É como se um filme sobre canibais fosse filmado por um vegetariano. Deixa a sensação de que é muito limpinho em todas as suas frentes – polido demais para assumir o melodrama teen, pouco rebelde para se afirmar como road movie libertário (me fez lembrar, não coincidentemente, o Terra de Ninguém, do Malick, só que de um jeito mais tímido e calculadinho) e incapaz de realmente sujar as mãos na selvageria dessa fantasia sanguinolenta. Dito isso, gosto muito de momentos isolados do filme, como a introdução dos protagonistas (a cena da festa do pijama é excelente) e o encontro deles com a outra dupla na mata, embora ache que o resultado tenha saído mais domesticado do que as possibilidades dessa premissa ofereciam.
Ainda não sei o que fazer direito com o sabor agridoce que o final desse filme deixou na minha boca. Consigo enxergar verdade nas duas principais formas como essa escolha pode ser recebida (o peso moral sobre o sacrifício derradeiro visto pela ótica do humanismo quanto pela do atraso), e adicionado ao desfecho do material original, me faz crer que era uma armadilha narrativa proposital, desafiadora desde sua concepção inicial. Não é, com o perdão do trocadilho, um filme de escolhas fáceis, e sinto que essas saídas difíceis impostas aqui tendem a render particularmente mais algum tempo de digestão até uma futura revisão, mas acho que poucos no momento filmam com a propriedade de Shyamalan, enquadram como ele, e acreditam de forma contagiosa no poder da sugestão e da fantasia, redimensionando um home invasion fatalista em uma parábola comovente.
Talvez ter sido bombardeado nos últimos meses por reações extremadas acerca desse filme entre os apaixonados e os revoltados tenha me deixado, ao fim da sessão, em uma posição de meio termo – da mesma forma como não consigo me sentir ofendido por essa fábula em zombie scrolling, também não consigo amá-la. É, de certa forma, um sintoma do tempo: um eterno reels, uma descida pelo fluxo infinito de um feed, que, embora encontre ali no meio um ou outro momento de singela ternura, se contenta nesse bombardeio meio superficial e espertinho de referências visuais. O Matrix do TikTok, basicamente. Michelle Yeoh está ótima!
Para mim soa como a versão A24 de um filme como O Poço – mesma aproximação ao gênero do terror, mas refém de uma pseudo crítica social foda que se dá importância demais e tira o frescor de uma história que poderia se bastar sem tanta exposição. Tem uns momentos inspirados (as intervenções da crítica gastronômica me fizeram dar umas risadas boas) e há uma dinâmica interessante entre Anya Taylor-Joy e Ralph Fiennes, mas o elenco de resto é bastante desperdiçado e a mistura de sátira e horror, desequilibrada. Enfim, o X-burguer me parece melhor que o filme.
Coisa linda é aquela cena entre os dois garotos à beira da fogueira. River Phoenix é uma dessas perdas trágicas de jovens talentos que lateja sempre que um filme dele é visto ou revisto (certo estava Milton Nascimento!), e ele é o coração dessa história triste sobre achar um lugar no mundo, sentir-se pertencido e amado, que, embora universal – daí as peças de Shakespeare sobre Henrique servirem como base para o roteiro, que possibilita uma mistura de naturalismo e impostação que as vezes pode soar truncado –, ecoa de uma forma distinta pelo olhar compassivo, mesmo sem condescendências, sobre o universo queer, jogando luz sobre pessoas que caminham à margem solitárias não por uma escolha, mas justamente e estruturalmente pela falta dela. Sobre não pertencer ao Sonho Americano, mas nem por isso deixar de sonhar.
Da simbiose quase que estranhamente incestuosa entre tio e sobrinha, passando pela misoginia do vilão com tintas queer nem tão sutis, até o pacto silencioso de vítima e algoz para preservar o segredo em prol de uma moral cristã e familiar – tudo que envolve esse Hitchcock tem algo de deliciosamente pervertido na maneira como distorce o american way of life, com casinhas de gramado e cerca branca tornando-se palcos de crime e jantares de família precedidos por orações, perversos jogos de cena. O personagem do pai absolutamente comum cujo hobbie noturno é true crime e fantasia policial dá uma síntese maravilhosa a tudo aqui.
Fez com que eu lembrasse a minha avó, a pele fininha dela, a voz grave, o cheiro de colônia de alfazema – combinações de toques, aromas e sons que chegam à cabeça não necessariamente montando cenas específicas com ela nesse intervalo de mais de quase vinte anos desde a sua partida, mas oferecendo uma textura a esse sentimento de saudade. Aftersun é um filme que se faz a partir desses fragmentos, desses pedaços de um cotidiano dividido entre pai e filha num curto espaço de tempo (viajando juntos, comendo juntos, dançando juntos), que ganham uma potência dramática fortíssima conforme vamos compreendendo a razão pela qual eles se dispõem daquela forma, através de um dispositivo de câmera. Terminei o filme com o coração bem miudinho e com Under Pressure ecoando sem parar na cabeça.
São tão boas as cenas de perseguição que fico imaginando como seria o John Hyams extravasando todo esse frenesi em um filme da franquia Scream – o seu estilo de direção aqui encontra um eco bacana no costumeiro roteiro espertinho de Kevin Williamson. Do momento em que a premissa é posta, vira uma divertida corrida contra o relógio para escapar do misterioso stalker e se manter vivo, e o filme só deixa a peteca cair mesmo lá pelo terceiro ato, a partir da virada, em que as coisas desaceleram para que algumas explicações aconteçam, nem sempre da forma mais fluida ou convincente (embora a referência a Ms. Loomis/Pamela Voorhees tenha me feito abrir um sorriso no final).
O que vemos em Os Fabelmans já vimos em toda carreira do Spielberg menino de pais apartados, do adulto com síndrome de Peter Pan, do judeu que tenta compreender seu lugar no mundo e ainda assim esse filme tem o frescor e o encantamento de uma primeira história, ainda não contada, guardada como um segredo escondido num baú familiar de quem, a partir dela, criou e compartilhou ficções (e a partir disso, se faz ainda mais clara e exata a referência a O Homem que Matou o Facínora). É uma fábula autobiográfica que não tem a autoimportância que se esperaria de um filme que olha para si mesmo e para seu realizador, mas, ao contrário, tem a delicadeza (a cena da dança da mãe sob a luz dos faróis e a revelação da traição através das lentes são achados, nesse sentido) de um senhor de quase 80 anos que, ao fazer esse mergulho pessoal, revela o mesmo encantamento de um garoto que acaba de descobrir como capturar o mundo por uma câmera Super 8. Desde Munique, um filme de Spielberg não me pegava assim.
Já vimos esse filme antes em alguma sessão noturna aleatória na Tela Quente ou no Supercine nos anos 2000 (se você tiver lembrando de algo que Jodie Foster ou Julianne Moore fizeram, é bem por aí mesmo; e dá para recordar até de DiCaprio nesse meio aí), e o problema desse aqui não é necessariamente essa sensação de repetição, mas em como tenta pregar pecinhas ao longo de toda narrativa para subverter essa percepção e soar “espertinho”, com direito até a um final surpresa que, diga-se, não é tão difícil sacar à certa distância. Thriller genérico a gente aguenta de boa, mas thriller genérico metido à filme original é difícil de engolir.
O que há de melhor e de pior nesse filme é o mesmo: a forma como ele condensa várias ideias distintas em pouco mais de duas horas de projeção. Dentro de sua pegada meio de conto de creepypasta, esse Empty Man também dá conta de elementos de terror cósmico à lá H. P. Lovecraft, de thriller policial, de narrativa de apocalipse e outros conceitos que vão se misturando, entrando em conflito e disputando espaço nessa trama que, apesar de ciente do que propõe, parece ter dificuldade de enxugar seus excessos e focalizar mais. O final surpresa até dá uma liga para todas essas possibilidades que o filme abraça, mas fica a sensação de se fosse mais conciso e objetivo seria mais bem sucedido. Ótima construção de atmosfera, vale dizer.
O folclore ao redor da entidade que é a ameaça principal aqui é até fácil de se compreender, mas esse Roh se enrola muito em seu quebra-cabeças visual para contar uma história de maldição que me parece relativamente simples em linhas gerais, e por isso se apoia e muito na ambientação magistral das florestas malasianas e nesse clima iminente de desgraça (algumas cenas, no sentido mais gráfico, são bem boas, mas a melhor é a que a mãe conta uma lenda antiga para os filhos antes de eles irem dormir), que vai se concretizar eventualmente.
Demorei para entender que a ameaça do filme era realmente aquela e que deveríamos nos sentir acuados pela tal presença cujas façanhas incluem mover bibelôs de seus lugares e atiçar os cães da vizinhança. Talvez se fosse uma paródia, que é um terreno que o filme parece cair eventualmente de forma involuntária, seria menos ruim, mas o pior é que ele leva a brincadeira à sério e até tenta dar uma palavrinha ou outra sobre luto e trauma.
Se tem uma coisa que eu curti, nessa transição do curta de 15 minutos para esse longa metragem, é a virada na relação da protagonista com o serial killer, em como esse pacto sinistro dos dois funciona em cena, o que, ironicamente, também nem me faz desgostar do final, porque acho que na decisão dela rola um novo ponto de disrupção interessante para a construção dessa personagem, mas, à grosso modo, eu diria que o filme enche muita linguiça para fazer a história rodar em uma hora e meia e dá a sensação de que tudo que corre paralelo à essa relação central é uma enrolação que puxa o todo um pouco pra baixo.
Fui ver sem dar nada por conta do material publicitário e fui pego de surpresa em como é um filme que, mesmo sem fugir do jumpscare (e nem se propor em fazer isso, aliás), estabelecer uma atmosfera de desconforto que se mantém pouco abalada durante pelo menos a sua primeira metade – a forma como concebe planos lentos, discretos, com a protagonista, já amaldiçoada, no centro sempre à mercê de um perigo iminente. A cena da festa de aniversário é bem boa. Lá pelas tantas, quando entra na trama de investigação e o reencontro com o passado traumático, vai perdendo um pouco da graça e arrojo, mas é bem bacaninha, no fim das contas.
Dificulta um pouco o filme jamais perder a vibe de comédia romântica bizarra mesmo em seus momentos mais explícitos, porque essa pegada tira um pouco da gravidade dos acontecimentos que ele mostra (nada contra Sebastian Stan, mas não consigo de jeito nenhum comprar a ameaça dele como o vilão aqui; sempre me parece à beira de uma gag ou uma piadinha), mas de forma geral curto como esse Fresh é consciente dos perigos dessa dinâmica de boy meets girl a ponto de transformá-los em um pequeno conto preventivo de terror.
É um filme mais subversivo do que X, que apesar de bem sucedido, brincava com referências mais ou menos seguras e estava num lugar de homenagem um pouco confortável. Pearl é um filme que investe mais num apelo dramático para construção da personagem central e sua relação com o entorno, e parece aludir ao cinema antigo de uma forma mais indireta e até inventiva mesmo (e não falo apenas dos filmes da fase inicial de Hollywood, em que ele se situa, mas até outros clássicos como Carrie ou Mágico de Oz, que ele parece evocar de uma forma mais implícita, acredito). Mia Goth está brilhante.
Não gosto de quase nada nesse filme, mas vou admitir que a ideia central me soa bonita – esse processo de catarse de um artista em remorso através da fábula –, especialmente quando espelhada com a história real de Coppola e de seu filho morto e sabendo que as escolhas desse Twixt foram bem conscientes, até na forma meio desajustada como mescla realidades por meio de cores, de forma quase infantil mesmo, como também são os personagens. Mas é uma fantasia que não me puxa para dentro de forma alguma e que me soa, na maior parte do tempo, caótica e preguiçosa.
Sequência espiritual do documentário Horror Noire, sobre a representação de negros no cinema de terror norte-americano, que é ainda mais aprofundada que seu antecessor ao dividir em categorias de episódios e em uma cronologia específica os títulos e os temas que disseca sob as lentes da teoria queer, da experiência de vida e criação dos realizadores e do impacto sobre o público, levando em consideração o contexto de produção e sem se desviar de eventuais problematizações. Algumas das entrevistas que Bryan Fuller consegue, como aquela feita com o filho do lendário Antony Perkins sobre a simbiose do pai com o personagem Norman Bates, são preciosas. Fiquei com gosto de 'quero mais'.
Dá para tirar um proveito da ambientação que tenta resgatar um pouco dessa atmosfera gótica romântica dos velhos castelos e lendas sobre condes malditos, mas é um produto b sem muita identidade, bem ruinzinho mesmo, perdido em um tanto de referências e que com frequência cai no terreno da autoparódia.
É um filme consciente do que está propondo ao se assumir como um ponto fora da curva nessa nova leitura da mitologia de Halloween – e os créditos que remetem ao Halloween III, o único da série que não conta com a presença de Michael Myers, reafirmam essa noção –, embora suas ideias não pareçam assentar na prática mesmo. O personagem do pária social, condenando “a se tornar” um novo bicho-papão, só funciona no blablablá redundante de David Gordon Green sobre o trauma da cidade e de seus habitantes (e parece existir tão somente como um objeto de um discurso, que é até meio confuso, vale dizer, quando traçamos uma linha da representação de Michael nos últimos três filmes), mas como uma força em si, uma presença, ele não orna, o que faz o filme carregar o peso do clássico vilão como um fardo, e tudo que antecede o acerto de contas soar como um longo e anticlimático apêndice.
Rachel Sennott rouba demais a cena nesse thriller inconsequente que equivale a uma publicação avulsa no Twitter engajando o pior da interação na rede – essa comparação não é aleatória, já que os personagens aqui se endereçam a avatares conhecidos da comunidade virtual. As sequências que envolvem a personagem dela, Alice, são as melhores coisas do filme (lembrei das falas sobre a 'lua em Libra' e a 'dismorfia corporal' e já tô aqui rindo), que, de modo geral, parece satisfeito demais com a própria zombaria e pouco interessado criar qualquer senso de perigo ou ameaça naquele espaço.
Não sei se foi uma boa essa pegada de terror ‘elevado’ que esse novo Hellraiser assume ao se valer de (e, em algum sentido, subverter) elementos da mitologia para criar uma metáfora sobre dependência química e o processo de reabilitação – um caminho que não é novidade para o diretor, que fez outros dois filmes, O Ritual e A Casa Sombria, para tratar, em suma, de luto, culpa e depressão por meio de histórias de terror. Não porque as ideias não sejam interessantes, mas é um filme que se enrola por injustificáveis duas horas para dar conta dessa alegoria ao mesmo tempo em que tenta apresentar para um novo público o universo concebido por Clive Barker, que finda o oposto do que sempre fora estabelecido: limpinho, pouco erotizado e “elevado”.
Até os Ossos
3.3 264 Assista AgoraÉ como se um filme sobre canibais fosse filmado por um vegetariano. Deixa a sensação de que é muito limpinho em todas as suas frentes – polido demais para assumir o melodrama teen, pouco rebelde para se afirmar como road movie libertário (me fez lembrar, não coincidentemente, o Terra de Ninguém, do Malick, só que de um jeito mais tímido e calculadinho) e incapaz de realmente sujar as mãos na selvageria dessa fantasia sanguinolenta. Dito isso, gosto muito de momentos isolados do filme, como a introdução dos protagonistas (a cena da festa do pijama é excelente) e o encontro deles com a outra dupla na mata, embora ache que o resultado tenha saído mais domesticado do que as possibilidades dessa premissa ofereciam.
Batem à Porta
3.1 566 Assista AgoraAinda não sei o que fazer direito com o sabor agridoce que o final desse filme deixou na minha boca. Consigo enxergar verdade nas duas principais formas como essa escolha pode ser recebida (o peso moral sobre o sacrifício derradeiro visto pela ótica do humanismo quanto pela do atraso), e adicionado ao desfecho do material original, me faz crer que era uma armadilha narrativa proposital, desafiadora desde sua concepção inicial. Não é, com o perdão do trocadilho, um filme de escolhas fáceis, e sinto que essas saídas difíceis impostas aqui tendem a render particularmente mais algum tempo de digestão até uma futura revisão, mas acho que poucos no momento filmam com a propriedade de Shyamalan, enquadram como ele, e acreditam de forma contagiosa no poder da sugestão e da fantasia, redimensionando um home invasion fatalista em uma parábola comovente.
Tudo em Todo O Lugar ao Mesmo Tempo
4.0 2,1K Assista AgoraTalvez ter sido bombardeado nos últimos meses por reações extremadas acerca desse filme entre os apaixonados e os revoltados tenha me deixado, ao fim da sessão, em uma posição de meio termo – da mesma forma como não consigo me sentir ofendido por essa fábula em zombie scrolling, também não consigo amá-la. É, de certa forma, um sintoma do tempo: um eterno reels, uma descida pelo fluxo infinito de um feed, que, embora encontre ali no meio um ou outro momento de singela ternura, se contenta nesse bombardeio meio superficial e espertinho de referências visuais. O Matrix do TikTok, basicamente. Michelle Yeoh está ótima!
O Menu
3.6 1,0K Assista AgoraPara mim soa como a versão A24 de um filme como O Poço – mesma aproximação ao gênero do terror, mas refém de uma pseudo crítica social foda que se dá importância demais e tira o frescor de uma história que poderia se bastar sem tanta exposição. Tem uns momentos inspirados (as intervenções da crítica gastronômica me fizeram dar umas risadas boas) e há uma dinâmica interessante entre Anya Taylor-Joy e Ralph Fiennes, mas o elenco de resto é bastante desperdiçado e a mistura de sátira e horror, desequilibrada. Enfim, o X-burguer me parece melhor que o filme.
Garotos de Programa
3.6 385 Assista AgoraCoisa linda é aquela cena entre os dois garotos à beira da fogueira. River Phoenix é uma dessas perdas trágicas de jovens talentos que lateja sempre que um filme dele é visto ou revisto (certo estava Milton Nascimento!), e ele é o coração dessa história triste sobre achar um lugar no mundo, sentir-se pertencido e amado, que, embora universal – daí as peças de Shakespeare sobre Henrique servirem como base para o roteiro, que possibilita uma mistura de naturalismo e impostação que as vezes pode soar truncado –, ecoa de uma forma distinta pelo olhar compassivo, mesmo sem condescendências, sobre o universo queer, jogando luz sobre pessoas que caminham à margem solitárias não por uma escolha, mas justamente e estruturalmente pela falta dela. Sobre não pertencer ao Sonho Americano, mas nem por isso deixar de sonhar.
A Sombra de uma Dúvida
4.0 196 Assista AgoraDa simbiose quase que estranhamente incestuosa entre tio e sobrinha, passando pela misoginia do vilão com tintas queer nem tão sutis, até o pacto silencioso de vítima e algoz para preservar o segredo em prol de uma moral cristã e familiar – tudo que envolve esse Hitchcock tem algo de deliciosamente pervertido na maneira como distorce o american way of life, com casinhas de gramado e cerca branca tornando-se palcos de crime e jantares de família precedidos por orações, perversos jogos de cena. O personagem do pai absolutamente comum cujo hobbie noturno é true crime e fantasia policial dá uma síntese maravilhosa a tudo aqui.
Aftersun
4.1 714Fez com que eu lembrasse a minha avó, a pele fininha dela, a voz grave, o cheiro de colônia de alfazema – combinações de toques, aromas e sons que chegam à cabeça não necessariamente montando cenas específicas com ela nesse intervalo de mais de quase vinte anos desde a sua partida, mas oferecendo uma textura a esse sentimento de saudade. Aftersun é um filme que se faz a partir desses fragmentos, desses pedaços de um cotidiano dividido entre pai e filha num curto espaço de tempo (viajando juntos, comendo juntos, dançando juntos), que ganham uma potência dramática fortíssima conforme vamos compreendendo a razão pela qual eles se dispõem daquela forma, através de um dispositivo de câmera. Terminei o filme com o coração bem miudinho e com Under Pressure ecoando sem parar na cabeça.
Isolamento Mortal
3.3 195 Assista AgoraSão tão boas as cenas de perseguição que fico imaginando como seria o John Hyams extravasando todo esse frenesi em um filme da franquia Scream – o seu estilo de direção aqui encontra um eco bacana no costumeiro roteiro espertinho de Kevin Williamson. Do momento em que a premissa é posta, vira uma divertida corrida contra o relógio para escapar do misterioso stalker e se manter vivo, e o filme só deixa a peteca cair mesmo lá pelo terceiro ato, a partir da virada, em que as coisas desaceleram para que algumas explicações aconteçam, nem sempre da forma mais fluida ou convincente (embora a referência a Ms. Loomis/Pamela Voorhees tenha me feito abrir um sorriso no final).
Os Fabelmans
4.0 389O que vemos em Os Fabelmans já vimos em toda carreira do Spielberg menino de pais apartados, do adulto com síndrome de Peter Pan, do judeu que tenta compreender seu lugar no mundo e ainda assim esse filme tem o frescor e o encantamento de uma primeira história, ainda não contada, guardada como um segredo escondido num baú familiar de quem, a partir dela, criou e compartilhou ficções (e a partir disso, se faz ainda mais clara e exata a referência a O Homem que Matou o Facínora). É uma fábula autobiográfica que não tem a autoimportância que se esperaria de um filme que olha para si mesmo e para seu realizador, mas, ao contrário, tem a delicadeza (a cena da dança da mãe sob a luz dos faróis e a revelação da traição através das lentes são achados, nesse sentido) de um senhor de quase 80 anos que, ao fazer esse mergulho pessoal, revela o mesmo encantamento de um garoto que acaba de descobrir como capturar o mundo por uma câmera Super 8. Desde Munique, um filme de Spielberg não me pegava assim.
Fratura
3.3 921Já vimos esse filme antes em alguma sessão noturna aleatória na Tela Quente ou no Supercine nos anos 2000 (se você tiver lembrando de algo que Jodie Foster ou Julianne Moore fizeram, é bem por aí mesmo; e dá para recordar até de DiCaprio nesse meio aí), e o problema desse aqui não é necessariamente essa sensação de repetição, mas em como tenta pregar pecinhas ao longo de toda narrativa para subverter essa percepção e soar “espertinho”, com direito até a um final surpresa que, diga-se, não é tão difícil sacar à certa distância. Thriller genérico a gente aguenta de boa, mas thriller genérico metido à filme original é difícil de engolir.
O Mensageiro do Último Dia
2.6 165 Assista AgoraO que há de melhor e de pior nesse filme é o mesmo: a forma como ele condensa várias ideias distintas em pouco mais de duas horas de projeção. Dentro de sua pegada meio de conto de creepypasta, esse Empty Man também dá conta de elementos de terror cósmico à lá H. P. Lovecraft, de thriller policial, de narrativa de apocalipse e outros conceitos que vão se misturando, entrando em conflito e disputando espaço nessa trama que, apesar de ciente do que propõe, parece ter dificuldade de enxugar seus excessos e focalizar mais. O final surpresa até dá uma liga para todas essas possibilidades que o filme abraça, mas fica a sensação de se fosse mais conciso e objetivo seria mais bem sucedido. Ótima construção de atmosfera, vale dizer.
Espírito
2.6 12O folclore ao redor da entidade que é a ameaça principal aqui é até fácil de se compreender, mas esse Roh se enrola muito em seu quebra-cabeças visual para contar uma história de maldição que me parece relativamente simples em linhas gerais, e por isso se apoia e muito na ambientação magistral das florestas malasianas e nesse clima iminente de desgraça (algumas cenas, no sentido mais gráfico, são bem boas, mas a melhor é a que a mãe conta uma lenda antiga para os filhos antes de eles irem dormir), que vai se concretizar eventualmente.
A Vila do Medo
1.9 234 Assista AgoraDemorei para entender que a ameaça do filme era realmente aquela e que deveríamos nos sentir acuados pela tal presença cujas façanhas incluem mover bibelôs de seus lugares e atiçar os cães da vizinhança. Talvez se fosse uma paródia, que é um terreno que o filme parece cair eventualmente de forma involuntária, seria menos ruim, mas o pior é que ele leva a brincadeira à sério e até tenta dar uma palavrinha ou outra sobre luto e trauma.
Piggy
3.0 125Se tem uma coisa que eu curti, nessa transição do curta de 15 minutos para esse longa metragem, é a virada na relação da protagonista com o serial killer, em como esse pacto sinistro dos dois funciona em cena, o que, ironicamente, também nem me faz desgostar do final, porque acho que na decisão dela rola um novo ponto de disrupção interessante para a construção dessa personagem, mas, à grosso modo, eu diria que o filme enche muita linguiça para fazer a história rodar em uma hora e meia e dá a sensação de que tudo que corre paralelo à essa relação central é uma enrolação que puxa o todo um pouco pra baixo.
Sorria
3.1 851 Assista AgoraFui ver sem dar nada por conta do material publicitário e fui pego de surpresa em como é um filme que, mesmo sem fugir do jumpscare (e nem se propor em fazer isso, aliás), estabelecer uma atmosfera de desconforto que se mantém pouco abalada durante pelo menos a sua primeira metade – a forma como concebe planos lentos, discretos, com a protagonista, já amaldiçoada, no centro sempre à mercê de um perigo iminente. A cena da festa de aniversário é bem boa. Lá pelas tantas, quando entra na trama de investigação e o reencontro com o passado traumático, vai perdendo um pouco da graça e arrojo, mas é bem bacaninha, no fim das contas.
Fresh
3.5 525 Assista AgoraDificulta um pouco o filme jamais perder a vibe de comédia romântica bizarra mesmo em seus momentos mais explícitos, porque essa pegada tira um pouco da gravidade dos acontecimentos que ele mostra (nada contra Sebastian Stan, mas não consigo de jeito nenhum comprar a ameaça dele como o vilão aqui; sempre me parece à beira de uma gag ou uma piadinha), mas de forma geral curto como esse Fresh é consciente dos perigos dessa dinâmica de boy meets girl a ponto de transformá-los em um pequeno conto preventivo de terror.
Pearl
3.9 999É um filme mais subversivo do que X, que apesar de bem sucedido, brincava com referências mais ou menos seguras e estava num lugar de homenagem um pouco confortável. Pearl é um filme que investe mais num apelo dramático para construção da personagem central e sua relação com o entorno, e parece aludir ao cinema antigo de uma forma mais indireta e até inventiva mesmo (e não falo apenas dos filmes da fase inicial de Hollywood, em que ele se situa, mas até outros clássicos como Carrie ou Mágico de Oz, que ele parece evocar de uma forma mais implícita, acredito). Mia Goth está brilhante.
Virgínia
2.3 256 Assista AgoraNão gosto de quase nada nesse filme, mas vou admitir que a ideia central me soa bonita – esse processo de catarse de um artista em remorso através da fábula –, especialmente quando espelhada com a história real de Coppola e de seu filho morto e sabendo que as escolhas desse Twixt foram bem conscientes, até na forma meio desajustada como mescla realidades por meio de cores, de forma quase infantil mesmo, como também são os personagens. Mas é uma fantasia que não me puxa para dentro de forma alguma e que me soa, na maior parte do tempo, caótica e preguiçosa.
Queer for Fear: A História do Terror Queer
3.9 3Sequência espiritual do documentário Horror Noire, sobre a representação de negros no cinema de terror norte-americano, que é ainda mais aprofundada que seu antecessor ao dividir em categorias de episódios e em uma cronologia específica os títulos e os temas que disseca sob as lentes da teoria queer, da experiência de vida e criação dos realizadores e do impacto sobre o público, levando em consideração o contexto de produção e sem se desviar de eventuais problematizações. Algumas das entrevistas que Bryan Fuller consegue, como aquela feita com o filho do lendário Antony Perkins sobre a simbiose do pai com o personagem Norman Bates, são preciosas. Fiquei com gosto de 'quero mais'.
Subspecies: A Geração Vamp
3.1 62Dá para tirar um proveito da ambientação que tenta resgatar um pouco dessa atmosfera gótica romântica dos velhos castelos e lendas sobre condes malditos, mas é um produto b sem muita identidade, bem ruinzinho mesmo, perdido em um tanto de referências e que com frequência cai no terreno da autoparódia.
Halloween Ends
2.3 536 Assista AgoraÉ um filme consciente do que está propondo ao se assumir como um ponto fora da curva nessa nova leitura da mitologia de Halloween – e os créditos que remetem ao Halloween III, o único da série que não conta com a presença de Michael Myers, reafirmam essa noção –, embora suas ideias não pareçam assentar na prática mesmo. O personagem do pária social, condenando “a se tornar” um novo bicho-papão, só funciona no blablablá redundante de David Gordon Green sobre o trauma da cidade e de seus habitantes (e parece existir tão somente como um objeto de um discurso, que é até meio confuso, vale dizer, quando traçamos uma linha da representação de Michael nos últimos três filmes), mas como uma força em si, uma presença, ele não orna, o que faz o filme carregar o peso do clássico vilão como um fardo, e tudo que antecede o acerto de contas soar como um longo e anticlimático apêndice.
Morte Morte Morte
3.1 643 Assista AgoraRachel Sennott rouba demais a cena nesse thriller inconsequente que equivale a uma publicação avulsa no Twitter engajando o pior da interação na rede – essa comparação não é aleatória, já que os personagens aqui se endereçam a avatares conhecidos da comunidade virtual. As sequências que envolvem a personagem dela, Alice, são as melhores coisas do filme (lembrei das falas sobre a 'lua em Libra' e a 'dismorfia corporal' e já tô aqui rindo), que, de modo geral, parece satisfeito demais com a própria zombaria e pouco interessado criar qualquer senso de perigo ou ameaça naquele espaço.
Blonde
2.6 444 Assista Agora"Tô achando a história dela parecida com a da Ju"
Hellraiser
3.2 406 Assista AgoraNão sei se foi uma boa essa pegada de terror ‘elevado’ que esse novo Hellraiser assume ao se valer de (e, em algum sentido, subverter) elementos da mitologia para criar uma metáfora sobre dependência química e o processo de reabilitação – um caminho que não é novidade para o diretor, que fez outros dois filmes, O Ritual e A Casa Sombria, para tratar, em suma, de luto, culpa e depressão por meio de histórias de terror. Não porque as ideias não sejam interessantes, mas é um filme que se enrola por injustificáveis duas horas para dar conta dessa alegoria ao mesmo tempo em que tenta apresentar para um novo público o universo concebido por Clive Barker, que finda o oposto do que sempre fora estabelecido: limpinho, pouco erotizado e “elevado”.