pobre afirma “eu bem prefiro as selvagens”. Estamos no auge da Contrarreforma, presente no filme, assim como no período histórico retratado, por meio das ações e do poder dos missionários jesuítas. Não é demais destacar a missão conferida por Dom João III ao primeiro governador geral do Brasil, Tomé de Sousa, e aos jesuítas chefiados por Manuel da Nóbrega: “(…) a principal coisa que me moveu a mandar povoar as ditas terras do Brasil foi para que a gente delas se convertesse a nossa santa fé católica” de modo que os gentios “possam ser doutrinados e ensinados nas coisas de nossa santa fé” (Dom João III apud Saviani, 2013, p. 25). Segundo Dermeval Saviani, colonização, catequese e educação foram os três elementos de um movimento dialético do chamado período heróico da educação jesuítica, “uma pedagogia formulada e praticada sob medida para as condições encontradas pelos jesuítas nas ocidentais terras descobertas pelos portugueses” (idem, p. 74). Este período foi marcado pelo plano de instrução de Manuel da Nóbrega, quem buscou levar em consideração as condições específicas da colônia apostando no recurso à língua tupi e no largo uso pedagógico do canto e do teatro no processo educativo. Uma cena-síntese desse movimento aparece na sequência do matrimônio coletivo em "Desmundo", que encerra com o canto orfeônico dos pequenos gentios. O marido de Oribela, Francisco de Albuquerque, é um senhor de engenho malquisto em sua aldeia por defender valores burgueses. Como a expansão ultramarina portuguesa se deu por meio do monopólio da Coroa sobre o financiamento e a exploração de novas terras, a nobreza parasitária reforçou a ordem feudal pelo uso da Inquisição como instrumento político para reprimir uma burguesia mercantil em franca ascensão. Neste contexto de Inquisição e Contrarreforma, um católico burguês como Francisco de Albuquerque era identificado socialmente com criptojudeus como Ximeno Dias,
Uma sequência emblemática em torno deste tema é a da negociação entre Francisco e o padre jesuíta que deseja levar as crianças indígenas de seu engenho para serem catequizadas. O padre jesuíta apresenta o plano de instrução realista de Manuel da Nóbrega: deseja levar os gentios pequenos para que lhe ajudem na plantação e na pesca, garantindo assim as condições materiais básicas para o colégio jesuíta, e também para que, no futuro, estas crianças atuem como artífices da inculturação de suas famílias. Francisco, por outro lado, enxerga cada uma daquelas crianças como propriedade, força de trabalho a ser explorada para garantir redução de custos e aumentar seus lucros. É o conflito entre a ética ascética da Contrarreforma e a racionalidade capitalista. A escolha do português arcaico por parte dos roteiristas que adaptaram o romance de Ana Miranda também nos oferece algumas reflexões pertinentes acerca do Brasil colonial, como o uso que então se fazia do adjetivo “negro da terra”. A palavra “negro” deriva diretamente do latim "niger". O Dicionário Latino-Português, de Ernesto Faria, registra os seguintes significados para este adjetivo: sentido próprio: 1) negro, preto, escuro, sombrio, tenebroso; sentido figurado: 2) sombrio, espesso, tempestuoso; sentido moral: 3) infeliz, de mau agouro; 4) sombrio, negro (com ideia de morte); 5) Enlutado, fúnebre, triste, melancólico; 6) mau, perverso, pérfido, de alma negra. É interessante observar como essa palavra, que em sua variante anglófona “nigger” se tornou um insulto racista, foi abolida na referência aos indígenas, mas não aos afrodescendentes brasileiros. Assim, o filme "Desmundo" apresenta-nos a formação social do Brasil. Uma sociedade colonial-feudal integrada no processo de acumulação capitalista. Os três momentos que, de acordo com Saviani, estão integrados no processo de colonização, aparecem organicamente dentro da estrutura narrativa do filme, isto é, compõem o seu pano de fundo: 1) a posse e exploração da terra subjugando os seus habitantes; 2) a educação enquanto aculturação, isto é, a inculcação nos colonizados das práticas, técnicas, símbolos e valores próprios dos colonizadores; 3) a catequese entendida como a difusão e conversão dos colonizados à religião dos colonizadores (Saviani, op. cit., p. 29). Entretanto, em razão de apresentar esta realidade na perspectiva de uma mulher branca oferecida como mercadoria para um colono, o filme acrescenta alguns temas poucos refletidos em torno da colonização. A história de Oribela apresenta elementos suficientes para uma aprofundada discussão sobre a cultura do estupro e o casamento enquanto contrato social. No processo de acumulação capitalista, o sacramento do matrimônio veio a se tornar um dispositivo ideológico indispensável ao direito das sucessões. Trata-se de um dispositivo ideológico que cria mulheres de primeira e segunda categoria: as mulheres para casar e as mulheres promíscuas, isto é, as que não estão perfeitamente alinhadas com os valores de subserviência e as doutrinas de vestimentas adotados pela Igreja Católica. No período da colonização, esta divisão se dava, como vimos no filme, entre as mulheres brancas e as “selvagens”. Como sempre, as categorias de pureza servem para separar o humano daquilo que é inumano, o valorável daquilo que é desprezível, que pode ser tratado como coisa. O filme mostra como, muito antes das teorias racistas do século XIX, a escravização do “outro” não-ocidental já havia criado subespécies de indivíduos. Mas, mais do que isso, assim como a socióloga Maria Sylvia de Carvalho Franco lançou um novo olhar sobre o Brasil colonial ao estudar a cultura do “favor” entre os homens brancos livres na ordem escravocrata, o filme de Alain Fresnot lançou luz sobre o papel da mulher branca no processo de acumulação capitalista. Partícipe, sim, do lugar de poder na ordem escravocrata, a mulher branca, no entanto, não passou incólume ao processo de reificação inerente ao capitalismo.
Truffaut costumava dizer que não existem filmes anti-guerra, porque todo filme de guerra terminava por glorificá-la. Acredito que a primeira adaptação do livro de Erich Maria Remarque, "Sem novidade no front", de 1930, dirigido por Lewis Milestone, foi o que mais se aproximou de um discurso anti-bélico inequívoco. Esta última adaptação alemã, que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, além de esvaziar toda a carga dramática de algumas das melhores sequências do filme de Milestone, apresenta um discurso sobre traição e vingança que apenas corrobora a sentença de Truffaut. Enfim, passando apenas para dizer que "Argentina, 1985" merecia muito mais aquela estatueta. * As demais premiações para o filme alemão, contudo, foram muito merecidas - especialmente as de melhor direção de arte e melhor fotografia.
Especial da Netflix dividido em dois episódios. O primeiro, intitulado "Equanimidade", apresenta um discurso cosmopolita de viés progressista, cuja tese principal é a defesa da inclusão pela diversidade. Não concordaremos em tudo, não somos iguais, mas precisamos resolver nossos conflitos de uma outra maneira. Uma boa parte do texto envolve a eleição de Donald Trump e as acusações de transfobia contra Dave Chappelle. O tema da transfobia, que é melhor abordado em outro especial, é tratado de forma bastante superficial, mas já revela o início de um duro questionamento acerca dos discursos de interseccionalidade. Tanto no movimento feminista (branco), quanto no movimento LGBTQIA+ (branco), Chappelle não enxerga muitos matizes em seus protagonistas. A crítica e o incômodo do comediante está direcionado a um "privilégio branco" no interior de movimentos progressistas, o qual não costuma ser reconhecido por seus correligionários. Para explorar o sentido histórico-filosófico da eleição de Trump, Chappelle termina o seu espetáculo contando a história de Emmett Louis Till, um jovem californiano preto assassinado após uma falsa acusação de abuso sexual em Mississippi (Goddam!). A morte deste jovem foi um forte combustível na luta pelos direitos civis das décadas seguintes, e só recentemente descobrimos que o garoto havia sido assassinado por um falso testemunho, quando a suposta vítima confessou sua mentira no leito de morte. Chappelle, chutando Kant pra escanteio, fala sobre o quanto aquela mentira, por mais perversa e repugnante que tenha sido em suas intenções e consequências, foi importante para o movimento negro norte-americano, e conclui que a grande farsa representada pelo governo Trump poderia ser a mentira que despertaria a sociedade norte-americana para um novo entendimento dos valores democráticos, para uma luta em comum por causas em comum, por uma defesa da equanimidade. O segundo episódio, intitulado "A Revelação do Passarinho", é das coisas mais impressionantes e corajosas que já assisti no stand-up comedy. Recorrendo ao exemplo do fim do apartheid na África do Sul, Chappelle critica os excessos do movimento #metoo. O movimento havia conseguido deixar os homens com medo, mas, adverte Chappelle, na hora que esse medo passar, as coisas podem ficar muito piores do que eram. Trata-se de uma leitura política arguta, dialética, que entende que esse movimento não durará para sempre e que é preciso refletir sobre quais serão os seus frutos duradouros. Mais corajoso, talvez, foi apontar que haviam oportunistas no movimento, que nem todas eram vítimas no sentido usual do termo. Houve quem sofreu o abuso e houve quem se arrependeu do que fez pelo sucesso. Duas coisas bem diferentes e algo que precisava ser dito para romper com um certo binarismo puritano da esquerda liberal norte-americana. Se todas tivessem sido fortes o suficiente para rejeitar aquele tipo de proposta, talvez Harvey Weinsten não tivesse cometido abusos sexuais impunemente por 3 décadas. Não se trata de culpar a vítima, trata-se de apontar que precisamos tirar algum propósito mais elevado dessa causa. Precisamos cuidar uns dos outros, entender que nossas ações (e, especialmente, nossas corrupções) não implicam apenas nas nossas vivências, mas também nas de outras pessoas. Ao final, Chappelle cita uma história do livro "Plimp", do ex-cafetão preto Iceberg Slim, livro publicado nos anos 1970 e que teve um enorme impacto cultural nos Estados Unidos (tendo sido muito influente no movimento blaxploitation, por exemplo). A história é usada como uma analogia para o show business. Tal como as ações do cafetão naquele universo de prostituição e violência, Los Angeles era uma selva capaz de tirar o pior de você e fazê-lo se sentir grato por curar as feridas que ela mesma causou. Então, é preciso desconfiar das soluções fáceis que ela oferece, é preciso entender que prender meia dúzia de homens e criar um clima de medo não resolveria o problema. Basicamente, para Chappelle, Hollywood estava mudando as coisas para que elas continuassem as mesmas (na verdade, o aforismo é de Tomasi di Lampedusa, mas se aplica perfeitamente). O livro de "Plimp" é um manifesto do capitalismo, diz Chappelle. É preciso compreender que quando o sistema é corrupto, todos somos vítimas. Mais uma vez, esclareço: não se trata de colocar violadores na posição de vítimas, mas de entender que é o sistema que precisa ser mudado e, para isso, o movimento feminista precisa compreender que nem todos seus aliados serão perfeitos. O modo como Chappelle amarra todo o seu texto (sempre muito afiado e engraçado) no desenvolvimento de uma tese, já seria o suficiente para colocá-lo ao lado dos grandes mestres do stand-up comedy (como George Carlin, por exemplo). O fato destas teses não colocarem-no na posição de guru - pois nunca são meros ataques a um outro grupo que se julga estúpido ou patético (como fazia George Carlin com os crentes), mas sim de problematizações no interior do campo progressista - faz dele, para mim, o melhor comediante de stand-up de todos os tempos.
O filme começa com uma breve narração em off. Ela revela quem está contando a história, dá uma breve pista do que essa personagem fará e a favor de quem (e, por conseguinte, contra quem). No entanto, como num conto de F. Scott Fitzgerald, você é surpreendido como se nada tivesse sido revelado. Vale destacar a referência ao filme "Êxtase" (Gustav Machatý, 1933), presente em toda a construção narrativa, marcada pela tensão sexual entre as personagens homossexuais e a mãe. Há uma sequência, em especial, na qual a referência é explícita: a analogia inserida no corte entre a cena no estábulo e a cena dos cavalos. A retração do corpo do cavalo diante do pouso de uma mosca e o espasmo de um corpo que acabou de cair adoecido. Aula de montagem relacional. A questão de gênero, presente como pano de fundo, permanece apenas no pano de fundo, demonstrando que a diretora confia na inteligência de seus espectadores. O filme explora o lugar da mulher e do homossexual (ou melhor, do homem fora dos padrões heteronormativos) numa comunidade patriarcal, mas não deixa que isso tome um espaço ruidoso na narrativa, não insere frases "empoderadas" e cenas constrangedoras sobre "representatividade" (como em "Meu nome é Dolemite") sem que o contexto socio-histórico o permita. Respeita a verossimilhança e o bom senso. Quem não compreendeu, provavelmente não compreenderia de outro modo. Um último aspecto a ser mencionado, ainda sobre a questão de gênero, é como o filme rompe com lugares-comuns acerca da identidade sexual:
no final das contas, o homossexual reprimido, que expressa os piores traços de uma formação machista e misógina, revela-se dócil e ingênuo. Enquanto o jovem deslocado, fora do padrão heteronormativo e vítima em potencial, é frio e calculista.
Infelizmente, a única coisa que vale a pena neste documentário, em suas quase 2h de duração, é a história do selo. Miranda é a grande estrela, claro. O que estraga o filme é a presença do jornalista André Forastieri - um chato, pedante, como disse Nando Reis recentemente. O documentário comete a infelicidade de encerrar com a sua narrativa de rockeiro reacionário que odeia o Los Hermanos. Não me incomodou a crítica à banda, mas toda aquela coisa de tiozão que odeia a MPB e demais gêneros brasileiros. Gosta de forró, pagode e música brega, mas só se for numa paródia dos Raimundos ou do Mundo Livre S/A. Uma bela caricatura de "patriota" que odeia a cultura brasileira e se acha "evoluído" por ouvir rock. Miranda e os Titãs não estão nessa, são eles que fazem do selo Banguela algo admirável, e por eles eu dei as 3 estrelas. No mais, a direção é bem fraquinha, oscilando entrevistas com videoclipes em cortes e transições não tão felizes assim. Mas vale a pena o registro. Recomendo.
Após as eleições gerais na Bolívia, em outubro de 2019, os atos de violência assistidos nos departamentos de Cochabamba, Potosí e Santa Cruz, conduzem a cineasta Maria Fernanda Rada a um novo projeto documental.
A princípio, a ideia era denunciar o perfil paramilitar de extrema-direita dos grupos que estavam por trás daqueles atos. No entanto, o golpe de Estado de novembro de 2019 e o regime de violência instaurado pelo governo interino de Jeanine Áñez acabam determinando uma série de mudanças no roteiro original.
Em agosto de 2020, os bloqueios e protestos contra o adiamento das eleições oferecem uma nova esperança. Há, por fim, uma história sobre o golpe, mas também uma história sobre a luta do povo boliviano para revertê-lo. A narrativa circular que se constrói a partir da k’oa, o ritual andino dedicado à Pachamama que aparece no início e no final do filme, traduz a profecia de Túpac Katari que a cineasta buscou exprimir: “Voltaremos e seremos milhões”.
Realizado a partir de imagens de celular e registros de acontecimentos coetâneos, depoimentos de políticos, militantes e intelectuais, e uma narração em off que articula os diferentes fragmentos, “Fue Golpe” é um documentário aberto e alinhado às experiências mais radicais do cinema político latino-americano. No lugar da narração subjetiva e “vertiginosa”, o filme apresenta uma narração objetiva e didática, que busca a identificação do espectador e toma partido pelo “proceso de cambio” do Movimiento al Socialismo (MAS).
O alinhamento apresenta aspectos negativos. O difícil equilíbrio, que sempre existiu, entre um projeto estatal-desenvolvimentista e um projeto alternativo, baseado em cosmogonias indígenas e comunitárias, é apresentado de forma redutora, como “concessões à burguesia”. Contudo, também apresenta aspectos positivos, sendo eficiente na articulação de um repertório de lutas e em seu propósito de denúncia dos setores que tomaram de assalto o poder.
- Chiquita - ¡Dejame! - ¡Perdóname! Era la única manera de conocernos. - Me has robado un sueño de diez pisos. - ¡Chiquita! ¡Mi chiquita! Óyeme... - Me iré para siempre, aunque no tenga ganas. - Te prometo ser pobre. ¿Me crees? - Ser pobre cuesta mucho... - Viviremos aquí, junto a tus estrellas. - Bueno... con esa condición.
Ri muito do "ser pobre cuesta mucho". Como diria José Mojica Marins: Prestem atenção nos "DI-Á-LA-GOS" hahaha É um filme conservador, claro. Não por acaso o roteiro foi adaptado para novelas da Televisa e do SBT. A linguagem é antiquada, própria da era de ouro do 'studio system'. Mas o que me fascinou, para além do carisma e da beleza de Mirtha Legrand, é o quanto esse filme fala sobre os anos 1950 e o desenvolvimento da indústria cultural na América Latina: shopping, universidade, cosmopolitismo, referências europeias, 'american way of life'... Mas o roteiro não se salva, atropela-se. Não fosse o carisma dos protagonistas e do padrinho, teria sido um fiasco.
Hahahaha a pessoa, quando ela não quer iluminar suas mini-certezas, ela recorre a todo tipo de covardia para obstruir o debate. Vejam o caso do "Murilo D", logo abaixo. Ele disse que "os comunistas são eficazes em genocídio". Eu afirmei que ele não tinha como sustentar essa afirmação, visto que genocídio é, segundo o dicionário "o extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso". O assassinato de opositores ocorrido durante o regime stalinista, por exemplo, embora igualmente condenável, não pode ser definido como genocídio. Percebam, eu não sou comunista, apenas destaquei que o uso do termo estava equivocado. Qual seria um bom uso do termo, no caso? Quando, por exemplo, o atual governo brasileiro favorece a ocupação de reservas indígenas e quilombolas em plena pandemia, seja por ações "solidárias" das esposas de militares, seja por ações explícitas de extermínio, como os ataques de garimpeiros. Neste caso, temos povos/culturas/etnias sendo dizimados. Por fim, qualquer democrata digno de se autoafirmar como tal, rejeita tanto o stalinismo quanto o czarismo. O comentário dele, simpático aos czares, é só uma demonstração de que a polarização política contribui ao emburrecimento. Na lógica maniqueísta da nova direita, para se rejeitar aquilo que seus opositores defendem, é preciso acolher a tudo aquilo que eles rejeitam. Nessa linha, estão abraçando o fascismo a passos largos. Enfim, mas o "Murilo D" não aceitou a minha crítica, ele preferiu apagar meu comentário, escrever um monte de ofensas pessoais no meu chat e depois me bloquear (para que eu não pudesse respondê-lo, claro). Covardia que chama, né? Ou será fascismo? Não sei, neste debate conceitual ainda tenho minhas dúvidas. Sobre o filme "Anastasia", entendo quem assistiu durante a infância e por isso tem uma relação afetiva com o filme. Quem assistiu depois de adulto e gostou desse filme panfletário é gente como o "Murilo D".
"Eu produzia aqui nesse sítio, onde estou, meio caminhão de mercadoria por semana. O exército pegou, tirou eu aqui, meteu na cadeia, cegou um olho. Deu uma pancada, perdi o ouvido, outra pancada, perdi o coração. Passei seis anos na grade da cadeia. O que foi que eu construí na grade da cadeia pra nação? Tomaram um relógio, um cinturão, cinquenta contos em dinheiro... um jipe o exército tomou, o cangaço tá lá detrás da prefeitura de Vitória. Lá na delegacia, um jipe meu. Não me entregou mais. Isso é tipo de revolução? Pegar de um homem lascado que nem eu, com meus filhos tudinho morrendo de fome aí, e o exército tomar um carrinho que eu tinha. Tomar os documentos, tomar tudo... agora ficou com ele. Que vantagem tem o exército de fazer uma desgraça dessa comigo? Era melhor mandar me fuzilar, não era? Do que fazer uma miséria dessa. Eu fiquei mais revoltado de que eu era. Deixar meus filhos tudinho morrendo de fome aqui e eu lascado lá na cadeia, no cacete, no pau. (...) Passei 24 horas em pé, só o diabo aguenta. Passar, dentro de um tanque de merda, 24 horas em pé. Só Satanás. Eu não acredito que estou vivo não, porque eu nunca vi um espírito da minha qualidade aguentar mais choque elétrico do que eu aguentei, não. Mas não tem melhor de que um dia atrás do outro e uma noite no meio. (...) Um dia o povo tem de pensar quem são eles. Não é possível a gente viver a vida todinha debaixo desse pé de boi, não." (João Virgílio)
Geralmente, se liga juventude moderna com revolta. As manchetes falam em tóxicos, delinquência. Não vimos isso no jovem comum da classe media. Na maioria, ele ignora que a sociedade seja teatro de grandes conflitos, que marcha através de um presente risonho para um futuro conformado. Para eles, futuro é apenas um lugar onde vivem os adultos. (...) A indústria vende aos jovens todos os sonhos. Os principais produtos são o sucesso e a felicidade. O universo dessa indústria é conformista e totalmente isento de angústia, qualquer traço de revolta é logo vulgarizado em moda. O que surgiu como protesto social vira estilo de roupa ou corte de cabelo, os novos uniformes da obediência. Sem dúvida são bons exemplos os ídolos da música jovem, símbolos do triunfo do rapaz direito. (...) Para muitos, as primeiras derrotas chegam cedo. Nessa república de estudantes só há uma ordem: subir na vida, mudar de classe. Já sabem que a felicidade é uma forma de poder e não um prêmio para as virtudes. (...) Dois universitários, como trabalhar numa sociedade que desprezam? (...) O homem da classe media é sempre propriedade de alguém. Hoje, se alistam no exército. Breve, serão os homens do escritório, dos departamentos, dos arquivos. Terão crianças, chefes e dignidade. Serão chamados nos jornais de "a opinião pública" e ficarão orgulhosos de cumprir as funções da nacionalidade. (...) Disse Dale Carnegie no livro "Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas": "Sorria sempre, faça os outros sentirem-se importantes, aprenda a obedecer e a elogiar. Você tem um produto a vender e este produto é você mesmo". (...) O que aflige a classe media são os problemas comuns do nosso tempo. Se tais problemas lhe são especialmente amargos é porque ela se pensa imune a problemas. Por não saber onde vai, corre muito. Por não saber o que teme, vive paralisada de medo. (...) A classe media é uma classe perplexa. Não tem um sistema de valores criado por uma ação histórica dela mesma. São multidões de indivíduos solitários, de indivíduos iguais e que, misteriosamente, se julgam diferentes. É este seu problema maior: pensam que têm algo a perder. Vivem absortos no melodrama da própria insegurança e esquecem que estão num país assolado pela tragédia da fome e da miséria. (...) Politicamente, a classe media se movimenta quando pressente mudança social que lhe ameace a estabilidade. Nunca toma a iniciativa do progresso. Sempre convocada por interesses que não são os seus, é a vanguarda inocente da sociedade moderna. Bem manipulada, pode fazer movimento contra si mesma. (...) Muitas vezes campanhas enormes levam a objetivos políticos insignificantes e quase místicos. (...) O misticismo é a solução final para uma situação social incompreensível. A esperança é transposta para o outro mundo, a última das compensações. (...) A preocupação política não é básica do homem da classe media. Cada um leva consigo uma fórmula de salvação nacional. (...) Dizia o sociólogo americano Wright Mills: "A história da classe media é uma história sem fatos, seus interesses comuns nunca levam à unidade, seu futuro nunca é escolhido por ela".
Como li alguns comentários de pessoas que acreditam que o título está errado, que o personagem Patrick Bateman é esquizofrênico e que tudo não passou de um delírio, resolvi comentar sobre o porquê do título, sua adequação e a metáfora com a qual o filme trabalha. Há três momentos-chave no filme:
O momento em que o detetive Kimball lhe oferece um álibi; o momento em que a corretora de imóveis lhe informa que o apartamento que ele usava para seus assassinatos não teve nenhum anúncio na revista Times, e pede para que ele saia sem arrumar confusão; por fim, o estado de negação de seu advogado na sequência final e um novo álibi para o assassinato de Paul Allen. Eles sabem o que ele fez, arrumam sua bagunça e pedem para que ele simplesmente siga em frente, como se nada tivesse acontecido. Nos dois primeiros casos, ele fica confuso, não entende como conseguiu se safar de tudo o que fez, até que, na conversa com o advogado, finalmente compreende. A confusão que muitos fazem entre ele e os outros sócios é uma bela metáfora: ele pode ser qualquer um naquela empresa, simplesmente não importa. A competição dos cartões de apresentação acrescenta uma nova camada a essa metáfora: apesar de todos os privilégios, e para além deles, persiste a necessidade da distinção social. Quando, ao final, ele finalmente entende que não será responsabilizado por nada, os discursos progressistas e toda a fachada humanista é substituída por um "tanto faz". Assim como Reagan e sua política neoliberal-armamentista, ele não precisava disfarçar sua frieza, sua indiferença, seu elitismo, sua perversão. Por isso, como diz Patrick Bateman, não há catarse em sua confissão. Pensar a psicopatia pela via psicanalítica é fazer referência à perversão, que se delimita a partir da passagem do sujeito pela castração. É na castração, que acontece na passagem do Complexo de Édipo, que o sujeito constrói (ou não) sua relação com a lei, com o simbólico e com o mundo. A mudança que ocorre no final, quando Bateman diz ter ultrapassado qualquer barreira sobre o bem e o mal e querer infligir sua dor aos outros, recoloca a questão da sua psicopatia para a sociedade/estrutura que a conforma. O "hiperliberalismo" como inanição do superego e estímulo a todas as pulsões e perversões do ego. Assistir a esse filme no atual contexto político, com Paulo Guedes, Bolsonaro e as milícias bolsonaristas, é assistir a uma sequência do filme após os créditos finais.
As sequências da terceira parte do filme são realmente fascinantes. Após a chegada de Leonardo à Ciudad de México, minha dificuldade com o filme, em função das atuações e da dublagem das falas para inglês, bastante problemáticas, foram completamente superadas por uma montagem impecável. Chamou-me a atenção os elementos nacionalistas contidos no filme. O roteiro é de Dalton Trumbo, um comunista que apoiava a URSS nesse período (lembrando que o processo de desestalinização dos Partidos Comunistas, e o consequente abandono das teses sectárias do "realismo socialista", só ocorreram após o XX Congresso do PCUS, i. e., ainda que não seguisse o receituário dogmático de Jdanov, Trumbo provavelmente chegou a ter contato com essas teses). É interessante a relação de devoção do garoto com o padre, o patrão (bondoso) e os heróis da Revolução Mexicana. O único momento em que se rebela, assumindo a postura (efêmera) de um herói positivo, não é contra os opressores, mas contra a submissão de seu pai. Nesse imbróglio ideológico, sobre o qual ainda estou refletindo, sem estar próximo sequer de uma conclusão parcial, entra também as rivalidades patrão x matador e Gitano x matador. Na primeira, o matador leva a melhor, embora a afirmação do patrão
apelo contra esse sentido de glorificação. O grand finale é interrompido, a torcida não quer a consumação do espetáculo mórbido, Gitano não precisa morrer para provar sua nobreza, ele a demonstra em sua bravura diante das agressões covardes dos toureiros. Da mesma forma, o matador também sobrevive e deixa o touro viver, não é o vilão perfeito, ardiloso, sequer poderia ser chamado de vilão. A mensagem desses dois conflitos, em sua relação e em seu desfecho, parece ser a antítese da afirmação do pai do garoto: ninguém (nem mesmo os touros) nasceram para lutar/ser sacrificado, seja em nome da glória ou do que quer que seja. E a luta contra a opressão não virá do alto (de uma carta do patrão ou do presidente), ela virá do povo.
Algumas impressões bem genéricas. Diria mesmo que escrevi para entender. Espero que sirva a alguém mais. De qualquer forma, já me serviu de algo.
Em 2008, a crise econômica faz com que a General Motors feche uma de suas fábricas em Ohio. Em 2016, o bilionário chinês Cho Tak Wong reabre essa fábrica para a produção de vidro para automóveis. Se a chegada do Grupo Fuyao, um dos maiores fabricantes de vidro do mundo, trouxe esperança e otimismo aos milhares de desempregados da GM no Meio-oeste norte-americano, esses sentimentos não perduraram por muito tempo.
"Quando em Roma, faça como os romanos. Não os irrite", essa foi a resposta de Cho Tak Wong a um gerente chinês que pensava em colocar símbolos da cultura chinesa na filial de Ohio. Contudo, o presidente do Grupo Fuyao não seguiu o provérbio à risca. Diz que, com a construção de uma filial no antigo cinturão da indústria, buscava mudar a imagem que os norte-americanos tinham dos chineses, mas ele mesmo não parece se importar muito com as enormes diferenças entre as condições de trabalho em um país "emergente" e outro desenvolvido. Cho Tak Wong não sabe lidar com os sindicatos e as leis trabalhistas norte-americanas, tampouco aparenta ter o know-how para entender uma cultura que produz bufões que só sabem reproduzir frases de efeito sobre "empreendedorismo".
Um desses bufões é Dave Burrows, gerente bem remunerado da nova filial. Burrows praticamente tem um surto quando, no evento de reabertura da fábrica, o senador democrata Sherrod Brown faz um discurso incentivando a sindicalização dos trabalhadores do Grupo Fuyao. Cobrar direitos trabalhistas do empresário benevolente que trouxe de volta milhares de empregos? É claro que Burrows não poderia concordar com isso. Pelo menos, não enquanto as condições de trabalho degradantes e os baixos salários fossem um problema apenas do chão de fábrica. Quando os trabalhadores norte-americanos do Meio-oeste se revelam menos suscetíveis a sujeição, porque amparados por uma cultura política trabalhista, e a empresa passa a demitir os gerentes e supervisores por não conseguirem aumentar a produção e conter o processo de sindicalização, Burrows muda radicalmente o seu discurso. A demissão faz isso com as pessoas, elas têm mais tempo para refletir.
"Indústria Americana" é, de fato, um documentário impressionante, justamente por revelar as inúmeras facetas da etapa "pós-industrial" do capitalismo. Diante do sentimento de impotência, muitos trabalhadores adotam uma postura xenofóbica em relação aos chineses, outros permanecem resignados por terem enfrentado longos anos de desemprego. A relação do empresário com o Estado chinês e sua leitura "sui generis" da revolução de 1949 também chamam a atenção: por um lado, diz que a China alcançou a prosperidade graças aos revolucionários e que sua empresa não teria chegado tão longe sem a força do Estado chinês, por outro, revela um sentimento romântico de perda, relembra sua infância na China antes da Revolução, um país pobre, mas mais feliz.
"Eu sinto falta dos sapos e insetos da minha infância, do florescer das flores selvagens. Nas últimas décadas, eu construí inúmeras fábricas. Será que só causei perturbação e destruí o meio ambiente? Não sei se contribuí para o bem ou se sou um criminoso", essas são as palavras de um capitalista devotado ao Partido Comunista da China.
"Os trabalhadores e o movimento trabalhista construíram os Estados Unidos. (...) Nada no país mudou no tocante a pessoas esforçadas dando duro. Não foi isso que mudou nos EUA. O que mudou foi que pessoas no topo decidiram reescrever as regras para tirarem proveito das pessoas, para se beneficiarem às suas custas. E vocês têm o direito e a obrigação de dizer não a isso. É a esse propósito que um sindicato na Fuyao servirá. Ao longo dos muitos anos nesta luta, possibilitamos que as empresas lucrem mesmo sendo justas com os funcionários, mesmo pagando salários decentes e provendo segurança. Essas coisas podem coexistir", essas são as palavras de um sindicalista norte-americano que ainda não entendeu a resposta a soprar no vento.
Após a experiência frustrante de "Hannah Arendt" (Margarethe von Trotta, 2013), confesso que tive uma certa resistência em assistir ao filme de Raoul Peck ("Eu não sou seu negro") sobre o jovem Marx. Ledo equívoco. Estimulado pela celebração do 202º aniversário de Marx, acabei de assisti-lo e já o recomendo aos que se interessem pelo tema. Excetuando duas sequências - a de Marx e Jenny na cama, totalmente desconexa da narrativa, e a de um diálogo entre Engels e Jenny, com cortes e enquadramentos um tanto quanto confusos -, achei a direção muito boa, com um bom roteiro e bons figurinos. Entrega o que promete. Uma excelente obra para desmistificar a figura deste grande intelectual e revolucionário socialista.
Como já foi comentado, o filme tem um início promissor. Inclusive, é possível que Nelson Pereira dos Santos tenha se inspirado em algumas sequências para os seus dois primeiros filmes, "Rio, 40 Graus" e "Rio, Zona Norte".
Tal como em "Rio, 40 Graus", o filme se inicia com o letreiro dos créditos sobre uma imagem panorâmica do Rio de Janeiro, na qual podemos ver o Corcovado e o Cristo Redentor. Contudo, ao contrário da abertura do clássico de NPS, enquanto o letreiro sobe, a imagem da então capital federal segue estática. Se NPS procura revirar essa imagem do "cartão-postal" do avesso, logo na primeira sequência já podemos intuir que o filme de Fenelon tratará de reafirmá-la. A voz em off que destaca as maravilhas do Rio de Janeiro, logo descobrimos, não é a de um narrador onisciente, mas a de um apresentador de rádio. É ele quem dará o mote do filme: o programa "Você tem a sua vez" oferece a oportunidade para que compositores inéditos possam ouvir suas composições na voz dos "maiorais do rádio": Marlene, Dalva de Oliveira, Jorge Goulart, Carmélia Alves, Blecaute e Linda Batista. É a saga de um desses compositores inéditos que acompanharemos ao longo do filme. Ananias, interpretado por Luís Delfino, tem sua primeira aparição como um sujeito humilde e persistente, que tenta, em vão, falar com o diretor artístico da rádio e com o cantor Jorge Goulart para vender uma de suas canções. Ele será o protagonista dessa história, cujo paralelo com a trajetória do sambista Espírito da Luz em "Rio, zona norte" me parece inevitável.
Mas aí, como já dito, vem o básico da chanchada: uma desculpa para uma sucessão de números musicais.
Frustrado no trabalho e no casamento, desrespeitado pelos filhos e humilhado pelo patrão e por seu amor platônico, ele acaba sonhando com o suicídio. O sonho se justifica pela sequência (nada sutil) de conselhos que recebeu para que tirasse a própria vida. No sonho, ele toma o veneno que está no banheiro (e que sabemos se tratar de um veneno por estar escrito, como numa cena cômica de "Chaves"), despede-se de sua filha (na cena mais tocante do filme, com uma fotografia incrível), desce o elevador e caminha em direção aos portões de um jardim. Após os conselhos de um sábio jardineiro (uma espécie de São Pedro nos portões do paraíso), ele decide retomar a sua vida com mais otimismo. Para o espanto de Ananias, tudo começa a dar certo a partir daquele momento. Recebe um abono junto ao salário, seu aluguel é reduzido pela metade, passa a viver uma espécie de relação poliamorosa com a esposa e a secretária do seu patrão (curiosamente, as crianças desaparecem de qualquer sequência do sonho), é promovido a chefe do departamento de felicidade da empresa (na sequência mais patética do filme) e se torna um compositor de sucesso. Tudo muito fácil, o desejo alcançado se transforma em tédio e aborrecimento. Ananias logo deixa de sentir prazer em compor. Ao despertar, descobre que será pai do quinto filho e passa a tratar a esposa com afeto, mudando radicalmente após seu sonho, o qual teria revelado - numa espécie de epifania moralista-pequeno-burguesa - que a conquista sem esforço não tem valor. Antes de se entediar com o sucesso, contudo, ainda durante o sonho, temos uma sequência de mais de 20 minutos de musicais. Descobrimos então que a cantora Marlene (então esposa de Luís Delfino) interpretou dois papeis: o seu próprio, como rainha do rádio, e o de Maria Clara, a secretária por quem Ananias era apaixonado. É curiosa a interpretação desses dois papeis, porque, numa determinada sequência, Maria Clara começa a cantar uma música que Ananias acabara de compor (Lata d'água na cabeça), o que faz com que ele decida transformá-la na intérprete de todas as suas canções. Daí em diante, já não sabemos quando Marlene é Marlene, quando ela é Maria Clara. Mas não tem importância, tudo é apenas um pretexto para que seus sonhos estejam recheados de musicais.
Adorável, como "Letra e Música". Um bom filme para assistir em casal e matar o tempo... Não tem nada de novo ou interessante, mas é um bom entretenimento. A trilha sonora é muito boa. Nota 7.
Essa linguagem, que o Meirelles trouxe da publicidade, às vezes funciona (como em "Cidade de Deus", "Ensaio sobre a Cegueira" e "O Jardineiro Fiel"), às vezes não. O roteiro é excelente. As atuações de Jonathan Pryce e Anthony Hopkins estão impecáveis. Mas toda a arquitetura, pinturas e esculturas foram simplesmente desperdiçadas. Meirelles disse que quase não assumiu o projeto por sua ignorância acerca da história e dos rituais da Igreja Católica, e que só mudou de ideia porque o roteiro era muito bom. De fato, acredito que um diretor mais afinado com essas questões teria apresentado um desempenho melhor. Mas é um bom filme: crítico, sem ser maniqueísta; com diálogos filosóficos, sem ser enfadonho (embora tenha passado muito perto disso em alguns momentos); com cenas tocantes, sem ser piegas. A trilha sonora e a fotografia oscilam entre breves momentos de beleza e uma série de escolhas infelizes. 8/10.
Achei o passado de Bergoglio muito bem trabalhado. Conta a sua versão da história, é verdade, mas proporciona uma leitura plausível da mudança de postura. Chamava-me a atenção o ódio que meus amigos argentinos tinham pelo papa conterrâneo, chamando-o de filhote da ditadura, quando todo seu discurso era o oposto disso. Acho que Meirelles (e, sobretudo, o roteirista) foram bem felizes nessa narrativa da "redenção". Nesse processo, gostei particularmente da brincadeira do Meirelles com Paulo Freire.
Sua confissão, ao contrário da de Francisco, não tem texto. Ele gesticula uma fala e, após um discurso que o espectador não teve acesso, assistimos à reação de Francisco sobre UM caso de UM cardeal que foi transferido e repetiu as práticas de abuso sexual de menores diversas vezes. A relação com o nazismo é mencionada apenas como categoria de acusação dos fiéis, mas o próprio Ratzinger não diz nada sobre o tema. Mesma coisa em relação aos escândalos de corrupção. E o próprio escândalo de pedofilia na Igreja Católica é mencionado "alegoricamente", reduzido a um único caso
. Se há um lado "chapa-branca" no filme, é sobretudo em relação ao Ratzinger. Compreensível. Temas muito pesados, possíveis processos muito onerosos.
Os bolsominions fizeram uma enorme propaganda para o pior especial do Porta dos Fundos. Apontar o quanto o texto é sem graça seria uma crítica muito mais eficaz, mas a racionalidade passa longe dessa gente. Não que eu tenha algum problema com piadas sobre religião. Pelo contrário, George Carlin, Rowan Atkinson e Monty Python são geniais. Algumas esquetes do PdF também. Mas esse especial parece algo produzido pela Globo Filmes. O pior é que, agora, um monte de gente vai defender um especial tosco, seja porque foi produzido por gente querida, seja porque tem um bando de bolsonaristas pistolas do outro lado. Sabe quem adorou esse especial? A bancada evangélica. O Feliciano deve ter acompanhado até o processo de produção. Provavelmente já tinha um textão oportunista antes mesmo da estreia.
com Meryl Streep encarnando a promessa republicana contida na Estátua da Liberdade
, é uma bela imagem-manifesto de Steven Soderbergh. Muito distinto de "uma câmera na mão e uma ideia na cabeça" - afinal, já não há lugar para o idealismo estético de figuras como Glauber Rocha e Jean-Luc Godard -, o que temos aqui é o manifesto de uma "guerra de posição" por parte dos atores hollywoodianos, para usar um termo que Olavo de Carvalho adoraria. Atores que resolveram usar parte de suas fortunas para produzir e atuar em filmes de baixo orçamento e conteúdo altamente político (tais como "A grande aposta" e "Vice", de Adam McKay). Atores que ganham tão bem quanto os jogadores do Barcelona ou do Real Madrid, mas que, como afirmou Meryl Streep, não produzem exatamente o mesmo tipo de arte. Estes filmes valem o quanto pesam. A aposta é no conteúdo, não mais na forma. Sinto muito, Adorno, mas acho válido
Não esperem um novo "Os Bons Companheiros". Não esperem um novo "Cassino". Muitas das críticas ao filme vêm de fãs que esperavam uma coisa e receberam outra.
"Ain, mas não teve clímax". Primeiro, isso não é um critério. Ele se propôs a criar um clímax? A história é sobre o assassino de Jimmy Hoffa. Através da biografia desse assassino acompanhamos uma série de intrigas por trás da IBT (Irmandade Internacional dos Caminhoneiros), do assassinato de John Kennedy, da crise dos mísseis em Cuba, da inserção política das máfias italiana e cubana na política norte-americana, etc. Não ter clímax não é sinal de uma narrativa preguiçosa.
A construção dos personagens é impecável. Aqui sim, há uma clara semelhança com seus clássicos: a violência atravessa todas as relações, todos julgam que o outro "passa dos limites", é "esquentado", mas essa é uma característica de todos eles (uns mais que outros, obviamente).
Assim como em "New York, New York", muitos apontaram a falta de edição, dizendo que o Scorsese "errou a mão", que o filme poderia ter uma hora a menos, etc. Discordo totalmente. Primeiro, acho que isso é coisa de quem se habituou ao cinema comercial mais do que devia. Fizeram a mesma crítica ao "Os Oito Odiados", do Tarantino, e provavelmente farão a qualquer filme que ultrapasse 2h30 de duração. Segundo, nos dois filmes o Scorsese pega a mão do espectador e, tal como Hyldon, diz "existe um mundo novo e quero te mostrar". Nos dois filmes, temos uma cena ao telefone com uma carga dramática belíssima, mas, para senti-las, compreendê-las de verdade, você precisa estar imerso naquela história.
É possível que "O Irlandês" entre, assim como "New York, New York", para uma espécie de lista de filmes do Scorsese preteridos pelos fãs. Eu fiquei fascinado pelos dois.
Em tempo, se fosse cortar alguma coisa, seriam apenas duas: 1)
a explosão quando a esposa de Hoffa é demitida, acho que aquela cena olhando para as chaves do carro teria uma carga dramática maior sem ser autoexplicativa, isto é, sem mostrar o que ela estava imaginando (as imagens na cabeça do espectador funcionam melhor, na minha opinião);
ele se perguntando "quem teria coragem de fazer aquele telefonema?" diante do padre. Sei lá, achei piegas. A culpa ao telefone já tinha atingido esse lugar, e não precisava explicar que ele carregou a culpa pelo resto da vida, porque tudo indicava isso: as tentativas de reconciliação com as filhas, as próprias confissões com o padre, etc. Enfim, cortaria essa fala.
Acho um bom filme até mesmo para aqueles que não estão interessados nos terraplanistas. O documentário apresenta uma visão sóbria sobre a ciência. Você tem uma pergunta, você elabora uma hipótese, coleta todos os dados necessários, faz experimentos, reelabora a hipótese se for necessário e, por fim, chega a um resultado (que não necessariamente será a confirmação de sua hipótese). O anti-intelectualismo é, em grande medida (e ironicamente), alimentado por uma visão positivista da ciência. As pessoas acreditam que a ciência detém a verdade e só por isso dão algum crédito a ela. A ciência elabora teorias que podem ser falsificadas por novas teorias. Enquanto teorias são falsificadas, a ciência avança. Qual o problema dos terraplanistas? Eles querem uma verdade absoluta, mas sua busca não é pautada pelo método científico, eles têm uma hipótese e apenas buscam confirmá-la (e vemos como se frustram quando, sem querer, encontram algo que desmente completamente toda a sua teoria).
A Sociedade da Neve
4.2 713 Assista AgoraO filme tinha tudo para ter nota máxima, mas Juan Antonio Bayona adora apelar a recursos melodramáticos indesculpáveis. Colocar Numa como narrador dessa história
e, o que é pior, encerrar o filme com ele dizendo "vá e conte a nossa história",
Desmundo
3.5 115Brasil, cerca de 1570. É este o contexto histórico-social anunciado no início do filme. "Desmundo" começa com uma breve ação em plano e contraplano na qual o olhar de uma jovem nos apresenta a superfície de uma caravela. O universo diegético é construído a partir da perspectiva desta jovem, chamada Oribela. Pela fresta da porta que dá para o porão do navio, Oribela vê homens içando velas, deitados, comendo e conversando. Ao final da cena, a jovem abaixa a cabeça e se fecha dentro do porão.
A vaca amarrada e com cabresto, primeira imagem após os créditos iniciais, ilustra sua condição social
Enquanto Oribela aporta em terras brasileiras com suas conterrâneas portuguesas, ouvimos a leitura da carta enviada a Portugal pelo membro da Companhia de Jesus que solicitou o envio daquelas órfãs. A justificativa apresentada pelo jesuíta – “para afastar os homens do pecado em que agora vivem” – sublinha duas informações importantes acerca do Brasil colonial: 1) a associação entre Monarquia portuguesa e Igreja Católica na ocupação da nova terra; 2) a exploração sexual de indígenas (e, posteriormente, pretas) escravizadas na base da formação de uma sociedade miscigenada. Esta última informação será reforçada na sequência em que as órfãs são apresentadas a seus futuros maridos, quando um colono pobre afirma “eu bem prefiro as selvagens”.
Estamos no auge da Contrarreforma, presente no filme, assim como no período histórico retratado, por meio das ações e do poder dos missionários jesuítas. Não é demais destacar a missão conferida por Dom João III ao primeiro governador geral do Brasil, Tomé de Sousa, e aos jesuítas chefiados por Manuel da Nóbrega: “(…) a principal coisa que me moveu a mandar povoar as ditas terras do Brasil foi para que a gente delas se convertesse a nossa santa fé católica” de modo que os gentios “possam ser doutrinados e ensinados nas coisas de nossa santa fé” (Dom João III apud Saviani, 2013, p. 25).
Segundo Dermeval Saviani, colonização, catequese e educação foram os três elementos de um movimento dialético do chamado período heróico da educação jesuítica, “uma pedagogia formulada e praticada sob medida para as condições encontradas pelos jesuítas nas ocidentais terras descobertas pelos portugueses” (idem, p. 74). Este período foi marcado pelo plano de instrução de Manuel da Nóbrega, quem buscou levar em consideração as condições específicas da colônia apostando no recurso à língua tupi e no largo uso pedagógico do canto e do teatro no processo educativo. Uma cena-síntese desse movimento aparece na sequência do matrimônio coletivo em "Desmundo", que encerra com o canto orfeônico dos pequenos gentios.
O marido de Oribela, Francisco de Albuquerque, é um senhor de engenho malquisto em sua aldeia por defender valores burgueses. Como a expansão ultramarina portuguesa se deu por meio do monopólio da Coroa sobre o financiamento e a exploração de novas terras, a nobreza parasitária reforçou a ordem feudal pelo uso da Inquisição como instrumento político para reprimir uma burguesia mercantil em franca ascensão. Neste contexto de Inquisição e Contrarreforma, um católico burguês como Francisco de Albuquerque era identificado socialmente com criptojudeus como Ximeno Dias,
o comerciante por quem Oribela se apaixona.
Uma sequência emblemática em torno deste tema é a da negociação entre Francisco e o padre jesuíta que deseja levar as crianças indígenas de seu engenho para serem catequizadas. O padre jesuíta apresenta o plano de instrução realista de Manuel da Nóbrega: deseja levar os gentios pequenos para que lhe ajudem na plantação e na pesca, garantindo assim as condições materiais básicas para o colégio jesuíta, e também para que, no futuro, estas crianças atuem como artífices da inculturação de suas famílias. Francisco, por outro lado, enxerga cada uma daquelas crianças como propriedade, força de trabalho a ser explorada para garantir redução de custos e aumentar seus lucros. É o conflito entre a ética ascética da Contrarreforma e a racionalidade capitalista.
A escolha do português arcaico por parte dos roteiristas que adaptaram o romance de Ana Miranda também nos oferece algumas reflexões pertinentes acerca do Brasil colonial, como o uso que então se fazia do adjetivo “negro da terra”. A palavra “negro” deriva diretamente do latim "niger". O Dicionário Latino-Português, de Ernesto Faria, registra os seguintes significados para este adjetivo: sentido próprio: 1) negro, preto, escuro, sombrio, tenebroso; sentido figurado: 2) sombrio, espesso, tempestuoso; sentido moral: 3) infeliz, de mau agouro; 4) sombrio, negro (com ideia de morte); 5) Enlutado, fúnebre, triste, melancólico; 6) mau, perverso, pérfido, de alma negra. É interessante observar como essa palavra, que em sua variante anglófona “nigger” se tornou um insulto racista, foi abolida na referência aos indígenas, mas não aos afrodescendentes brasileiros.
Assim, o filme "Desmundo" apresenta-nos a formação social do Brasil. Uma sociedade colonial-feudal integrada no processo de acumulação capitalista. Os três momentos que, de acordo com Saviani, estão integrados no processo de colonização, aparecem organicamente dentro da estrutura narrativa do filme, isto é, compõem o seu pano de fundo: 1) a posse e exploração da terra subjugando os seus habitantes; 2) a educação enquanto aculturação, isto é, a inculcação nos colonizados das práticas, técnicas, símbolos e valores próprios dos colonizadores; 3) a catequese entendida como a difusão e conversão dos colonizados à religião dos colonizadores (Saviani, op. cit., p. 29). Entretanto, em razão de apresentar esta realidade na perspectiva de uma mulher branca oferecida como mercadoria para um colono, o filme acrescenta alguns temas poucos refletidos em torno da colonização.
A história de Oribela apresenta elementos suficientes para uma aprofundada discussão sobre a cultura do estupro e o casamento enquanto contrato social. No processo de acumulação capitalista, o sacramento do matrimônio veio a se tornar um dispositivo ideológico indispensável ao direito das sucessões. Trata-se de um dispositivo ideológico que cria mulheres de primeira e segunda categoria: as mulheres para casar e as mulheres promíscuas, isto é, as que não estão perfeitamente alinhadas com os valores de subserviência e as doutrinas de vestimentas adotados pela Igreja Católica. No período da colonização, esta divisão se dava, como vimos no filme, entre as mulheres brancas e as “selvagens”. Como sempre, as categorias de pureza servem para separar o humano daquilo que é inumano, o valorável daquilo que é desprezível, que pode ser tratado como coisa.
O filme mostra como, muito antes das teorias racistas do século XIX, a escravização do “outro” não-ocidental já havia criado subespécies de indivíduos. Mas, mais do que isso, assim como a socióloga Maria Sylvia de Carvalho Franco lançou um novo olhar sobre o Brasil colonial ao estudar a cultura do “favor” entre os homens brancos livres na ordem escravocrata, o filme de Alain Fresnot lançou luz sobre o papel da mulher branca no processo de acumulação capitalista. Partícipe, sim, do lugar de poder na ordem escravocrata, a mulher branca, no entanto, não passou incólume ao processo de reificação inerente ao capitalismo.
Nada de Novo no Front
4.0 611 Assista AgoraTruffaut costumava dizer que não existem filmes anti-guerra, porque todo filme de guerra terminava por glorificá-la.
Acredito que a primeira adaptação do livro de Erich Maria Remarque, "Sem novidade no front", de 1930, dirigido por Lewis Milestone, foi o que mais se aproximou de um discurso anti-bélico inequívoco.
Esta última adaptação alemã, que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, além de esvaziar toda a carga dramática de algumas das melhores sequências do filme de Milestone, apresenta um discurso sobre traição e vingança que apenas corrobora a sentença de Truffaut.
Enfim, passando apenas para dizer que "Argentina, 1985" merecia muito mais aquela estatueta.
* As demais premiações para o filme alemão, contudo, foram muito merecidas - especialmente as de melhor direção de arte e melhor fotografia.
Dave Chappelle: Equanimidade & A Revelação do Passarinho
4.0 6Especial da Netflix dividido em dois episódios.
O primeiro, intitulado "Equanimidade", apresenta um discurso cosmopolita de viés progressista, cuja tese principal é a defesa da inclusão pela diversidade. Não concordaremos em tudo, não somos iguais, mas precisamos resolver nossos conflitos de uma outra maneira. Uma boa parte do texto envolve a eleição de Donald Trump e as acusações de transfobia contra Dave Chappelle. O tema da transfobia, que é melhor abordado em outro especial, é tratado de forma bastante superficial, mas já revela o início de um duro questionamento acerca dos discursos de interseccionalidade. Tanto no movimento feminista (branco), quanto no movimento LGBTQIA+ (branco), Chappelle não enxerga muitos matizes em seus protagonistas. A crítica e o incômodo do comediante está direcionado a um "privilégio branco" no interior de movimentos progressistas, o qual não costuma ser reconhecido por seus correligionários. Para explorar o sentido histórico-filosófico da eleição de Trump, Chappelle termina o seu espetáculo contando a história de Emmett Louis Till, um jovem californiano preto assassinado após uma falsa acusação de abuso sexual em Mississippi (Goddam!). A morte deste jovem foi um forte combustível na luta pelos direitos civis das décadas seguintes, e só recentemente descobrimos que o garoto havia sido assassinado por um falso testemunho, quando a suposta vítima confessou sua mentira no leito de morte. Chappelle, chutando Kant pra escanteio, fala sobre o quanto aquela mentira, por mais perversa e repugnante que tenha sido em suas intenções e consequências, foi importante para o movimento negro norte-americano, e conclui que a grande farsa representada pelo governo Trump poderia ser a mentira que despertaria a sociedade norte-americana para um novo entendimento dos valores democráticos, para uma luta em comum por causas em comum, por uma defesa da equanimidade.
O segundo episódio, intitulado "A Revelação do Passarinho", é das coisas mais impressionantes e corajosas que já assisti no stand-up comedy. Recorrendo ao exemplo do fim do apartheid na África do Sul, Chappelle critica os excessos do movimento #metoo. O movimento havia conseguido deixar os homens com medo, mas, adverte Chappelle, na hora que esse medo passar, as coisas podem ficar muito piores do que eram. Trata-se de uma leitura política arguta, dialética, que entende que esse movimento não durará para sempre e que é preciso refletir sobre quais serão os seus frutos duradouros. Mais corajoso, talvez, foi apontar que haviam oportunistas no movimento, que nem todas eram vítimas no sentido usual do termo. Houve quem sofreu o abuso e houve quem se arrependeu do que fez pelo sucesso. Duas coisas bem diferentes e algo que precisava ser dito para romper com um certo binarismo puritano da esquerda liberal norte-americana. Se todas tivessem sido fortes o suficiente para rejeitar aquele tipo de proposta, talvez Harvey Weinsten não tivesse cometido abusos sexuais impunemente por 3 décadas. Não se trata de culpar a vítima, trata-se de apontar que precisamos tirar algum propósito mais elevado dessa causa. Precisamos cuidar uns dos outros, entender que nossas ações (e, especialmente, nossas corrupções) não implicam apenas nas nossas vivências, mas também nas de outras pessoas. Ao final, Chappelle cita uma história do livro "Plimp", do ex-cafetão preto Iceberg Slim, livro publicado nos anos 1970 e que teve um enorme impacto cultural nos Estados Unidos (tendo sido muito influente no movimento blaxploitation, por exemplo). A história é usada como uma analogia para o show business. Tal como as ações do cafetão naquele universo de prostituição e violência, Los Angeles era uma selva capaz de tirar o pior de você e fazê-lo se sentir grato por curar as feridas que ela mesma causou. Então, é preciso desconfiar das soluções fáceis que ela oferece, é preciso entender que prender meia dúzia de homens e criar um clima de medo não resolveria o problema. Basicamente, para Chappelle, Hollywood estava mudando as coisas para que elas continuassem as mesmas (na verdade, o aforismo é de Tomasi di Lampedusa, mas se aplica perfeitamente). O livro de "Plimp" é um manifesto do capitalismo, diz Chappelle. É preciso compreender que quando o sistema é corrupto, todos somos vítimas. Mais uma vez, esclareço: não se trata de colocar violadores na posição de vítimas, mas de entender que é o sistema que precisa ser mudado e, para isso, o movimento feminista precisa compreender que nem todos seus aliados serão perfeitos.
O modo como Chappelle amarra todo o seu texto (sempre muito afiado e engraçado) no desenvolvimento de uma tese, já seria o suficiente para colocá-lo ao lado dos grandes mestres do stand-up comedy (como George Carlin, por exemplo). O fato destas teses não colocarem-no na posição de guru - pois nunca são meros ataques a um outro grupo que se julga estúpido ou patético (como fazia George Carlin com os crentes), mas sim de problematizações no interior do campo progressista - faz dele, para mim, o melhor comediante de stand-up de todos os tempos.
Ataque dos Cães
3.7 932O filme começa com uma breve narração em off. Ela revela quem está contando a história, dá uma breve pista do que essa personagem fará e a favor de quem (e, por conseguinte, contra quem). No entanto, como num conto de F. Scott Fitzgerald, você é surpreendido como se nada tivesse sido revelado.
Vale destacar a referência ao filme "Êxtase" (Gustav Machatý, 1933), presente em toda a construção narrativa, marcada pela tensão sexual entre as personagens homossexuais e a mãe. Há uma sequência, em especial, na qual a referência é explícita: a analogia inserida no corte entre a cena no estábulo e a cena dos cavalos. A retração do corpo do cavalo diante do pouso de uma mosca e o espasmo de um corpo que acabou de cair adoecido. Aula de montagem relacional.
A questão de gênero, presente como pano de fundo, permanece apenas no pano de fundo, demonstrando que a diretora confia na inteligência de seus espectadores. O filme explora o lugar da mulher e do homossexual (ou melhor, do homem fora dos padrões heteronormativos) numa comunidade patriarcal, mas não deixa que isso tome um espaço ruidoso na narrativa, não insere frases "empoderadas" e cenas constrangedoras sobre "representatividade" (como em "Meu nome é Dolemite") sem que o contexto socio-histórico o permita. Respeita a verossimilhança e o bom senso. Quem não compreendeu, provavelmente não compreenderia de outro modo.
Um último aspecto a ser mencionado, ainda sobre a questão de gênero, é como o filme rompe com lugares-comuns acerca da identidade sexual:
no final das contas, o homossexual reprimido, que expressa os piores traços de uma formação machista e misógina, revela-se dócil e ingênuo. Enquanto o jovem deslocado, fora do padrão heteronormativo e vítima em potencial, é frio e calculista.
Sem Dentes: Banguela Records e a Turma de 94
4.2 10Infelizmente, a única coisa que vale a pena neste documentário, em suas quase 2h de duração, é a história do selo.
Miranda é a grande estrela, claro. O que estraga o filme é a presença do jornalista André Forastieri - um chato, pedante, como disse Nando Reis recentemente. O documentário comete a infelicidade de encerrar com a sua narrativa de rockeiro reacionário que odeia o Los Hermanos. Não me incomodou a crítica à banda, mas toda aquela coisa de tiozão que odeia a MPB e demais gêneros brasileiros. Gosta de forró, pagode e música brega, mas só se for numa paródia dos Raimundos ou do Mundo Livre S/A. Uma bela caricatura de "patriota" que odeia a cultura brasileira e se acha "evoluído" por ouvir rock.
Miranda e os Titãs não estão nessa, são eles que fazem do selo Banguela algo admirável, e por eles eu dei as 3 estrelas.
No mais, a direção é bem fraquinha, oscilando entrevistas com videoclipes em cortes e transições não tão felizes assim. Mas vale a pena o registro. Recomendo.
Foi Golpe
4.0 1Após as eleições gerais na Bolívia, em outubro de 2019, os atos de violência assistidos nos departamentos de Cochabamba, Potosí e Santa Cruz, conduzem a cineasta Maria Fernanda Rada a um novo projeto documental.
A princípio, a ideia era denunciar o perfil paramilitar de extrema-direita dos grupos que estavam por trás daqueles atos. No entanto, o golpe de Estado de novembro de 2019 e o regime de violência instaurado pelo governo interino de Jeanine Áñez acabam determinando uma série de mudanças no roteiro original.
Em agosto de 2020, os bloqueios e protestos contra o adiamento das eleições oferecem uma nova esperança. Há, por fim, uma história sobre o golpe, mas também uma história sobre a luta do povo boliviano para revertê-lo. A narrativa circular que se constrói a partir da k’oa, o ritual andino dedicado à Pachamama que aparece no início e no final do filme, traduz a profecia de Túpac Katari que a cineasta buscou exprimir: “Voltaremos e seremos milhões”.
Realizado a partir de imagens de celular e registros de acontecimentos coetâneos, depoimentos de políticos, militantes e intelectuais, e uma narração em off que articula os diferentes fragmentos, “Fue Golpe” é um documentário aberto e alinhado às experiências mais radicais do cinema político latino-americano. No lugar da narração subjetiva e “vertiginosa”, o filme apresenta uma narração objetiva e didática, que busca a identificação do espectador e toma partido pelo “proceso de cambio” do Movimiento al Socialismo (MAS).
O alinhamento apresenta aspectos negativos. O difícil equilíbrio, que sempre existiu, entre um projeto estatal-desenvolvimentista e um projeto alternativo, baseado em cosmogonias indígenas e comunitárias, é apresentado de forma redutora, como “concessões à burguesia”. Contudo, também apresenta aspectos positivos, sendo eficiente na articulação de um repertório de lutas e em seu propósito de denúncia dos setores que tomaram de assalto o poder.
Passaporte para o Rio
4.0 1Quem escreveu essa sinopse? Hahaha
Pessoal usando até o espaço das sinopses para "problematizações chiques".
La pícara soñadora
3.5 2- Chiquita
- ¡Dejame!
- ¡Perdóname! Era la única manera de conocernos.
- Me has robado un sueño de diez pisos.
- ¡Chiquita! ¡Mi chiquita! Óyeme...
- Me iré para siempre, aunque no tenga ganas.
- Te prometo ser pobre. ¿Me crees?
- Ser pobre cuesta mucho...
- Viviremos aquí, junto a tus estrellas.
- Bueno... con esa condición.
Ri muito do "ser pobre cuesta mucho". Como diria José Mojica Marins: Prestem atenção nos "DI-Á-LA-GOS" hahaha
É um filme conservador, claro. Não por acaso o roteiro foi adaptado para novelas da Televisa e do SBT. A linguagem é antiquada, própria da era de ouro do 'studio system'. Mas o que me fascinou, para além do carisma e da beleza de Mirtha Legrand, é o quanto esse filme fala sobre os anos 1950 e o desenvolvimento da indústria cultural na América Latina: shopping, universidade, cosmopolitismo, referências europeias, 'american way of life'...
Mas o roteiro não se salva, atropela-se. Não fosse o carisma dos protagonistas e do padrinho, teria sido um fiasco.
Entre Facas e Segredos
4.0 1,5K Assista AgoraRoteiro ao estilo Agatha Christie. Um bom entretenimento.
Anastasia
3.9 829 Assista AgoraHahahaha a pessoa, quando ela não quer iluminar suas mini-certezas, ela recorre a todo tipo de covardia para obstruir o debate. Vejam o caso do "Murilo D", logo abaixo.
Ele disse que "os comunistas são eficazes em genocídio". Eu afirmei que ele não tinha como sustentar essa afirmação, visto que genocídio é, segundo o dicionário "o extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso". O assassinato de opositores ocorrido durante o regime stalinista, por exemplo, embora igualmente condenável, não pode ser definido como genocídio. Percebam, eu não sou comunista, apenas destaquei que o uso do termo estava equivocado.
Qual seria um bom uso do termo, no caso? Quando, por exemplo, o atual governo brasileiro favorece a ocupação de reservas indígenas e quilombolas em plena pandemia, seja por ações "solidárias" das esposas de militares, seja por ações explícitas de extermínio, como os ataques de garimpeiros. Neste caso, temos povos/culturas/etnias sendo dizimados.
Por fim, qualquer democrata digno de se autoafirmar como tal, rejeita tanto o stalinismo quanto o czarismo. O comentário dele, simpático aos czares, é só uma demonstração de que a polarização política contribui ao emburrecimento. Na lógica maniqueísta da nova direita, para se rejeitar aquilo que seus opositores defendem, é preciso acolher a tudo aquilo que eles rejeitam. Nessa linha, estão abraçando o fascismo a passos largos.
Enfim, mas o "Murilo D" não aceitou a minha crítica, ele preferiu apagar meu comentário, escrever um monte de ofensas pessoais no meu chat e depois me bloquear (para que eu não pudesse respondê-lo, claro). Covardia que chama, né? Ou será fascismo? Não sei, neste debate conceitual ainda tenho minhas dúvidas.
Sobre o filme "Anastasia", entendo quem assistiu durante a infância e por isso tem uma relação afetiva com o filme. Quem assistiu depois de adulto e gostou desse filme panfletário é gente como o "Murilo D".
Cabra Marcado Para Morrer
4.5 253 Assista Agora"Eu produzia aqui nesse sítio, onde estou, meio caminhão de mercadoria por semana. O exército pegou, tirou eu aqui, meteu na cadeia, cegou um olho. Deu uma pancada, perdi o ouvido, outra pancada, perdi o coração. Passei seis anos na grade da cadeia. O que foi que eu construí na grade da cadeia pra nação? Tomaram um relógio, um cinturão, cinquenta contos em dinheiro... um jipe o exército tomou, o cangaço tá lá detrás da prefeitura de Vitória. Lá na delegacia, um jipe meu. Não me entregou mais. Isso é tipo de revolução? Pegar de um homem lascado que nem eu, com meus filhos tudinho morrendo de fome aí, e o exército tomar um carrinho que eu tinha. Tomar os documentos, tomar tudo... agora ficou com ele. Que vantagem tem o exército de fazer uma desgraça dessa comigo? Era melhor mandar me fuzilar, não era? Do que fazer uma miséria dessa. Eu fiquei mais revoltado de que eu era. Deixar meus filhos tudinho morrendo de fome aqui e eu lascado lá na cadeia, no cacete, no pau. (...) Passei 24 horas em pé, só o diabo aguenta. Passar, dentro de um tanque de merda, 24 horas em pé. Só Satanás. Eu não acredito que estou vivo não, porque eu nunca vi um espírito da minha qualidade aguentar mais choque elétrico do que eu aguentei, não. Mas não tem melhor de que um dia atrás do outro e uma noite no meio. (...) Um dia o povo tem de pensar quem são eles. Não é possível a gente viver a vida todinha debaixo desse pé de boi, não." (João Virgílio)
A Opinião Pública
3.7 32Geralmente, se liga juventude moderna com revolta. As manchetes falam em tóxicos, delinquência. Não vimos isso no jovem comum da classe media. Na maioria, ele ignora que a sociedade seja teatro de grandes conflitos, que marcha através de um presente risonho para um futuro conformado. Para eles, futuro é apenas um lugar onde vivem os adultos. (...)
A indústria vende aos jovens todos os sonhos. Os principais produtos são o sucesso e a felicidade. O universo dessa indústria é conformista e totalmente isento de angústia, qualquer traço de revolta é logo vulgarizado em moda. O que surgiu como protesto social vira estilo de roupa ou corte de cabelo, os novos uniformes da obediência. Sem dúvida são bons exemplos os ídolos da música jovem, símbolos do triunfo do rapaz direito. (...)
Para muitos, as primeiras derrotas chegam cedo. Nessa república de estudantes só há uma ordem: subir na vida, mudar de classe. Já sabem que a felicidade é uma forma de poder e não um prêmio para as virtudes. (...)
Dois universitários, como trabalhar numa sociedade que desprezam? (...)
O homem da classe media é sempre propriedade de alguém. Hoje, se alistam no exército. Breve, serão os homens do escritório, dos departamentos, dos arquivos. Terão crianças, chefes e dignidade. Serão chamados nos jornais de "a opinião pública" e ficarão orgulhosos de cumprir as funções da nacionalidade. (...)
Disse Dale Carnegie no livro "Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas": "Sorria sempre, faça os outros sentirem-se importantes, aprenda a obedecer e a elogiar. Você tem um produto a vender e este produto é você mesmo". (...)
O que aflige a classe media são os problemas comuns do nosso tempo. Se tais problemas lhe são especialmente amargos é porque ela se pensa imune a problemas. Por não saber onde vai, corre muito. Por não saber o que teme, vive paralisada de medo. (...)
A classe media é uma classe perplexa. Não tem um sistema de valores criado por uma ação histórica dela mesma. São multidões de indivíduos solitários, de indivíduos iguais e que, misteriosamente, se julgam diferentes. É este seu problema maior: pensam que têm algo a perder. Vivem absortos no melodrama da própria insegurança e esquecem que estão num país assolado pela tragédia da fome e da miséria. (...)
Politicamente, a classe media se movimenta quando pressente mudança social que lhe ameace a estabilidade. Nunca toma a iniciativa do progresso. Sempre convocada por interesses que não são os seus, é a vanguarda inocente da sociedade moderna. Bem manipulada, pode fazer movimento contra si mesma. (...)
Muitas vezes campanhas enormes levam a objetivos políticos insignificantes e quase místicos. (...)
O misticismo é a solução final para uma situação social incompreensível. A esperança é transposta para o outro mundo, a última das compensações. (...)
A preocupação política não é básica do homem da classe media. Cada um leva consigo uma fórmula de salvação nacional. (...)
Dizia o sociólogo americano Wright Mills: "A história da classe media é uma história sem fatos, seus interesses comuns nunca levam à unidade, seu futuro nunca é escolhido por ela".
Psicopata Americano
3.7 1,9K Assista AgoraComo li alguns comentários de pessoas que acreditam que o título está errado, que o personagem Patrick Bateman é esquizofrênico e que tudo não passou de um delírio, resolvi comentar sobre o porquê do título, sua adequação e a metáfora com a qual o filme trabalha.
Há três momentos-chave no filme:
O momento em que o detetive Kimball lhe oferece um álibi; o momento em que a corretora de imóveis lhe informa que o apartamento que ele usava para seus assassinatos não teve nenhum anúncio na revista Times, e pede para que ele saia sem arrumar confusão; por fim, o estado de negação de seu advogado na sequência final e um novo álibi para o assassinato de Paul Allen.
Eles sabem o que ele fez, arrumam sua bagunça e pedem para que ele simplesmente siga em frente, como se nada tivesse acontecido. Nos dois primeiros casos, ele fica confuso, não entende como conseguiu se safar de tudo o que fez, até que, na conversa com o advogado, finalmente compreende. A confusão que muitos fazem entre ele e os outros sócios é uma bela metáfora: ele pode ser qualquer um naquela empresa, simplesmente não importa. A competição dos cartões de apresentação acrescenta uma nova camada a essa metáfora: apesar de todos os privilégios, e para além deles, persiste a necessidade da distinção social.
Quando, ao final, ele finalmente entende que não será responsabilizado por nada, os discursos progressistas e toda a fachada humanista é substituída por um "tanto faz". Assim como Reagan e sua política neoliberal-armamentista, ele não precisava disfarçar sua frieza, sua indiferença, seu elitismo, sua perversão. Por isso, como diz Patrick Bateman, não há catarse em sua confissão.
Pensar a psicopatia pela via psicanalítica é fazer referência à perversão, que se delimita a partir da passagem do sujeito pela castração. É na castração, que acontece na passagem do Complexo de Édipo, que o sujeito constrói (ou não) sua relação com a lei, com o simbólico e com o mundo. A mudança que ocorre no final, quando Bateman diz ter ultrapassado qualquer barreira sobre o bem e o mal e querer infligir sua dor aos outros, recoloca a questão da sua psicopatia para a sociedade/estrutura que a conforma. O "hiperliberalismo" como inanição do superego e estímulo a todas as pulsões e perversões do ego.
Assistir a esse filme no atual contexto político, com Paulo Guedes, Bolsonaro e as milícias bolsonaristas, é assistir a uma sequência do filme após os créditos finais.
Arenas Sangrentas
3.7 7 Assista AgoraAs sequências da terceira parte do filme são realmente fascinantes. Após a chegada de Leonardo à Ciudad de México, minha dificuldade com o filme, em função das atuações e da dublagem das falas para inglês, bastante problemáticas, foram completamente superadas por uma montagem impecável.
Chamou-me a atenção os elementos nacionalistas contidos no filme. O roteiro é de Dalton Trumbo, um comunista que apoiava a URSS nesse período (lembrando que o processo de desestalinização dos Partidos Comunistas, e o consequente abandono das teses sectárias do "realismo socialista", só ocorreram após o XX Congresso do PCUS, i. e., ainda que não seguisse o receituário dogmático de Jdanov, Trumbo provavelmente chegou a ter contato com essas teses). É interessante a relação de devoção do garoto com o padre, o patrão (bondoso) e os heróis da Revolução Mexicana. O único momento em que se rebela, assumindo a postura (efêmera) de um herói positivo, não é contra os opressores, mas contra a submissão de seu pai. Nesse imbróglio ideológico, sobre o qual ainda estou refletindo, sem estar próximo sequer de uma conclusão parcial, entra também as rivalidades patrão x matador e Gitano x matador. Na primeira, o matador leva a melhor, embora a afirmação do patrão
"qualquer que seja a sua decisão, você sairá de coração partido"
ambos estão mais preocupados com a glória, colocando suas vidas em risco constantemente.
apelo contra esse sentido de glorificação. O grand finale é interrompido, a torcida não quer a consumação do espetáculo mórbido, Gitano não precisa morrer para provar sua nobreza, ele a demonstra em sua bravura diante das agressões covardes dos toureiros. Da mesma forma, o matador também sobrevive e deixa o touro viver, não é o vilão perfeito, ardiloso, sequer poderia ser chamado de vilão. A mensagem desses dois conflitos, em sua relação e em seu desfecho, parece ser a antítese da afirmação do pai do garoto: ninguém (nem mesmo os touros) nasceram para lutar/ser sacrificado, seja em nome da glória ou do que quer que seja. E a luta contra a opressão não virá do alto (de uma carta do patrão ou do presidente), ela virá do povo.
Algumas impressões bem genéricas. Diria mesmo que escrevi para entender. Espero que sirva a alguém mais. De qualquer forma, já me serviu de algo.
Indústria Americana
3.6 168Em 2008, a crise econômica faz com que a General Motors feche uma de suas fábricas em Ohio. Em 2016, o bilionário chinês Cho Tak Wong reabre essa fábrica para a produção de vidro para automóveis. Se a chegada do Grupo Fuyao, um dos maiores fabricantes de vidro do mundo, trouxe esperança e otimismo aos milhares de desempregados da GM no Meio-oeste norte-americano, esses sentimentos não perduraram por muito tempo.
"Quando em Roma, faça como os romanos. Não os irrite", essa foi a resposta de Cho Tak Wong a um gerente chinês que pensava em colocar símbolos da cultura chinesa na filial de Ohio. Contudo, o presidente do Grupo Fuyao não seguiu o provérbio à risca. Diz que, com a construção de uma filial no antigo cinturão da indústria, buscava mudar a imagem que os norte-americanos tinham dos chineses, mas ele mesmo não parece se importar muito com as enormes diferenças entre as condições de trabalho em um país "emergente" e outro desenvolvido. Cho Tak Wong não sabe lidar com os sindicatos e as leis trabalhistas norte-americanas, tampouco aparenta ter o know-how para entender uma cultura que produz bufões que só sabem reproduzir frases de efeito sobre "empreendedorismo".
Um desses bufões é Dave Burrows, gerente bem remunerado da nova filial. Burrows praticamente tem um surto quando, no evento de reabertura da fábrica, o senador democrata Sherrod Brown faz um discurso incentivando a sindicalização dos trabalhadores do Grupo Fuyao. Cobrar direitos trabalhistas do empresário benevolente que trouxe de volta milhares de empregos? É claro que Burrows não poderia concordar com isso. Pelo menos, não enquanto as condições de trabalho degradantes e os baixos salários fossem um problema apenas do chão de fábrica. Quando os trabalhadores norte-americanos do Meio-oeste se revelam menos suscetíveis a sujeição, porque amparados por uma cultura política trabalhista, e a empresa passa a demitir os gerentes e supervisores por não conseguirem aumentar a produção e conter o processo de sindicalização, Burrows muda radicalmente o seu discurso. A demissão faz isso com as pessoas, elas têm mais tempo para refletir.
"Indústria Americana" é, de fato, um documentário impressionante, justamente por revelar as inúmeras facetas da etapa "pós-industrial" do capitalismo. Diante do sentimento de impotência, muitos trabalhadores adotam uma postura xenofóbica em relação aos chineses, outros permanecem resignados por terem enfrentado longos anos de desemprego. A relação do empresário com o Estado chinês e sua leitura "sui generis" da revolução de 1949 também chamam a atenção: por um lado, diz que a China alcançou a prosperidade graças aos revolucionários e que sua empresa não teria chegado tão longe sem a força do Estado chinês, por outro, revela um sentimento romântico de perda, relembra sua infância na China antes da Revolução, um país pobre, mas mais feliz.
"Eu sinto falta dos sapos e insetos da minha infância, do florescer das flores selvagens. Nas últimas décadas, eu construí inúmeras fábricas. Será que só causei perturbação e destruí o meio ambiente? Não sei se contribuí para o bem ou se sou um criminoso", essas são as palavras de um capitalista devotado ao Partido Comunista da China.
"Os trabalhadores e o movimento trabalhista construíram os Estados Unidos. (...) Nada no país mudou no tocante a pessoas esforçadas dando duro. Não foi isso que mudou nos EUA. O que mudou foi que pessoas no topo decidiram reescrever as regras para tirarem proveito das pessoas, para se beneficiarem às suas custas. E vocês têm o direito e a obrigação de dizer não a isso. É a esse propósito que um sindicato na Fuyao servirá. Ao longo dos muitos anos nesta luta, possibilitamos que as empresas lucrem mesmo sendo justas com os funcionários, mesmo pagando salários decentes e provendo segurança. Essas coisas podem coexistir", essas são as palavras de um sindicalista norte-americano que ainda não entendeu a resposta a soprar no vento.
O Jovem Karl Marx
3.6 272 Assista AgoraApós a experiência frustrante de "Hannah Arendt" (Margarethe von Trotta, 2013), confesso que tive uma certa resistência em assistir ao filme de Raoul Peck ("Eu não sou seu negro") sobre o jovem Marx.
Ledo equívoco. Estimulado pela celebração do 202º aniversário de Marx, acabei de assisti-lo e já o recomendo aos que se interessem pelo tema.
Excetuando duas sequências - a de Marx e Jenny na cama, totalmente desconexa da narrativa, e a de um diálogo entre Engels e Jenny, com cortes e enquadramentos um tanto quanto confusos -, achei a direção muito boa, com um bom roteiro e bons figurinos. Entrega o que promete.
Uma excelente obra para desmistificar a figura deste grande intelectual e revolucionário socialista.
Tudo Azul
3.4 4Como já foi comentado, o filme tem um início promissor. Inclusive, é possível que Nelson Pereira dos Santos tenha se inspirado em algumas sequências para os seus dois primeiros filmes, "Rio, 40 Graus" e "Rio, Zona Norte".
Tal como em "Rio, 40 Graus", o filme se inicia com o letreiro dos créditos sobre uma imagem panorâmica do Rio de Janeiro, na qual podemos ver o Corcovado e o Cristo Redentor. Contudo, ao contrário da abertura do clássico de NPS, enquanto o letreiro sobe, a imagem da então capital federal segue estática.
Se NPS procura revirar essa imagem do "cartão-postal" do avesso, logo na primeira sequência já podemos intuir que o filme de Fenelon tratará de reafirmá-la. A voz em off que destaca as maravilhas do Rio de Janeiro, logo descobrimos, não é a de um narrador onisciente, mas a de um apresentador de rádio. É ele quem dará o mote do filme: o programa "Você tem a sua vez" oferece a oportunidade para que compositores inéditos possam ouvir suas composições na voz dos "maiorais do rádio": Marlene, Dalva de Oliveira, Jorge Goulart, Carmélia Alves, Blecaute e Linda Batista.
É a saga de um desses compositores inéditos que acompanharemos ao longo do filme. Ananias, interpretado por Luís Delfino, tem sua primeira aparição como um sujeito humilde e persistente, que tenta, em vão, falar com o diretor artístico da rádio e com o cantor Jorge Goulart para vender uma de suas canções. Ele será o protagonista dessa história, cujo paralelo com a trajetória do sambista Espírito da Luz em "Rio, zona norte" me parece inevitável.
Mas aí, como já dito, vem o básico da chanchada: uma desculpa para uma sucessão de números musicais.
Frustrado no trabalho e no casamento, desrespeitado pelos filhos e humilhado pelo patrão e por seu amor platônico, ele acaba sonhando com o suicídio. O sonho se justifica pela sequência (nada sutil) de conselhos que recebeu para que tirasse a própria vida. No sonho, ele toma o veneno que está no banheiro (e que sabemos se tratar de um veneno por estar escrito, como numa cena cômica de "Chaves"), despede-se de sua filha (na cena mais tocante do filme, com uma fotografia incrível), desce o elevador e caminha em direção aos portões de um jardim.
Após os conselhos de um sábio jardineiro (uma espécie de São Pedro nos portões do paraíso), ele decide retomar a sua vida com mais otimismo. Para o espanto de Ananias, tudo começa a dar certo a partir daquele momento. Recebe um abono junto ao salário, seu aluguel é reduzido pela metade, passa a viver uma espécie de relação poliamorosa com a esposa e a secretária do seu patrão (curiosamente, as crianças desaparecem de qualquer sequência do sonho), é promovido a chefe do departamento de felicidade da empresa (na sequência mais patética do filme) e se torna um compositor de sucesso.
Tudo muito fácil, o desejo alcançado se transforma em tédio e aborrecimento. Ananias logo deixa de sentir prazer em compor. Ao despertar, descobre que será pai do quinto filho e passa a tratar a esposa com afeto, mudando radicalmente após seu sonho, o qual teria revelado - numa espécie de epifania moralista-pequeno-burguesa - que a conquista sem esforço não tem valor.
Antes de se entediar com o sucesso, contudo, ainda durante o sonho, temos uma sequência de mais de 20 minutos de musicais. Descobrimos então que a cantora Marlene (então esposa de Luís Delfino) interpretou dois papeis: o seu próprio, como rainha do rádio, e o de Maria Clara, a secretária por quem Ananias era apaixonado. É curiosa a interpretação desses dois papeis, porque, numa determinada sequência, Maria Clara começa a cantar uma música que Ananias acabara de compor (Lata d'água na cabeça), o que faz com que ele decida transformá-la na intérprete de todas as suas canções. Daí em diante, já não sabemos quando Marlene é Marlene, quando ela é Maria Clara. Mas não tem importância, tudo é apenas um pretexto para que seus sonhos estejam recheados de musicais.
Mesmo se Nada der Certo
4.0 1,9K Assista AgoraAdorável, como "Letra e Música". Um bom filme para assistir em casal e matar o tempo... Não tem nada de novo ou interessante, mas é um bom entretenimento. A trilha sonora é muito boa. Nota 7.
Dois Papas
4.1 962 Assista AgoraEssa linguagem, que o Meirelles trouxe da publicidade, às vezes funciona (como em "Cidade de Deus", "Ensaio sobre a Cegueira" e "O Jardineiro Fiel"), às vezes não. O roteiro é excelente. As atuações de Jonathan Pryce e Anthony Hopkins estão impecáveis. Mas toda a arquitetura, pinturas e esculturas foram simplesmente desperdiçadas. Meirelles disse que quase não assumiu o projeto por sua ignorância acerca da história e dos rituais da Igreja Católica, e que só mudou de ideia porque o roteiro era muito bom. De fato, acredito que um diretor mais afinado com essas questões teria apresentado um desempenho melhor. Mas é um bom filme: crítico, sem ser maniqueísta; com diálogos filosóficos, sem ser enfadonho (embora tenha passado muito perto disso em alguns momentos); com cenas tocantes, sem ser piegas. A trilha sonora e a fotografia oscilam entre breves momentos de beleza e uma série de escolhas infelizes. 8/10.
Achei o passado de Bergoglio muito bem trabalhado. Conta a sua versão da história, é verdade, mas proporciona uma leitura plausível da mudança de postura. Chamava-me a atenção o ódio que meus amigos argentinos tinham pelo papa conterrâneo, chamando-o de filhote da ditadura, quando todo seu discurso era o oposto disso. Acho que Meirelles (e, sobretudo, o roteirista) foram bem felizes nessa narrativa da "redenção". Nesse processo, gostei particularmente da brincadeira do Meirelles com Paulo Freire.
Francisco lê nosso pedagogo em Córdoba, durante seu isolamento, e logo aparece usando referências do futebol para catequizar
Sua confissão, ao contrário da de Francisco, não tem texto. Ele gesticula uma fala e, após um discurso que o espectador não teve acesso, assistimos à reação de Francisco sobre UM caso de UM cardeal que foi transferido e repetiu as práticas de abuso sexual de menores diversas vezes. A relação com o nazismo é mencionada apenas como categoria de acusação dos fiéis, mas o próprio Ratzinger não diz nada sobre o tema. Mesma coisa em relação aos escândalos de corrupção. E o próprio escândalo de pedofilia na Igreja Católica é mencionado "alegoricamente", reduzido a um único caso
A Primeira Tentação de Cristo
3.0 345Os bolsominions fizeram uma enorme propaganda para o pior especial do Porta dos Fundos. Apontar o quanto o texto é sem graça seria uma crítica muito mais eficaz, mas a racionalidade passa longe dessa gente.
Não que eu tenha algum problema com piadas sobre religião. Pelo contrário, George Carlin, Rowan Atkinson e Monty Python são geniais. Algumas esquetes do PdF também. Mas esse especial parece algo produzido pela Globo Filmes.
O pior é que, agora, um monte de gente vai defender um especial tosco, seja porque foi produzido por gente querida, seja porque tem um bando de bolsonaristas pistolas do outro lado.
Sabe quem adorou esse especial? A bancada evangélica. O Feliciano deve ter acompanhado até o processo de produção. Provavelmente já tinha um textão oportunista antes mesmo da estreia.
A Lavanderia
3.3 247A cena final de "A Lavanderia" (2019),
com Meryl Streep encarnando a promessa republicana contida na Estátua da Liberdade
Muito distinto de "uma câmera na mão e uma ideia na cabeça" - afinal, já não há lugar para o idealismo estético de figuras como Glauber Rocha e Jean-Luc Godard -, o que temos aqui é o manifesto de uma "guerra de posição" por parte dos atores hollywoodianos, para usar um termo que Olavo de Carvalho adoraria. Atores que resolveram usar parte de suas fortunas para produzir e atuar em filmes de baixo orçamento e conteúdo altamente político (tais como "A grande aposta" e "Vice", de Adam McKay). Atores que ganham tão bem quanto os jogadores do Barcelona ou do Real Madrid, mas que, como afirmou Meryl Streep, não produzem exatamente o mesmo tipo de arte.
Estes filmes valem o quanto pesam. A aposta é no conteúdo, não mais na forma.
Sinto muito, Adorno, mas acho válido
O Irlandês
4.0 1,5K Assista AgoraNão esperem um novo "Os Bons Companheiros". Não esperem um novo "Cassino". Muitas das críticas ao filme vêm de fãs que esperavam uma coisa e receberam outra.
"Ain, mas não teve clímax". Primeiro, isso não é um critério. Ele se propôs a criar um clímax? A história é sobre o assassino de Jimmy Hoffa. Através da biografia desse assassino acompanhamos uma série de intrigas por trás da IBT (Irmandade Internacional dos Caminhoneiros), do assassinato de John Kennedy, da crise dos mísseis em Cuba, da inserção política das máfias italiana e cubana na política norte-americana, etc. Não ter clímax não é sinal de uma narrativa preguiçosa.
A construção dos personagens é impecável. Aqui sim, há uma clara semelhança com seus clássicos: a violência atravessa todas as relações, todos julgam que o outro "passa dos limites", é "esquentado", mas essa é uma característica de todos eles (uns mais que outros, obviamente).
Assim como em "New York, New York", muitos apontaram a falta de edição, dizendo que o Scorsese "errou a mão", que o filme poderia ter uma hora a menos, etc. Discordo totalmente. Primeiro, acho que isso é coisa de quem se habituou ao cinema comercial mais do que devia. Fizeram a mesma crítica ao "Os Oito Odiados", do Tarantino, e provavelmente farão a qualquer filme que ultrapasse 2h30 de duração. Segundo, nos dois filmes o Scorsese pega a mão do espectador e, tal como Hyldon, diz "existe um mundo novo e quero te mostrar". Nos dois filmes, temos uma cena ao telefone com uma carga dramática belíssima, mas, para senti-las, compreendê-las de verdade, você precisa estar imerso naquela história.
É possível que "O Irlandês" entre, assim como "New York, New York", para uma espécie de lista de filmes do Scorsese preteridos pelos fãs. Eu fiquei fascinado pelos dois.
Em tempo, se fosse cortar alguma coisa, seriam apenas duas: 1)
a explosão quando a esposa de Hoffa é demitida, acho que aquela cena olhando para as chaves do carro teria uma carga dramática maior sem ser autoexplicativa, isto é, sem mostrar o que ela estava imaginando (as imagens na cabeça do espectador funcionam melhor, na minha opinião);
ele se perguntando "quem teria coragem de fazer aquele telefonema?" diante do padre. Sei lá, achei piegas. A culpa ao telefone já tinha atingido esse lugar, e não precisava explicar que ele carregou a culpa pelo resto da vida, porque tudo indicava isso: as tentativas de reconciliação com as filhas, as próprias confissões com o padre, etc. Enfim, cortaria essa fala.
A Terra é Plana
3.5 196Acho um bom filme até mesmo para aqueles que não estão interessados nos terraplanistas. O documentário apresenta uma visão sóbria sobre a ciência. Você tem uma pergunta, você elabora uma hipótese, coleta todos os dados necessários, faz experimentos, reelabora a hipótese se for necessário e, por fim, chega a um resultado (que não necessariamente será a confirmação de sua hipótese). O anti-intelectualismo é, em grande medida (e ironicamente), alimentado por uma visão positivista da ciência. As pessoas acreditam que a ciência detém a verdade e só por isso dão algum crédito a ela. A ciência elabora teorias que podem ser falsificadas por novas teorias. Enquanto teorias são falsificadas, a ciência avança. Qual o problema dos terraplanistas? Eles querem uma verdade absoluta, mas sua busca não é pautada pelo método científico, eles têm uma hipótese e apenas buscam confirmá-la (e vemos como se frustram quando, sem querer, encontram algo que desmente completamente toda a sua teoria).