Brutal. Tem um dos melhores trabalhos de direção que vi em um filme recente. Consegue constantemente manter a dubiedade acerca da real personalidade do protagonista, dando vislumbres de um possível monstro escondido por trás da persona do jovem prodigioso. A crítica incisiva que faz sobre a fragmentação identitária da América é das mais pujantes, atacando a politização exacerbada de cada aspecto da vida em sociedade que transforma a experiência humana em um grande tratado político.
O filme fica ainda mais assustador se pensarmos na América, outrora vista como terra da liberdade e prosperidade, transformada em terra fértil para a proliferação de psicopatas, que escondem seus rastros de destruição através do sucesso que alcançam em meio a sociedade.
Nós até podemos proteger os nossos de serem despedaçados pelo mundo, mas não somos capazes de nos mantermos inteiros quando a verdade sobre eles nos é revelada. Seríamos os mesmos sabendo que povoamos o mundo com monstros? Dificilmente, porém, somos nós mesmos tão diferentes dos monstros que tememos?
Apesar do título emprestado da obra de Erich Maria Remarque, o diretor Edward Berger pouco se utiliza da ideologia pacifista da obra escrita e desvirtua da trama em diversos momentos. É bem verdade que o filme ainda mantém o seu teor, mas Berger parece mais interessado em recriar uma experiência imersiva do horror da guerra, transmitindo através das reações causadas pela carnificina visual o que a obra de Remarque expõe através da lógica filosófica do pacifismo.
Sendo fã confesso do livro e da adaptação de 1930, admito que senti falta de três passagens icônicas de ambas. A primeira ausência sentida foi a da passagem do professor que incentiva os seus alunos a se alistarem na guerra, passagem essa completamente suprimida na adaptação de 2022. A segunda, diz respeito ao par de botas que dura mais que os jovens soldados, elementos esse que foi ressignificado na nova versão. E a última ausência diz respeito ao final, que é muito mais lírico e significativo no livro e no filme de 30 do que nessa nova versão.
Como a proposta dessa nova versão é a do hiper-realismo, é compreensível que os elementos mais poéticos sejam ceifados ou suprimidos, dando lugar a uma malícia irônica e niilista, pois não há lugar para a beleza na guerra, não há tempo para a contemplar o bater de asas de uma borboleta ou para se distrair com o canto dos pássaros.
Essa nova versão, ainda que aquém do filme de 1930, possui imagens poderosas e não teme desviar da obra base para contar sua própria história. A imersão alcançada nas cenas nas trincheiras impressionam, porém, são os close-ups do ator Felix Kammerer, com seu “olhar de mil jardas”, que deixam a marca mais profunda.
A dinâmica da narrativa de The Batman funciona de forma similar a de um motor de carro. O arranque é dado e o filme começa numa marcha e vai levando. Quando sente que começa a perder potência, ele troca de marcha e muda quase que completamente, apresentando desvios de rumo que colaboram para que aquele universo dos personagens transpareça como um cenário vivido e pulsante. Algumas escolhas de desenvolvimento e composição de personagens, bem como a repetição levemente exagerada do redirecionamento do rumo narrativo, comprometem parcialmente o andamento de uma narrativa de quase três horas de duração.
Em suma, The Batman é um belo filme, possuindo um roteiro bastante inchado, sendo bem irregular em algumas passagens, mas que no seu todo apresenta um espetáculo que merece ser visto na maior tela possível. A fotografia é absurda de tão detalhista, com a direção optando por trabalhar silhuetas de maneira evocativa do cinema expressionista dos anos 20, criando planos tão belos quanto dramaticamente funcionais. O tom melancólico que permeia todo o filme bebe do fatalismo característico dos filmes noir, sendo reforçado por uma narração que busca emular os registros de um diário, e, também, pela força da belíssima trilha sonora do Giacchino.
Poder-se-ia dizer, sem qualquer pudor ou temor de erro, que o “mea culpa” do cinema alemão aos horrores do nazismo esgotou-se nesse filme crepuscular do Fassbinder. Tudo o que veio depois nessa proposta apresentou-se menor e derivativo do que o que presenciamos aqui. Seu cinema sempre buscou capturar a presença de uma ausência, o retrato de uma sociedade forçada a se reconstruir enquanto nega, pari-passu, todos os valores e estruturas causais e consequenciais associados ao Nazismo. A sociedade alemã em seus filmes parece um elemento hermético, isolado, buscando a exoneração da culpa de seus pecados passados e o reencontro com a civilização. É dito que, em cenários de guerra, o sofrimento feminino é o elemento que melhor representa o colapso da ordem de uma determinada sociedade, e o escopo do sofrimento ao qual Fassbinder submete suas mulheres parece transparecer uma noção de que qualquer reconstituição de uma civilização alemã permanece ainda muito distante.
Algumas imagens de “Hiroshima Mon Amour” parecem querer permanecer, como lembranças que se impõem ao longo dos anos. Há um desejo por querer impedir essas lembranças de se desfazerem, até mesmo quando a memória se esvazia tal qual as ruas de Hiroshima. Os personagens não possuem mais firmamentos e devem deixar as lembranças liquefeitas escorrerem entre os dedos, sujeitando-se a boiar novamente, ao sabor da correnteza. Não há mais nada ali para se agarrar, é preciso aprender a ler o mundo não mais com as mãos, mas com os olhos. É necessário tomar a distância de um olhar que permite ver a história, e então desligar-se dela. Eis o paradoxo: tomar consciência do esquecimento, olhá-lo diretamente nos olhos e seguir adiante, porque é preciso e porque permanecer muito tempo na margem do rio é arriscar de ficar ali para sempre.
O Paul Thomas Anderson até se esforça pra tentar construir um filme aos moldes de Shampoo, tentando recriar uma trama romântica mosaico dos reflexos político-sociais de seu tempo, porém o resultado final é derivativo e vazio, cheio de tiques estilísticos de um sujeito que trata a reciclagem do velho como algo inerentemente visionário. Acontece que o Anderson não é talentoso como o Robert Towne em seu desfile de personagens, talvez seja por isso que as ações dos personagens sofrem tanto aqui com a ausência de um consequencialismo verosímil.
Deve praticamente tudo a Rocky. Não é ruim, pelo contrário, sua execução é bastante competente e a sua primeira hora é muito interessante. O problema é que termina no lugar comum dos outros filmes esportivos. A atuação do Smith não entrega nada novo, somente possuindo bastante impacto graças a uma direção que trabalha constantemente para engrandecer sua presença. Em suma, um belo Oscar-bait, que trabalha temas atuais com uma leveza invejável e consegue reciclar muito bem o prazer de acompanhar o triunfo de personagens carismáticos.
A sequência de abertura é belíssima, o Branagh precisa urgente dirigir um filme de guerra. A trama do bigode é facilmente a melhor coisa do filme. Branagh entende completamente que esse gênero depende majoritariamente do uso de close-ups como elementos de construção e desenvolvimento do mistério, porém, diferentemente do que acontece em Assassinato no Expresso Oriente, aqui a direção não consegue incorporar de forma orgânica todos os elementos acerca do mistério, transparecendo por vezes uma encenação forçada que impede a total imersão na trama.
Uma propaganda do exército americano completamente rasa e sem qualquer comprometimento dramático. Passa longe da sutileza e genialidade de filmes como Sargent York, Since You Went Away, Yankee Doodle Dandy e Mrs. Miniver.
Após esse revisão, ficou ainda mais claro que o remake/reboot de 2022 é mesmo um lixo fétido flamejante.
A abertura desse filme é algo genial. Além de qualquer estilização espertinha do roteiro do Williamson, o que é realmente uma sacada de mestre está na forma como o Craven retira a suposta grande estrela do filme e instaura uma aura de que tudo é possível durante o restante do filme. Dessa forma, quando o assassino atormenta e persegue subsequentemente a personagem da Neve Campbell, tudo pode acontecer, ela pode ser eliminada a qualquer momento. É um sentimento voltado para a narrativa que é muito difícil de ser reconhecido uma vez que já a conhecemos completamente. Uns dizem que o mesmo fenômeno aconteceu anteriormente com Psicose e a sua icônica cena do chuveiro, mas os aspectos acerca desse filme já estão inseridos no imaginário popular tão profundamente que é quase impossível que alguém que veja o filme pela primeira vez já não esteja familiarizado com alguns dos elementos que compõem suas passagens mais marcantes.
Nas mãos de diretor menos talentoso, a cena inicial provavelmente entregaria um choque genérico e pronto. Craven não faz isso, ele brinca com o choque de forma muito lúdica, sempre permitindo um vislumbre de salvação para a personagem, até que ele consuma esse destino final da personagem através de um plano em que a violência gráfica é praticamente atirada em nossos olhos.
“Todos os problemas do homem derivam do fato de que ele não é capaz de ficar sentado sozinho, em silêncio, num aposento.” - Blaise Pascal
Esse filme é praticamente um tratado contra a modernidade líquida. O personagem inicialmente ritmado pelos infindáveis estímulos que a sociedade moderna apresenta se vê forçado, quando obrigado a permanecer estático e sozinho, a realizar uma reavaliação da maneira efêmera como encarava suas relações pessoais. Nesse sentido, o diretor Danny Boyle pega todas as ferramentas de estímulo da modernidade, as despeja na tela nos primeiros 20 minutos e então nos força a encarar o desespero, a solidão e o sofrimento humanos de quando somos privados desses elementos, que servem para turvar qualquer noção acerca da miséria da condição humana.
Em um primeiro momento, o filme se apresenta como um teatro da inveja. A protagonista parece cobiçar a juventude, a maternidade, as relações familiares daquelas mulheres que coabitam a praia com ela. Ela deseja voltar a ser desejada. Tudo está posto nessa cena. Quando descreveu sua conceituação de mimese, o historiador Rene Girard afirmou que as pessoas desejam os objetos não devido ao seu valor intrínseco, mas porque eles são desejados por outras pessoas, e nós somente imitamos os seus desejos. Essa ideia permeia quase todo o filme, essa estranha impressão de que a personagem se vê dividida entre o egoísmo (uma forma de agir sem influência do desejo mimético) e a maternidade (algo perpetuado pelo desejo mimético). Por mais que o texto base de Elena Ferrante seja riquíssimo em explorar esses elementos, o filme passa muito longe de adaptar tal exploração, se perdendo justamente quando abandona tais conceitos para abraçar uma narrativa de culpa e de busca por uma segunda chance.
A direção não articula nenhum aspecto formal para enriquecer o aspecto narrativo, somente recorrendo à algumas das metáforas mais desprovidas de sutileza de que me recordo recentemente. Aliás, o filme parece desconhecer por completo a função dos dispositivos de montagem como um elemento narrativo. A forma como ocorre o vai-e-vem entre o presente e as lembranças da personagem compromete consideravelmente a força dramática da obra.
Em suma, o filme começa como uma proposta de reavaliar o desejo da maternidade sob a ótica do desejo mimético, tal como observado por Girard em Teatro da Inveja, e termina como uma espécie de conto cautelar sobre o narcisismo da mulher moderna. Enfim, um filme que insiste constantemente em quase enfiar a câmera no nariz da Olivia Collman já atesta por si próprio que não tem capacidade moral, ou estética, de ser grande coisa.
Gosto mais de Robert Bresson do que de Federico Fellini. Digo isso pois, por mais diferentes que sejam em tom, me peguei pensando em Mouchette enquanto acompanhava o sofrimento de Cabíria. Se no filme de Fellini todos os elementos sociais são despojados da seriedade que lhes são característicos na realidade, já no filme de Bresson ocorre o inverso: há o reforçar da gravidade do que já é sério e também o desenrolar da forma como essa seriedade age para destruir essa concepção interpretativa lúdica e lírica do real. Enquanto Fellini nos diz que devemos buscar pela mágica que permeia a brutalidade do real, Bresson reafirma que essa brutalidade invariavelmente esmagará toda e qualquer fantasia conjurada acerca da realidade.
Um filme sobre a danação da alma e as perspectivas ilusórias de redenção que posteriormente se manifestam. Como encontrar a salvação do espírito quando é próprio da nossa natureza se direcionar à perdição?
Tem um começo inchado e monótono, um meio genial e fluido, e um final convoluto que acaba se perdendo em meio a revelações, diálogos explicativos e algumas pontas soltas.
Enfim, o que seria desse filme sem a gigantesca performance de Bradley Cooper? Que outro ator da atualidade seria capaz de suportar toda a carga dramática de um plano como o último de Nightmare Alley? O que seria daquele desfecho, já antevisto à quilômetros de distância, sem que tivéssemos experienciado em sua feição a decadência e perda de humanidade? Certamente que o filme seria muito menor se dependesse apenas das afetações de Del Toro. Cooper tem aqui a desenvoltura de um grande astro dos anos dourados da Hollywood clássica, ele engrandece o que seria apenas mais uma revisão fetichista dos filmes Noir.
Diferentemente dos outros filmes de 2021 que tentaram cativar pela nostalgia fetichista (Last Night In Soho, West Side Story), Nightmare Alley apresenta luz própria, e nela, Bradley Cooper brilha praticamente sozinho.
"I’ve been poor my whole life. So my parents and their parents before them. It’s like a disease, passing from generation to generation, becomes a sickness. That’s what it is. Affects every person you know, but not my boys. Not anymore. This is theirs now."
Há um despojamento da mise-en-scène em Hell or High Water, uma espécie de naturalismo que é hiperventilado não nas imagens das grandes planícies do meio-oeste, mas nas das ruínas das construções humanas que ali parecem permanecer como representações de uma prosperidade que ficou no passado. É quase impossível discernir se o retrato do meio-Oeste americano do filme é uma encenação, um construto diegético para aquela narrativa, ou se o que é mostrado nas imagens é a realidade tal como ela se apresenta. O presente é fantasmagórico, os ideais que guiavam a América são os mesmos que a colocaram de joelho, a prosperidade novamente tornou-se algo a ser conquistado, ainda que o seu desfrutar seja impossível aos seus conquistadores.
"Na Itália, depois de trinta anos sob os Borgias, onde eles tiveram guerras, terror, assassinatos e derramamento de sangue – eles produziram Michelangelo, Leonardo da Vinci e a Renascença. Já na Suíça, onde eles tinham amor fraterno, 500 anos de democracia e paz, o que eles produziram? O relógio cuco."
Esse é irretocável. Além do seu valor artístico, seu retrato histórico-cultural possui um valor inestimável para a humanidade. Fachadas de prédios destruídas pelo choque das vaidades humanas; um embate sensorial em meio às ruínas urbanas que simbolizam a alma de uma Europa em frangalhos.
Um filme sobre o lirismo que preenche as nossas vidas e que acaba passando desapercebido no meio do caos e desilusão tão frequentes.
Em maior ou menor escopo, Ilíada e Odisseia são obras fundamentais pois se apresentam como relatos universais, são jornadas que manifestam o elemento ontológico da humanidade. Deixamos o lar visando garantir a integridade dele e dos nossos, somente para descobrir que a própria jornada e os seus percalços tornam o retorno impossível. Voltamos a adentrá-lo, é verdade, mas a nossa percepção não é mais a mesma. Mudamos nós ou foi o lar que deixou de ser convidativo? Por que não os dois?
Apesar da direção completamente acadêmica do Clooney, confesso que o filme me pegou emocionalmente. Os questionamentos do protagonista quanto a descobrir a verdadeira vocação, ao dilema de ter uma carreira funcional e rentável versus uma vida de escrita artística e intelectual, a insistência em um interesse amoroso indisponível e distante, o frequente confronto com a mortalidade de entes queridos, todos foram marcantes por encontrarem ecos na minha atual realidade.
Sim, é verdade que não se pode voltar pra casa novamente, mas certamente é possível encontrar esse lar que tanto buscamos nas doces lembranças que forjamos.
Que as peças de Shakespeare tenham sido celebradas pelas plateias já no seu tempo, época em que a população inglesa era majoritariamente composta de analfabetos (excetuando alguns poucos nobres e agentes representantes da corte), é um belo atestado da qualidade das mesmas. Profundo era o conhecimento do bardo de Avon sobre as forças que habitam o âmago dos seres humanos, e suas peças sempre foram hábeis em transparecer isso. Eis portanto o elemento que desde os primórdios arregimentou a aclamação do autor: indivíduos incapazes de expressar seus sentimentos e desejos íntimos eram capazes de reconhecê-los ali representados nos multifacetados personagens shakespeareanos.
Com o processo de massificação da cultura e a preponderância da noção de “ócio-criativo”, surgiu o discurso de que a elite se apropriou culturalmente das peças de Shakespeare e, por consequência, estas passaram a ser representações elitistas de um ideal de “alta-cultura”. O que anteriormente existia como uma elemento cultural popular transformou-se em algo erudito e excludente. Porém, isso é somente meia-verdade. Não obstante, deve-se reconhecer que as peças do bardo permanecem as mesmas, não sofreram nenhuma modificação e sua amplitude de significações e entendimentos sobre o caráter humano permanecem tão pertinentes hoje quanto no período de seu surgimento, no século XVI.
Os jogos de poder e as traições políticas não permanecem pertinentes, tal como em Ricardo III? Os temores da traição e inveja não mais continuam a nos assolar tanto quanto assolaram Othello e Desdêmona? Não mais ponderamos, tal como Hamlet, sobre a ausência de sentido e o desespero das incertezas? Não mais questionamos as ordens vigentes em nome de amores proibidos, como ocorre em Romeu e Julieta? Não seguimos colocando nossa fortuna nas mãos dos astros e amaldiçoando-os quando estes nos encaminham diretamente aos nossos fracassos, como em Macbeth? Se as obras e seu caráter universal permanecem imutáveis, o que mudou, de fato, senão o coração dos seres humanos?
Não buscamos mais na arte os elementos mesmerizantes que cativam nossas mentes, expandem nossa imaginação e nutrem nossos imaginários. Não buscamos mais através das obras de arte obter algum conhecimento sobre nós mesmos. Tudo que procuramos nelas é um doce escapismo, alguma oportunidade de fugir de nós mesmos e dos nossos problemas, desejando por algo e agindo de forma diametralmente oposta na realidade. Nutre-se um ardente desejo por romance e aventura, enquanto conforma-se com um relacionamento conveniente em uma mesmice diuturna. Não mais tornamos os sonhos em realidade, pois agora somos capazes de sonhar acordados. E essa pratica ociosa nos leva a uma existência conformada. As dúvidas existenciais que sempre tivemos tornaram-se certezas. Agora, somos certos de nossos temores.
“Morrer - dormir, dormir, talvez sonhar - eis o problema: pois os sonhos que vierem nesse sono de morte, uma vez livres deste invólucro mortal, fazem cismar. Esse é o motivo que prolonga a desdita desta vida.”
Última parte da tetralogia iniciada em Ricardo II, Henrique V talvez seja a mais tediosa das peças de Shakespeare. Apesar de seus momentos eternizados, em especial a passagem em que o rei, confraternizando à paisana dentre seus soldados, busca reconhecer a sincera devoção deles para consigo, a obra não possui o mesmo poder textual ressonante presente em Macbeth e em Júlio César.
Olivier também pouco faz para cativar e tornar a obra menos enfadonha. Excetuando as impressionantes inovações visuais à época (que hoje mais colaboram para o sentimento de uma teatralidade hiperbólica), o filme não apresenta nada muito além de um teatro filmado, algo muito diferente e inferior ao que o diretor viria a entregar em sua adaptação de Hamlet.
"Dê-me um homem que não se entrega às paixões e eu o guardarei em meu coração, sim, no fundo do meu coração, assim como o faço contigo."
Não fosse a visão fantasmagórica de seu pai compartilhada com os seus compatriotas, poder-se-ia afirmar que Hamlet sofre de esquizofrenia ou alguma outra doença mental. A peça sobre o príncipe dinamarquês é costumeiramente exaltada por ser, dentre toda a obra do Bardo de Avon, aquela que apresenta o elemento sobrenatural de maneira mais concreta. Discordo dessas colocações, acho que Macbeth ocupa esse posto.
Gosto de interpretar Hamlet como uma espécie de construção prototípica de elementos que viriam a serem estudados e catalogados séculos depois pelo ramo da Psicologia. Na obra, Shakespeare brinca com as questões de objetividade e subjetividade que circundam a morte do Rei Hamlet. É na subjetividade do príncipe Hamlet que surge a certeza de que seu pai fora assassinado, ainda que a presença fantasmagórica de seu pai o induza a tal. Há, de fato, algo podre no reino da Dinamarca, mas talvez essa podridão venha, não do derramamento fraticida de sangue, mas do estado anímico que corrompe a alma do príncipe. Talvez o seu desconcerto interno não se deva aos aspectos nobres que proclama, deve-se, talvez, a elementos mais mundanos e mesquinhos, tal como ter sido preterido na linhagem do trono e por ver sua mãe compartilhando com uma terceira parte o afeto que devia ser somente seu após a morte de seu pai. Hamlet busca “justiça” não por seu pai, mas para si e seu ego arranhado.
A adaptação de Olivier condensa a peça para que ela permaneça funcional em sua metragem consideravelmente menor do que a duração costumeira. Apesar de obter enorme êxito na construção da obra, algumas das belas e impactantes passagens (em especial, a ponderação após o assassinato de Polônio ou o solilóquio com a caveira de Yorick) possuem um peso menor do que deveriam. Apesar disso, o peso do texto está presente e a direção em momento nenhum passa a impressão de que se trata apenas de mais um “teatro filmado”.
Séculos após a morte de Shakespeare, o alemão Bertolt Brecht argumentaria que os objetivos no seu teatro passavam longe da diversão e da distração das plateias. O que ele propunha em suas peças era um resgate do interesse pelos temas caros a humanidade, desejando que as plateias se interessassem pelo que é realmente importante quando excluídos todos os elementos que colaboram para a construção da tradicional ilusão teatral. Brecht passou assim a tentar de todas as formas despir os elementos essenciais no corpo textual das contrapartes técnicas que tendem a obscurecer a moral do texto.
Eis o que chama a atenção nessa nova adaptação de Macbeth: a escolha por filmar em um preto e branco com alto contraste, em uma proporção de tela com menor latitude, evitando as cores chamativas e a recriação de planos grandiosos e repletos de detalhes e de profundidade, prejudica parcialmente a transposição e o peso do texto de Shakespeare. Aqui, a escolha estética age constantemente para passar a impressão de que não há estética alguma. Dessa forma, fica transparecido que, em uma tentativa de despir a peça de qualquer elemento que distraia do texto declamado, a estética (ou ausência de uma, se isso for possível) acaba criando nela mesma um impedimento para uma imersão total.
São bastante compreensíveis as comparações sendo feitas entre esse filme e as obras do Carl Dreyer, especialmente pois elas parecem partir de uma similaridade bastante evidente. Porém, o que diferencia ambos é ainda mais gritante. A teatralidade de Dreyer se propunha a encenar como forma de trazer gravidade ao texto. No filme do Coen, essa encenação funciona de forma oposta, roubando o foco das palavras proferidas e dividindo esse esforço entre as grandes atuações e a construção de uma mise-en-scene que se esforça constantemente em não se fazer notar. The Tragedy of Macbeth é um belo filme que infelizmente não consegue atingir plenamente suas potencialidades.
Alienação e relacionamentos vistos como jogos de soma zero, desejos reprimidos que se tornam estruturas de humilhação e opressão, e a perpetuação de valores como a repetição de uma tragédia.
Uma malícia diabólica permeia todo o filme, é uma presença profana que circunda o extracampo e nunca é capturada pela imagem. Talvez ela seja a sombra do cão latindo que se projeta nas colinas em torno do rancho, ou talvez seja o que de tortuoso cresce no âmago de seus moradores. Todos os personagens parecem estar presos a algo que lhes aflige individualmente, um passado que nunca se ramifica plenamente no presente devido ao seu caráter escuso.
Esse aspecto profano que paira sobre o rancho parece passar despercebido por todos, menos pelo protagonista Phil (Benedict Cumberbatch, incrível no papel) e em seu jovem algoz (Kodi Smit McPhee). Dentre todos os integrantes do rancho, somente ambos conseguem enxergar nas colinas algo além daquilo que se apresenta de forma concreta, como se fossem os únicos capazes de enxergar o mal que os circunda. Quando vemos o jovem cruzar as montanhas, numa espécie de aceitação e incorporação desse mal, ele logo se depara com o elemento da morte e da doença em seu caminho. Ele interage com esses elementos apenas para trazê-los de volta consigo. Em contrapartida, Phil parece ser um personagem que incorporou esse mal em sua persona controladora e colérica. Sua aparência suja e corroída parece refletir seu interior e suas intenções muito mais do a sua suposta aversão aos hábitos de higiene. O personagem toma banhos escondidos e continua sujo, algo que parece indicar que a sua sujeira está encrustada fundo em sua alma.
Há também um elemento homossexual na personalidade de ambos, elemento esse que os repele em um primeiro momento, mas que acaba fazendo-os convergir quando descobrem que possuem visões de mundo bastante similares. Porém, não há espaço para a bondade em Phil, e justamente quando ele tenta agir como um mentor para o jovem e lhe presentear com uma corda feita à mão (um símbolo de aceitação), a tragédia se abate sobre ele. Chega a ser interessante também como os signos em torno da corda são re-trabalhados ao longo do filme. Num primeiro momento, ela nada mais é do que um instrumento de trabalho. Pouco depois, ela passa a ser algo mais, torna-se um elemento de pertencimento até que uma revelação faz com que ela se transforme em um instrumento traumático. Tudo isso até que a corda se transforma em um catártico elemento de libertação, algo que na prática prende e aproxima, mas que aqui liberta aqueles que temem o animal aprisionado. E, ressignificando a maldade como um meio para um fim, encerra com as seguintes palavras: “Livrai a minha alma da espada, e, das presas do cão, a minha vida”.
Luce
3.2 80 Assista AgoraBrutal. Tem um dos melhores trabalhos de direção que vi em um filme recente. Consegue constantemente manter a dubiedade acerca da real personalidade do protagonista, dando vislumbres de um possível monstro escondido por trás da persona do jovem prodigioso. A crítica incisiva que faz sobre a fragmentação identitária da América é das mais pujantes, atacando a politização exacerbada de cada aspecto da vida em sociedade que transforma a experiência humana em um grande tratado político.
O filme fica ainda mais assustador se pensarmos na América, outrora vista como terra da liberdade e prosperidade, transformada em terra fértil para a proliferação de psicopatas, que escondem seus rastros de destruição através do sucesso que alcançam em meio a sociedade.
Nós até podemos proteger os nossos de serem despedaçados pelo mundo, mas não somos capazes de nos mantermos inteiros quando a verdade sobre eles nos é revelada. Seríamos os mesmos sabendo que povoamos o mundo com monstros? Dificilmente, porém, somos nós mesmos tão diferentes dos monstros que tememos?
Nada de Novo no Front
4.0 611 Assista AgoraApesar do título emprestado da obra de Erich Maria Remarque, o diretor Edward Berger pouco se utiliza da ideologia pacifista da obra escrita e desvirtua da trama em diversos momentos. É bem verdade que o filme ainda mantém o seu teor, mas Berger parece mais interessado em recriar uma experiência imersiva do horror da guerra, transmitindo através das reações causadas pela carnificina visual o que a obra de Remarque expõe através da lógica filosófica do pacifismo.
Sendo fã confesso do livro e da adaptação de 1930, admito que senti falta de três passagens icônicas de ambas. A primeira ausência sentida foi a da passagem do professor que incentiva os seus alunos a se alistarem na guerra, passagem essa completamente suprimida na adaptação de 2022. A segunda, diz respeito ao par de botas que dura mais que os jovens soldados, elementos esse que foi ressignificado na nova versão. E a última ausência diz respeito ao final, que é muito mais lírico e significativo no livro e no filme de 30 do que nessa nova versão.
Como a proposta dessa nova versão é a do hiper-realismo, é compreensível que os elementos mais poéticos sejam ceifados ou suprimidos, dando lugar a uma malícia irônica e niilista, pois não há lugar para a beleza na guerra, não há tempo para a contemplar o bater de asas de uma borboleta ou para se distrair com o canto dos pássaros.
Essa nova versão, ainda que aquém do filme de 1930, possui imagens poderosas e não teme desviar da obra base para contar sua própria história. A imersão alcançada nas cenas nas trincheiras impressionam, porém, são os close-ups do ator Felix Kammerer, com seu “olhar de mil jardas”, que deixam a marca mais profunda.
Marte Um
4.1 297 Assista AgoraMais um ano sem o Brasil no Oscar.
Batman
4.0 1,9K Assista AgoraA dinâmica da narrativa de The Batman funciona de forma similar a de um motor de carro. O arranque é dado e o filme começa numa marcha e vai levando. Quando sente que começa a perder potência, ele troca de marcha e muda quase que completamente, apresentando desvios de rumo que colaboram para que aquele universo dos personagens transpareça como um cenário vivido e pulsante. Algumas escolhas de desenvolvimento e composição de personagens, bem como a repetição levemente exagerada do redirecionamento do rumo narrativo, comprometem parcialmente o andamento de uma narrativa de quase três horas de duração.
Em suma, The Batman é um belo filme, possuindo um roteiro bastante inchado, sendo bem irregular em algumas passagens, mas que no seu todo apresenta um espetáculo que merece ser visto na maior tela possível. A fotografia é absurda de tão detalhista, com a direção optando por trabalhar silhuetas de maneira evocativa do cinema expressionista dos anos 20, criando planos tão belos quanto dramaticamente funcionais. O tom melancólico que permeia todo o filme bebe do fatalismo característico dos filmes noir, sendo reforçado por uma narração que busca emular os registros de um diário, e, também, pela força da belíssima trilha sonora do Giacchino.
O Desespero de Veronika Voss
4.1 47Poder-se-ia dizer, sem qualquer pudor ou temor de erro, que o “mea culpa” do cinema alemão aos horrores do nazismo esgotou-se nesse filme crepuscular do Fassbinder. Tudo o que veio depois nessa proposta apresentou-se menor e derivativo do que o que presenciamos aqui. Seu cinema sempre buscou capturar a presença de uma ausência, o retrato de uma sociedade forçada a se reconstruir enquanto nega, pari-passu, todos os valores e estruturas causais e consequenciais associados ao Nazismo. A sociedade alemã em seus filmes parece um elemento hermético, isolado, buscando a exoneração da culpa de seus pecados passados e o reencontro com a civilização. É dito que, em cenários de guerra, o sofrimento feminino é o elemento que melhor representa o colapso da ordem de uma determinada sociedade, e o escopo do sofrimento ao qual Fassbinder submete suas mulheres parece transparecer uma noção de que qualquer reconstituição de uma civilização alemã permanece ainda muito distante.
Hiroshima, Meu Amor
4.2 313 Assista AgoraAlgumas imagens de “Hiroshima Mon Amour” parecem querer permanecer, como lembranças que se impõem ao longo dos anos. Há um desejo por querer impedir essas lembranças de se desfazerem, até mesmo quando a memória se esvazia tal qual as ruas de Hiroshima. Os personagens não possuem mais firmamentos e devem deixar as lembranças liquefeitas escorrerem entre os dedos, sujeitando-se a boiar novamente, ao sabor da correnteza. Não há mais nada ali para se agarrar, é preciso aprender a ler o mundo não mais com as mãos, mas com os olhos. É necessário tomar a distância de um olhar que permite ver a história, e então desligar-se dela. Eis o paradoxo: tomar consciência do esquecimento, olhá-lo diretamente nos olhos e seguir adiante, porque é preciso e porque permanecer muito tempo na margem do rio é arriscar de ficar ali para sempre.
Alta Traição
4.2 4Como o trailer é tudo que existe desse filme, e eu já vi o trailer, marcando como "Já Visto"
Licorice Pizza
3.5 597O Paul Thomas Anderson até se esforça pra tentar construir um filme aos moldes de Shampoo, tentando recriar uma trama romântica mosaico dos reflexos político-sociais de seu tempo, porém o resultado final é derivativo e vazio, cheio de tiques estilísticos de um sujeito que trata a reciclagem do velho como algo inerentemente visionário. Acontece que o Anderson não é talentoso como o Robert Towne em seu desfile de personagens, talvez seja por isso que as ações dos personagens sofrem tanto aqui com a ausência de um consequencialismo verosímil.
King Richard: Criando Campeãs
3.8 409Deve praticamente tudo a Rocky. Não é ruim, pelo contrário, sua execução é bastante competente e a sua primeira hora é muito interessante. O problema é que termina no lugar comum dos outros filmes esportivos. A atuação do Smith não entrega nada novo, somente possuindo bastante impacto graças a uma direção que trabalha constantemente para engrandecer sua presença. Em suma, um belo Oscar-bait, que trabalha temas atuais com uma leveza invejável e consegue reciclar muito bem o prazer de acompanhar o triunfo de personagens carismáticos.
Morte no Nilo
3.1 351 Assista AgoraA sequência de abertura é belíssima, o Branagh precisa urgente dirigir um filme de guerra. A trama do bigode é facilmente a melhor coisa do filme. Branagh entende completamente que esse gênero depende majoritariamente do uso de close-ups como elementos de construção e desenvolvimento do mistério, porém, diferentemente do que acontece em Assassinato no Expresso Oriente, aqui a direção não consegue incorporar de forma orgânica todos os elementos acerca do mistério, transparecendo por vezes uma encenação forçada que impede a total imersão na trama.
30 Segundos Sobre Tóquio
3.8 5Uma propaganda do exército americano completamente rasa e sem qualquer comprometimento dramático. Passa longe da sutileza e genialidade de filmes como Sargent York, Since You Went Away, Yankee Doodle Dandy e Mrs. Miniver.
Pânico
3.6 1,6K Assista AgoraApós esse revisão, ficou ainda mais claro que o remake/reboot de 2022 é mesmo um lixo fétido flamejante.
A abertura desse filme é algo genial. Além de qualquer estilização espertinha do roteiro do Williamson, o que é realmente uma sacada de mestre está na forma como o Craven retira a suposta grande estrela do filme e instaura uma aura de que tudo é possível durante o restante do filme. Dessa forma, quando o assassino atormenta e persegue subsequentemente a personagem da Neve Campbell, tudo pode acontecer, ela pode ser eliminada a qualquer momento. É um sentimento voltado para a narrativa que é muito difícil de ser reconhecido uma vez que já a conhecemos completamente. Uns dizem que o mesmo fenômeno aconteceu anteriormente com Psicose e a sua icônica cena do chuveiro, mas os aspectos acerca desse filme já estão inseridos no imaginário popular tão profundamente que é quase impossível que alguém que veja o filme pela primeira vez já não esteja familiarizado com alguns dos elementos que compõem suas passagens mais marcantes.
Nas mãos de diretor menos talentoso, a cena inicial provavelmente entregaria um choque genérico e pronto. Craven não faz isso, ele brinca com o choque de forma muito lúdica, sempre permitindo um vislumbre de salvação para a personagem, até que ele consuma esse destino final da personagem através de um plano em que a violência gráfica é praticamente atirada em nossos olhos.
127 Horas
3.8 3,1K Assista Agora“Todos os problemas do homem derivam do fato de que ele não é capaz de ficar sentado sozinho, em silêncio, num aposento.” - Blaise Pascal
Esse filme é praticamente um tratado contra a modernidade líquida. O personagem inicialmente ritmado pelos infindáveis estímulos que a sociedade moderna apresenta se vê forçado, quando obrigado a permanecer estático e sozinho, a realizar uma reavaliação da maneira efêmera como encarava suas relações pessoais. Nesse sentido, o diretor Danny Boyle pega todas as ferramentas de estímulo da modernidade, as despeja na tela nos primeiros 20 minutos e então nos força a encarar o desespero, a solidão e o sofrimento humanos de quando somos privados desses elementos, que servem para turvar qualquer noção acerca da miséria da condição humana.
A Filha Perdida
3.6 573Em um primeiro momento, o filme se apresenta como um teatro da inveja. A protagonista parece cobiçar a juventude, a maternidade, as relações familiares daquelas mulheres que coabitam a praia com ela. Ela deseja voltar a ser desejada. Tudo está posto nessa cena. Quando descreveu sua conceituação de mimese, o historiador Rene Girard afirmou que as pessoas desejam os objetos não devido ao seu valor intrínseco, mas porque eles são desejados por outras pessoas, e nós somente imitamos os seus desejos. Essa ideia permeia quase todo o filme, essa estranha impressão de que a personagem se vê dividida entre o egoísmo (uma forma de agir sem influência do desejo mimético) e a maternidade (algo perpetuado pelo desejo mimético). Por mais que o texto base de Elena Ferrante seja riquíssimo em explorar esses elementos, o filme passa muito longe de adaptar tal exploração, se perdendo justamente quando abandona tais conceitos para abraçar uma narrativa de culpa e de busca por uma segunda chance.
A direção não articula nenhum aspecto formal para enriquecer o aspecto narrativo, somente recorrendo à algumas das metáforas mais desprovidas de sutileza de que me recordo recentemente. Aliás, o filme parece desconhecer por completo a função dos dispositivos de montagem como um elemento narrativo. A forma como ocorre o vai-e-vem entre o presente e as lembranças da personagem compromete consideravelmente a força dramática da obra.
Em suma, o filme começa como uma proposta de reavaliar o desejo da maternidade sob a ótica do desejo mimético, tal como observado por Girard em Teatro da Inveja, e termina como uma espécie de conto cautelar sobre o narcisismo da mulher moderna. Enfim, um filme que insiste constantemente em quase enfiar a câmera no nariz da Olivia Collman já atesta por si próprio que não tem capacidade moral, ou estética, de ser grande coisa.
Noites de Cabíria
4.5 381 Assista AgoraGosto mais de Robert Bresson do que de Federico Fellini. Digo isso pois, por mais diferentes que sejam em tom, me peguei pensando em Mouchette enquanto acompanhava o sofrimento de Cabíria. Se no filme de Fellini todos os elementos sociais são despojados da seriedade que lhes são característicos na realidade, já no filme de Bresson ocorre o inverso: há o reforçar da gravidade do que já é sério e também o desenrolar da forma como essa seriedade age para destruir essa concepção interpretativa lúdica e lírica do real. Enquanto Fellini nos diz que devemos buscar pela mágica que permeia a brutalidade do real, Bresson reafirma que essa brutalidade invariavelmente esmagará toda e qualquer fantasia conjurada acerca da realidade.
O Beco do Pesadelo
3.5 495 Assista AgoraUm filme sobre a danação da alma e as perspectivas ilusórias de redenção que posteriormente se manifestam. Como encontrar a salvação do espírito quando é próprio da nossa natureza se direcionar à perdição?
Tem um começo inchado e monótono, um meio genial e fluido, e um final convoluto que acaba se perdendo em meio a revelações, diálogos explicativos e algumas pontas soltas.
Enfim, o que seria desse filme sem a gigantesca performance de Bradley Cooper? Que outro ator da atualidade seria capaz de suportar toda a carga dramática de um plano como o último de Nightmare Alley? O que seria daquele desfecho, já antevisto à quilômetros de distância, sem que tivéssemos experienciado em sua feição a decadência e perda de humanidade? Certamente que o filme seria muito menor se dependesse apenas das afetações de Del Toro. Cooper tem aqui a desenvoltura de um grande astro dos anos dourados da Hollywood clássica, ele engrandece o que seria apenas mais uma revisão fetichista dos filmes Noir.
Diferentemente dos outros filmes de 2021 que tentaram cativar pela nostalgia fetichista (Last Night In Soho, West Side Story), Nightmare Alley apresenta luz própria, e nela, Bradley Cooper brilha praticamente sozinho.
A Qualquer Custo
3.8 802 Assista Agora"I’ve been poor my whole life. So my parents and their parents before them. It’s like a disease, passing from generation to generation, becomes a sickness. That’s what it is. Affects every person you know, but not my boys. Not anymore. This is theirs now."
Há um despojamento da mise-en-scène em Hell or High Water, uma espécie de naturalismo que é hiperventilado não nas imagens das grandes planícies do meio-oeste, mas nas das ruínas das construções humanas que ali parecem permanecer como representações de uma prosperidade que ficou no passado. É quase impossível discernir se o retrato do meio-Oeste americano do filme é uma encenação, um construto diegético para aquela narrativa, ou se o que é mostrado nas imagens é a realidade tal como ela se apresenta. O presente é fantasmagórico, os ideais que guiavam a América são os mesmos que a colocaram de joelho, a prosperidade novamente tornou-se algo a ser conquistado, ainda que o seu desfrutar seja impossível aos seus conquistadores.
O Terceiro Homem
4.2 176 Assista Agora"Na Itália, depois de trinta anos sob os Borgias, onde eles tiveram guerras, terror, assassinatos e derramamento de sangue – eles produziram Michelangelo, Leonardo da Vinci e a Renascença. Já na Suíça, onde eles tinham amor fraterno, 500 anos de democracia e paz, o que eles produziram? O relógio cuco."
Esse é irretocável. Além do seu valor artístico, seu retrato histórico-cultural possui um valor inestimável para a humanidade. Fachadas de prédios destruídas pelo choque das vaidades humanas; um embate sensorial em meio às ruínas urbanas que simbolizam a alma de uma Europa em frangalhos.
Bar Doce Lar
3.5 132 Assista Agora“You can’t go back home again”.
Um filme sobre o lirismo que preenche as nossas vidas e que acaba passando desapercebido no meio do caos e desilusão tão frequentes.
Em maior ou menor escopo, Ilíada e Odisseia são obras fundamentais pois se apresentam como relatos universais, são jornadas que manifestam o elemento ontológico da humanidade. Deixamos o lar visando garantir a integridade dele e dos nossos, somente para descobrir que a própria jornada e os seus percalços tornam o retorno impossível. Voltamos a adentrá-lo, é verdade, mas a nossa percepção não é mais a mesma. Mudamos nós ou foi o lar que deixou de ser convidativo? Por que não os dois?
Apesar da direção completamente acadêmica do Clooney, confesso que o filme me pegou emocionalmente. Os questionamentos do protagonista quanto a descobrir a verdadeira vocação, ao dilema de ter uma carreira funcional e rentável versus uma vida de escrita artística e intelectual, a insistência em um interesse amoroso indisponível e distante, o frequente confronto com a mortalidade de entes queridos, todos foram marcantes por encontrarem ecos na minha atual realidade.
Sim, é verdade que não se pode voltar pra casa novamente, mas certamente é possível encontrar esse lar que tanto buscamos nas doces lembranças que forjamos.
Hamlet
4.0 71Que as peças de Shakespeare tenham sido celebradas pelas plateias já no seu tempo, época em que a população inglesa era majoritariamente composta de analfabetos (excetuando alguns poucos nobres e agentes representantes da corte), é um belo atestado da qualidade das mesmas. Profundo era o conhecimento do bardo de Avon sobre as forças que habitam o âmago dos seres humanos, e suas peças sempre foram hábeis em transparecer isso. Eis portanto o elemento que desde os primórdios arregimentou a aclamação do autor: indivíduos incapazes de expressar seus sentimentos e desejos íntimos eram capazes de reconhecê-los ali representados nos multifacetados personagens shakespeareanos.
Com o processo de massificação da cultura e a preponderância da noção de “ócio-criativo”, surgiu o discurso de que a elite se apropriou culturalmente das peças de Shakespeare e, por consequência, estas passaram a ser representações elitistas de um ideal de “alta-cultura”. O que anteriormente existia como uma elemento cultural popular transformou-se em algo erudito e excludente. Porém, isso é somente meia-verdade. Não obstante, deve-se reconhecer que as peças do bardo permanecem as mesmas, não sofreram nenhuma modificação e sua amplitude de significações e entendimentos sobre o caráter humano permanecem tão pertinentes hoje quanto no período de seu surgimento, no século XVI.
Os jogos de poder e as traições políticas não permanecem pertinentes, tal como em Ricardo III? Os temores da traição e inveja não mais continuam a nos assolar tanto quanto assolaram Othello e Desdêmona? Não mais ponderamos, tal como Hamlet, sobre a ausência de sentido e o desespero das incertezas? Não mais questionamos as ordens vigentes em nome de amores proibidos, como ocorre em Romeu e Julieta? Não seguimos colocando nossa fortuna nas mãos dos astros e amaldiçoando-os quando estes nos encaminham diretamente aos nossos fracassos, como em Macbeth? Se as obras e seu caráter universal permanecem imutáveis, o que mudou, de fato, senão o coração dos seres humanos?
Não buscamos mais na arte os elementos mesmerizantes que cativam nossas mentes, expandem nossa imaginação e nutrem nossos imaginários. Não buscamos mais através das obras de arte obter algum conhecimento sobre nós mesmos. Tudo que procuramos nelas é um doce escapismo, alguma oportunidade de fugir de nós mesmos e dos nossos problemas, desejando por algo e agindo de forma diametralmente oposta na realidade. Nutre-se um ardente desejo por romance e aventura, enquanto conforma-se com um relacionamento conveniente em uma mesmice diuturna. Não mais tornamos os sonhos em realidade, pois agora somos capazes de sonhar acordados. E essa pratica ociosa nos leva a uma existência conformada. As dúvidas existenciais que sempre tivemos tornaram-se certezas. Agora, somos certos de nossos temores.
“Morrer - dormir, dormir, talvez sonhar - eis o problema: pois os sonhos que vierem nesse sono de morte, uma vez livres deste invólucro mortal, fazem cismar. Esse é o motivo que prolonga a desdita desta vida.”
Henrique V
3.3 20 Assista AgoraÚltima parte da tetralogia iniciada em Ricardo II, Henrique V talvez seja a mais tediosa das peças de Shakespeare. Apesar de seus momentos eternizados, em especial a passagem em que o rei, confraternizando à paisana dentre seus soldados, busca reconhecer a sincera devoção deles para consigo, a obra não possui o mesmo poder textual ressonante presente em Macbeth e em Júlio César.
Olivier também pouco faz para cativar e tornar a obra menos enfadonha. Excetuando as impressionantes inovações visuais à época (que hoje mais colaboram para o sentimento de uma teatralidade hiperbólica), o filme não apresenta nada muito além de um teatro filmado, algo muito diferente e inferior ao que o diretor viria a entregar em sua adaptação de Hamlet.
Hamlet
4.2 79"Dê-me um homem que não se entrega às paixões e eu o guardarei em meu coração, sim, no fundo do meu coração, assim como o faço contigo."
Não fosse a visão fantasmagórica de seu pai compartilhada com os seus compatriotas, poder-se-ia afirmar que Hamlet sofre de esquizofrenia ou alguma outra doença mental. A peça sobre o príncipe dinamarquês é costumeiramente exaltada por ser, dentre toda a obra do Bardo de Avon, aquela que apresenta o elemento sobrenatural de maneira mais concreta. Discordo dessas colocações, acho que Macbeth ocupa esse posto.
Gosto de interpretar Hamlet como uma espécie de construção prototípica de elementos que viriam a serem estudados e catalogados séculos depois pelo ramo da Psicologia. Na obra, Shakespeare brinca com as questões de objetividade e subjetividade que circundam a morte do Rei Hamlet. É na subjetividade do príncipe Hamlet que surge a certeza de que seu pai fora assassinado, ainda que a presença fantasmagórica de seu pai o induza a tal. Há, de fato, algo podre no reino da Dinamarca, mas talvez essa podridão venha, não do derramamento fraticida de sangue, mas do estado anímico que corrompe a alma do príncipe. Talvez o seu desconcerto interno não se deva aos aspectos nobres que proclama, deve-se, talvez, a elementos mais mundanos e mesquinhos, tal como ter sido preterido na linhagem do trono e por ver sua mãe compartilhando com uma terceira parte o afeto que devia ser somente seu após a morte de seu pai. Hamlet busca “justiça” não por seu pai, mas para si e seu ego arranhado.
A adaptação de Olivier condensa a peça para que ela permaneça funcional em sua metragem consideravelmente menor do que a duração costumeira. Apesar de obter enorme êxito na construção da obra, algumas das belas e impactantes passagens (em especial, a ponderação após o assassinato de Polônio ou o solilóquio com a caveira de Yorick) possuem um peso menor do que deveriam. Apesar disso, o peso do texto está presente e a direção em momento nenhum passa a impressão de que se trata apenas de mais um “teatro filmado”.
A Tragédia de Macbeth
3.7 191 Assista Agora“Pode o diabo falar a verdade?”
Séculos após a morte de Shakespeare, o alemão Bertolt Brecht argumentaria que os objetivos no seu teatro passavam longe da diversão e da distração das plateias. O que ele propunha em suas peças era um resgate do interesse pelos temas caros a humanidade, desejando que as plateias se interessassem pelo que é realmente importante quando excluídos todos os elementos que colaboram para a construção da tradicional ilusão teatral. Brecht passou assim a tentar de todas as formas despir os elementos essenciais no corpo textual das contrapartes técnicas que tendem a obscurecer a moral do texto.
Eis o que chama a atenção nessa nova adaptação de Macbeth: a escolha por filmar em um preto e branco com alto contraste, em uma proporção de tela com menor latitude, evitando as cores chamativas e a recriação de planos grandiosos e repletos de detalhes e de profundidade, prejudica parcialmente a transposição e o peso do texto de Shakespeare. Aqui, a escolha estética age constantemente para passar a impressão de que não há estética alguma. Dessa forma, fica transparecido que, em uma tentativa de despir a peça de qualquer elemento que distraia do texto declamado, a estética (ou ausência de uma, se isso for possível) acaba criando nela mesma um impedimento para uma imersão total.
São bastante compreensíveis as comparações sendo feitas entre esse filme e as obras do Carl Dreyer, especialmente pois elas parecem partir de uma similaridade bastante evidente. Porém, o que diferencia ambos é ainda mais gritante. A teatralidade de Dreyer se propunha a encenar como forma de trazer gravidade ao texto. No filme do Coen, essa encenação funciona de forma oposta, roubando o foco das palavras proferidas e dividindo esse esforço entre as grandes atuações e a construção de uma mise-en-scene que se esforça constantemente em não se fazer notar. The Tragedy of Macbeth é um belo filme que infelizmente não consegue atingir plenamente suas potencialidades.
Ataque dos Cães
3.7 932Alienação e relacionamentos vistos como jogos de soma zero, desejos reprimidos que se tornam estruturas de humilhação e opressão, e a perpetuação de valores como a repetição de uma tragédia.
Uma malícia diabólica permeia todo o filme, é uma presença profana que circunda o extracampo e nunca é capturada pela imagem. Talvez ela seja a sombra do cão latindo que se projeta nas colinas em torno do rancho, ou talvez seja o que de tortuoso cresce no âmago de seus moradores. Todos os personagens parecem estar presos a algo que lhes aflige individualmente, um passado que nunca se ramifica plenamente no presente devido ao seu caráter escuso.
Esse aspecto profano que paira sobre o rancho parece passar despercebido por todos, menos pelo protagonista Phil (Benedict Cumberbatch, incrível no papel) e em seu jovem algoz (Kodi Smit McPhee). Dentre todos os integrantes do rancho, somente ambos conseguem enxergar nas colinas algo além daquilo que se apresenta de forma concreta, como se fossem os únicos capazes de enxergar o mal que os circunda. Quando vemos o jovem cruzar as montanhas, numa espécie de aceitação e incorporação desse mal, ele logo se depara com o elemento da morte e da doença em seu caminho. Ele interage com esses elementos apenas para trazê-los de volta consigo. Em contrapartida, Phil parece ser um personagem que incorporou esse mal em sua persona controladora e colérica. Sua aparência suja e corroída parece refletir seu interior e suas intenções muito mais do a sua suposta aversão aos hábitos de higiene. O personagem toma banhos escondidos e continua sujo, algo que parece indicar que a sua sujeira está encrustada fundo em sua alma.
Há também um elemento homossexual na personalidade de ambos, elemento esse que os repele em um primeiro momento, mas que acaba fazendo-os convergir quando descobrem que possuem visões de mundo bastante similares. Porém, não há espaço para a bondade em Phil, e justamente quando ele tenta agir como um mentor para o jovem e lhe presentear com uma corda feita à mão (um símbolo de aceitação), a tragédia se abate sobre ele. Chega a ser interessante também como os signos em torno da corda são re-trabalhados ao longo do filme. Num primeiro momento, ela nada mais é do que um instrumento de trabalho. Pouco depois, ela passa a ser algo mais, torna-se um elemento de pertencimento até que uma revelação faz com que ela se transforme em um instrumento traumático. Tudo isso até que a corda se transforma em um catártico elemento de libertação, algo que na prática prende e aproxima, mas que aqui liberta aqueles que temem o animal aprisionado. E, ressignificando a maldade como um meio para um fim, encerra com as seguintes palavras: “Livrai a minha alma da espada, e, das presas do cão, a minha vida”.