O que tanto procura o cinema de Malick, com tamanha inquietude, pulando de momento em momento, cheio de elipses temporais? Nada menos que o sublime, mas sempre ciente de sua efemeridade. As belas imagens desaparecem numa batida do coração, compondo um mosaico de sensações. E quantas são as contidas em To The Wonder! Paixão, dúvida, surpresa, melancolia, felicidade, desapontamento, repulsa, desapego e ainda outros enigmas são ondas que ecoam com a mesma força através de suas personagens.
Em 112 minutos uma montanha-russa de sentimentos e humores anunciam a experiência humana: incessantemente -e impiedosamente- tudo se transforma, o dia vira noite, o amor se esvai, quem uma vez sentiu a presença de Deus, agora não sente mais sinal dela. Eu em você, você em mim, Cristo acima, Cristo ao lado, em todos os lugares, de Paris ao Mont Saint-Michell, de St. Michell até Oklahoma, de volta a Paris, Oklahoma novamente, depois St. Michell, to the Wonder : aqui tudo deseja mudança, uma nova forma de organização, seja através de uma fusão, ruptura ou substituição, cada personagem introduzida é um sopro que joga o filme numa direção inesperada, dando a impressão de assistirmos um filme fantasmagórico, que flutua.
Talvez por isso To The Wonder seja o mais impenetrável e desafiador de uma filmografia já considerada difícil por alguns. Não, não é um 'Malick menor', é um filme que guarda em seus níveis mais profundos toda a filosofia apresentada até aqui pelo diretor, daí a recompensa enorme que é rever e rever o filme. É exigido do espectador um novo olhar, assim como Malick observa com olhos de 'newborn' um mundo onde o centro é realinhado pela simples presença da vida e da graça divina.
" Estes olhos... que te olham... tanto de dia como de noite. E que, segundo dizem, apontam os números e o ódio. Estas coisas proibidas as quais você se dirige e que serão tuas, quando você fechar os olhos... da Opressão."
Que ideia, que imagem ! Esse filme é um dos mais intrigantes do Godard, totalmente experimental e subversivo, contestando a hipocrisia social, a alienação, as ideias convencionais e simplificadas, mas tudo com uma veia emocional muito tocante. Recomendadíssimo !
A obsessão por um estilo de vida inconsequente alimentada pela ilusão capitalista ( - Give me your fucking money !) foi internalizada por essas quatro adolescentes, esvaziou e possuiu o corpo delas de tal forma que agora não lembram mais garotas da cidadezinha em spring-break, mas sim bestas dionísicas, sereias com fetiche de armas e morte, terroristas sem rosto, indestrutíveis, personagens de um video-game, objetos de projeção e fantasia masculina que deixam um rastro de sangue por onde passam. Fica clara a demência ( glamourizada em geral ) que constitui essa filosofia de excessos e também a imaturidade e superficialidade dos conflitos entre personagens, mas vale refletir que esse pode muito bem ser o ponto feito pelo filme. Aqui esse tipo de comportamento seria menos uma reprodução da realidade e mais a imagem como uma questão a ser refletida e interpretada. Talvez a genialidade do Korine esteja em deixar isso completamente nas mãos do espectador : você pode decidir mergulhar numa experiência alucinógena e repetitiva que dilata o tempo e toma ares 'espirituais' como diz Faith, ou só assistir pra ver garotas de biquini, ou só pra falar mal, ou por que não, tudo isso ao mesmo tempo, da mesma forma que o filme condensa seu circuito de imagens ( em slow-motion, distorcidas, em digital, super-expostas, flutuantes, etc) em uma bolha neon que explode e evapora da memória, o que dá aquela vontade compulsiva de rever pra recuperar o pesadelo de imagens.
'Le Profit Et Rien D'Autre' é um filme em tom de carta, uma confidência, um grito abafado, notícias das pessoas de quem não se fala, notícias do mundo. Essas pessoas são haitianas, mas também são brasileiras, turcas, americanas, são os seus vizinhos ou conhecidos. São as vítimas da lógica capitalista, das multinacionais, da concentração de poder na mão de poucos economicamente privilegiados. Um massacre violento que se perpetua por séculos às custas do lucro incessante e de uma ilusão de estabilidade financeira. 'O capital ganhou', afirma a voz. Pra que fazer uma imagem ? Pra que guardar na memória do cinema uma batalha vencida ? 'Porque não podemos fazer outra coisa, talvez. Porque é mais aceitável do que queimar um automóvel.'
Mas também porque ainda existem visionários e poetas como o diretor Raoul Peck, existem sonhadores que lutam por quem teve a voz negada. A batalha do capital foi vencida, mas luta nunca acaba, esse não é o fim da história, 'Le Profit Et Rien D'Autre' também é um filme que aponta para um futuro, que reflete a insatisfação do presente e dá nova significância.
Nessa onda de manifestações pelo Brasil e pelo mundo onde muitas pessoas que saem às ruas ainda são reféns do imaginário social e de uma visão histórica limitada e individualista, este documentário se faz mais necessário do que nunca.
2 ou 3 choses Que Je Sais d'Elle capta a essência de uma cultura da propaganda : anúncios coloridos e chamativos nas páginas das revistas, casas com móveis bem acabados, objetos esmaltados e polidos livres de curvas típicos da década de 60, mas que também apontam um ideal futurista que se revela frio e desumano. A ideia de uma família vivendo no subúrbio francês se mostra uma armadilha onde figuras são contidas por formas retangulares, contidas pelo espaço e também pelo tempo, porque estão presas ao tempo industrial: trabalhar, comer, dormir, prostituir suas habilidades, seu corpo, sua mente. E viver ? Existe uma sensação de inquietude, de profunda insatisfação na mente dessa 'dona-de-casa-vira-prostituta'.
Mais do que comunicar ou refletir estruturas sociais, Godard cria um espaço pra esse fluxo de consciência, um espaço íntimo onde somos livres pra questionar nossa realidade, e mais do que isso, para encontrarmos e criarmos gestos poéticos dentro de um mundo quebrado. A mais industrial das figuras pode ser filmada como arte, as máquinas são donas de uma música própria, a alternação entre barulho e silêncio também cria uma melodia. A melodia da vida na cidade. Uma simples xícara de café se torna uma representação do Cosmos, a ponta de um cigarro queimando aqui é uma figura que pede por abstração, é o macro dentro do micro. Ao percebermos os aspectos desumanos e alienantes da estrutura capitalista e da ilusão do consumo, podemos escapar em direção à uma felicidade concreta através de uma arte 'de resistência'.
Desde o design de som, passando pelos enquadramentos até a edição, tudo se torna hipnótico nesse filme-colagem que é um marco na filmografia do Godard. Um ponto de transição entre seus filmes narrativos e os filmes-ensaio que viriam depois, aqui existe uma mistura dos dois que cria um tom novo e realmente fascinante. O meu favorito dele.
O que continua me fascinando nos filmes do Larry Clark é a habilidade de capturar a essência de um lugar, uma comunidade, uma cultura sem uma tentativa de definição : tudo pulsa e se movimenta junto com os personagens inebriados pelas drogas e pelo sexo desenfreado. Cheia de energia e fascínio erótico a câmera colore vibrantemente uma sociedade que cultiva aparências na tentativa de ocultar um coração negro. Por trás das vitrines bonitas, dos carrões, da imagem da família americana, o que se esconde ? Nada mais irônico do que a primeira cena do filme : o filho agradando um cliente no sexo pelo telefone enquanto fora do campo de visão a mãe avisa que janta tá pronta. Jovens impulsivos e inconsequentes, sempre em busca do êxtase, da sensação.
Chega a ser surreal a facilidade com que abusos de poder, estupros e finalmente um assassinato ocorrem no filme. O grupo de amigos planeja uma morte como um jogo onde pistas devem ser ocultadas, eles se sentem excitados pela ideia, como se estivessem entediados e aquela fosse a diversão da noite. Mas a realidade bate forte na cabeça quando o crime de fato acontece e o grupo começa a se despedaçar. Larry Clark faz um retrato imersivo de uma subcultura e de uma geração e ousa não fazer julgamentos morais num dos filmes mais relevantes e enérgicos da década que passou. Um filme que não acaba nos créditos.
" O Cinema se move de um filme ao outro através do tempo, acima e além daqueles que o fazem... " diz Philippe Grandrieux enquanto observa as estradas da Tokyo em uma alusão à Solaris (1972, Tarkovsky). Estradas interconectadas e donas de um fluxo próprio e elusivo, assim como os pensamentos propostos nos filmes de Masao Adachi.
Um documentário não só sobre o infelizmente oculto diretor e roteirista japonês, mas sobre a própria essência das imagens, sobre a necessidade de uma imagem, como ela dialoga com o circuíto à que pertence, com o cinema em geral e com os pensamentos. Uma misteriosa e reflexiva jornada pelas noites de Tokyo em busca das vias que impulsionam o necessário e íntegro cinema político de Masao Adachi. Maravilhoso !
Corpos nus que contrastam com personalidades frágeis, fragmentadas e quase desprovidas de vida interior, durante todo o filme adolescentes são psicologicamente mutilados através de relações abusivas estabelecidas pelos próprios pais ou outros adultos. No final, Larry Clark cria a cena de sexo mais bonita e significativa da década que passou : Naquele momento, eles são plenos, são um só com seu próprio corpo e desejo. É o mais perto que eles conseguem chegar da pureza e da inocência, confiscadas por relações sociais perversas. Paraíso na terra. Claude coloca uma flor no cabelo de Peaches, ela abre um sorriso. Me lembra o começo de Tabu (1931 - F.W. Murnau), outro filme politicamente carregado sobre um paraíso corrompido, mas que segue linha narrativa inversa. A abordagem ambígua de Ken Park me agrada, não é função do Larry Clark fazer filmes educativos. 5 estrelas.
Um dos filmes mais frágeis e mais bonitos que existem. O Raio Verde difere dos outros filmes do Rohmer, Delphine é uma personagem inarticulada, tímida, sem propósito, quando surge alguma possibilidade, se retrai : " não tenho nada a oferecer" ou "não sou atraente", "me deixe sozinha", mas é na solidão da praia que entramos em contato com a dor e insatisfação da personagem, num close-up, lágrimas escorrem pelo delicado rosto de Marie Rivière, Delphine é prisioneira de si mesma. Teimosa, cruza os braços em recusa ao destino, porque é o desconhecido e em sua disfunção social, Delphine requer condições especiais pra se sentir segura, pra criar uma conexão com o outro e com a vida, é nesse momento que o filme derruba o espectador.
Se ao menos ela pudesse ver o Raio Verde, aí ganharia consciência de seus verdadeiros sentimentos, aí ganharia um propósito, uma vida possível. Porém, tais revelações não podem se manifestar na impassividade do comportamento de Delphine, é preciso ação, é preciso escolher, ter fé no outro, Rohmer mostra, só assim sentimentos como a felicidade se revelam. Le Rayon Vert me parece, acima de tudo, uma celebração poética da vida : basta um simples 'Oui'.
" Da primeira vez que assisti 2001 eu não gostei e fiquei desapontado (...) gostei bem mais da segunda vez que vi o filme, aí alguns anos depois eu vi novamente e pensei 'Nossa, esse filme é mesmo sensacional', foi uma das poucas vezes na minha vida que eu percebi que o artista estava muito à frente de mim. " - Woody Allen.
Dizer que 2001 é um 'filme-viagem' é um comentário válido, mas não deixa de ser lugar-comum. É importante ressaltar que o filme tem sim um significado mais profundo e um texto coerente que suporta interpretação filosófica/metafísica /antropológica. Se não fica aparente na primeira vez é porque às vezes não estamos preparados pra olhar um filme com a atenção e sagacidade que ele demanda.
Cinema político absolutamente RETUMBANTE ! Eisenstein já chegou chutando a porta em 1925 com A Greve, completo domínio técnico e temático. Mais do que uma política universal, A Greve é cinema como esperança das massas, ferramenta, manual, arma - nesse caso, como guerra. Obra-prima inspiradora e viva !
" O filme é uma forma de ficção científica, onde humanos, feras e máquinas estão à beira da extinção - "motores sagrados" unidos pelo destino e pela solidariedade, escravos de um mundo cada vez mais virtual. " - Leos Carax
Boy Meets Girl, Mauvais Sang, Les Amants du Pont-Neuf : Leos Carax é um romântico. Se no início do filme moribundos ocupam os assentos do cinema, não é com falsa pretensão que surge o título Holy Motors, mas como um cutucão, gesto irônico e apaixonado que tenta acender a chama do público, a paixão por uma arte capaz de refletir e provocar enquanto cinema, um sonho de lógica interna. É com esse entusiasmo e energia que são organizados os segmentos de Holy Motors, um filme que é estruturado através da colisão de gêneros e símbolos, auto-combustão poética.
O filme começa com Monsieur Oscar se despedindo de uma família ( seria aquela sua 'real' identidade ? ) e segue o protagonista numa jornada que pode ser dita nostálgica, onde busca através da vida do outro experiências cada vez mais cinestésicas : a relação com o espaço, o tato, a dança dos corpos num "mundo cada vez mais virtual", culminando num colapso de pixels.
No final, todas as identidades de Monsieur são verdadeiras, porque todas são falsas, são máscaras, já que todo homem é o mesmo. Após um dia de trabalho, M. Oscar retorna ao lar onde é aguardado por ancestrais simbólicos, e Carax fecha o filme com outro gesto irônico: a evolução não é uma saída, a humanidade é um motor que continua vítima de seus próprios circuitos.
Nossa, tantas coisas a serem ditas sobre esta intrigante - e por que não, 'concupisciosa' ? (rs) - adaptação de Madame Bovary ! Por hoje quero comentar sobre os vários momentos que me pegaram completamente desprevenido, nenhum mais do que a cena final :
" - It's not that I don't like work. It's just that I don't like the idea of slaving me guts out so the bosses can get all the profits. Seems all wrong to me. "
" - I used to think it would be marvelous being grown up. - I reckon it is. - Oh, it is, but not in the way I thought, though. - Why, what did you think? - Oh, I don't know. Maybe, we don't know much yet, anyway. - I know enough, you know, to want to know more. I've been learning a lot lately. Trouble is, I'm not quite sure what I've been learning."
Até me espantei quando vi que não estava cadastrado aqui, só demonstra a precariedade da distribuição dos filmes de Jacques Rivette, uma pena. Um musical delicioso que merece ser descoberto !
“Todo o poder emana do povo (...).” Constituição da República Federativa do Brasil (1988), artigo 1º.
" Quando o governo viola os direitos do povo, a insurreição é, para o povo e para cada parcela do povo, o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres.” Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1793), artigo nº 35.
Se você curte ou se interessa pelos outros filmes de Jean-François Richet e/ou pelo cinema de Spike Lee, Ma 6-T va crack-er (1997) é um filme essencial.
" Então todos saberão que fui uma esposa devota, nisto reside a paz de minh'alma. "
Assim como A Sala de Música (1958, Satyajit Ray), Sahib Bibi Aur Ghulam é um filme sobre a morte do cinema indiano que combina a Índia pós-colonial com a decadência física de seus protagonistas, tudo isso ao som de muita música boa.
Como não se emocionar com o drama da esposa, que não consegue seduzir seu doentio conjugue sem se embebedar com vinho, apesar de sua beleza exótica ? A espiral mortal em que cai a personagem ganha nova força quando nos lembramos da morte de Meena Kumari, dez anos depois - e apenas um mês após o lançamento da obra-prima Pakeezha (1972, Kamal Amrohi) - vítima de cirrose hepática. Arte e vida são um ciclo eterno.
Abrar Alvi mostra claramente influências do cinema de Guru Dutt , que além de um verdadeiro 'auteur' na concepção de suas obras, mostra em Sahib Bibi Aur Ghulam seu talento como ator numa interpretação inocente, que compartilha uma semelhança com os papéis de Buster Keaton. Cinema indiano essencial.
" A maior diversão que eu já tive em um filme foi em Hatari! " - John Wayne
É incrível o quanto Hawks pode ser subestimado até pelos próprios fãs, muitos se referem a Hatari ! como uma obra menor do diretor, tal afirmação está longe da verdade e provavelmente é repetida por quem não prestou muita atenção.
Filme que epitomiza um gênero que já tinha se desgastado e entretém durante 3 horas, foi bem relevado pelos críticos da época - apesar de ter acabado em algumas listas de melhores do ano, inclusive a da Cahiers du Cinéma, onde Hatari! ficou no top 3 junto com Vivre sa Vie (Jean-Luc Godard) e Jules et Jim (Francois Truffaut) e na lista pessoal de Godard, onde Hatari! ficou em 1º lugar- mas não vejo como esse filme seja um feito menor que outras obras-primas do Hawks.
Em Hatari ! a ênfase não está na ação, mas sim no cotidiano desses aventureiros, nas conversas, nas paixões compartilhadas, nos pequenos momentos de distração, e na espera. Hatari!, mais do que uma aventura de caça, é a aventura de viver, a história da vida desses profissionais.
Existe essa noção de que um filme bem dirigido é um filme onde não se nota a direção, onde a câmera não interfere na história a ser contada, esse é meu tipo predileto de direção em filmes. Hatari! é dirigido dessa forma sutil, e isso pode incomodar quem gosta de se impressionar mais facilmente. Hawks usa uma abordagem low-key ,mostrando inclinações humanistas, ele acolhe vários personagens em um único enquadramento, afinal, estão unidos pelo mesmo objetivo, é a forma colaborando com o conteúdo. Ao mesmo tempo, ação e aventura são filmados de forma visceral e realista, o trabalho de um mestre.
Não tem jeito, a regra familiar é evitar conflitos, independente da cultura. Diferente dos personagens que explodem em emoções e brigas no cinema, a maioria das pessoas têm pânico de confronto. Esse é um dos fatores que torna 'Seguindo em Frente' um filme tão sincero, as coisas que se passam em silêncio, os conflitos que nunca se expõem. Abafadas pelo decoro familiar existem tensões que nunca são resolvidas, apenas aceitas, o que não deixa de ser uma forma de amor. Um filme que remete muito aos de Yasujirō Ozu.
Jean Renoir uma vez disse que todo diretor só faz um filme durante a vida, depois quebra esse filme em pedaços e vai refazendo. Acho interessante ter isso em mente ao assistir os filmes de Ozu, principalmente os que compõem essa trilogia. Como um pintor testando diferentes composições do mesmo tema em cada quadro, é no luto de Tokyo Monogatari que ele atinge sua pintura mais solene e meditativa. Algo que sempre me impressiona é a gentileza de Ozu com seus personagens: independente de suas atitudes, nunca são julgados. A mesma gentileza se direciona ao público: não somos manipulados pelo diretor. Francamente, essa é uma característica que anda em falta no cinema atual, por isso que sempre retorno a Ozu, filmes que me permitem respirar.
Escolher um dos filmes dessa trilogia de Ozu é uma tarefa bem acirrada, mas se fosse obrigado, escolheria 'Bakushu', por mais de um motivo. Mas e a ternura de 'Banshun', ou a solenidade de 'Tokyo Monogatari' ?- alguém me perguntaria. Sim, estes são elementos que aprecio, e que estão presentes em muitas obras de Ozu (embora não na mesma intensidade que nos filmes citados), mas 'Bakushu' tem algo de especial.
Se filmes podem ser vistos como espelhos, sempre refletindo o passado e a nós mesmos, em 'Bakushu' Ozu reflete não apenas a sociedade japonesa pós-II Guerra, mas também a imagem mais acurada, mais próxima da vida e do cosmos que eu já experienciei em um filme. A história de 'Bakushu' é a história dos pequenos momentos, fragmentos que talvez passariam despercebidos, mas que reunidos criam um impacto tremendo.
Ozu adota uma abordagem episódica, isto é, a câmera não segue um personagem por toda a narrativa como a filha em 'Banshun' por exemplo. É verdade que ele pende pra esse espaço narrativo no posterior 'Tokyo Monogatari', mas aqui esse aspecto é executado de forma mais audaciosa e radical : o que presenciamos é um mosaico onde o diretor alterna generosamente entre nada menos que dezenove personagens, cada um com suas esperanças e frustrações, cada um deles fica com o espectador. Claro, pode ser dito que o filme não permite uma exploração aprofundada de todos personagens, mas eu diria que é justamente essa estrutura, junto da qualidade do roteiro que tornam 'Bakushu' tão arrebatador. O humor é outro aspecto fundamental, certa vez Chaplin disse : " Life is a tragedy when seen in close-up, but a comedy in long-shot ", e certamente Ozu tinha a mesma filosofia em mente ao realizar 'Bakushu', nunca sua temática do ciclo da vida foi executada de forma tão simples e ao mesmo tempo complexa.
Assistir 'Bakushu' é olhar um álbum de família, a câmera se movimenta pelo espaço do ambiente e nós nos movimentamos entre as intimidades de uma vida : Um grupo de amigas vai a uma cafeteria moderna bater papo após um casamento, no fundo está pendurado um quadro de arte moderna. Filhos mimados chutam um pedaço de pão, não é o presente que eles esperavam. Uma mãe fala sobre seu filho desaparecido e contempla o horizonte num ato de luto serene. Uma filha retira o avental após um dia de trabalho doméstico, só que com uma conotação diferente : essa é a ultima vez que retira o avental na casa dos pais, o tempo passa e nossa vida muda, o que será de nossa família, o que será de nossos amigos... Uma ultima foto da família reunida. Um casal reflete se levou uma vida triste ou feliz, um balão aparece no céu : o que os separa da eternidade ?
E o que acontece, depois que esse álbum fechar, depois que tudo vira passado ? Ozu filma as casas de longe, eles também foram felizes. E eu puxo outro lenço de papel da caixa. Já me emocionei com mais filmes do que gostaria de admitir, mas poucas vezes o cinema atingiu de forma tão profunda meu coração.
Acho que nunca vi o mar em película tão lindo e reluzente como aqui. Os dois protagonistas morrem para as pressões políticas da época e renascem no mar de Barnet, um lugar onde apenas os sentimentos mais puros são permitidos, um paraíso primitivo, banhado pelo mar eufórico onde os desejos dos protagonistas são irradiados pelo corpo, pelo tato. Uma verdadeira joia.
Como já foi dito, se você vai assistir um filme chamado ESTUPRA-ME achando que não vai encontrar cenas de gosto duvidoso e/ou sexo explícito, só posso lamentar pela ingenuidade. A questão é : 1.Qual o objetivo do filme, 2.O filme é bem sucedido em sua empreitada ? A resposta para a ultima pergunta seria : provavelmente sim.
Baise Moi propõe a seguinte questão : existe um limite na representação do sexo no cinema ? Ou em outras palavras, qual a diferença entre o sexo representado num filme e a pornografia ? Sendo o cinema um reflexo da sociedade, a pornografia, em sua simplicidade simbólica, seria a sociedade em sua representação mais básica, sem os floreios e a complexidade de um cinema-arte ou até mesmo cinema popular. O brilhantismo de Baise-Moi é unir os dois através de uma ótica sem hipocrisia, de quem já trabalhou na indústria. Aqui não existe tipo algum de mistificação sobre o sexo, ele não é tratado de uma forma negativa (com exceção da cena de estupro, que obviamente é um dispositivo narrativo), como pulsão de morte, uma prática cada vez mais comum no cinema atual. A crença no desejo tão presente no começo dos anos 70 foi confiscada pelo consumismo, forçando esse tipo de representação negativa ( se psicologicamente rasa ) de alguns famosos diretores atuais.
É pedir demais querer profundidade em personagens que obviamente não são pessoas reais, são clichês feministas usadas como artifício do gênero filme-vingança. E diga-se de passagem, um bem radical e extremamente incompreendido.
A primeira hora de Guerra dos Mundos contém alguns dos momentos mais precisos da década passada em termos de mise-en-scène e edição, Spielberg vai cortando uma cena atrás da outra de forma extremamente ágil e habilidosa.
Na segunda parte o filme desanda um pouco, o diretor deixa de lado a alegoria politica pós-11/09 e apela pro sentimentalismo do drama familiar, um cacoete típico dele, mas que na minha opinião não compromete muito o que foi desenvolvido antes. Se a segunda parte não eleva o material ao status de obra-prima ao menos é inegável que o filme é tecnicamente brilhante, o trabalho de um mestre.
O pior filme do Spielberg ? Provavelmente não. De A.I. , passando por Minority Report até Munique, foi uma década curiosa pro diretor, não vejo como Guerra dos Mundos, em sua imperfeição, esteja abaixo do nível desses outros.
Amor Pleno
3.0 558O que tanto procura o cinema de Malick, com tamanha inquietude, pulando de momento em momento, cheio de elipses temporais? Nada menos que o sublime, mas sempre ciente de sua efemeridade. As belas imagens desaparecem numa batida do coração, compondo um mosaico de sensações. E quantas são as contidas em To The Wonder! Paixão, dúvida, surpresa, melancolia, felicidade, desapontamento, repulsa, desapego e ainda outros enigmas são ondas que ecoam com a mesma força através de suas personagens.
Em 112 minutos uma montanha-russa de sentimentos e humores anunciam a experiência humana: incessantemente -e impiedosamente- tudo se transforma, o dia vira noite, o amor se esvai, quem uma vez sentiu a presença de Deus, agora não sente mais sinal dela. Eu em você, você em mim, Cristo acima, Cristo ao lado, em todos os lugares, de Paris ao Mont Saint-Michell, de St. Michell até Oklahoma, de volta a Paris, Oklahoma novamente, depois St. Michell, to the Wonder : aqui tudo deseja mudança, uma nova forma de organização, seja através de uma fusão, ruptura ou substituição, cada personagem introduzida é um sopro que joga o filme numa direção inesperada, dando a impressão de assistirmos um filme fantasmagórico, que flutua.
Talvez por isso To The Wonder seja o mais impenetrável e desafiador de uma filmografia já considerada difícil por alguns. Não, não é um 'Malick menor', é um filme que guarda em seus níveis mais profundos toda a filosofia apresentada até aqui pelo diretor, daí a recompensa enorme que é rever e rever o filme. É exigido do espectador um novo olhar, assim como Malick observa com olhos de 'newborn' um mundo onde o centro é realinhado pela simples presença da vida e da graça divina.
Número Dois
3.6 7" Estes olhos... que te olham... tanto de dia como de noite. E que, segundo dizem, apontam os números e o ódio. Estas coisas proibidas as quais você se dirige e que serão tuas, quando você fechar os olhos... da Opressão."
Que ideia, que imagem ! Esse filme é um dos mais intrigantes do Godard, totalmente experimental e subversivo, contestando a hipocrisia social, a alienação, as ideias convencionais e simplificadas, mas tudo com uma veia emocional muito tocante. Recomendadíssimo !
Spring Breakers: Garotas Perigosas
2.4 2,0K Assista AgoraA obsessão por um estilo de vida inconsequente alimentada pela ilusão capitalista ( - Give me your fucking money !) foi internalizada por essas quatro adolescentes, esvaziou e possuiu o corpo delas de tal forma que agora não lembram mais garotas da cidadezinha em spring-break, mas sim bestas dionísicas, sereias com fetiche de armas e morte, terroristas sem rosto, indestrutíveis, personagens de um video-game, objetos de projeção e fantasia masculina que deixam um rastro de sangue por onde passam. Fica clara a demência ( glamourizada em geral ) que constitui essa filosofia de excessos e também a imaturidade e superficialidade dos conflitos entre personagens, mas vale refletir que esse pode muito bem ser o ponto feito pelo filme. Aqui esse tipo de comportamento seria menos uma reprodução da realidade e mais a imagem como uma questão a ser refletida e interpretada. Talvez a genialidade do Korine esteja em deixar isso completamente nas mãos do espectador : você pode decidir mergulhar numa experiência alucinógena e repetitiva que dilata o tempo e toma ares 'espirituais' como diz Faith, ou só assistir pra ver garotas de biquini, ou só pra falar mal, ou por que não, tudo isso ao mesmo tempo, da mesma forma que o filme condensa seu circuito de imagens ( em slow-motion, distorcidas, em digital, super-expostas, flutuantes, etc) em uma bolha neon que explode e evapora da memória, o que dá aquela vontade compulsiva de rever pra recuperar o pesadelo de imagens.
O Lucro e Nada Mais
4.1 2'Le Profit Et Rien D'Autre' é um filme em tom de carta, uma confidência, um grito abafado, notícias das pessoas de quem não se fala, notícias do mundo. Essas pessoas são haitianas, mas também são brasileiras, turcas, americanas, são os seus vizinhos ou conhecidos. São as vítimas da lógica capitalista, das multinacionais, da concentração de poder na mão de poucos economicamente privilegiados. Um massacre violento que se perpetua por séculos às custas do lucro incessante e de uma ilusão de estabilidade financeira. 'O capital ganhou', afirma a voz. Pra que fazer uma imagem ? Pra que guardar na memória do cinema uma batalha vencida ? 'Porque não podemos fazer outra coisa, talvez. Porque é mais aceitável do que queimar um automóvel.'
Mas também porque ainda existem visionários e poetas como o diretor Raoul Peck, existem sonhadores que lutam por quem teve a voz negada. A batalha do capital foi vencida, mas luta nunca acaba, esse não é o fim da história, 'Le Profit Et Rien D'Autre' também é um filme que aponta para um futuro, que reflete a insatisfação do presente e dá nova significância.
Nessa onda de manifestações pelo Brasil e pelo mundo onde muitas pessoas que saem às ruas ainda são reféns do imaginário social e de uma visão histórica limitada e individualista, este documentário se faz mais necessário do que nunca.
Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela
3.7 82 Assista Agora2 ou 3 choses Que Je Sais d'Elle capta a essência de uma cultura da propaganda : anúncios coloridos e chamativos nas páginas das revistas, casas com móveis bem acabados, objetos esmaltados e polidos livres de curvas típicos da década de 60, mas que também apontam um ideal futurista que se revela frio e desumano. A ideia de uma família vivendo no subúrbio francês se mostra uma armadilha onde figuras são contidas por formas retangulares, contidas pelo espaço e também pelo tempo, porque estão presas ao tempo industrial: trabalhar, comer, dormir, prostituir suas habilidades, seu corpo, sua mente. E viver ? Existe uma sensação de inquietude, de profunda insatisfação na mente dessa 'dona-de-casa-vira-prostituta'.
Mais do que comunicar ou refletir estruturas sociais, Godard cria um espaço pra esse fluxo de consciência, um espaço íntimo onde somos livres pra questionar nossa realidade, e mais do que isso, para encontrarmos e criarmos gestos poéticos dentro de um mundo quebrado. A mais industrial das figuras pode ser filmada como arte, as máquinas são donas de uma música própria, a alternação entre barulho e silêncio também cria uma melodia. A melodia da vida na cidade. Uma simples xícara de café se torna uma representação do Cosmos, a ponta de um cigarro queimando aqui é uma figura que pede por abstração, é o macro dentro do micro. Ao percebermos os aspectos desumanos e alienantes da estrutura capitalista e da ilusão do consumo, podemos escapar em direção à uma felicidade concreta através de uma arte 'de resistência'.
Desde o design de som, passando pelos enquadramentos até a edição, tudo se torna hipnótico nesse filme-colagem que é um marco na filmografia do Godard. Um ponto de transição entre seus filmes narrativos e os filmes-ensaio que viriam depois, aqui existe uma mistura dos dois que cria um tom novo e realmente fascinante. O meu favorito dele.
Bully: Juventude Violenta
3.4 102O que continua me fascinando nos filmes do Larry Clark é a habilidade de capturar a essência de um lugar, uma comunidade, uma cultura sem uma tentativa de definição : tudo pulsa e se movimenta junto com os personagens inebriados pelas drogas e pelo sexo desenfreado. Cheia de energia e fascínio erótico a câmera colore vibrantemente uma sociedade que cultiva aparências na tentativa de ocultar um coração negro. Por trás das vitrines bonitas, dos carrões, da imagem da família americana, o que se esconde ? Nada mais irônico do que a primeira cena do filme : o filho agradando um cliente no sexo pelo telefone enquanto fora do campo de visão a mãe avisa que janta tá pronta. Jovens impulsivos e inconsequentes, sempre em busca do êxtase, da sensação.
Chega a ser surreal a facilidade com que abusos de poder, estupros e finalmente um assassinato ocorrem no filme. O grupo de amigos planeja uma morte como um jogo onde pistas devem ser ocultadas, eles se sentem excitados pela ideia, como se estivessem entediados e aquela fosse a diversão da noite. Mas a realidade bate forte na cabeça quando o crime de fato acontece e o grupo começa a se despedaçar. Larry Clark faz um retrato imersivo de uma subcultura e de uma geração e ousa não fazer julgamentos morais num dos filmes mais relevantes e enérgicos da década que passou. Um filme que não acaba nos créditos.
É Possível Que A Beleza Tenha Fortalecido Nossa Determinação - …
3.9 2" O Cinema se move de um filme ao outro através do tempo, acima e além daqueles que o fazem... " diz Philippe Grandrieux enquanto observa as estradas da Tokyo em uma alusão à Solaris (1972, Tarkovsky). Estradas interconectadas e donas de um fluxo próprio e elusivo, assim como os pensamentos propostos nos filmes de Masao Adachi.
Um documentário não só sobre o infelizmente oculto diretor e roteirista japonês, mas sobre a própria essência das imagens, sobre a necessidade de uma imagem, como ela dialoga com o circuíto à que pertence, com o cinema em geral e com os pensamentos. Uma misteriosa e reflexiva jornada pelas noites de Tokyo em busca das vias que impulsionam o necessário e íntegro cinema político de Masao Adachi. Maravilhoso !
Ken Park
3.1 372Corpos nus que contrastam com personalidades frágeis, fragmentadas e quase desprovidas de vida interior, durante todo o filme adolescentes são psicologicamente mutilados através de relações abusivas estabelecidas pelos próprios pais ou outros adultos. No final, Larry Clark cria a cena de sexo mais bonita e significativa da década que passou : Naquele momento, eles são plenos, são um só com seu próprio corpo e desejo. É o mais perto que eles conseguem chegar da pureza e da inocência, confiscadas por relações sociais perversas. Paraíso na terra. Claude coloca uma flor no cabelo de Peaches, ela abre um sorriso. Me lembra o começo de Tabu (1931 - F.W. Murnau), outro filme politicamente carregado sobre um paraíso corrompido, mas que segue linha narrativa inversa. A abordagem ambígua de Ken Park me agrada, não é função do Larry Clark fazer filmes educativos. 5 estrelas.
O Raio Verde
4.1 87Um dos filmes mais frágeis e mais bonitos que existem. O Raio Verde difere dos outros filmes do Rohmer, Delphine é uma personagem inarticulada, tímida, sem propósito, quando surge alguma possibilidade, se retrai : " não tenho nada a oferecer" ou "não sou atraente", "me deixe sozinha", mas é na solidão da praia que entramos em contato com a dor e insatisfação da personagem, num close-up, lágrimas escorrem pelo delicado rosto de Marie Rivière, Delphine é prisioneira de si mesma. Teimosa, cruza os braços em recusa ao destino, porque é o desconhecido e em sua disfunção social, Delphine requer condições especiais pra se sentir segura, pra criar uma conexão com o outro e com a vida, é nesse momento que o filme derruba o espectador.
Se ao menos ela pudesse ver o Raio Verde, aí ganharia consciência de seus verdadeiros sentimentos, aí ganharia um propósito, uma vida possível. Porém, tais revelações não podem se manifestar na impassividade do comportamento de Delphine, é preciso ação, é preciso escolher, ter fé no outro, Rohmer mostra, só assim sentimentos como a felicidade se revelam. Le Rayon Vert me parece, acima de tudo, uma celebração poética da vida : basta um simples 'Oui'.
2001: Uma Odisseia no Espaço
4.2 2,4K Assista Agora" Da primeira vez que assisti 2001 eu não gostei e fiquei desapontado (...) gostei bem mais da segunda vez que vi o filme, aí alguns anos depois eu vi novamente e pensei 'Nossa, esse filme é mesmo sensacional', foi uma das poucas vezes na minha vida que eu percebi que o artista estava muito à frente de mim. " - Woody Allen.
Dizer que 2001 é um 'filme-viagem' é um comentário válido, mas não deixa de ser lugar-comum. É importante ressaltar que o filme tem sim um significado mais profundo e um texto coerente que suporta interpretação filosófica/metafísica /antropológica. Se não fica aparente na primeira vez é porque às vezes não estamos preparados pra olhar um filme com a atenção e sagacidade que ele demanda.
A Greve
4.1 62 Assista AgoraCinema político absolutamente RETUMBANTE ! Eisenstein já chegou chutando a porta em 1925 com A Greve, completo domínio técnico e temático.
Mais do que uma política universal, A Greve é cinema como esperança das massas, ferramenta, manual, arma - nesse caso, como guerra. Obra-prima inspiradora e viva !
Holy Motors
3.9 652" O filme é uma forma de ficção científica, onde humanos, feras e máquinas estão à beira da extinção - "motores sagrados" unidos pelo destino e pela solidariedade, escravos de um mundo cada vez mais virtual. " - Leos Carax
Boy Meets Girl, Mauvais Sang, Les Amants du Pont-Neuf : Leos Carax é um romântico. Se no início do filme moribundos ocupam os assentos do cinema, não é com falsa pretensão que surge o título Holy Motors, mas como um cutucão, gesto irônico e apaixonado que tenta acender a chama do público, a paixão por uma arte capaz de refletir e provocar enquanto cinema, um sonho de lógica interna. É com esse entusiasmo e energia que são organizados os segmentos de Holy Motors, um filme que é estruturado através da colisão de gêneros e símbolos, auto-combustão poética.
O filme começa com Monsieur Oscar se despedindo de uma família ( seria aquela sua 'real' identidade ? ) e segue o protagonista numa jornada que pode ser dita nostálgica, onde busca através da vida do outro experiências cada vez mais cinestésicas : a relação com o espaço, o tato, a dança dos corpos num "mundo cada vez mais virtual", culminando num colapso de pixels.
No final, todas as identidades de Monsieur são verdadeiras, porque todas são falsas, são máscaras, já que todo homem é o mesmo. Após um dia de trabalho, M. Oscar retorna ao lar onde é aguardado por ancestrais simbólicos, e Carax fecha o filme com outro gesto irônico: a evolução não é uma saída, a humanidade é um motor que continua vítima de seus próprios circuitos.
Vale Abraão
4.3 11Nossa, tantas coisas a serem ditas sobre esta intrigante - e por que não, 'concupisciosa' ? (rs) - adaptação de Madame Bovary !
Por hoje quero comentar sobre os vários momentos que me pegaram completamente desprevenido, nenhum mais do que a cena final :
após 3 horas de câmera estática, o movimento.
É como se o cinema nascesse na nossa frente, pura poesia.
Não se assuste com a duração, este é um dos melhores filmes que você verá na vida. Com certeza um dos melhores do mestre Manoel de Oliveira.
A Solidão de uma Corrida Sem Fim
4.1 16" - It's not that I don't like work. It's just that I don't like the idea of slaving me guts out so the bosses can get all the profits. Seems all wrong to me. "
" - I used to think it would be marvelous being grown up.
- I reckon it is.
- Oh, it is, but not in the way I thought, though.
- Why, what did you think?
- Oh, I don't know. Maybe, we don't know much yet, anyway.
- I know enough, you know, to want to know more. I've been learning a lot lately. Trouble is, I'm not quite sure what I've been learning."
Formidável !
Paris no Verão
3.9 3Até me espantei quando vi que não estava cadastrado aqui, só demonstra a precariedade da distribuição dos filmes de Jacques Rivette, uma pena. Um musical delicioso que merece ser descoberto !
Meu Bairro Vai Rachar
3.5 5“Todo o poder emana do povo (...).”
Constituição da República Federativa do Brasil (1988), artigo 1º.
" Quando o governo viola os direitos do povo, a insurreição é, para o povo e para cada parcela do povo, o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres.”
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1793), artigo nº 35.
Se você curte ou se interessa pelos outros filmes de Jean-François Richet e/ou pelo cinema de Spike Lee, Ma 6-T va crack-er (1997) é um filme essencial.
Sahib Bibi Aur Ghulam
5.0 3 Assista Agora" Então todos saberão que fui uma esposa devota, nisto reside a paz de minh'alma. "
Assim como A Sala de Música (1958, Satyajit Ray), Sahib Bibi Aur Ghulam é um filme sobre a morte do cinema indiano que combina a Índia pós-colonial com a decadência física de seus protagonistas, tudo isso ao som de muita música boa.
Como não se emocionar com o drama da esposa, que não consegue seduzir seu doentio conjugue sem se embebedar com vinho, apesar de sua beleza exótica ? A espiral mortal em que cai a personagem ganha nova força quando nos lembramos da morte de Meena Kumari, dez anos depois - e apenas um mês após o lançamento da obra-prima Pakeezha (1972, Kamal Amrohi) - vítima de cirrose hepática. Arte e vida são um ciclo eterno.
Abrar Alvi mostra claramente influências do cinema de Guru Dutt , que além de um verdadeiro 'auteur' na concepção de suas obras, mostra em Sahib Bibi Aur Ghulam seu talento como ator numa interpretação inocente, que compartilha uma semelhança com os papéis de Buster Keaton.
Cinema indiano essencial.
Hatari!
3.9 38" A maior diversão que eu já tive em um filme foi em Hatari! " - John Wayne
É incrível o quanto Hawks pode ser subestimado até pelos próprios fãs, muitos se referem a Hatari ! como uma obra menor do diretor, tal afirmação está longe da verdade e provavelmente é repetida por quem não prestou muita atenção.
Filme que epitomiza um gênero que já tinha se desgastado e entretém durante 3 horas, foi bem relevado pelos críticos da época - apesar de ter acabado em algumas listas de melhores do ano, inclusive a da Cahiers du Cinéma, onde Hatari! ficou no top 3 junto com Vivre sa Vie (Jean-Luc Godard) e Jules et Jim (Francois Truffaut) e na lista pessoal de Godard, onde Hatari! ficou em 1º lugar- mas não vejo como esse filme seja um feito menor que outras obras-primas do Hawks.
Em Hatari ! a ênfase não está na ação, mas sim no cotidiano desses aventureiros, nas conversas, nas paixões compartilhadas, nos pequenos momentos de distração, e na espera. Hatari!, mais do que uma aventura de caça, é a aventura de viver, a história da vida desses profissionais.
Existe essa noção de que um filme bem dirigido é um filme onde não se nota a direção, onde a câmera não interfere na história a ser contada, esse é meu tipo predileto de direção em filmes. Hatari! é dirigido dessa forma sutil, e isso pode incomodar quem gosta de se impressionar mais facilmente. Hawks usa uma abordagem low-key ,mostrando inclinações humanistas, ele acolhe vários personagens em um único enquadramento, afinal, estão unidos pelo mesmo objetivo, é a forma colaborando com o conteúdo. Ao mesmo tempo, ação e aventura são filmados de forma visceral e realista, o trabalho de um mestre.
Andando
4.2 58Não tem jeito, a regra familiar é evitar conflitos, independente da cultura. Diferente dos personagens que explodem em emoções e brigas no cinema, a maioria das pessoas têm pânico de confronto. Esse é um dos fatores que torna 'Seguindo em Frente' um filme tão sincero, as coisas que se passam em silêncio, os conflitos que nunca se expõem. Abafadas pelo decoro familiar existem tensões que nunca são resolvidas, apenas aceitas, o que não deixa de ser uma forma de amor. Um filme que remete muito aos de Yasujirō Ozu.
Era uma Vez em Tóquio
4.4 187 Assista AgoraJean Renoir uma vez disse que todo diretor só faz um filme durante a vida, depois quebra esse filme em pedaços e vai refazendo. Acho interessante ter isso em mente ao assistir os filmes de Ozu, principalmente os que compõem essa trilogia. Como um pintor testando diferentes composições do mesmo tema em cada quadro, é no luto de Tokyo Monogatari que ele atinge sua pintura mais solene e meditativa. Algo que sempre me impressiona é a gentileza de Ozu com seus personagens: independente de suas atitudes, nunca são julgados. A mesma gentileza se direciona ao público: não somos manipulados pelo diretor. Francamente, essa é uma característica que anda em falta no cinema atual, por isso que sempre retorno a Ozu, filmes que me permitem respirar.
Também Fomos Felizes
4.4 19Escolher um dos filmes dessa trilogia de Ozu é uma tarefa bem acirrada, mas se fosse obrigado, escolheria 'Bakushu', por mais de um motivo. Mas e a ternura de 'Banshun', ou a solenidade de 'Tokyo Monogatari' ?- alguém me perguntaria. Sim, estes são elementos que aprecio, e que estão presentes em muitas obras de Ozu (embora não na mesma intensidade que nos filmes citados), mas 'Bakushu' tem algo de especial.
Se filmes podem ser vistos como espelhos, sempre refletindo o passado e a nós mesmos, em 'Bakushu' Ozu reflete não apenas a sociedade japonesa pós-II Guerra, mas também a imagem mais acurada, mais próxima da vida e do cosmos que eu já experienciei em um filme. A história de 'Bakushu' é a história dos pequenos momentos, fragmentos que talvez passariam despercebidos, mas que reunidos criam um impacto tremendo.
Ozu adota uma abordagem episódica, isto é, a câmera não segue um personagem por toda a narrativa como a filha em 'Banshun' por exemplo. É verdade que ele pende pra esse espaço narrativo no posterior 'Tokyo Monogatari', mas aqui esse aspecto é executado de forma mais audaciosa e radical : o que presenciamos é um mosaico onde o diretor alterna generosamente entre nada menos que dezenove personagens, cada um com suas esperanças e frustrações, cada um deles fica com o espectador. Claro, pode ser dito que o filme não permite uma exploração aprofundada de todos personagens, mas eu diria que é justamente essa estrutura, junto da qualidade do roteiro que tornam 'Bakushu' tão arrebatador. O humor é outro aspecto fundamental, certa vez Chaplin disse : " Life is a tragedy when seen in close-up, but a comedy in long-shot ", e certamente Ozu tinha a mesma filosofia em mente ao realizar 'Bakushu', nunca sua temática do ciclo da vida foi executada de forma tão simples e ao mesmo tempo complexa.
Assistir 'Bakushu' é olhar um álbum de família, a câmera se movimenta pelo espaço do ambiente e nós nos movimentamos entre as intimidades de uma vida : Um grupo de amigas vai a uma cafeteria moderna bater papo após um casamento, no fundo está pendurado um quadro de arte moderna. Filhos mimados chutam um pedaço de pão, não é o presente que eles esperavam. Uma mãe fala sobre seu filho desaparecido e contempla o horizonte num ato de luto serene. Uma filha retira o avental após um dia de trabalho doméstico, só que com uma conotação diferente : essa é a ultima vez que retira o avental na casa dos pais, o tempo passa e nossa vida muda, o que será de nossa família, o que será de nossos amigos... Uma ultima foto da família reunida. Um casal reflete se levou uma vida triste ou feliz, um balão aparece no céu : o que os separa da eternidade ?
E o que acontece, depois que esse álbum fechar, depois que tudo vira passado ? Ozu filma as casas de longe, eles também foram felizes. E eu puxo outro lenço de papel da caixa. Já me emocionei com mais filmes do que gostaria de admitir, mas poucas vezes o cinema atingiu de forma tão profunda meu coração.
À Beira do Mar Azul
3.5 5Acho que nunca vi o mar em película tão lindo e reluzente como aqui. Os dois protagonistas morrem para as pressões políticas da época e renascem no mar de Barnet, um lugar onde apenas os sentimentos mais puros são permitidos, um paraíso primitivo, banhado pelo mar eufórico onde os desejos dos protagonistas são irradiados pelo corpo, pelo tato. Uma verdadeira joia.
Baise Moi
2.6 74Como já foi dito, se você vai assistir um filme chamado ESTUPRA-ME achando que não vai encontrar cenas de gosto duvidoso e/ou sexo explícito, só posso lamentar pela ingenuidade. A questão é : 1.Qual o objetivo do filme, 2.O filme é bem sucedido em sua empreitada ? A resposta para a ultima pergunta seria : provavelmente sim.
Baise Moi propõe a seguinte questão : existe um limite na representação do sexo no cinema ? Ou em outras palavras, qual a diferença entre o sexo representado num filme e a pornografia ? Sendo o cinema um reflexo da sociedade, a pornografia, em sua simplicidade simbólica, seria a sociedade em sua representação mais básica, sem os floreios e a complexidade de um cinema-arte ou até mesmo cinema popular. O brilhantismo de Baise-Moi é unir os dois através de uma ótica sem hipocrisia, de quem já trabalhou na indústria. Aqui não existe tipo algum de mistificação sobre o sexo, ele não é tratado de uma forma negativa (com exceção da cena de estupro, que obviamente é um dispositivo narrativo), como pulsão de morte, uma prática cada vez mais comum no cinema atual. A crença no desejo tão presente no começo dos anos 70 foi confiscada pelo consumismo, forçando esse tipo de representação negativa ( se psicologicamente rasa ) de alguns famosos diretores atuais.
É pedir demais querer profundidade em personagens que obviamente não são pessoas reais, são clichês feministas usadas como artifício do gênero filme-vingança. E diga-se de passagem, um bem radical e extremamente incompreendido.
Guerra dos Mundos
3.2 1,3K Assista AgoraA primeira hora de Guerra dos Mundos contém alguns dos momentos mais precisos da década passada em termos de mise-en-scène e edição, Spielberg vai cortando uma cena atrás da outra de forma extremamente ágil e habilidosa.
Na segunda parte o filme desanda um pouco, o diretor deixa de lado a alegoria politica pós-11/09 e apela pro sentimentalismo do drama familiar, um cacoete típico dele, mas que na minha opinião não compromete muito o que foi desenvolvido antes. Se a segunda parte não eleva o material ao status de obra-prima ao menos é inegável que o filme é tecnicamente brilhante, o trabalho de um mestre.
O pior filme do Spielberg ? Provavelmente não. De A.I. , passando por Minority Report até Munique, foi uma década curiosa pro diretor, não vejo como Guerra dos Mundos, em sua imperfeição, esteja abaixo do nível desses outros.